Vozes da Brasilândia - um livro de história oral

1ª edição 2018

Copyright © 2018 by Henrique Santos and Vitor Hugo Silva Todos os direitos reservados. A reprodução do todo ou parte deste documento é permitida somente para fins não lucrativos e com a autorização prévia e formal dos autores.

Organizadores Henrique Santos Vitor Hugo Silva Preparação Andressa Neto Barbara Silva Giovana Vitória Henrique Santos Lincoln Roberto Marcos Antonio Silva Nathalia Almeida Isaac Felix Pedro Pinotte Thayna Natucci Vitor Hugo Silva Revisão Juliana Ghizzi Diagramação Juliana Ghizzi Ilustração Kainã Oliveira Dos Santos Fotografias Vinícius Kerhart Patrocínio: Prefeitura de São Paulo Programa de Valorização de Iniciativas Culturas - VAI São Paulo, SP - Brasil 1ª edição 2018 Distribuição gratuita. Venda Proibida.

Eu não sei dizer Nada por dizer Então eu escuto Se você disser Tudo o que quiser Então eu escuto Fala Secos&Molhados “Fala” (1973)

Sumário 9.

12.

17.

25.

Prefácio por Jacqueline Moraes Teixeira Apresentação “No dia do meu casamento, estava todo mundo se arrumando e eu sentada no chão brincando de boneca” “É complicado falar sobre a Brasilândia e não se emocionar.”

30. “Eu sinto que sou uma mulher maravilhosa, sabe?”

36.

40.

46.

52.

“Uma coisa é você morar em um palacete e de repente você vai morar em uma favela” “Invisíveis, mas não ausentes” “Estou aqui até hoje e não pretendo sair daqui jamais” “A sala 5”

58. “Quando vai ver, você tá lá em cima” 66. “Da exclusão em questão” 70. “O único lugar que eu não vou envelhecer vai ser em uma sala de aula” 76.

82.

“Ninguém morre se permanecer na memória de alguém” “Você não sabe que negro só consegue ser alguma coisa se tiver estudo?”

86. “É a indignação”

pessoas que moram na comunidade não são aquelas pessoas que estão naquele quadradinho, 94. “As eles tem toda uma história”

112. “A minha história é a história dos outros”

126. Experiências como conclusão

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Prefácio

Finalmente chega ao grande público este significativo trabalho fruto de um projeto inovador que buscou, durante vários meses, trazer cor, sabor, memória e vozes, a uma das regiões mais importantes e populosas da cidade de São Paulo, composta pelo bairro da Brasilândia e por outros bairros adjacentes.

O “Fala Quebrada!” consistiu num projeto cujo objetivo central foi promover as muitas vozes que compõem a história de uma região que é classificada pelas políticas públicas ou mesmo, pelo plano diretor da cidade de São Paulo, como periferia. O olhar acerca dos arredores da Brasilândia, contado por quem construiu a região, acaba por deslocar os próprios sentidos da categoria “periferia”, que deixa de ser pensada por meio dos conhecidos índices de vulnerabilidade social e emerge, nas páginas desse trabalho, como uma categoria de pertencimento e de resistência.

Idealizado por três jovens pesquisadores de áreas como história, comunicação e psicologia social, a proposta visou construir uma história mediante a um exercício geracional, cujo o foco foi aproximar adolescentes oriundos do ensino médio de escolas públicas da região a pessoas em que o tempo médio de moradia da região varia entre trinta e cinquenta anos. Essa aproximação entre atores de temporalidades tão distintas configurou-se como importante para a produção da historiografia aqui apresentada, ao reunir temporalidades díspares que se cruzam em meio a coleta das trajetórias e ao registro das narrativas de vida.

10 As narrativas que compõem o trabalho conjugam a construção de um determinado espaço urbano - que não raro, passou a largo de investimentos estatais -, a experiência pessoal de quem teve a própria pele atravessada pela produção urbana de uma periferia, cercada por riquezas e especificidades culturais, bem como, pela dureza de se habitar espaços constituídos pela diversidade étnico racial, religiosa e de gênero que historicamente foram cerceadas do direito a vivência e a sociabilidade nas regiões centrais da cidade de São Paulo.

A temporalidade dessas narrativas se assenta nas experiências individuais que são rememoradas no relato das andanças, do percurso em direção a região central de São Paulo, em busca dos serviços de saúde e dos postos de trabalho. As localidades desse percurso transcendem as fronteiras da metrópole, se estendendo a outras regiões do país, tais como a região nordeste e o interior do estado de São Paulo. Em cada relato aqui apresentado é possível perceber o modo como as noções de individual e de coletivo se misturam, as memórias constroem, a partir da narrativa de suas experiências individuais, as imagens coletivas da Brasilândia enquanto espaço de habitação do público, enquanto lugar que inspira pertencimento.

Se a perspectiva individual da vivência sobre determinada temporalidade permanece estampada em cada palavra transcrita nas muitas páginas resultantes desse trabalho, a Brasilândia enquanto espaço de vivência e de pertencimento emerge representada pela ação de falar e de poder ser ouvido, algo que foi produzido de maneira cuidadosa e minuciosa no desenvolvimento de cada etapa do projeto, exercício certamente fundamental para a edição deste livro. Assim, as narrativas aqui apresentadas nos permitem pensar a fala e a narrativa de si enquanto instrumentos centrais para a produção de uma historiografia que permite acessar por meio dos meandros das trajetórias individuais, as memórias coletivas acerca da formação da cidade de São Paulo.

Esse exercício historiográfico centrado na narrativa individual e na fala permite que se desloque e que se repense os modos mais tradicionais da história enquanto fala legítima sobre a origem das coisas, concedendo possibilidade de fala e de registro a indivíduos cujas perspectivas sobre o mundo são comumente negligenciadas, ampliando tanto os lugares de fala na produção da história coletiva, como o direito ao registro coletivo de uma memória individual de quem sempre viveu a margem das possibilidades de reconhecer-se enquanto produtor de histórias.

Assim, a variedade e a riqueza do material apresentado neste livro dão acesso a leitora (o) a um universo ainda pouco conhecido pelo grande público, a trajetória de pessoas cuja vivência atravessou a produção de um lugar e de uma concepção específica de periferia, que emerge dessas páginas, totalmente permeada por outros sentidos, aqui é possível conhecer uma Brasilândia totalmente distinta da dimensão negativa que muitas vezes o bairro evoca. “Fala Quebrada!” nos permite conhecer uma Brasilândia que é sentida na pele, experienciada no corpo, cantada nas fala, com suas cores fortes, que é falada por quem a vive, por quem se reconhece enquanto história.

Jacqueline Moraes Teixeira Antropóloga - USP/Cebrap

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Apresentação

Este livro é um agrupamento de narrativas sobre a vida dos moradores do bairro da Brasilândia, zona norte da capital paulista, cujas vozes foram transcritas para o papel. E, mais do que isso, os relatos orais que compõem esse material são resultado de uma experiência pedagógica proporcionada pelo projeto “Fala Quebrada!”. A História Oral é uma área em que eu, Vitor Hugo SIlva, historiador, passei a ter interesse durante a minha graduação. Durante uma pesquisa que realizei sobre a prática de benzedura na Zona Norte de São Paulo, notei que a História Oral era o melhor caminho para tratar sobre o tema, já que é uma metodologia que estuda as narrativas por meio de técnicas de entrevista, analisando testemunhos sobre modos de vida, comunidades, acontecimentos.

A Brasilândia é um palco ocupado por histórias e experiências, não sendo um palco imóvel, mas, um palco presente, formador de imaginários, identidades, mentalidades. Além disso, é uma área que é conhecida por sua extensão, mas também pela violência, o que contribui para que haja olhares deterministas para quem ali reside. Dessa forma, a História Oral foi utilizada como forma de produzir a compreensão da história do bairro, por meio da história de vida dos moradores, bem como, a memória que possuem sobre o bairro, desde a época de sua fundação até os dias de hoje. E quais foram as mudanças que eles identificam? Quais permanências? Por que o bairro ficou conhecido pela violência e falta de estrutura? Como foi ser criança no bairro? E, as questões de ordem pública?

Já no início da minha pós-graduação, em união com os amigos, Henrique Santos, estudante de

13 Psicologia, e Juliana Ghizzi, estudante de Jornalismo, passei a idealizar o “Fala Quebrada!”, um projeto com a intenção de propagar vozes de periferias, que tem sua história abafada há décadas. Uma tentativa de dar vida a histórias das comunidades. E além disso, nos ideais freirianos, também refleti sobre a necessidade de uma pedagogia mais participativa e sobre o ensino de história em sala de aula, principalmente nas escolas periféricas. Na experiência como professor e no contato com diversas pesquisas, percebi que o aluno sente pouca identificação com o ensino de história, não conseguindo identificar em si próprio um sujeito possuidor de historicidade. Isso me impulsionou a desenvolver um projeto que pudesse estabelecer uma rede de jovens periféricos, fazendo despertar a curiosidade acerca da realidade mais próxima que os cerca: a própria rua e bairros e rompendo com o determinismo que costuma atribuir a visão do jovem de periferia de forma que este não é o protagonista de sua história.

Em 2017, por meio do edital do Programa VAI – Valorização de Iniciativas Culturais da Prefeitura de São Paulo, criei junto de Henrique e Juliana o coletivo “Fala Quebrada!”, que passou do campo das ideias e se materializou. Nos apresentamos como um projeto que utilizaria métodos de História Oral e de Comunicação para inserir participantes num processo de produção autônoma de conhecimento, em que serão pesquisadores, entrevistadores e replicadores de histórias, por meio de oficinas a serem realizadas na Casa de Cultura da Brasilândia. Este livro seria o fruto de todo esse trabalho.

De início, mapeamos e visitamos escolas públicas da região, apresentamos nossas propostas de sala em sala, distribuindo listas de divulgação e inscrição. Além disso, também fizemos a divulgação pelas redes sociais, tendo a maioria das inscrições feitas através do Facebook. Nas visitas, enfrentamos olhares desconfiados de diretores e coordenadores. Muitas escolas resistiram fortemente ao projeto.

Em alguns casos, não podemos nem ao menos ter contato com os alunos, mas também fomos muito bem recebidos em outras escolas, podendo dialogar com os alunos. Passamos a questionar o porquê da resistência à processos inovadores. Como os jovens vão conseguir entender a importância dos sujeitos históricos se não possuem autonomia nas práticas de ensino? Como entender a comunidade sendo que ela mesma não está incluída dentro da atmosfera escolar? Quando entrávamos nas salas, questionávamos os alunos: “O que é História?”, “Existem histórias mais importantes do que as outras?”, “E vocês, possuem história?”. Timidamente, alguns alunos respondiam aos questionamentos. Mas um deles nos marcou, impulsionando mais a nossa vontade de colocar o nosso projeto em prática.

No fundo da sala, ele levantou a mão e nos respondeu: “Nós não temos história, ninguém aqui é importante”.

Inscrições encerradas. Primeiro encontro. E assim nosso grupo foi formado: Isaac Felix, Pedro Pinotte, Thayná Natucci, Giovanna Vitória, Lincon Roberto, Nathalia Almeida, Marcos Antonio, Andressa Neto e Barbara Silva. Esses jovens se reuniam conosco durante a semana para aulas teóricas e dinâmicas em grupo. Demos o início a “formação de jovens historiadores”. Unimos diversos campos do saber, por exemplo: história, psicologia, comunicação social, somados às experiências trazidas por esses alunos que são moradores do bairro da Brasilândia. Uma verdadeira troca de conhecimento.

14 Trabalhamos com os seguintes temas: Introdução à História, antropologia, análise dos meios de comunicação, debates sobre os domínios da história, análise sobre o contexto social do bairro. Além disso, contamos com a presença de professores convidados: Kaue Tavano, educador e poeta, tratando do tema identidade, e Samantha Duques, que explanou sobre patrimônio histórico, cultura material e imaterial. Como resultado dessas oficinas, acreditamos que construímos um valor plural, onde além de aprender sobre outros olhares na teoria historiográfica, o reconhecimento da historicidade no outro, a abertura de olhos para outras realidades de vida, outros nuances em relação ao protagonismo social e a alteridade. Afinal, o nosso mote de divulgação do projeto era que “a história de um pode ser a história de muitos”.

A princípio, o critério de escolha de narradores foi primeiramente entrevistar aqueles que residem na Brasilândia desde a infância, ou que tivessem chegado no bairro na adolescência. Segundo critério: estimular a fala, dar autonomia ao papel de fala. O colaborador teve liberdade de falar sobre o que tivesse vontade. Muitos entrevistados se emocionaram quando começam a resgatar memórias, pois, em diversos casos, essas memórias estão ligadas com questões delicadas de classe social, racismo, questões de gênero. As personalidades são diversas, porém, podemos observar muita semelhança em relação às dificuldades vividas. Alguns são muito conhecidos no bairro, outros sempre tiveram uma vida mais discreta.

Para chegar até os narradores, utilizamos a pesquisa de campo para conseguir contatos. Rotineiramente, dividíamos o grupo e, cada grupo se deslocava para uma parte da Brasilândia. No final da atividade, nos reuníamos na Casa da Brasilândia para abrir uma discussão sobre o que cada grupo conseguiu. Às vezes, essa atividade final se estendia por algumas horas. Os alunos apresentavam várias questões, como as pessoas reagiam as abordagens, onde eles queriam ir e sobre colaboradores em potencial.

Os oficineiros seguiam mediando os caminhos da entrevista. De início, nos apresentávamos ao narrador: o que iríamos fazer com o material e quais eram nossas intenções. Logo após, apenas pedíamos que o narrador se introduzisse contando um pouco sobre a sua vida no bairro. Essa dinâmica inicial foi importante para conduzir o clímax da entrevista, deixando o narrador mais à vontade e estreitando o contato entre ele e os alunos. Conforme as falas foram surgindo, o grupo buscou estimular o resgate das memórias. Muitos entrevistados tinham um perfil de visão coletiva e por isso o relato não se resumia em narrar apenas a sua história. Isso foi muito presente em casos de entrevistas com membros responsáveis por projetos sociais, líderes religiosos, por exemplo. Mas, essa visão coletiva, nada mais é que uma construção individual da memória de quem está falando. Também nos deparamos com muitos devaneios, falas “sem sentido cronológico”, interrupções no pensamento, momentos de decisão entre falar ou não, algumas falas com um aspecto geral de desabafo. De maneira que, ficava claro para todos nós que, que o narrador pudesse ver ali uma oportunidade de falar sobre algo que estava “engasgado”.

Conforme o projeto foi ganhando corpo, notamos que a maturidade das perguntas foi crescendo, tal como, o entrosamento dos alunos. Um já sabia o campo de questionamento do outro. Lincoln perguntava mais sobre a infância no bairro, Thayna sobre questões de gênero, Isaac sobre os espaços de cultura

15 e lazer, e etc. Houve mediação em relação ao cuidado com as perguntas, elevando a importância de articular as questões com sensibilidade, para não parecer um “depoimento policial”, ou algo invasivo, já que tomamos cuidado com o fato de tratar as questões como depoimentos. Essa sensibilidade foi de extrema importância na hora de manusear os aparelhos digitais, tais como, máquinas fotográficas e gravadores digitais. Todo cuidado para não gerar nenhuma situação de desconforto para quem estava sendo entrevistado. O espaço escolhido também foi importante, visto que, o espaço da Casa de Cultura costuma ser movimentado e o som do ambiente poderia atrapalhar o desenvolvimento da fala. Nesse ponto, o grupo reservou uma sala apropriada para esse tipo de trabalho. O objetivo era de fato estreitar a relação com o colaborador, e por isso algumas entrevistas foram realizadas na casa dos próprios narradores. Em um desses casos, desenvolvemos a tradição oral, tendo três membros de uma família em uma só entrevista, que desenvolvia a narrativa do passado detalhadamente, já que uniam lembranças quase como um quebra-cabeça. O tempo das entrevistas variou bastante. Por esse motivo, o livro não possui um roteiro uniforme, pois alguns relatos possuem número superior de páginas. Não são mais importantes, só possuem características distintas. Os alunos participaram do processo de transcrição dos áudios coletados nas entrevistas e esse contato foi importante para que cada jovem pudesse dar o seu olhar. Por isso, valorizamos a escuta sincera desses relatos. Chegamos ao número de mais de 20 narradores, 15 deles estão presentes nesse livro.

Agradeço pessoas que foram de importância vital para a execução deste projeto, a todos colaboradores que participaram, de toda e qualquer maneira. Ao ilustrador Kainã Oliveira, que enriqueceu o projeto com seu trabalho artístico. Rodrigo Olegário, um dos entrevistados que nos indicou muitas pessoas influentes no bairro, de tal maneira que o projeto não teria a mesma qualidade se não houvesse o seu auxílio. Sthefani Ribeiro e Jonathan Pereira, Jovens Monitores da Casa de Cultura da Brasilândia, que nos auxiliaram na organização do espaço para a realização das oficinas. O educador Kauê Tavano, pela aula ministrada e pelas ideias trocadas. A professora e amiga de longa data, Samantha Duques, que sempre nos auxiliou no desenvolvimento do senso crítico e para a prática política. Elaine, Paula e todo o corpo de coordenadores do Colégio Solimeo. Aos profissionais da Secretaria de Cultura do Município de São Paulo e ao Programa VAI. “Vozes da Brasilândia” surge pelo incomodador silêncio.

Vitor Hugo Silva, em nome do Fala Quebrada!

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Desde o início do projeto Fala Quebrada!, o grupo demonstrou muito interesse em fazer o levantamento oral com a história de vida de Mãe Pulqueria (Maria Pulqueria Albuquerque Lins), sacerdotisa do Terreiro de Santa Bárbara, o primeiro terreiro de candomblé do Estado de São Paulo. Desde 1995, o terreiro travava uma luta para se legitimar como patrimônio cultural imaterial, sendo tombado em meados de 2014, depois de grande envolvimento por parte de políticos e professores universitários das áreas de ciências humanas e arqueologia.

O espaço do Terreiro de Santa Bárbara foi importante para o grupo entender os mecanismos que envolvem questões raciais, bem como as práticas de religiosidade e as movimentações sociais da Vila Brasilândia. Quando contatada por nós, Pulqueria se dispôs e demonstrou completo interesse em somar sua história de vida com a prática de aprendizado idealizada pelo projeto. Nós fomos ao Terreiro de Santa Barbara no dia 16 de janeiro de 2018, dando início à mais uma etapa do projeto de pesquisa. Muitos desafios e perspectivas envolveram a prática da entrevista, desde questões e saberes religiosos que envolviam alguns membros do grupo, até o fervor e ansiedade que circulava pelo imaginário dos jovens entrevistadores.

A conversa foi extremamente enriquecedora para todos. Das maiores lembranças: Mãe Pulqueria cozinhando enquanto nos preparavámos com os materiais de trabalho, cheiro de comida caseira e um contato bem afetuoso. Pulqueria fazia questão de se dirigir atenciosamente a cada um do grupo. Bem-humorada, constantemente dirigia a palavra, dando conselhos para as meninas. Fez questão de falar diversas vezes que estava contando coisas que nunca havia relatado antes. Pensar nas tradições orais dos terreiros é refletir também sobre os saberes da fala que são transmitidos para contribuir com a cura e a fé.

DIÁRIO DE CAMPO MÃE PULQUERIA

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“No dia do meu casamento, estava todo mundo se arrumando e eu sentada no chão brincando de boneca” Seria bom contar a história de minha mãe. Ela que começou com tudo isso aqui.... Faleceu em 2004.

Minha mãe, nascida na Bahia, Ilhéus, era conhecida com Oiá Manundê. Eu preciso falar dela, depois eu falo de mim... como é que eu entrei. Então, ela veio pra cá, ela raspou [ritual de iniciação do Candomblé em que é feita a raspagem dos cabelos] primeiro lá, com a Vó Nanã, isso na Bahia. Depois ela foi para Propriá, Sergipe, onde ela conheceu meus pais, minha família... Ela saiu de lá e veio pra qui. Ela veio com aqueles Paus de Arara, cinco dias, sete dias para chegar em São Paulo. Chegou aqui e foi lavar roupa para uma família chamada Munhoz, aqui na Itaberaba. Então, tinha um quartinho onde ela dava consultas para as pessoas. A polícia descobriu e foi prender ela, aí o doutor Munhoz foi lá e soltou ela. Tinha aquele chamado “Treme-terra”, esse tal “Treme-terra” incorporou nela e fez um bem para um senhor muito famoso conhecido aqui em São Paulo. Ele comprou esse terreno para seu “Treme -Terra”, que era uma entidade. Ela veio para cá e aqui era só mato ali atrás tinha um rio aqui na frente também. Chegou em 1939, desde então começou a construir com palafitas e chegou a abrigar 32 pessoas aqui dentro do terreiro de Santa Bárbara. Criou e casou. Desde então, começou a tratar as pessoas e tinha que enfrentar a polícia que sempre invadia aqui. A polícia levava ela e depois soltavam porque ela também tinha filho de santo que era policial, né? Bom, então ela veio. Era uma senhora muito antiga, ela viajava muito, as outras pessoas mais antigas do que eu tomava conta daqui enquanto ela tava viajando. Depois ela voltou para o norte e eu estava lá. Era criança e ela me

19 trouxe para cá. Nasci 1957, então ela conheceu meus pais chegou e me trouxe com 9 anos de idade e me colocou para fazer coisas no terreiro. Tinha gente que já era de idade, pessoas que tomavam conta para ela, mas os Orixás escolheram a mim e como eu era criança não sabia que eles tava me escolhendo. Quando chegou em 76, entidade dela, o orixá , incorporou, chamado “Matamba” e teve uma grande festa aqui, que me escolheram como a sucessora dela, com ela ainda em vida. Ai começou meu trabalho. Fui presa! Falaram muito mal de mim! Me casaram! Eu tinha 12 anos de idade quando me casaram, porque ela era minha mãe de criação, minha mãe de santo e minha sogra. Tinha outros filhos também, José Carlos, Creuza e Crenice, vivos. O justo era um filho biológico dela ser seu sucessor, não eu. E aí por isso existe muita confusão e assim vai… mas ainda assim, com tudo isso, depois do falecimento dela eu consegui o tombamento do terreiro e aí piorou o caso. As pessoas começaram a falar que não sou raspada, existe também muito preconceito por eu ser mulher, dentro da religião. O homem na religião é uma coisa, é visto como único, pelo fato de ser homem. Agora, a mulher se fizer uma caneta quebrar, ela é falada, difamada, é isso o que eles fazem com a mulher, mas eu nunca baixei a minha cabeça. Jamais colocaria minha religião no buraco. As pessoas falam, difamam, me dão marido sem eu ter. Eu sou viúva. Meu marido era filho da mãe Manaundê. As pessoas pensam: “São os evangélicos que fazem isso?”. Eu respondo: “Nunca! São pessoas da minha própria religião”.

Então, a minha mãe de verdade tem história! Ela era parteira. Todo mundo aqui da rua, os netos, os filhos, as pessoas, ela pegou essas pessoas, lavava roupa das pessoas. Ai comecei a emplacar uma luta para mudar o nome dessa rua e colocar o nome da minha mãe, homenagem à ela. Por questões políticas, tentaram barrar isso diversas vezes, mas eu creio que isso vai sair, afinal de contas, o que que é Rua Ruiva, quem é Ruiva aqui? Obviamente, ela como fundadora do Angola, tem os méritos de ter a rua com nome dela. Mas, é uma luta constante, porque as pessoas querem ser melhor do que aqui, mas aqui é a base do Angola, porque ela foi a primeira mulher a colocar candomblé dentro de São Paulo, tocando atabaque, cuidando das pessoas.

Eu era criança, espírita, candomblecista. Todas as casas em todos os templos, orixá escolhe uma pessoa. Mãe faleceu e eu fiquei no lugar dela e eu vou falecer, claro, eu não sou eterna, então, outro orixá vai escolher outra pessoa e assim sucessivamente. Eu era muito criança eu tinha 9 anos de idade, né? A gente do Norte tem uma cabeça muito inocente. Então, para mim aquilo foi uma surpresa. Me colocaram numa cadeira, me levaram até a porta, eu fiquei lá perguntando: o que estava acontecendo? Só foi cair a minha ficha quando eu tinha 21 anos de idade. Mas só vim sentir o peso disso depois que ela faleceu com 119 anos de idade, aí eu fui ver o peso da vida que ela vivia e eu tô aqui até hoje com uma dificuldade tremenda, não pelo Espírito, mas pelas pessoas, pelos políticos.

Chegou um homem aqui e ele estava todo amarrado, e a mãe estava doente, ela tinha sofrido com uma série de derrames. Ela disse: “Filha eu não posso ir até lá”, aí eu fui até lá. Eu senti: “Tenho uma capacidade de fazer algo com essa pessoa”. Chegou amarrado.E fui lá, dei banho fiz minhas preces...

O cara levantou e foi embora, bem melhor, eu pensei: “Eu sou capacitada!” Aí sim, eu fui acordar de

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22 verdade. Depois, cuidei de uma menina de 4 anos de idade que tinha uma doença que saia sangue pelos poros, a mãe internou ela na Santa Casa de Misericórdia, e os médicos pediram para ela procurar um outro lugar porque ali não teria mais jeito. Fui até lá e fiz um ebó, fiz o santo, ela está bem melhor.

Hoje ela é mãe. Então, aí eu acordei e percebi que eu sou capacitada, porque não adianta você querer ser uma zeladora e só enxergar bens materiais. A gente tem o dom de ser Espírita, exatamente para cuidar das pessoas! E, eu na época não tinha essa ideia que eu tinha que ajudar as pessoas, para quê que eu ia ajudar as pessoas? Eu não entendia,mas, não tive escolha, eu nasci para isso, mas, ai… nunca pensei em ser mãe do terreiro de candomblé de Mãe Manaundê. Nasci no Rancó. Nasci para ajudar as pessoas. No Rancó de Mãe Xairô, que era irmã de mãe Manaundê. A primeira pessoa a nascer em um Rancó em Sergipe, fui eu.

Minha infância foi lavando roupa, criando Iaô, fazendo ebó nas pessoas. Não sei nem andar de bicicleta, não sei. Não ia para a rua. Minha vida era aqui dentro. Eu brincava de carrinho na rua, os meninos que moravam aqui, os filhos de santo, brincavam na rua, da esquina para cá. Essa foi a minha infância. Jogava bolinha de gudi, castanhola, pedrinha, brincava com corda, não tive uma infância de sair e ir para o parque. Na minha cabeça eu queria brincar, não tinha pensamentos de querer ser uma coisa ou outra, eu fui fazer isso depois dos 20 anos e percebi a responsabilidade de tomar conta de uma casa, de uma senhora de 119 anos, era uma barra. Eu levantava a bandeira de minha mãe, então, eu não pensava em nada, eu queria mesmo era brincar, mas a minha brincadeira era aqui dentro.

E, eu não sabia o que era cinema, não sabia o que era andar de ônibus, até hoje eu não sei, nunca andei de ônibus porque ela não deixava eu sair daqui de dentro. Aqui antigamente era só mato, só mato, só mato, a chuva vinha e os móveis já ficavam todos boiando, então, eu não conseguia ter um pensamento de almejar alguma coisa, de ter uma bolsa ou mochila, quando eu fiquei com 16 anos, as pessoas trabalhavam, eu fui trabalhar de recepcionista e eu não consegui trabalhar. Nunca tive vida de trabalhar. A vida de sair.

Estudei na Brasilândia a vida inteira, nunca ninguém me tratou com desdém. Até porque eu não falava disso na escola, eu negra, macumbeira, já imagina? Iria ser apedrejada. Quem veio aqui foi a polícia, por denúncias. Denunciaram minha mãe falando que ela fazia sacrifício de criança...ela era parteira, de onde tiraram que ela fazia sacrifício de criança? Gente que não tinha noção. A polícia entrou aqui, veio três carros cheios de policial, não tinha uma mulher no meio, porque antigamente era muito raro ver mulher nesses meios. Todos bem armados, entraram aqui, derrubaram tudo, quebraram o quarto, pegaram mãe e quando chegaram no portão, todos eles viraram um santo chamado Ogun. Eu digo por que estava presente! Era muito criança. Todos eles dançaram, depois de incorporados pediram desculpas e depois começaram a frequentar aqui. Era assim. Mãe Manundê colocou pessoas para raspar, ai eles entraram, levaram ela, cercaram ela e ela continuou cantando.

Trabalhei no antigo Mappin [loja de departamento] quando eu tinha 20 anos. Veio um moço aqui na mãe, e ela me arrumou um emprego, para trabalhar lá de recepcionista. Trabalhei uma semana, na semana seguinte, a entidade me trouxe para as atividades. A sensação que eu tive foi que eu

23 desmaiei...só sei que eu acordei aqui em casa, daquele dia pra cá não trabalhei mais. Já tentei trabalhar de balconista, muitas coisas, mas nunca eles deixaram... Eu parei de trabalhar fora para servir as entidades e assim eu aceitei que assim que tinha que ser, e assim tem sido até hoje. Eu queria ter o que todo mundo tinha, todo mundo tinha um salário no final do mês, eu também queria ter um salário. Eu tenho três filhos, o Bruno, Rubens e Elaine, e dois netos, Camille e Nicolas. Na época eu tinha dois filhos pequenos, então, eu queria ter o meu salário, para comprar o leite, a fralda, a fralda era de pano. Mas, o orixá não deixou. Eu fiquei aqui. Me casei aos 12. Fiquei 20 anos casada. Antes você era prometida ao marido. Minha irmã isabel já tinha o dono da farmácia que ia casar com ela, a gente já estava tudo prometida, acabou que fugimos e ninguém casou como prometido. Eu tinha sido prometida para um fazendeiro, mas eu vim para cá e a mãe me casou. Eu não sabia o que era casamento. Houve estupro e aí ela me casou com o filho dela.

Meu pai, Manuel Albuquerque Santos, foi coronel. Primeiro homem de Propría a classificar as sacas de feijão. Viajava muito. Ele era Ogan, tocava atabaque. Ajudava muito as pessoas e se dava muito bem no meio da política. Meu pai não aceitou que eu viesse morar aqui. Meu pai descobriu o que tinha acontecido comigo e veio para matar os dois. E foi embora e me levou junto. Depois eu voltei, pois já tinha acontecido a “caca”, que ele que fez, eu não tive culpa. Mãe Manaundê me casou sem meu pai saber. Meu vestido foi cor de rosa, a moça não era virgem, então, não podia casar de branco, ai sim meu pai se revoltou. Eu tinha ódio do meu marido, mas não da mãe. Fui forçada a fazer coisas que eu não queria. No dia do meu casamento, na igreja da Freguesia do Ó, estava todo mundo se arrumando e eu sentada no chão brincando de boneca. Então, dela eu não tinha raiva, e sim dele. Nunca me apaixonei e estou sozinha até hoje. Mãe Manaundê foi casada com 12 anos com um dono de fazenda.

Antigamente tinha isso. Sou feliz por ter seguido com o legado. Sofri bastante por isso, ela me batia, me surrava. Hoje eu entendo que ela estava me ensinando a viver, porque ela não iria estar aqui. No Leito de morte ela me disse: “Filha, você vai passar por isso, isso e isso”, tudo o que ela me falou eu passei e ainda passo. “No final você vai vencer, mas vai ter que passar por isso. Tudo o que fiz foi para você aprender”. Eu sofri, vocês não sabem como sofri. Por isso hoje eu sou uma mulher completa.

Mãe Pulqueria (Maria Pulqueria Albuquerque Lins), 61 anos Sacerdotisa do Terreiro de Santa Bárbara

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O Antônio, o Tio Tó, sentou-se conosco para conversar na Casa de Cultura da Brasilândia no dia 13 de dezembro de 2017. Referência na época da juventude para o bairro, estava com um pouco de pressa, e ao contrário das outras entrevistas que duravam duas ou três horas, esta durou apenas 50 minutos, pois o entrevistado tinha que levar doações que estavam em seu carro.

Tio Tó falou sobre sua família, o jeito que se relaciona com a Brasilândia, sua história em atividades culturais e artísticas do bairro, e a forma com a qual vê o mundo. A partir deste relato, podemos observar como os “fronteiras geográfica” estão presentes no imaginário, não só deste, mas de vários outros cidadãos da Brasilândia: Onde termina o bairro? Onde começa? Há mais de um subdistrito?

Qual a importância de cada um deles em comparação aos outros maiores?

Observamos também que, ao contrário de todas as falas contrárias à realocação da escola de samba Rosas de Ouro, comumente destacada pelos moradores do bairro, Tio Tó tem uma posição favorável ao acontecimento, e como sambista, explica porquê deu-se desta maneira.

DIÁRIO DE CAMPO TIO TÓ

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“É complicado falar sobre a Brasilândia e não se emocionar.”

Bom, meu nome é Antônio Francisco da Silva. Meu apelido de infância era “Toninho da Paraíba”. Meu pai era paraibano; Minha mãe Paula e meu pai Francisco, mas o apelido dele era “Paraíba”. Aqui onde a gente tá fazendo essa entrevista hoje, era um pasto. Era tudo mato e tinha um campinho ali embaixo, onde tinha esse prédio aqui, tinha um campo, e a gente atravessava por aqui; era o caminho para ir pra escola, no caso, Colégio João Solimeo e também pra ir lá pra cima pro ponto final da Brasilândia.

Meu pai abriu essa rua aqui na enxada e no facão pra poder passar por aqui por baixo, pra chegar até a Brasilândia, onde é o Colégio Galdino. O Galdino não tem nada a ver com o meu pai, nem com a minha família, esse sobrenome Galdino veio da Paraíba, não sei se é italiano ou espanhol. Tinha o Barracão, não é do meu tempo, mas dos meus irmão, então, para os meus irmãos irem estudar no ginásio, eles iam para esse Barracão. Não tinha Solimeo, nem Galdino. Era uma casa bem grande, que dava aula para as crianças, para a alfabetização. E aí meu pai abriu essa rua aqui, do Jardim Guaraú e Gonçalves Centeno, que na época era assim que era chamado essa região aqui.

Em 71, minha família sofreu um golpe. Meu irmão tomou um tiro de bala perdida e veio a falecer.

Ele nasceu em 1951 e faleceu na semana que iria fazer 20 anos. E aí, em 1978, meu pai e a família recebeu a homenagem… Uma homenagem meio que dolorosa, mas algo que a prefeitura prestou ao desempenho do meu pai dentro da sociedade aqui do Morro Grande e da Brasilândia. Ele era peixeiro, mas era muito ligado à política. Meu pai era cientista! Era um louco! Ele não sabia fazer um “A” mas meu pai falou: “Ali vai passar ônibus, ali vai ter uma avenida”... E hoje eu passo por todos os lugares que ele falou que iria virar avenida, rua: “Tá vendo aqui, esses matão? Isso aí vai ser cheio de casa, vai encher

28 tudo de casa”. Encheu de casa mesmo, prédio. Quando precisava de alguma coisa, ele arrumava. Ele tinha o jeito dele, os amigos dele dentro da política que fazia com o que as coisas acontecessem. E aí, o prefeito da época, colocou e esse nome na rua: Raulino Galdino da Silva. A sociedade Amigos do Bairro tinha uma equipe, era: Seu Francisco, Joaquim Simões, Seu Luiz e vários outros; Seu Joaquim foi uma pessoa muito importante aqui. Ele foi um dos primeiro policiais sargentos, ele morreu como tenente. Ele foi uma pessoa muito influente aqui, um dos primeiros policiais do bairro, uma pessoa que a gente não podia esquecer… A família sumiu, pouca gente lembra dele!

Em 1978, eu era o “Tó do Skate”. Andei muito de skate, surfei. Tudo o que vocês fazem hoje, eu fazia duas vezes antigamente. Porque tinha muita energia. Hoje em dia, a energia do jovem é droga. A gente saía daqui e ia pra praia de trem, desci no cabo de aço… A gente ia pra lá pra Jundiaí pra poder pegar o trem e ir pra praia; saía daqui e ia pra Jundiaí andar de skate, pois não tinha Half aqui. Pra comprar uma parafina, só quem fazia balão! O rolamento, que antigamente se chamava “Bília”… pra vocês que não sabem o primeiro skate que veio pro Brasil: “Torlai e Nakami”, eu tive as duas! Eu saía daqui e ia pro Ibirapuera de skate, de Calói 10. Hoje em dia ninguém sabe o que é isso, nas de hoje tem até motor. Então, por esse motivo eu falo: o que vocês fazem hoje, eu fiz duas vezes antigamente, porque era muito mais complicado que hoje; hoje é muito mais fácil de fazer as coisas. E eu fico muito feliz que eu ainda vejo jovens se reunindo, como vocês estão fazendo aqui. Porque, o que está estragando hoje é a política. Ontem, foi a política, anteontem, também foi a política. Cem mil anos atrás era a política também. Já ouviu falar de “Ali Babá e os quarenta ladrões”? Então, já era política.

Quer dizer, como que vai arrumar um bagulho desses, se não for vocês? Porque eu não arrumo mais, parceiro. O Brasil só vai melhorar se vocês forem pra cima, como teve a ditadura, expulsaram os caras daqui: GIlberto Gil, Caetano Veloso… se for falar todos os caras, a gente fica até amanhã aqui.

Eu já fiz muita coisa, já segurei muita coisa… de falar pra você assim “Eu fiz”. Eu não esperei, eu fiz.

Então, hoje, como o Raulino é meu irmão, o pessoal sempre passa as coisas pra mim. Esses dias eu apareci na Rede Globo, no SPTV, já é a segunda vez. Estourou um cano de água com a Rua Raulino com a Manoel de Souza Azevedo, e a água jorrava; o bem mais precioso que a gente tem, a água!

Liguei pra SABESP e nada, fiz três protocolos e nada! Sete horas da noite eu liguei pra imprensa, daí me responderam: “Faz um vídeo”. Quando foi de manhã, a equipe da SABESP estava lá, 8 horas da manhã! Sabe quantos carros veio? Seis carros, seis. Quer dizer, tem que fazer tudo isso pra ser aceito o meu pedido, que eu tenho direito, que pago aquela água que tá sendo derramada? Acho que nada tem que ser assim, né. E aí eu falo pra vocês: “Tudo o que vocês fizerem aqui vai ficar marcado, pros seus filhos, netos, bisnetos”. Esse negócio de falar assim: “Ah, vai acabar o mundo”, vai mesmo, só pra quem morreu. Pra essa pessoa acabou o mundo. Eu, enquanto estiver aqui, quero estar assim, fazendo alguma coisa que possa ficar, quem sabe pro meu neto, pro meu bisneto, pra ele lembrar um dia de mim.

29 Eu sempre fui do Samba. Montamos um bloco de escola de Samba Unidos do Guaraú. Meu irmão mais velho, o Dinda, Carlito, Davi, Ditão, Zé Secretário, Everaldo e o Tuta. O Tuta correu atrás de tudo, ele e o Dinda. Eles levarão o Guaraú pra frente. Pegamos a roupa do time do futebol, o primeiro e o segundo quadro, vinte e duas pessoas na bateria, as crianças com roupinhas de fantasia que a mãe dava… Paramos a Lapa! Eu estourei a minha mão no instrumento, falei: “Vamo mostrar pra esses caras quem somos nós”.

Eu era o primeiro Repilique. Hoje em dia eu parei, a idade não permite mais, que aí tem tendinite, tudo que tem “íte”. Coisa de velho mesmo. Aí, eu fui mestre da bateria, de 1987 a 95, ensinando todo mundo a tocar e fazer o samba com a gente. Depois, eu fui ensinar fora de São Paulo. Fui pra Vinhedo, Louveira, Campinas, ensinar a tocar samba. Lá o pessoal tocava Fanfarra, e eu fui ensinar Samba. Cheguei lá e peguei segundo lugar. E fora o samba, também fui de pagode: eu toquei no grupo 24horas, no grupo Pura Semente, todos os grupos que tinha fama eu tava tocando junto. Falam muito sobre a Rosa de Ouro ter saído da Freguesia, mas vou falar como que foi. O nome do lugar que eles desfilavam era Malocão, aqui na Parapuã. Eu falei que a gente tava dentro do pasto e que ele mudou e virou um conjunto de prédio, né? Se o Rosas de Ouro tivesse no mesmo lugar, não era o que é hoje, a escola famosa. A Brasilândia cresceu, encheu de casa, que não ia suportar o barulho, ia ter que sair de qualquer forma. Então, quando a prefeitura arrumou aquele espaço pra eles, e eles fizeram a quadra, pra eles foi maravilhoso. Querendo ou não, a Freguesia, ela é Brasilândia. Se acontecesse uma acidente algum acidente, chacina ou alguma coisa do tipo, no Penteado: é Brasilândia. Foi no Carumbé? É na Brasilândia. Foi no Damasceno? É Brasilândia.

Parque Antártica? É Brasilândia. Final da Inajar de Souza, Penha Brasil? É Brasilândia. Então, a gente tá cercado pela Brasilândia. Antes da ponte é periferia, depois da ponte, tudo é mais caro. Nós somos a periferia, nós levamos o dinheiro pra eles… A Brasilândia, em 1970, foi o pior lugar do mundo. Não tinha Afeganistão, China, Indonésia… não tinha. Nessa época, tinha até terrorista aqui… É complicado falar sobre a Brasilândia não se emocionar. A imigração chegou, a construção de prédios, a promessa do metrô… é inacreditável falar que ela tá ligada somente com a criminalidade, isso dói, machuca. Em Santa Tereza, no Rio de Janeiro… Rio Cumprido, é lindo, Corcovado, Pão de Açúcar, Morro Dois Limão, Mirante Dona Marta, é lindo, tudo lindo… Mas se falar do Rio de Janeiro, o pessoal fala: “Nossa, Rio de Janeiro é perigoso demais”. Nesse caso, ainda é o Rio de Janeiro todo, cê entendeu? Aqui é só a Brasilândia. O povo daqui é resumido por essa fama. É isso que machuca quem nasceu e se criou aqui.

Tio Tó, Antônio Francisco da Silva, 54 anos Aposentado.

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Dona Neusa, ao ser contatada pela equipe, mostrou-se muito entusiasmada com o nosso intuito de registrar a sua história em um livro sobre o bairro. Seus relatos dialogam com aquilo que já havíamos discutido e conversado nas oficinas com os alunos: racismo estrural e institucionalizado e suas consequências, ausência de representatividade social e lugar de fala, machismo, entre outras questões.

Nos encontramos pela primeira vez no dia 07 de novembro de 2017. Neusa, maquiada e perfumada, compareceu à Casa de Cultura da Brasilândia para conversarmos sobre ela e suas vivências no contexto do bairro. Como havíamos conversado anteriormente ao telefone sobre o trabalho, ela compareceu no dia indicado com livros de sua própria autoria, além de jornais da época com notícias relacionadas aos espetáculos e atrações em que ela fez parte.

O conteúdo observado nesta entrevista foi adquirido de maneira paciente e compreensiva, principalmente, acerca de conteúdos mais impactantes, como os assuntos relacionados à família e vivências traumáticas. Mas mesmo diante de tantas adversidades da vida, Neusa mantém-se firme, tentando adquirir meios para melhorar a vida dos familiares.

DIÁRIO DE CAMPO DONA NEUSA

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“Eu sinto que sou uma mulher maravilhosa, sabe?”

Meu nome é Neusa Aparecida da Silva Caixeta e eu tenho 71 anos, tive 23 filhos. E teve muita morte na minha vida, perdi 19 filhos, todos na maternidade, não veio pra casa, nascia e já morria: 19. Fiquei com 4 quatro filhos maravilhosos que é o Cláudio, Janete, Claudinei e Fabiana que é a caçula. Aí Claudinei teve filhos. A mãe deixou pra mim os três: Bruno, Paula Breno, esse que tá fazendo tudo pra cantar . A minha vida foi muito sofrimento. Eu comecei a escrever livro, mas assim, o livro que escrevi sobre a minha família, só foi sobre a vida de Claudinei, meu terceiro filho. Eu sou uma mãe assim: eu vou até o portão e “vai com Deus”, pois sei que ele os protege. O resto é tudo livro que se eu sentar e pegar um caderno, já monto uma novela, escrevo um livro, faço desenho. Só que eu corri bastante pra conseguir um patrocinador porque eu não tinha como. E faz muitos anos, desgostei e parei. Aí comecei a cantar no barzinho, porque eu nasci com esse negócio de câmera, de microfone, sabe? O que eu mais gostava de fazer quando criança era pegar a vassoura e fingir que era microfone e ficar cantando, sabe? Essas coisas. Eu tinha vontade que pegassem e pusessem uma corda enorme na Parapuã, pra eu correr, andar de cavalo, moto, alguma coisa. Minha mãe falou: “Tem alguma coisa com você de se aparecer assim no público”. Sabe, começou assim? Eu já nasci assim. Estudei até o segundo ano do primário só. Eu cantei no barzinho, fiz filme, muitos filmes com a minha filha caçula, a Fabiana. Hoje estou com 71 anos, mas continuo lutando. Quero fazer mais filme, eu gostaria de publicar ou de vender esses livros, pra um filme, uma novela. É maravilhoso esses livros, então eu ainda fico sapateando pra chegar porque eu acho que eu não morro sem conseguir alguma

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coisa. E de tanto eu fumar, eu perdi a voz. O cigarro acaba com a gente.

Então, eu sou meio rouca, mas eu não era. Eu cantei de quinta a domingo, num barzinho grande no Limão, que era o orgulho da minha família, todo mundo sentava pra assistir eu cantar. E continuo, sabe? Fiz comercial de cesta básica, que recebia a cesta do governador de Sâo Paulo; Estava toda chique, de brincos, sabe? Era pra eu ter ido toda simples, sem pulseira, sem maquiagem, mas eu não conseguia, então eu fui toda arrumada e eles fizeram mesmo assim. Eu achei que a cesta básica era pra levar pra casa, mas eles não me deram. Fazia parte da figuração também. E acho que mais uns três comerciais. Novela não. Filme foi bastante. “Quanto vale ou é por kilo?”. “Carandiru”. Minissérie. Fiz vários com a minha filha.

Adoro fazer papel de escrava, mendiga, nossa, eu adoro. Eu fiz muito de mendiga também, e até o diretor ficou bravo comigo: “Você tá vestida, pintada toda de mendiga e andando desse jeito, tira”. Ficou bravo de verdade pra mim. Adoro ser mendiga, escrava, apanhar, esse tipo de coisa eu gosto. Eu tenho muito trauma de feia. Um trauma muito forte, eu já sofri muito com essa trauma. Eu não gosto de me ver em foto. Eu acho que é trauma de pequena, de alguma coisa. Eu já cresci assim. Então eu acho que fazendo de mendiga, escrava, sabe? Porque eu não vou pensar em outro tipo de coisa, então acho que eu gosto, adoro ser mendiga, escrava,

33 apanhar, esse tipo de coisa eu gosto. Porque eu comecei a namorar com um filho de italiano e não foi por causa disso. Eu já tinha trauma já. Acabou de me esculhambar. Então, a gente começou a namorar e quando eu fui conhecer a família dele.

Eu sou negra, né? Cê já viu o que que deu… O meu nome era “Macaca”, “Que parecia com macaca”… Então eu já tinha trauma de pequenininha, e ele era branco, sabe? Então, depois que eu casei com ele e tudo, então eu fui sentindo que, mas eu gostava de branco, então, pra casar eu gostava de branco. Eu não sei explicar o porquê. É o mesmo problema das minhas irmãs, uma foi com português, outra… Tudo com branco. Meus nenéns nasciam, pra ajudar, nascia tudo branco, que nem o pai. Minha família dava aqueles carrão de bebê, eu punha no carrinho pra ir passear com o neném, minha cunhada falava assim: “Nossa, se os outros ver, vão falar que é babá”. Eu falei: “Não, mas o negro também... sai branco com negro, também sai branco, né?”. O trauma foi que foi bagunçando mais. E hoje os menino são moreno claro, puxando mais pro meu lado, e as menina são branca, tudo de cabelão, tudo branca.

Eu não sei se eu já ouvi alguém falar: “Nossa, Dona Lourdes, seus filhos são tão bonitos, só a Neusa que puxou pra senhora”.

Então eu não sei se foi disso, porque o meu pai era bem moreno, mas ele tinha o nariz afilado, ele tinha covinha, sabe? Ele era um neguinho bonito. A minha mãe era clara, ela tinha o nariz bem chato, né? E então eu puxei mais pro lado dela, entendeu? E sou feliz por isso, mas alguma coisa eu ouvi pra poder crescer assim.

E eu achava minha mãe bonita porque eu maquiava minha mãe, sabe? E deixava ela bonita, mas quando se tratava de mim, eu chorei muito já, muito muito. Antes de cantar no barzinho, antes de me maquiar para ir, eu sentava no banheiro e chorava tanto porque eu queria ter um pouquinho só de beleza. Então é uma coisa que, acho que, de pequena, veio e ficou. Isso é uma coisa é uma coisa de mim, tem dentro de mim. Mas eu dentro de mim, achando tudo isso, eu sinto que sou uma mulher maravilhosa, sabe? Que atrás de mim tem uma grande mulher. Eu sou baixa, mas eu sinto que tem uma grande mulher. Eu sou uma mulher tudo de bom. Eu acho tudo de bom: sincera, mulher que gosta

34 de ajudar as pessoas, que gosta de fazer as pessoas sorrirem, porque eu gosto de umas piadinhas, brincar. Minha filha fala: “Eu não sei como a senhora não tá lá na Praça é Nossa”, falei “Deus me livre”.

Então, é tudo coisa assim, eu dou um valor muito grande.

Neusa Caixeta, 71 anos Atriz e escritora

“A gente todos somos sangue, porque todo sangue nosso é vermelho foi foi foi até não ser nada e ser tudo parente, e é assim dessa vida a gente não leva nada procurar ajudar, quando eu enterrava meus filhos então eu olhava assim, filho é osso, sangue, carne é tudo da gente, então você imagine o que eu já passei, tudo bebezinho eu não levei um para casa,eu não merecia passar por isso, mas tudo bem…” (Trecho retirado de um dos livros que Neusa apresentou ao grupo durante o encontro)

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Esse narrador possui um comércio na Vila Brasilândia e é uma figura muito conhecida por todos. Foi na sua loja que Ítalo nos recebeu no dia 16 de novembro de 2017 e deixou claro que iria continuar trabalhando enquanto falasse conosco. O entrar e sair das pessoas, em sua loja, foi muito importante para entendermos a dinâmica de relacionamento desse personagem com a comunidade. Encostado no balcão da loja, Ítalo, resgatou importantes memórias de sua infância na Vila Brasilândia. Por conta das expressões e falas objetivas, principalmente quando se dirigia aos jovens entrevistadores, o grupo analisou que o narrador enxerga muita diferença entre a juventude atual e a da sua época de adolescente.

DIÁRIO DE CAMPO ÍTALO CAIRO

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“Uma coisa é você morar em um palacete e de repente você vai morar em uma favela”

Eu sou o Ítalo, tenho 57 anos, nasci aqui na Brasilândia. Me casei em 85, fui morar na Vila Bancária.

Então, moro aqui há 25 anos. Meu pai veio da Itália com 16 anos, direto para a Brasilândia, depois da Guerra, mais ou menos, na década de 50. Meu pai era barbeiro na década de 70. O bairro começou a crescer, então, ele conta que naquela época foi quando surgiu os Beatles aí a turma só queria cabelo grande, ninguém queria mais cortar, os Beatles eram cabeludos, e ele falou: “ Bom, começou a ter muita escola, o bairro começou a crescer mais”. Ele pulou para esse ramo lojista e eu continuei. Isso aqui já tem história, começou com meu avô, então já tem por baixo uns 60 anos, meu pai e meu avô vieram juntos para cá, veio a família toda, meu avô, minha avó, meu pai e meu tio. Estavam passando necessidade na Itália, por isso que eles vieram para o Brasil, falavam que vinham tentar “fazer a América”, “fazer a América” quer dizer ficar rico. O Brasil estava crescendo e tinha trabalho em abundância, lá não, era uma cidadezinha em Santo Arsênio, Napoli, que só tinha agricultura. Meu avô veio para o Brasil, uns foram para os Estados Unidos, outros para a Argentina, cada um pegou o seu rumo. Aqui na Brasilândia só tinha pobre, rico não morava aqui. Até hoje, são famílias muito humildes. O bairro era pequeno, o máximo que chegava era até a Vila Terezinha, depois veio Guarani, Vista Alegre, Damasceno, foi só esticando. Tem lugares que são melhores, tem favelas. Viraram muito as costas para Brasilândia, demorou muito para chegar as coisas aqui, hospital, agora o metrô, só Deus sabe quando.

38 Os políticos aqui do bairro, eles vinham aqui na loja para pedir voto, queria fazer acontecer. Quando eleitos, esqueciam a Brasilândia, a maioria deles e, foram vários. Era para a Brasilândia ter crescido muito mais. A Brasilândia já tem 60 anos, mas tudo demora para chegar, as prefeituras são poucas, o Metro mesmo, era para ficar pronto em 2014, estamos em 2017, nem começou praticamente.

A Freguesia sempre foi um bairro mais... Tanto é que, você antigamente saía, por exemplo, para qualquer canto aí da cidade, você pegava um táxi, principalmente à noite e falavam: “Aonde você vai?

Brasilândia? Deus me livre Brasilândia não levo, não levo não”. Você tinha que falar: “Na Freguesia do Ó”, assim eles vinham. Ali na Itaberaba, um pouquinho mais para frente, o cara falava: “Ó até a Igreja, até a Igreja eu te levo, da Igreja para frente eu não te levo”. Também existe essa fama com o Uber, o que é uma grande mentira, porque se assalta Uber no centro da cidade. Dizem que a Brasilândia pegou essa fama por causa daquele tal de Gil Gomes, que era um repórter policial, que tinha um programa na rádio. Tinha o jornal também, acho que era notícias populares que era só jornal, só relacionado ao negócio do crime, então, estampava a Brasilândia.

Meu pai não viu muita diferença quando veio morar aqui, pois as ruas também eram de terra, tinha poço, mas uma coisa é você morar em um palacete e de repente você vai morar em uma favela. Meus colegas eram filhos de portugueses, espanhóis, italianos, japoneses. Naquela época já tinha campo de futebol, então a gente tinha os times, jogava time contra time, tinha só a galera, você montava o jogo, de camisa e tudo e jogava contra o outro. Quem ganhava ficava com a Flâmula era esse o prêmio, e tinha um senhor que treinava o time a coisa era mais oficial, disputava campeonato, mas a gente não era assim, vamos jogar em tal lugar, no campo, e às vezes tinha lugar que você era obrigado a perder, que se você ganhasse você apanhava. “É, você vai na casa do outro lá e quer enfiar 10 a 0 então, se você ganhar aqui vocês vão...”.

Também frequentávamos o cinema. Era uns bancos de madeira que doía as costas pra caramba.

Pulga, pulga à vontade, por que era de taco né, e aquilo ali não tinha dedetização. A matinê era de domingo à tarde e tinha os filmes proibidos na época. A gente falsificava a identidade para poder entrar. Documento, carteirinha de escola, a gente falsificava. Mas, de repente, assim, pelo físico do moleque você via que não tinha idade. E, passava muito, era “Roberto Carlos em ritmo de aventura”, o filme “Dio Como Eu Ti Amo”. Eu lembro que eu fui assistir um filme aqui no cinema da Brasilândia e fiquei quase uma semana sem dormir, foi o filme de terror “O Exorcista”, a menina girava a cabeça em 360°. O cinema ficava onde era o Taca-Taca, às vezes, o segurança deixava a gente entrar à noite.

Depois começou a surgir os shoppings e o cinema do bairro foi perdendo espaço. Depois que abriu o shopping, o shopping tinha praça de alimentação, estacionamento, então você ia para o shopping invés de ir para o cinema daqui, como ainda é hoje, né. Às vezes, o projetor enroscava, o filme parava, tinha que esperar, todo mundo xingando, tinha o lanterninha que passava para ver se não tinha ninguém se pegando. Ítalo Aparecido Coiro, 57 anos Comerciante

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O encontro com Luiz Martins aconteceu no dia 17 de novembro de 2017 na Casa de Cultura da Brasilândia. Antes de falar conosco, ele estava sendo entrevistado pelo jornal local da Freguesia do Ó. Artista plástico com exposições nacionais e internacionais, tivemos dificuldade para encontrar um espaço em sua agenda. Na ocasião, Luiz estava retornando da Europa para a Brasilândia, bairro que mora desde a adolescência. Seu relato trouxe um debate já presente nas oficinas do grupo, sobre a “invisibilidade” e como ela está presente em suas obras e até em seu cotidiano.

DIÁRIO DE CAMPO LUIZ MARTINS

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“Invisíveis, mas não ausentes” Olha, eu sou do norte de Minas, do Vale do Jequitinhonha. Eu vim pra São Paulo, com 17 anos. Eu venho de uma família muito humilde lá do norte de Minas. Vim pra cá, para a Brasilândia, porque perdi meu pai com 11 anos de idade. Como todo migrante, cê vem para São Paulo, para ganhar dinheiro, para juntar dinheiro para ajudar sua mãe a criar os irmãos. Quando eu saí de Minas, eu saí de uma cidade que tinha 2 mil habitantes, foi um grande choque pra mim. Chegar em São Paulo é você sair de uma vila e encontrar um mundo. Foi um choque pra mim,foi a possibilidade de saber que o mundo era muito maior do que as duas ruas da minha cidade. Na minha cidade que eu vivia, eu estudava, tomava banho de rio como qualquer outro caboclo, criança do interior do Brasil. Não tinha outra vida, a vida fora de Machacalis, eu conhecia através da televisão que pegava muito mal e era Rede Globo, fora isso, nada. Então, foi um choque muito grande, culturalmente falando e estruturalmente, emocionalmente muito grande, porque ali como eu vim pra São Paulo em busca de melhorar de vida para ajudar a minha família, quando eu cheguei aqui senti que haveria essa possibilidade. Na memória trago a imagem das casas amontoadas, não estava acostumado com isso. Sempre conheci casa normal, de roça, de fazenda. Então, quando cheguei na Brasilândia em 1987, olhava para os morros e me questionava, o que é isso? Esse choque está muito impregnado na minha vida e no meu trabalho, de forma bem delicada. A Brasilândia ela está presente na minha vida, na minha arte Acho que a periferia em geral. E essa periferia que eu me identifico, que eu busco colocar no trabalho, acho que é uma periferia universal, porque são esses resquícios desse material, desses arranjos que

42 geralmente o homem periférico faz para sobreviver, que me interessa quanto artista visual. O que está presente na periferia, a questão visual da periferia, a poluição visual e pra isso, uso no desenvolver do meu trabalho, eu comecei a usar chapas velhas que eu procuro nas ruas, procuro nas vielas, favelas. Eu retiro essa chapa, porque eu acredito que ela tem uma carga de energia, uma história diferente. Esses materiais possuem uma história a ser contada, a ser disseminada na sociedade. Eu uso esse material para fazer meu trabalho. Muitas vezes essa obra de material periférico vai parar em paredes de apartamentos de 1 milhão de reais, é uma forma de conectar as realidades, pois, dificilmente essa classe teria contato com algum homem periférico.

Busco entender a construção desse território, como as pessoas conseguem sobreviver aqui, com esses movimentos, com essas muvucas? Carregava comigo uma ideia de simplicidade, mas aqui conheci outro tipo de simplicidade e, passei a me questionar sobre a vida nesse espaço. Cheguei com 17, e precisava ajudar minha mãe e meus quatro irmãos, só depois que comecei a entrar nessa história de arte, na verdade, ela que entrou na minha vida, de maneira poética, de maneira inusitada. Tudo começou quando assisti ao filme “Sociedade dos Poetas Mortos” a partir desse filme, eu consegui perceber que é possível lutar e conseguir o que quer.

Eu cheguei e o meu tio foi me buscar na rodoviária, demorei três dias para chegar em São Paulo, porque morava em uma cidade pobre, chovia muito e o ônibus não conseguia andar. Fiz uma peregrinação, sai de Machacalis e fui para Belo Horizonte, de lá vim para cá. Mas, no meio do caminho meu ônibus quebrou. Cheguei na Brasilândia com 17 anos nunca mais saí. Em 1991 eu comecei a fazer um curso em um ateliê de arte, esse curso durou três meses, comecei a gostar desse negócio. Fiz o curso e comecei a trabalhar de assistente de uma artista famosa, Renata Barros, na época, tive que largar meu antigo emprego e viver com o dinheiro da poupança. Mas tudo acaba, não é mesmo? Tive que procurar outro emprego, então, em 1994 eu comecei a trabalhar em uma fábrica de vassouras que se localizava no bairro da Luz, trabalhei um ano e meio, depois precisei voltar para a arte.

Um artista, Zélio Alves Pinto, amigo da Renata Barros, estava retornando de Nova York e precisava de um assistente. Zélio era considerado o “novo Ziraldo”, e com ele fiquei trabalhei por 14 anos. Nesse momento comecei a ter um contato mais forte com a arte, comecei a fazer coisas no salão e a expor o que fazia. “Ah, Luiz, tem um lugar para você expor suas coisas”, eu ia lá e fazia.

A minha primeira exposição foi em 2002, em uma galeria comercial. Em 2008 eu realizei minha primeira exposição grande, no MUB - Museu de

43 Escultura Brasileira. E, minha carreira começou a se desenvolver, realizei exposições grandes, mas até hoje as pessoas do bairro não sabem que sou artista, vou para o boteco com os meus amigos e eles perguntavam o que eu fazia, respondia: “Sou pintor”, e de fato sou pintor mesmo, mas eles acham que sou pintor de parede. Acredito que seja falta de respeito da minha parte, de não explicar para eles. Mas, hoje, alguns já sabem. Outros ainda acham que pinto paredes em Higienópolis, onde fica meu ateliê, me perguntam se as madames de Higienópolis são bacanas e se ganho dinheiro pintando a parede delas. Alguns já até me contrataram para pintar a parede das suas casas. Sou um profissional igual a um faxineiro, igual uma outra profissão.

A diferença é que o meu trabalho é um pouco intelectualizado, não é só fazer o manual ele é um pouco além disso. Muitos amigos me perguntam por que moro na Brasilândia até hoje, eu sempre respondo: “Isso não vai me fazer uma pessoa melhor”. Antigamente eu não dizia que morava na Brasilândia, por vergonha, por achar que iria ser discriminado, mas a partir do momento que eu comecei a ter consciência da minha carreira, do que faço, do que sou, deixei isso de lado. Então, hoje não tenho vergonha de dizer de onde eu vim, de onde eu moro e o que eu faço. Acredito nisso. Aqui no Brasil, existe o pior tipo de racismo. Você precisa conhecer o seu inimigo para conseguir combatê-lo, mas aqui no Brasil isso é difícil, pois, a sociedade acredita que não existe racismo. É uma sociedade racista e excludente, ela não inclui o ser humano, o cara pobre da periferia, em todos os níveis da sociedade cultural, por isso que prefiro ficar aqui, não para defender uma maneira, mas por não existir necessidade de sair daqui.

E quando você quer entrar em determinado local as vezes é mais cômodo para você dizer de onde você não é. Você vai ser muito melhor recebido no lugar se você disser que é da Freguesia do Ó, do que se você disser que é da Brasilândia, porque quando esse racismo, esse preconceito brasileiro é tão malvado, tão perverso que quando você diz, eu sou da Brasilândia ele vai primeiro pensar “Você é um bandido, você é um traficante”. Ele nunca vai ter aquela primeira impressão: “Puts, ele é um intelectual”. Porque na cabeça do brasileiro do centro, ele não acredita que uma pessoa da periferia, tem um doutorado. Então, assim no meu caso é uma questão de comodidade, era de vergonha, porque eu precisava ser inserido naquele mundo que eu estava entrando, é elitizado. A arte, infelizmente, no Brasil, é elitizada. As artes plásticas, as artes visuais, ainda mais. Então, a pessoa humilde em geral, nunca tem acesso. Ela se sente excluída, pela barreira invisível criada por essa parte elitizada. Por exemplo, eu trabalhava com o Zélio, que é um grande artista e tinha os filhos deles, assim, existia uma diferença muito grande, é até engraçado, porque eu trabalhei 14 anos na casa dele, o ateliê dele era nos fundos. Eu nunca tinha sido convidado pra sentar na mesa, pra tomar café, depois que a minha carreira se constituiu, ele me convidava pra sentar pra tomar café na mesa, só que eu não sento e até hoje, eles me perguntam por que que eu não vou sentar na mesa.

Eu não respondo porque não há necessidade e, continuo o mesmo ser humano. Só que quando eu era funcionário dele, ele nunca me convidou pra sentar na mesa, mesmo que eu não podia, eu era empregado e por que agora? Eu estou no mesmo nível que ele, agora eu posso sentar à mesa com ele, eu não sento.

Eu continuo na cozinha falando e tomando café, conversando com a empregada, quando eu vou na casa deles, eles acham isso um absurdo. ”Como um artista internacional fica na cozinha comendo”. Mas o artista internacional, o ser humano Luiz continua a mesma coisa, não muda nada!

Acontece sempre comigo, eu tenho uma loja de molduras, eu faço produção para alguns museus, para galeria de produção cenográfica e as vezes é um momento que uns meninos que trabalham comigo,

44 não podem entregar um quadro para um cliente, eu vou pego o quadro, e levo ao cliente. Geralmente, a gente como sabe no Brasil, se entra pela entrada de funcionários de serviço, e muitas vezes a pessoa me pergunta: “Ah, coloca esse quadro aqui, fica bom, o que que você acha?”, eu começo a contar, conversar com ela e quando ela percebe que eu entendo de arte, depois me pergunta o que que eu faço, além de carregar quadro. Eu falo: “Não, eu sou o dono da empresa e sou artista, aí ela quer que eu saio pela porta da frente, só que eu não saio por ela, eu continuo saindo pela mesma porta... Então, essa coisa acho muito perversa no Brasil, e por isso que eu continuo na Brasilândia e vou continuar sempre na Brasilândia!

Até hoje você pegar um táxi, falar que vai pra Freguesia, tudo bem, mas, se falar que vai pra Parapuã, que é continuação da Itaberaba, tá ali, ele não te leva, porque é Brasilândia. Isso é uma questão: quando eu citei essa comparação é que já está intrínseco na sociedade paulistana, de definição de bairro. Quando eu chegava de viagem da Europa e pegava um táxi, falava para o cara: “Eu vou pra Brasilândia”. Ele não queria me trazer. “Mas como é que... você está vindo da Europa e está indo para a Brasilândia?”. Eu respondi: “O que tem de errado estar vindo da Europa e morar na Brasilândia?”. Ele me olhou pensando que eu fosse algo, traficante, não sei. Quando eu tenho que ir pegar o táxi, para vir do aeroporto, geralmente eu pego para endereço da Barra Funda que é do meu ateliê, eu não pego pra Brasilândia, porque eu não acho nenhum táxi que vai me trazer aqui.

O ser humano hoje é muito vulnerável a essa invisibilidade, como Ítalo Calvino escreveu sobre as Cidades Invisíveis. Comecei a pensar a minha arte a partir desses fragmentos deixado pelas pessoas. Recolher móveis velhos jogados na rua, e esses móveis jogados na rua, tem uma história, um personagem daquela peça. Só que, isso é muito de São Paulo, essa coisa de jogar os móveis na rua, porque isso: o invisível, mas não ausente. Você pega uma cama que você construiu uma história, e você joga fora essa história fora.

Eu pego esses fragmentos da rua e reconstruo, em uma outra peça, é assim um móvel que foi construído para o privado, ele vai para o coletivo. A partir daquela história e eu chamo de invisível, no sentido de que isso está tão intrínseco na nossa sociedade, nas nossas ruas que a gente já não se dá conta desse entulho, vamos dizer assim jogados na rua ele já faz parte da composição estética da cidade. A gente passa por ele todos os dias, e essa memória é frágil.

Falo exatamente desse homem invisível, que nós acostumamos a passar por ele, sem perceber que é um ser humano. Nós, sociedade, fazemos isso todos os dias, isso é uma crueldade muito grande, porque quantas vezes na sua vida você percebeu a pessoa que mora na rua? Se passar uma pessoa bem vestida na tua frente, no teu lado, você até olha e diz bom dia, boa tarde, boa noite. Agora se passar um excluído da sociedade, você não faz isso. Eu só passei a dizer de onde eu sou, de onde eu vim, depois que eu tomei consciência de quem eu sou. É, não é o meu estado social, que me faz melhor ou pior, é meu estado como ser humano, e como ser humano, eu sou digno de qualquer lugar, de qualquer sociedade, de qualquer grupo da sociedade: política, social ou cultural. E a partir disso é que eu convivo com a sociedade. É esse um dos motivos no qual eu não saio da Brasilândia Luiz Martins, 47 anos Artista plástico

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O contato com esse narrador se deu a partir de uma observação que os próprios membros do grupo fizeram sobre outras atividades culturais que aconteciam na Casa de Cultura, concomitantemente aos nossos encontros. Seu João, como é mais conhecido, participa, às quintas-feiras, do grupo de dança de idosos. Ele é o único homem de um grupo de cerca 15 mulheres.

Quando chamado para participar do projeto, ele nos disse que estava muito feliz e ansioso. Conhecemos um pouco sobre o Seu João no dia 19 de dezembro de 2017. O senhor revelou-se ser um verdadeiro contador de histórias, discorreu, com pitadas de humor, sobre o passado de sua família e sua saga para vir da Bahia para São Paulo. É um migrante assim como muitos outros moradores da Brasilândia.

Descontraído, quando começava a falar, não parava mais.

A entrevista durou cerca de 3 horas, uma das maiores realizadas em todo o projeto.

DIÁRIO DE CAMPO SEU JOÃO

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““Estou aqui até hoje e não pretendo sair daqui jamais”

Olha, o João nasceu no sul da Bahia, em 1942, 13 de Dezembro, fui duma família humilde. Então, nós somos de uma família humilde, temos ainda, até hoje, um sítio lá na Bahia. É.. Família de Dez irmãos, como eu falei pra vocês, mas, quatro morreram após o nascimento, eram gêmeos, e criarão os outros seis, tinha dificuldade e tudo, e a gente fazia o que era possível né, dentro das possibilidades. Trabalhavámos plantando. Na época lá, tinha cacau, tinha café, plantava mandioca, colhia frutas, banana, laranja, mamão, enfim, tinha uma série de frutas que cultivávamos lá no sítio.Nós também vendíamos essas frutas no final de semana nas feiras, né, para completar a despesa da semana. Também fazíamos farinha de mandioca que era o forte da região no nordeste. Hoje não é mais. Vendia muito café, cacau, vendia muito cacau e a farinha de mandioca que tinha poucas outras coisas, mas era, o produto de subsistência. A farinha da mandioca utilizava pra tudo: tirava a fécula, usava a farinha, fazia biju, tinha pão. Quem morava na roça e não tinha pão utilizava isso aí como alimento.

Pois bem, e fomos crescendo. Não tinha escola na época lá nessa região e quando nós tínhamos mais ou menos onze anos de idade... Meus pais eram analfabetos, só que meu pai conhecia o abecedário. Como é que chamava? Cartilha. Abecedário. Ele sabia todas as letras, então ele nos ensinou todo o abecedário, ele conhecia a letra de ponta a ponta. Então foi assim que nós aprendemos. Quando nós tínhamos dez anos pra onze anos de idade, mudou uma pessoa lá do sítio vizinho e a moça sabia ler, e escrever, sabe aqueles analfabeto funcional? Sabe ler e escrever porém, só isso. E a minha mãe colocou a gente nessa escola dessa moça, como não tínhamos dinheiro pra pagar, a minha mãe engordou um porco pra moça. Era eu meu irmão gêmeo e a minha irmã e meu outro irmão, eram quatro, nessa escola. Com seis, dois meses, aliás, com duas semanas que nós estávamos nessa escola eu já aprendi a fazer meu nome, porque o abecedário eu já sabia

48 todo, de ponta cabeça, né, e então foi fácil ajuntar as letras. Com seis meses nessa escola, ela falou que não tinha mais o que ensinar pra gente porque a gente já sabíamos mais do que ela, o fato é que ela nem as as operações ela sabia, quem ensinou foi um primo dela, que sabia as três operações, não sabia as quatro. Ai, terminamos lá com essa escolinha e fomos trabalhar. A minha mãe ficou doente, ficou de cama: seis meses de cama. O meu pai com uma perna quebrada, o fêmur quebrado, do outro lado da cama. E eu e meu irmão tínhamos que trabalhar na roça pra formar o sustento da família, que nós éramos em oito pessoas, então eu e ele tinha que ralar, pra levar comida pra eles, tá certo? Vida dura, não tivemos infância. Que infância? Tem é quem pode ter infância, porque comecei a trabalhar com cinco anos de idade. Aquela infância só de domingo podia brincar de alguma coisa.

Mudamos era 60, no começo de 58, pra Jequié, ficamos lá na cidade de Jequié. Fomos morar num bairro chamado Mandacarú que é um bairro vizinho, A cidade, é do lado do Rio de Contas, que passa a rodovia lá que hoje é a BR 116. Comecei a trabalhar de servente de pedreiro, meu pai trabalhava na joalheria. Cada um fazia uma coisa pra ajudar na despesa da família. Quando foi 62, a minha irmã, ela veio pra cá pra São Paulo, com uma pessoa conhecida, que foi, inclusive, a minha professora. Passado três meses, o meu irmão gêmeo veio, mas daqui foi pro Paraná. Muita gente vinha no “pau de arara”, sabe? Aqueles caminhões com carroceria coberta de lona e banco de madeira que traziam o pessoal de lá pra cá. Vinham muito de lá de Pernambuco, Alagoas, Sergipe, por esses lugares. O meu irmão arrumou uma vaga lá no pau de arara e veio pra cá, mas quando eu vim, tive uma sorte de arranjar um caminhão de um rapaz lá, conversei com ele, ele falou pra mim que vinha. Ele mentiu pra mim, falou que vinha pra São Paulo, e eu perguntei na época o preço da passagem ele falou que o preço que ele me cobrava pra me levar até São Paulo era de 350 cruzeiros, então acertei com ele. Daí veio eu e meu amigo e quando chegou no estado de Minas, ele falou assim: “Olha, no momento eu não vou pra São Paulo, vou pro Rio de Janeiro”. “Pô, mas você falou pra gente que ia”. “Não, não esquenta a cabeça que eu vou arrumar um caminhoneiro colega pra levar vocês pra São Paulo”. Daí, encontrou um cara que vinha sozinho aqui pra São Paulo, conversou com o cara lá e eu cheguei aqui dez horas da noite. Dia primeiro de novembro de 1962, dia de todos os santos. Passei uns 20 dias aqui, mas não conseguia arrumar emprego, por que eu fui me alistar lá no exército e não fui dispensado. Daí, sem emprego, pagando pensão, sendo que não tinha como pagar pensão sem ter emprego, óbvio, né. Fui pro Paraná, fiquei mais ou menos três meses trabalhando na lavoura, nas coisas de café, carpir café, colher feijão. Trabalhei três meses lá e depois resolvi voltar, voltei e comecei a trabalhar na empresa que eles trabalhavam com ar-condicionado, uns nove meses nessa empresa aí. Mandaram embora por causa do exército porque se você for entrar numa empresa, e for trabalhar, e for servir, a empresa é obrigada a pagar o fundo de garantia, não sei se essa lei ainda vigora ainda, né. Quando a pessoa se alistava, eles pagavam e mandavam embora. Depois eu fui trabalhando fazendo um bico daqui, um bico dali… Nós tínhamos alugado uma casa lá na avenida Itaberaba, perto do Maracanã, e morávamos lá eu, meu irmão e mais três rapazes, que eram amigo da gente. Dividia lá o aluguel. Ai chegou as minhas irmãs: a casada, com uma filha pequena de oito meses e mais uma outra irmã de 17 anos. E mais dois, um casal que era primo da gente com mais duas filha e mais uma sobrinha. Então, foi assim: eu e meu irmão, dois, mais três, cinco, e quatro, nove, acho que era dez pessoas em um quarto e cozinha. Cê imagina o furdunço, hein Então, quando todos nós chegamos aqui em 67, não tinha nada aqui, só tinha mato, isso aqui ó, isso aqui era uma chácara, aqui onde tem esses prédios era uma chácara, essa rua aqui, a Raulino, antes ela chamava Rua do Sabão, porque escorregava muito. Ninguém parava em pé, aqui era terrível, pra gente subir aqui em

49 frente ao Solimeo, você precisava ter coragem para subir aí em tempo de chuva. Só foi asfaltado em 1982.

Não tinha água, era tudo poço. E o ônibus Brasilândia fazia final aqui. Até agora fizeram essas duas pistas ali, perto da padaria, o ônibus fazia final bem em cima do comecinho, o Brasilândia/ Lapa; Também tinha o que sai do Paulistano pra vim pra cá, o 9047, então ali ó, pra pessoa pegar o ônibus lá, tinha um ônibus pra cidade também. Tinha até polícia, pois era invasão, nego ficava na fila sentado no lugar preferencial, daí quando invadia, rapaz, era um pau! Quase todo dia saía briga aqui no ponto final pra ir pegar o ônibus pra ir trabalhar, porque era lotado demais e tinham poucos ônibus. Eu também pegava, pois trabalhava lá na Rua Comendador Souza,que é a travessa da Santa Marina e eu pegava o ônibus no Morro Grande, tinha o Morro Grande, que hoje faz o final do Vila Iório, depois passou pra rua. Não faz muitos anos que eu pegava o Morro Grande e ele fazia final na rua Comendador Souza, cortou ali pela Lapa, mas ali era terrível, muitas pessoas trabalhavam ali na Santa Marina. Geralmente eu saía do serviço e sempre tinha uma pessoa morta lá, o trem passava em cima, não tinha nenhuma proteção na via, né? E o bairro foi crescendo, crescendo, crescendo, foi comprando e vendendo, tinham muitos barracos aqui também. Desmancharam os barracos e iam construindo suas casinhas em torno dos barracos. Essa rua aqui, por exemplo, a Raulino, chamava-se a Rua do Sabão, ela ganhou esse nome porque um morador dessa rua foi morto por um ladrão. Ele matou o rapaz aqui em cima, aí foram na prefeitura, conversaram e colocaram o nome desse rapaz Raulino Galdino da Silva. Tem histórias de muitas pessoas aqui. Tinha uma pessoa que morava num barraco aqui na rua, ela morreu queimada, o barraco pegou fogo e ela morreu queimada, junto com barraco. Aconteceu muitas coisas outras coisas: teve um cara aqui na rua da feira, segundo falaram, eu não sei muito bem a história dele, mas ele veio fugido, disseram que tinha matado uma pessoa lá em Pernambuco. Era um senhor baixinho, tinha as pernas meio tortas, e aí, eis que ele brigou com cara uma vez, bateu no cara que vendia bilhete na loteria federal, e bateu no cara no sentido de paulada e tal, e recebeu uma intimação para comparecer na delegacia para esclarecer lá o que aconteceu. Faltando dois dias para ele ir lá, para atender a intimação, um menino do lado da casa dele, não sei se ele tinha um coelho, mas foi uma história mais ou menos assim, parece que o menino mexeu no coelhinho dele, daí ele foi lá e jogou água fervendo no moleque. Queimou todo o moleque, chamaram a polícia. Quando a polícia veio, ele lá de cima já recebeu a polícia na bala, deu tanto tiro, que a bala chegou a atingir o sargento. Ele era um morador daqui, aí pegaram jogaram bomba de gás lacrimogêneo lá, e o cara pulou, daí meteram uma rajada de metralhadora no meio dele. Claro, colocaram ele numa ambulância, levaram ele para o hospital e ele não morreu. Você acredita num negócio desses? Não morreu! Passou, mais ou menos um ano e pouco, esse cara volta, morreu depois não sei do quê… Já houve também uma chacina aqui no bairro, atacaram umas pessoas aqui, mataram 3 e feriram 2, foi quase perto dessa escola aqui em baixo. Isso na década de 90, entendeu? Aqui onde é essa escola tinham Campo de futebol chamado Campo do Guaraú. Joguei bastante bola lá. Depois de Guaraú passou para a “Família Unidas” que era uma família que tinha esse campo de futebol, também participava e outras coisas aí bailinho, tinha baile de carnaval, tem os prédio novo aqui na curva da Maria Nazário.

Eu me lembro muito bem da Rosas de Ouro. Ela ficava aqui em cima, em frente à Sevilha em frente a Sevilha, era ali Rosas de Ouro, mas não cheguei a frequentar não, nunca gostei de participar de escola de samba não, eu tinha muito compromisso, trabalhar e tal, que minha responsabilidade era muito grande. Eu ia perder dia, porque o cara pagava por dia, podia fazer falta no final do mês. No Morro Grande, tinha um cinema no ponto final do Morro Grande. No cinema tinha uma pincelagem chamada Fábrica do Tomás. Tinha também um cinema aqui perto, aqui em cima, que não me lembro o nome, mas tinha um cinema ali. Todos os filmes

50 que passava na cidade passavam ali, era muito bom na época; Só passava filme Circuito. Circuito Serradouro passava todos, os filmes da cidade, todos os grandes temas na cidade passava no Circuito Serradouro. Assisti muitos filmes bons como Bang Bang. Filmes de comédia eu assistia aqui, no Morro Grande. Eu fui só duas vezes. Eu assistia mais aqui.

Não tinha essa escola Solimeo, a Escola Solimeo foi construída na década de 70, só tinha o Galdino, que era primário, ginásio, colégio tudo lá no Galdino. O bairro da Brasilândia é um bairro que era famoso, todo mundo conhecia. O cara de outro bairro falava: “Eu não vou na Brasilândia porque se eu entrar lá eu vou apanhar”.

Eu morava lá na Vila Penteado e vim aqui na Brasilândia e nunca apanhei, então depende de você também.

Se você vai para algum lugar a fim de se divertir, você sabe entrar e você sabe sair. Ninguém dá nada para ninguém, pode ter certeza se alguém te oferecer alguma coisa, tem uma música que fala muito sobre isso: “Laranja madura, na beira da estrada, tá bichada, Zé, ou tem Marimbondo no pé”. E é verdade. Minha mãe já falava assim pra gente: “Olha, uma pessoa analfabeta…”. Minha mãe nasceu em 1914, né, mas ela tem uma sabedoria e o conhecimento filosófico que está na vivência no aprendizado, no ensinamento dos pais, dos avós, né, na sabedoria.

Eu queria estudar para ter possibilidade de ter alguma coisa que eu não tinha, ganhar minha casa, minha família, poder ajudar meus pais que era meu principal objetivo. E aqui é uma cidade que oferece oportunidade para todos que querem oportunidade, não é? Então todos que vieram de lá para cá vieram com esse objetivo: de crescer, fazer alguma coisa em benefício próprio, não é? Esse foi uma das razões, e graças a Deus, estou aqui até hoje e não pretendo sair daqui jamais.

João Pereira de Souza, 76 anos Técnico Mecânico

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O relato de Luiz Flávio foi a prova de que o projeto estava no caminho certo, do ponto de vista de desenvolvimento da autonomia dos alunos: ela foi organizada e executada unicamente pelos jovens oficineiros. Realizada no dia 21 de janeiro de 2018, a entrevista foi intensa e cheia de conteúdos importantes sobre o bairro.

Luiz Flávio, com base na sua história de militância dentro do bairro, é um agente de mudança, sacrificando boa parte do seu tempo de vida em prol do auxílio aos moradores da comunidade. De maneira direta e confiante, prendeu a atenção dos que registravam o seu relato oral.

DIÁRIO DE CAMPO LUIZ FLAVIO

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“A sala 5”

Eu sou Luiz Flávio Lima, tenho 34 anos e eu nasci no distrito da Cachoeirinha, mas eu vivi a maior parte da minha vida na Brasilândia. Com 1 ano e 6 meses de idade mudei para Brasilândia, vivi até os meus 26 anos e meio de idade, ou seja, 25 anos da minha vida foram na Brasilândia, ali na rua do ponto final da lotação da lotação do Jardim Guarani/ Barra Funda, no Itambé.

Ficava dentro de casa o tempo todo, só saía para ir pra escola, onde estudei a vida inteira, desde a primeira série do Ensino Fundamental até o terceiro ano do ensino médio, a Escola Ubaldo Costa Leite. Como não tinha nenhum amigo, não tinha nenhuma atividade fora ir para escola, mas lá dentro, eu ajudava uma série de coisas, ajudava o pessoal da biblioteca… Então, com 11 anos de idade, eu basicamente cuidava da biblioteca da escola sozinho, e a bibliotecária tinha alguns problemas de saúde, era eu o responsável por emprestar os livros para todos, organizar a água limpa. Era um bibliotecário assistente da escola.

Com 15 para 16 anos, eu comecei a participar de um grupo de jovens na Paróquia São Francisco de Assis que fica ali próximo da minha casa, que deveria se dedicar aos estudos bíblicos da crisma mas a gente acabava discutindo política, economia, acabava discutindo questões sociais que a gente que eram relevantes pra gente... Lembrando que essa época era 1998, a gente não tinha grandes aspirações de entrar na universidade, porque não existia universidade pra quem pobre, né, todo mundo ali do grupo era bem pobre e morava no Princesa, no Elisa Maria, Jardim Guarani, no Carumbé, vivia nessa região, então ninguém estudava pra ir pra universidade, todo mundo terminava o Ensino

54 Médio e ia trabalhar, que era função que a gente tinha. Então a gente discutia essas questões: o acesso à universidade pública, o acesso à moradia digna. Tinha projetos dentro e fora da comunidade, por exemplo, um dos projetos que a gente acabou executando foi construir uma biblioteca Comunitária dentro do espaço da Paróquia. Uma outra coisa que nós tínhamos como prioridade era a reativação da rádio comunitária dentro da Paróquia… Então, a gente fazia projetos sociais dentro do âmbito da igreja, dentro das ferramentas que a gente tinha na igreja e as pessoas frequentavam ali, e aí a gente pensou que o importante não era só ocupar o espaço da Paróquia mas também ocupar os espaços de participação dentro das escolas, então foi aí que surgiu ideia de criar um grêmio estudantil dentro da escola onde estudava, e a gente teve um apoio de muitas das pessoas, muitos também eram da mesma escola que eu estudava, então a gente acabou se organizando para a criação deste grêmio.

Disputamos e vencemos as eleições. E aí a gente começou a criar projetos articulados entre o Grêmio e o grupo de jovens, ao mesmo tempo. E isso ganhou força, fez com que a gente tivesse bastante visibilidade dentro do bairro, fazendo com que as pessoas nos olhassem como referências de jovens que faziam coisas pela comunidade, pelo bairro que a gente tava vivendo. Isso foi até o ano de 2000.

Quando a gente terminou a escola, não tinha muito para onde ir, né, não existia ProUni, FIES, bolsa de estudos também não, nada dessas coisas de hoje em dia. Para entrar numa universidade pública é impossível para quem estudou em escola pública,teria que fazer três, quatro, cinco anos de cursinho pré-vestibular para tentar uma vaga numa universidade pública, porque a única universidade pública que a gente tinha na cidade de São Paulo era a USP. Então, a gente não sabe o que fazer, eu fiquei completamente perdido quando chegou no último dia de aula, no ano 2000 eu tava terminando não sabia o que ia fazer da minha vida, bateu uma uma crise danada!

Então, eu entrei no processo seletivo para me tornar sacerdote da igreja católica, para me tornar padre, porque era a única coisa, eu falei: “A única chance de eu estudar e fazer uma universidade era virar padre”. Não sei se vocês sabem, para você ser padre, você precisa fazer duas universidades, você precisa fazer filosofia e teologia, e é totalmente pago pela igreja católica. Então, eles pagam os seus estudos, as duas universidades, a casa onde você vai morar, a sua alimentação...Então é assim era a única estudar de graça, é a única chance de estudar de graça em uma universidade e sair formado em duas carreiras era se eu virasse padre. Daí entrei no processo seletivo e acabei passando por uma série de entrevistas e dinâmicas, durante um ano. É tipo entrar numa empresa e é uma das maiores empresas do mundo, a Igreja Católica, né, é bem concorrido, daí eu passei e fui selecionado. Mas aí acabei desistindo do processo seletivo desistindo, porque eu pensava que tinha continuar a fazer os projetos sociais, tocando a minha vida na comunidade, e mesmo que eu não estivesse mais na escola, eu ainda poderia influenciar os jovens que tivessem lá, as pessoas que ficaram no Grêmio, foi justamente aí que eu conheci o Instituto Sou da Paz que tem vários programas e projetos para o desarmamento da população e trabalha com a polícia militar para que ela seja mais próxima da Comunidade e menos violenta. Então conheci o Sou da Paz e eles estavam desenvolvendo um projeto chamado CENAFOCO, na época o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Na visão dele e na do PSDB era: “Se você quer acabar com a violência, você tem que ocupar os jovens que provocam a violência”. Então, eles começaram esse projeto na Brasilândia e no Capão Redondo que eram regiões mais violentas da cidade de São Paulo. Eu fui da primeira turma que participou

55 desse projeto. Uma das coisas que o projeto previa era que os jovens criassem intervenções sociais na comunidade, fizessem projetos de repercussão social ou ambiental na comunidade onde eles estavam inseridos. Nessa época eu tava no meio do curso e tava lembrando que a gente era muito fodido de grana.

Eu tive que sair e conseguir um emprego. Fui trabalhar num bingo e deixei meus companheiros tocando os projetos que a gente tinha iniciado e depois de 8 meses e falei: “Não dá mais, eu vou voltar pro que eu tava fazendo antes”. E foi aí que eu e o Ivan, meu grande parceiro de vida e melhor amigo, criamos o Instituto Sala 5. Hoje vocês tem a Casa de Cultura da Brasilândia, CEU Paz, CEU Paulistano, Centro Cultural da Juventude, mas nada disso existia naquela época, nem projeto tinha para Brasilândia, não tinha espaço cultural, a única Casa de Cultura que tinha era da Freguesia que era de outro Distrito, e a gente que mora no Paulistano, Eliza Maria, Princesa, Damasceno, não tinha dinheiro para ir até lá, apenas andando, mas tinha que andar pra caramba para chegar! Então, era muito difícil. A Brasilândia sempre foi conhecida como o lugar que não existem praças públicas, nem parques. Então a gente tinha que criar alguma coisa que desse para gerar oportunidade pra essa galera que não tinha nada para fazer, foi assim que criamos a Sala 5. Uma salinha, em cima da padaria do Jardim Guarani, que era o ponto de referência de mais importância do bairro, e lá gente começou a dar curso de desenho, de inglês, espanhol, teatro, artes plásticas, informática, música e ali naquele espaço acontecia. Todas eram gratuitas. Você me pergunta: “De onde vinha o dinheiro para bancar isso tudo pra bancar isso?”. Os professores eram todos voluntários, eu inclusive era um deles. A coordenação também era toda voluntária, ninguém ganhava nada pra ganhar lá. Então a gente precisava de dinheiro para pagar aluguel, luz, água. A gente se organizava para

56 conseguir esse dinheiro. Não existiam também editais de fomento a projetos culturais: não existia PROAC, não existia VAI, a Lei Rouanet que era para os grandes espetáculos teatrais, cinema e tudo o mais, para gente que já tem dinheiro, né. A gente não tinha dinheiro, e fazia festa da pizza. Os nossos alunos eram responsáveis por vender os tickets da festa, e daí se quebrasse uma janela, por exemplo, era assim que a gente ia arrumar.

Eu pensei: “porra, a gente precisa crescer, precisa de dinheiro para fazer as coisas darem certo, para chegar em outros lugares, outros bairros para gerar mais oportunidades para mais jovens”. Nessa época, a gente estava com um público de uma 120 a 150 pessoas participando das atividades da Sala 5, aí eu falei: “Se eu voltar e conseguir um emprego fixo, a gente consegue aumentar isso”. Então aí eu fui e voltei pro bingo, pra um cargo que eu ganhava mais e comecei a colocar todo o dinheiro que eu ganhava nos projetos que a gente fazia. Nessa época, a gente chegou a 500 jovens simultâneamente.

Eu era o autofinanciador dos projetos da sala 5. 500 jovens participando da atividade!

Começou a somar com muita gente, várias pessoas querendo fazer parte e participar e nós continuamos sendo referência dentro do bairro. Se tinha alguma mãe que tinha um filho que tava dando trabalho: “Ele é um vagabundo, não quer saber de estudar, só recebia reclamação da diretora da escola”. E levava lá na Sala 5, falava: “Dá um jeito no meu filho”. Daí a gente ia lá e encontrava o que ele e colocava ele no caminho bacana. Como sempre tinha bastante conversa: “E aí, que você gosta de fazer? Vamos experimentar inglês. Não gosta?”. E acabávamos descobrindo que o cara era bom em teatro ou ele sabia desenhar muito bem e podia participar do nosso projeto de revista.

Essa rotina aconteceu até 2010 até o final de 2011. Nessa época, tive que dar uma pausa na minha carreira de empreendedor social porque eu cheguei aos 26 anos e não tinha absolutamente nada.

Tudo que eu tinha ganho, tinha investido nos projetos sociais, mas e ainda não tinha dinheiro para pagar ônibus. 26 anos de idade não tinha dinheiro para pagar o ônibus! É complicado! Eu precisava viver, não tinha tem tempo para nada, nem para sair com os amigos, nem pra namorar, nem para viajar…. Eu pensei: “Tenho que dar um tempo agora. Quando me estruturar , quando tiver melhor a gente volta a fazer projetos sociais”.

Nesses mais de 10 anos de projetos desenvolvidos na Brasilândia, foram milhares de pessoas. Temos a estimativa de que cerca de dez mil pessoas passaram pelos projetos da Sala 5 ao longo desses 10 anos, e não só na região Brasilândia, mas também no Estado de São Paulo, pois a gente começou a desenvolver com o Governo do Estado em outras cidades do estado, e isso fez com que a gente tivesse um número muito grande de pessoas atendidas e participando do nosso projeto.

Luiz Flavio Lima, 34 anos Produtor Cultural

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O último narrador que encontramos. No dia 24 de janeiro de 2018, às 14 horas, pontualmente, estávamos passando pelo Largo da Pancada para, em seguida, chegarmos à residência de Luciano, que é atleta paralímpico oficial da seleção brasileira.

Durante seu relato, ele nos contou que as escadas que o levam para o segundo andar de sua casa não exigem tanta dificuldade, pois é lá que ele e sua esposa dormem, assim como também os locais em que ele toma banho, se veste e prepara para o dia de trabalho. Mesmo diante de uma história de vida com episódios trágicos, Luciano conta a forma com que leva sua vida, sempre exaltando a necessidade de ser positivo e que o caminho é em estar em movimento.

DIÁRIO DE CAMPO LUCIANO LUNA

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“Quando vai ver, você tá lá em cima”

Eu até tinha feito uma entrevista pra “A Liga”, na época do Rafinha Bastos, Thaíde. Ele veio na Brasilândia, catou a cadeira: “É, agora vou ser igual a você”. Falei: “Quer mesmo? Então já começa a sentar na cadeira de rodas aí”. Daí ele sentou na cadeira. Vish, só puxar aí no Youtube pra ver. Ele esfolou a mão, caiu na cadeira pra trás. Fomos ali no Correio da Itaberaba, eu cheguei lá e não tinha vaga pra cadeirante. Nós fomos lá e metemos a boca reclamando e os caras foram lá e fizeram o negócio. O Rafinha chegou em casa: “E aí, Luciano, quando você quer pegar aquela lata de leite ali em cima, como você faz?”. “Ah, mais isso é fácil, fui lá fora peguei o rodo, puxei a lata de leite. Aí, é fácil. Tá no alto? Nóis pega.”

O Luciano é um cara alegre, feliz, tem 40 anos. Sempre fui trabalhador. Minha vó me colocava no portão da escola para entrar, eu entrava e saía pelo outro portão, ia pra feira trabalhar. Ela sofreu comigo assim. Minha infância foi muito legal, brinquei com bolinha de gude, pião, pega-pega… uma infância bacana. Mas também foi problema: quando tinha 8 anos de idade, fui pra Bahia com a minha vó. Meu pai batia muito na minha mãe, queria me espancar, daí resolvemos ir pra Bahia.

Quando cheguei lá, vi um porco gigante no canto, falei: “Nossa, que cachorrão dahora, hein, vó?”.

A moça de lá perguntou: “Ele não conhece, não?”. Mas era um porco, isso foi marcante na minha infância. Fui pedreiro, ajudante de pedreiro. Comecei a trabalhar numa firma, a Brasilata, o que me ajudou bastante pois tinha uma renda, deu pra ajudar minha mãe em casa. Eu era ajudante Geral,

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62 entregava lata de tinta vazia, lata de suvinil, de óleo, lata vazia, para colocar o líquido dentro para os caras vender. Fiquei 3 anos lá.

Um dia eu comentei com um colega: “Ô, Carlos, se um dia a gente for baleado, a gente morre?”.

Era uma terça-feira, lembro disso. “Ah, não sei, não, Luciano”. Tudo bem, trabalhei aquele dia normal, fui pra casa. No outro dia, fui pro serviço e depois fui pra escola. Cheguei, minha vó e minha mãe estavam assistindo TV, deixei meu crachá e peguei minha bolsa pra ir pra escola, o Alckmin, aqui em cima. Cheguei lá, tô aguardando e tal, “passou” 2 caras para assassinar um rapaz, um colega. E esse colega foi e me segurou, pedindo desculpas, mas os caras não quiseram saber. O que marcou foi quando eu escutei o cara falar assim: “É aquele ali”, quando ele disse isso, o outro já me segurou, os caras começou a dar tiro. É tiro, é tiro, é tiro. Ele gritando: “Ai, ai, ai”. Eu caí no chão e fiquei no chão, escutando os tiros. “Pa pa pa”. E ele gritando. Os caras foram embora. O céu ficou claro, de repente, tudo estava diferente naquele dia. Esse rapaz aí, o Ademir, gritando: “Me ajuda, me ajuda”. Falei: “Não tem como eu te ajudar, eu tô aleijado, não consigo levantar”. A perna mole, parece que deu uma anestesia em mim, não tinha movimento, nem como me mexer. Olhava assim, o céu branco… E via a imagem da Nossa Senhora Aparecida no céu, de verdade mesmo. Voltou esse Carlos, pegaram nós dois na perna. Ele tomou quatro tiros e saiu andando para o carro, eu tomei um nas costas, fora os de raspão que pegou na blusa. Tive hemorragia interna, fiquei um mês em coma. O cara do carro falou: “Não vai levar esse aí, não, que ele tá morrendo”, e meu colega falou: “Vai levar sim” e me colocou no carro. E o rapaz perguntou: “O que aconteceu, Luciano?”, eu falei: “Ah, o que aconteceu eu não sei, Só sei que o Ademir me segurou aí” e ele começou a contar. “É porque eu briguei com o cara e tal, quebrei o copo na cara do cara numa festa e aí o cara falou que ia me matar”.

Estou há 25 anos paraplégico por causa dessa briga que não era comigo, era com o Ademir que já faleceu… Depois de dois anos, ele arrumou uma outra briga e acabou perdendo a vida. Já foi embora, não está mais aqui entre nós. E eu tô aí. Conheci o hospital da AACD, comecei a fazer tratamento, praticar as coisas. Depois de um tempo, comecei a quebrar o chão em casa, trocava os pisos, peguei um ferro e coloquei no meu quarto, me pendurava nele, fazia barra, todo dia: barra, barra, barra. Oito anos assim, sem sair de casa pra lugar nenhum. “Ô, compra um boné pra mim” e dava dinheiro pros caras, dava 20 conto pra um boné que custava só dez reais. Então, eu já tomava prejuízo… Não era amigo, né? Isso é querer ganhar vantagem em cima da deficiências dos outros. A minha velhinha me ajudou bastante, ela queria que eu andasse de qualquer jeito. “Você vai andar, meu filho, você vai andar”. Não andei, mas beleza. Passava creme na minha perna, me colocava na beliche de pé e ela me segurando na minha perna. Nossa senhora, era de tudo que ela tentava, “mó” barato. Até que ela ficou doente e faleceu. Até no dia que ela faleceu, falei: “E aí, vó, vamo pra Bahia?”. “Vou pra Bahia não, vou morrer”... “Vamo tomar um sol lá fora?”. Estava frio, era inverno. “Depois eu vou, vai lá”, fui.

Quando voltei, minha vó já estava no quarto infartando, foi difícil. No enterro, disse pra minha prima: “Ela falou pra mim que iria morrer; falou que já deu o tempo dela, já”. Nesse mesmo dia do enterro,

63 nem vi ela sendo enterrada, eu tinha consulta na AACD. Cheguei lá, o médico falou: “Por que você tá tão triste?”, respondi: “Ah, minha vó faleceu”... Nessa mesma conversa, falei: “E aí, Marcelo, você vai arrumar o basquete pra mim? Nessa cadeira, tô precisando fazer um basquete”. Ele falou: “Vou arrumar pra você: basquete e natação”.

Chamava meus colegas: “Vamo comigo? Dá uma força pra mim?” A minha escada tinha 28 degraus.

“Me ajuda a descer aqui, cara?”. Respondiam: “Pera aí, já venho”. Só que eu tinha horário, não dava pra ficar esperando ninguém… Daí minha tia Guiomar dizia, ela já faleceu: “Lu, por que você não pega essa cadeira e começa a descer ela sozinha? Eu pego essa cadeira pra você”. E eu pegava minha cadeira e ia. Subia, tinha mais uma subida, e depois tinha uma subida mais alta. Pensava: “eu vou cair, mano”, e então metia o braço na cadeira com força e subia. Tem vez que pedia para carros e motos me puxarem, eu era meio maluco, fazia de tudo. Eu tava com 10 anos na cadeira. Eu andava pra cima e pra baixo, pegava ônibus, quando dava sinal pro ônibus eles diziam: “Ah, mas não é de cadeirante?”.

Respondia: “Qual o problema? Pega minha cadeira aqui que eu vou”. Eu tinha que ir, né? Tinha minha consulta, meu treino. Cê chega ali no ponto e falam: “Daqui a pouco vai vir um aí pra você”, respondi: “Vai vir um aí não, quero ir nesse aí, pronto e acabou”... Agora já vou e subo em calçada, elevador, escada rolante... comecei a enfrentar o mundão! Acho que até melhorar essa estrutura da quebrada vai demorar, hein, cara? Igual esse metrô que tá pra sair aí faz um tempo e até agora nada… se tivesse um metrô, eu já ia treinar com facilidade, não precisava sair tão cedo de casa.

Comecei a jogar basquete, fui tricampeão brasileiro de basquete. Tricampeão paulista sobre cadeira de rodas… Eu nunca gostei tanto de natação, fazia só por fazer. Depois de um tempo, saí do basquete e da natação, casei, fiquei de boa, mas queria algo a mais, minha vida tava muito parada… Aí cheguei na AACD, a tia Edna falou assim: “Você aqui, meu filho, que legal! Nós temos aqui um projeto legal, chamado “Vivo Remando”. Falei: “Tô aqui pra fazer um esporte mesmo, parei já tem um tempo”, “Então vamos pro Vivo Remando”. E aí fui pra USP remar, na Raia Olímpica. Pegava o busão, descia no centro e pegava outro busão, o Butantã, vixi… dava um rolê!

Aconteceu até uma coisa engraçada: um colega que falou assim: “Vamos competir hoje, mas a gente não pode deixar os caras do Rio de Janeiro ganhar, hein? A gente tem que ganhar. Você sabe que eu sou melhor que você, remo bem, você só vai me acompanhando”. Ele era grandão mesmo, mas, já no começo saí na frente de todo mundo. Ganhei no fim das contas. E fui campeão brasileiro pela primeira vez. No Mundial, fiquei na frente dos caras durante boa parte. Cansei. Meu, os caras de outros países tem uma estrutura ótima. Nós aqui no Brasil, os cara não dá nada pra nós. Vai lá pedir uma vitamina boa para ver se eles vão te dar! Eles não ajudam nada! Eles só querem te vender. Eu estava ganhando, mas fiquei em quarto, fiquei feliz, foi o meu melhor mundial! Fui indo: pra Itália sete vezes, Alemanha oito vezes, Nova Zelândia, fui pra Belgrado, onde fui campeão mundial. Minha vida foi assim, cara, só de alegria!

Mas tudo que consegui, pra passar por todos esses problemas, foi graças a minha mãe que sempre

64 fala: “Vai remar!”. Minhas irmãs, meu treinador maravilhoso que é o Acácio, a treinadora Edna, que me chama de filho até hoje, que me ajudou muito, gente do bem que faz a gente ter força de vontade para querer viver. Até hoje quando vou lá na USP, os caras falam: “Ó o Luna da Brasilândia”, então já até me conhecem! Meu sonho era construir um local e montar uma equipe grande aqui do Largo aqui, umas molecadas de outras quebradas, e levar pro remo, pra fazer uns remador bom. Os moleque tem futuro, tem cara que é só levar pra treinar. Pergunta pro professor: “Tem como melhorar esse tempo?”. “Tem! Quando vai ver, você tá lá em cima!”.

Luciano Luna, 40 anos Atleta Paralímpico

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Numa das expedições em grupo em busca de contatos pelas ruas da Brasilândia, entramos na Paróquia Santo Antônio, localizada na Rua Parapuã, com a intenção de falar com o padre responsável, mas naquele momento ele não estava. Uma funcionária nos disse que conhecia uma senhora que era referência sobre a história da igreja, que possuía mapas de como a Paróquia era, anúncios de jornais e etc, mas que era pra deixarmos algum contato, que repassaria a informação para ela. De fato, Dona Otília nos telefonou após de uma semana e marcamos o nosso encontro.

Muito atenciosa, no dia 05 de dezembro de 2017, ela nos trouxe todos os papéis que tinha guardado com muito carinho durante os anos, apenas com o intuito de recordar o quanto o bairro, a igreja e os arredores modificaram-se com o passar dos tempos. Uma verdadeira detentora do saber do tempo.

Inicialmente, ficou receosa com o que faríamos com essas informações que ela estava passando, disse que só não concorda com “politicagem” pois é muito comum políticos atuarem na região, fingirem ter interesse e saber sobre as pessoas, nos tempos de eleição, e depois irem embora, sem nunca mais voltar, deixando apenas promessas vazias para trás. Após explicarmos sobre a proposta do grupo e do trabalho, ela se interessou e ficou feliz em participar conosco.

Durante o seu relato, ela até chegou a cantar, algo que ela afirmou gostar fazer.

Nessa altura do trabalho, o grupo encontrava-se muito mais experiente, já havia, feito algumas experiências muito bem sucedidas e conseguiram conduzir e investigar de maneira adequada toda a entrevista.

DIÁRIO DE CAMPO OTÍLIA LEAL

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“Da exclusão em questão” Meu nome é Otília Leal de Oliveira, 79 anos. O Oliveira veio depois. Eu sou do interior, Ribeirão Preto. Eu vim aqui para São Paulo em 1954 no ano do quarto centenário de São Paulo, em meio aquela festividade toda, fiquei morando na Casa Verde por muitos anos e só em 58 que vim conhecer Brasilândia; Eu era jovenzinha, comecei a namorar e o rapaz que era aqui da Brasilândia aí eu vim conhecer, fiquei um pouco assustada. Era bem rural aqui. Brasilândia em 58, 59 ainda era brava.

A Parapuã que é a principal nossa ainda estava em obras, construção de asfalto, tinha o pessoal trabalhando era época de prefeitura. Logo eu me casei, em 64 ai, e em 65 vim morar na Brasilândia; ainda faltava muita coisa. depois da rua Macedônia não tinha asfalto, era só barro. Minha sogra que já morava aqui desde 1947. Compraram um lote viemos morar aqui e só depois de muitos anos eu vim conhecer, ainda achava que era um horror, mas já tava bem melhor. De 1964 pra cá eu vim acompanhando, teve muita coisa que melhorou, até hoje continua em evolução. Tenho 3 filhos que não foram difíceis de criar, cresceram começaram a frequentar escola. Com os pequenos, tinha aquela dificuldade de não ter um posto de saúde, tinha que levar eles lá na Brigadeiro Luiz Antônio, então a perua que tinha aqui ia pra Lapa, pois eles os ônibus não chegavam. Condução doente, pra tomar uma condução era difícil, a gente andava muito, pegar ônibus lotado e é a lei do mais forte, era muito difícil. Se quisesse ir na cidade, pra achar uma condução de táxi não dava, qualquer coisa que viesse até aqui era muito complicado. Em comparação com o que está hoje, não dá nem pra comparar.

Quando a gente é criança, tudo é festa. Nós moramos em uma zona rural, só fui até a quarta série, meu pai era ferroviário, trabalhava na estação. Todos crianças, nós éramos em 9 irmãos. Éramos

68 quatro meninas e as mais novas, então as meninas tinham mais facilidade, mais mordomia, já os meninos trabalhavam na mineração e a gente pegava o lado bom que era as brincadeiras. A gente fazia brinquedos, fazia fazendinhas, pegava abobrinha colocava perna, a cabeça ai “fazia ovelhinha”, ai “o cachorrinho” e assim muito brincava.

Quando vim pra cá, senti muita diferença. Era diferente, eu não conhecia São Paulo ainda, cheguei em 54, toda aquela festividade do quarto centenário, vocês não imaginam o que foi aquilo, nossa, fiquei assim, assustada. No começo eu chorei muito, aqui é tudo muito grande, e eu com minha irmã. eu vim pra cá deixando a mãe lá, vim pra casa dos meus tios e, eu naquela idade já tive que ir trabalhar, mas então eu fui me acostumando.

Fui morar com meu tio, fazer contrato com a distribuidora de materiais domésticos, afinal, eu tinha que fazer as compras por fora e aí me adaptei. Eu ia trabalhar voltava às 19h da noite, já era a noite mesmo.

Quando cheguei aqui o terreno era bem grande. O ferroviário era ali na esquina da Av. Ipiranga com a São João, eu descia do ônibus ali e, nossa senhora, aquela avenida São João com aquela subida lá pro alto. Meu Deus do céu, tinha bonde, adorava andar de bonde, o que eu mais gostava ali era andar de bonde, era aberto então quando corria tinha aquele vento era delicioso. Admirei aquilo quando eu cheguei.

Na Brasilândia eu vinha de vez em quando. Minha mãe não deixava eu vir assim seguidas vezes e ficar, ela dizia “não”, então, apenas de vez em quando eu vinha. Conheci meu esposo quando a minha irmã mais nova, que já namorava um rapaz aqui da Brasilândia, veio em uma festa de aniversário da tia dele.

Foi mesmo uma festinha de aniversário, foi no mês de Setembro, e aí foi amor à primeira vista”,né? Eu vi, conheci, gostei. Os pais dele adoravam dar almoço grande: era feijoada, rabada, aquela coisa toda, então ele me ganhava com a comida. A casa sempre cheia, era um “barraqueiro”, num terreno grande e, ele convidava os parentes, que moravam no Brooklin, daí eles iam sempre almoçar por lá, então de vez em quando eu ia também.

Eu fui trabalhar em uma loja em Bom Retiro que era uma fábrica também e, antes de completar 18 anos eu fui trabalhar em uma fábrica que vendia só roupa de criança. Depois eu saí, porque quando passava pra 18 anos eles te mandavam embora pra te reativar a carteira, e com 20 anos eu voltei trabalhar com costura, roupa de criança. Fiquei muitos anos trabalhando com isso. Eu gostava muito de trabalhar lá, porque foi uma área que eu sempre gostei e, eu trabalhava cantando. Aí o que acontecia: as amigas me mandavam bilhetinho pedindo música. Na época tinha muita música de Angela Maria, Márcio Mendonça… Foi uma época muito gostosa, eu gostava daquilo. Elas mandavam o bilhete, escondido, porque a gerente não podia ver. Tinha uma menina que ia de máquina em máquina pegando e distribuindo os pedidos, nossa, eu me divertia! Eu trabalhei só até depois que minha filha nasceu.

Na época da ditadura era difícil. Meus irmão estavam aqui em São Paulo e teve vezes que eu vi que eles pegavam e levavam mesmo violência da polícia, e se falavam ou reclamassem, aí ficava pior, mas graças a Deus nunca aconteceu nada de grave aqui... Meus filhos já estão todos adultos, a mais velha está com 51 anos, o segunda ta com 48 e o outro 46 anos. A mais velha tem dois filhos, o outro é casado e o outro vai casar agora em julho, tem três filhos: dois rapazes e uma menininha que vai fazer oito anos agora.

Sempre frequentei a igreja, só que ir mesmo aos trabalhos, só depois da morte do meu marido que

69 tomei gosto pela coisa, antes eu participava só na Santo Antônio. Começamos a fazer grupo de oração lá na minha rua, na Rua Jerônimo tambèm aí tinha um padre que falou sobre o fazer o bazar beneficente.

Fizemos uma reunião e ninguém queria assumir, montamos uma garagem e eu assumi a conta de tudo e empurrando o pessoal, sempre dizendo: “Vamos, vamos!”. E foi indo, graças a Deus foi crescendo. Isso foi em 98. Nós compramos o local que estamos hoje, e fui tomando conta de tudo, e o pessoal vai fazendo promoções, bingo,e etc. Eu cuidava da administração, era a coordenadora, que só peguei porque ninguém queria assumir, foi difícil pra pegar as habilidades, mas graças a Deus foi indo. Hoje está aí, a Sagrado Coração de Jesus, que tem ligação a Paróquia Santo Antônio.

Na época eu queria fazer um pouquinho mais, mas não tive o respaldo suficiente. Tinha uma turma de jovens que assim, hoje em dia eles nem estão mais entre nós, porque seguiram o caminho errado. E não encontrei ninguém com pulso suficiente, mas meu sonho era mesmo que os jovens que “tinha” naquela época seguissem. Morreram tudo, assim, por violência…é uma tristeza.Eu gosto de compor também, não sou cantora, mas de repente eu posso compor umas músicas, teve um festival da Brasilândia que foi promovido pela igreja da região. O nome da composição era “Da exclusão em questão”. Foi em 2000 esse projeto feito pela igreja de Perus, aqui da Zona Norte, chegando a gravar até um cd. “É o direito que viemos reclamar. Com coragem, dê as mãos e bata os pés. Seguindo iremos e assim vai…”.

Otília Leal, 79 anos Aposentada

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O entrevistado Murilo Augusto, é uma figura conhecida nas escolas da Vila Brasilândia. Com 20 anos de magistério, Murilo relata de forma convencida que a profissão não lhe deixa envelhecer. O seu relato nos deu a possibilidade de entender os processos e desafios que perpetuam à prática de ensino nas escolas estaduais.

De fato, o entrevistado demonstrou ser uma figura distinta em relação aos outros relatos do livro. Por mais que demonstrasse alguns picos de emoção, logo se distanciava das agonias atraídas pelas memórias e se aproximava do ambiente envolvido por jovens olhares atenciosos. O jeito descontraído e engraçado dá sentido ao codinome carinhoso que entrevistado recebe dos seus íntimos, “Mumu”. É assim que é conhecido pelo bairro e pelos seus alunos.

A entrevista foi realizada no dia 18 de dezembro de 2018, o grupo naquele momento estava frente a um verdadeiro contador de histórias. Não precisamos de muitas questões para dar abertura para um diálogo que teve sua narrativa totalmente conduzida pelo narrador. Murilo detalhava suas memórias, contando sobre como foi ser jovem na Brasilândia.

DIÁRIO DE CAMPO MURILO AUGUSTO, MUMU

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“ o único lugar que eu não vou envelhecer vai ser em uma sala de aula” Meu nome é Murilo Augusto, 44 anos, nascido e criado no Jardim Maristela, Brasilândia. Saí da Brasilândia só após o meu casamento, quando fui morar em Perus. Só que assim, conto os 44 anos aqui no Jardim Maristela, Jardim São Francisco de Vila Brasilândia, Morro Grande, porque eu moro bem na divisória, e o que eu recordo muito é que entrei aqui e lembrei que o começo da Brasilândia era um campo de futebol. Brincávamos aqui nesse campo que hoje é a Casa de Cultura, até que um amigo meu pegou e saiu com um olho machucado, quase ficou cego de um olho. Não havia prédios, era tudo campo. A gente acendia aqueles foguetinhos que brilhavam no escuro sabe? E fazia uma guerra um contra o outro. Foi uma infância muito divertida que eu tive aqui. Hoje com esse crescimento, com essa mudança eu sinto falta dessa juventude atuante que você só sabe ouvir assim: “Ah, cuidado que ali tem uma biqueira, o seu filho não pode sair porque ali tem uns drogados”. Dá uma tristeza quando você passa e vê as pessoas bebendo, cheios de cachaça, cheios de drogas. Isso são fatos sociais que se houvesse um trabalho lá atrás isso não teria ocorrido, poderia ter ocorrido mais com menor incidência, menores números de pessoas dessa forma. Estudei no João Solimeo* até os 4 anos de primário. Minha tia foi durante 25 anos inspetora do Solimeo saindo dali minha mãe foi servente do Galdino durante 30 anos, o Galdino ali em cima do Solimeo. Fui estudar no Galdino, fiz da 5° série até a 8° série. Sai da 8° série querendo arrumar um emprego.

Fui trabalhar de office boy, saindo de office boy, fui fazer técnico de publicidade, nesse período só existia técnico de publicidade ali no Welington, na Itaberaba, onde hoje é o Beka. Nesse meio tempo

72 me formei no 3° ano do Ensino Médio e acabei indo pro exército, eu era muito rebelde. Foi nesse tempo que eu entrei para o exército, mesmo sendo filho único e fazia CPOR, Centro de Preparação Oficial da Reserva, em Santana. Havia uma prova, essa prova era pra 3 mil candidatos, e era pra 800 pessoas entrarem. Passei na primeira fase, na segunda fase. Eu falei assim: “Já que quem está tendo um nível universitário e eu só tenho o 2° grau eu não vou ficar, prefiro ir embora, porque não sou nenhum otário para ficar aqui o dia todo me segurando para nada”, para facilitar minha dispensa.

Vim embora cheguei na esquina da frente do prédio encontrei uns colegas e comecei a falar assim: “No exército só tem besta, olhei os cara, vim embora e ficou por isso mesmo já vou ganhar a baixa”.

Voltei nesse mesmo exército para pegar o certificado, eles falaram: “Murilo Augusto, 4° B”. O pior quartel que tem em São Paulo, todo mundo quando falava em 4°B tinha medo, porque o 4° batalhão era da infantaria blindada, e eu mesmo sendo filho único acabei ficando. Fiquei lá durante 2 anos.

Aconteceu que fiquei no Exército, fiz curso para virar sargento e já estava preste a me engajar, ficar lá no exército para seguir carreira e, eu tive uma oportunidade para ser coordenador de eventos da Fiat Mercedes, uma empresa muito grande chamada Mateu Produções, essa empresa existe ainda.

Saí do exército, pedi a baixa, fora que nós choramos muito, eu chorei muito com o Berinjela, um grande amigo que fiz no exército. Era o meu amigo mais próximo que já tive. Fui trabalhar nos eventos e já como técnico de publicidade, chegando nessa empresa gostei demais, viajei para muitos lugares do Brasil. Era muito novo, já tinha uma noiva. Nunca imaginei um de 20 anos, idade que eu tinha na época, andar por onde eu andei. Nossa, eu vivia a vida mesmo. Quando completei de 23 para 24 anos, saí da empresa, pois trabalhava muito, inclusive aos finais de semana, tocava o bipe e você tinha que ir até o aparelhinho para ver a mensagem. Eu fui enjoando daquilo, da situação da empresa, daquela rotina, sabe? O supervisor tinha pedido para que fizesse faculdade de comunicação na Unip. Fui fazer comunicação e no meio do ano, antes de acabar a faculdade, eu decidi largar a faculdade para fazer Geografia, na época conhecida como Estudos Sociais. Fui fazer na PUC, só que lá eu bebia demais e pensei: “Melhor eu desistir por que senão eu vou virar um alcoólatra e não vou terminar isso”, e aqui perto de casa tinha uma faculdade a Teresa Martin, então pensei: “Fiz dois anos de PUC e agora vou terminar nessa para não perder.” O meu patrão falou: “Já que você foi fazer Geografia, eu não pago mais a sua faculdade, já que você vai ser professor, eu não quero você na minha equipe.” Eu falei que ele podia me mandar embora. Para tentar tirar da minha cabeça essa história de professor, ele falou assim: “Murilo a partir de agora você vai sair e vai acompanhar tudo, nós vamos pra Inglaterra para seção de vídeo lá, você vai pra lá e fica como Cabo-Man”, ai eu falei: “Eu vou sair de coordenar para ser Cabo-Man?”. Jovem é besta mesmo, né. Ele falou: “Murilo você vai ter de tudo lá, vai ter tudo em suas mãos, vai estar na Inglaterra, você vai viver, vou te dar tudo que você precisar”. Eu tinha minha noiva, né, já estava pronto pra casar, ai eu falei assim: “Não quero, eu vou dar aula”.

Comecei na Escola Damy, na Brasilândia, entrei em uma sala de 3° colegial e uma amigo disse assim: “Murilo, quando você entrar, chuta a porta, dá um tapa na mesa que os caras vão ficar pianinho, ai você fala qualquer coisa lá que os cara vão aceitar e já era. Isso que é dá aula”. Fiquei surpreso e falei: “Sério mesmo?” E ele falou: “Sim”. Quando eu olhava, assim, os olhares daquela juventude, veio uma coisa na minha cabeça: o único lugar que eu não vou envelhecer vai ser dentro de uma sala de

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aula. Eu nunca vou envelhecer. Eu tenho 20 anos de magistério e eu nunca envelheci. Envelhecer de idade, nós envelhecemos, não faço a mesma coisa que vocês fazem, eu não corro. Tenho amor nos meus alunos. Você pode ter certeza. Quando os anos passam e você encontra o camarada, você tem amor por aquela pessoa, você tem gratidão por aquela pessoa, é essa coisa de que vocês estão falando, de vivenciar a história de cada um, de cada indivíduo. É vivenciar. Isso é vivenciar. Nós temos uma humanidade dessa forma que está por falta de amor, por falta de um olhar no outro, por falta dessa parada de pensar, de conversar.Não dá para ficar rico, não, mas eu ganhei amigos, uma coleção de amigos, uma coleção de pessoas muito boas que estão ao meu lado. Isso que eu ganhei na educação, a questão de acreditar no amor. Eu acredito no magistério, não gosto de fazer distinção de escola particular, eu vou ser o mesmo, o mesmo “Mumu” que ficou 4 anos em escola particular, é o mesmo “Mumu” da escola pública, você pode encontrar um aluno da escola pública e pergunta: “Como é o Murilo?”. É a mesma coisa, aquele gordão, ele fazia isso, aquilo, ele dava tapa na cabeça, ele me abraçava.

Onde tem essa escola aqui era um circo, a gente ia até o circo até a hora que o Luiz Ricardo, o dono do circo, a gente aprontava tanto, que eles pegaram e falaram assim: “Ah cansamos de bater

74 nos moleques”. Nos levaram para o Luiz Ricardo, ele pegou e falou: “Ah vocês querem ver o show, então pega e começa a vender pirulito”. A gente vendia pirulito nas arquibancadas. Teve o “concurso de black”. Aquela dança do Michael Jackson. A gente foi e fazia o “black”. Eu tinha uns 11 anos, participamos do concurso de black, era eu e o Joasse. Olha o nome. Ganhamos um troféu doido lá, saímos na rua igual doido. Quando não era isso, a gente ia para as quermesses roubar frango e vinho. Roubávamos leite da carrocinha. Tem um cara que mora ali em baixo, ele se chama César, é o Galo, ele gostava de incendiar as coisas, botar fogo em tudo e roubar leite, eles pegavam e deixavam o caminhão de leite aberto na padaria numa coisa cheia de saquinhos de leite, a gente roubava o leite e ia tomando assim no caminho. Era sempre eu e esse moleque que fazia, éramos muito atentados. Eu não gostava de apanhar, então, os meninos arrumavam brigas, e eu tinha que sair correndo porque era muito medroso.

Hoje, no ônibus, você entra pela frente e sai por trás. Antigamente, entrava por trás e saia pela frente.

Então, quando a gente era Office boy, era um papelzinho que você dava pra pagar a passagem, não tinha Bilhete Único. Como era Office Boy você ficava sempre no ônibus atrás, quando a porta abria você descia, você ganhava uma passagem, você não gastava. Então, a gente guardava o dinheiro para ir no fliperama, sair com as meninas, para ir para o cinema, porque antigamente o centro era o cinema. Então, aqui era uma patota, iam mais 15 meninos e meninas para o cinema. Fazia xixi no copo e jogava nas pessoas. Juntava 10 moleques para assistir o Freddy Krueger. Tem um cara que mora aqui em cima que se chama Marcelo, nós pegamos e fomos assistir ao filme, o cinema era aqui na Brasilândia. Você assistia o filme e em cima era o refeitório. Eram 10 moleques e 2 meninas, que nós gostávamos, só que, naquele dia eu não estava afim de nada eu queria ficar quieto. Esse meu amigo ficava fazendo joínha com mão na tela, atrapalhando a visão das pessoas. Um cara falou: “Abaixa essa mão”, ele continuou fazendo. O segurança disse “O menor, não fica brincando assim não”. O meu amigo pegou um copo de guaraná e disse: “Vamos fazer xixi”. Esse dia foi terrível, enchemos uns 10 copos, o povo gritava: “Ai, está fedendo, está fedendo”, subimos em cima do vaso e o pessoal gritando “ Porrada neles!”. Deram tanta porrada que jogaram a gente para fora do cinema. Sempre tive problemas com cinema. Até hoje eu passo na rua, vejo as pessoas e elas ainda lembram, tem o Douglas que ainda mora aqui na Brasilândia, é casado e tem filhos, mas, lembra dessas coisas até hoje.

Murilo Augusto Ferreira da Costa, 44 anos Professor de Geografia

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Nascida e crescida na Vila Brasilândia, a escritora, fotógrafa e desenhista Sonia Regina Bischain é uma das narradoras que são amante do seu bairro. Ela dedicou sua vida por melhorias para o bairro, assim como outros personagens desse livro. A Brasilândia é a protagonista de suas lutas, suas fotografias e de suas palavras recitadas e escritas em papel.

O nosso encontro aconteceu no dia 23 de novembro de 2017, dias após sua participação em um debate em uma das mais importantes universidades do mundo, a Sorbonne de Paris. Aos 60 anos, ela sequer imaginava que um de seus livros fosse lhe dar tal oportunidade.

Militante, seu relato de vida se funde com a história do bairro.

DIÁRIO DE CAMPO SÔNIA BISCHAIN

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“Ninguém morre se permanecer na memória de alguém” Quando eu nasci, minha família já morava na região da Brasilândia numa travessa da Parapuã. Quando eu tinha 3 anos, nós nos mudamos para a Vila Penteado, que fica no mesmo distrito, desde então moro na Vila Penteado. Sou casada, tenho 3 filhos. Nos anos 70, desde muito nova, com 13 anos, eu comecei com algumas atividades culturais na Brasilândia, já dentro da escola. Eu estudei no Solimeo. Eu fiz o que eles chamavam de colegial. O que chamam agora de ensino médio. A gente chamava de segundo grau. Meu grupo fez uma pesquisa sobre quem seria João Solimeo, nós fomos até a cidade em que ele nasceu em Minas Gerais, na cidade de Duartina, conhecemos a mulher dele e seus filhos. Fizemos toda a história de quem seria esse homem que deu nome a nossa escola. O que ele tinha a ver com a gente? Ele veio de Duartina, ele era um secretário de uma escola de lá e veio para São Paulo para ser diretor do Ginásio Estadual de Vila Brasilândia.

Ele construiu todos os armários da escola, que não tinha. Ele havia servido na Segunda Guerra, e tudo mais.

Ele era humilde, não era do bairro, mas ele deu valor pra escola. Nós achamos interessante ter descoberto tudo isso.

Com esse grupo de amigos passei a organizar festivais de música, torneios, no bairro. Na época, existia o Clube Tiro ao Pombo, onde eram realizados os eventos. Também nesse período, comecei a participar da Igreja Católica, das Comunidades Eclesiais de Base, que tinha uma vivência política dentro do bairro. Começamos atuar com reivindicações, já que não tinha nada aqui, não tinha infraestrutura. Não tinha um monte de rua asfaltada, não tinha transporte direito, não tinha creche, não tinha muita escola.

78 Tem até uma situação que ficou muita famosa, em que reivindicamos na década de 80, durante o governo itinerante do Maluf. Nós organizamos uma comissão para pedir algumas melhorias: pronto-socorro, creche, posto de saúde,transporte e ruas asfaltadas. Quando fomos lá reivindicar, fomos recebidos com bomba, cacetes, pauladas. Eles arrancavam as faixas da mão da gente. Ele já tinha feito isso em outros bairros, inclusive tinha batido no povo, no Butantã e outros lugares. Mas quando isso aconteceu na Brasilândia, a Brasilândia não ficou calada. Isso foi chamado de Pancadaria do Ó*, que aconteceu na sede da sub-regional que ficava no Largo do Clipper. A maioria do povo que foi protestar era dos bairros do Carumbé, Vista Alegre, Teresinha, Penteado. Na época, exigimos uma CPI, que chamava CEI, Comissão Especial de Inquérito, que é algo municipal. E fizemos um rebuliço, algo que ficou conhecido internacionalmente. Em vista disso, para disfarçar... Eles fizeram o pronto-socorro na Avenida João Paulo. Eles deram o nome de 21 de junho, que é o dia do quebra-pau. Fizeram uma creche no Penteado, asfaltaram algumas ruas no Teresinha. E essas linhas do Teresina não existiam, mas foi conseguido nessa luta. Depois, mais para frente, também com reivindicação, as mulheres conseguem o Hospital Penteado. Aí todo mundo estranha porque o Hospital Penteado está na Freguesia. Por que? Porque as mulheres do Penteado fizeram essa reivindicação, mas não tinha terreno na região. O único terreno vazio que tinha era esse em que foi construído o hospital na Avenida Petrônio Portela.

Mesmo assim, eles colocaram o nome de Hospital Penteado. Mas teve gente que quis que mudassem o nome porque ali não é Vila Penteado. Mas isso estaria destruindo uma história do Hospital.

Há mais ou menos dois anos, o pronto-socorro na Avenida João Paulo estava com o nome “Pronto-Socorro da Freguesia do Ó. Não estava aparecendo o nome “21 de Junho”. Eles tinham trocado a placa, tentando eliminar a história. Fizemos uma reivindicação e foi colocada a placa novamente com o “21 de Junho”. Quem vai hoje no pronto socorro vai ver as duas placas. A gente não quis que tirasse a placa da Freguesia, para mostrar: “Olha ali, tiraram, mas a gente colocou de novo”.Esses fatos eu gosto de lembrar porque tem a ver com a luta do povo da Brasilândia. Eu fiquei bastante tempo nesse movimento. Nos anos 70, nós fizemos muita passeata para a redemocratização, pela volta dos exilados, a favor da anistia.

Quando começou o golpe militar em 64, eu tinha sete anos. Na época, na região tinha muito mato, lagoa, rios, não existiam muitas casas, nem muitos dos bairros de hoje. Então, era uma região com grandes partes desertas. Por isso, a Brasilândia foi lugar de desova durante o período da ditadura. Era comum você encontrar corpos pela região. Quando era criança eu vi uma execução na frente da minha casa. Eu não entendia muito bem. Só fui entender depois do que se tratava. Eu lembro de alguns policiais com uma pessoa. Na frente da minha casa tinha uns bambuzais. Eles viraram para o cara e disseram: “Corre”. O cara correu e eles atiraram nas costas dele. No outro dia, veio a polícia técnica para recolher o corpo. Mas andando pelo bairro, a gente via outros corpos e alguns até mesmo em decomposição. Ninguém comentava muito, porque todo mundo tinha medo. Existiam casos na ditadura dentro da periferia sim. Um senhor que morava atrás da minha casa teve um filho que sumiu. Mas ele não abria a boca para falar sobre o assunto por medo. Eu posso dizer que muita gente não sabia o que estava acontecendo por causa da censura, mas tinha gente que não queria saber, talvez por medo também.

80 Eu sofri intimidações na época da ditadura. Me seguiam. Talvez seja porque eu era editora de um jornal do bairro. Foi no fim de 1977. Quando eu saía para almoçar na Lapa, onde eu trabalhava na época numa escola escrevendo apostila para um cursinho pré-vestibular, eu percebia que tinham homens me observando. Eu já sabia quem eram eles. Eles chegaram a perguntar na escola o que eu fazia… Chegaram a ligar pro meu pai ir na delegacia e fizeram algumas perguntas pra ele a meu respeito. Eram intimidações, nada sério. Como havia bastante movimentação na igreja católica, eu sei que eles colocavam pessoas infiltradas com gravadores na missa. Por exemplo, eles ficavam de olho no Dom Paulo , porque eram alguém que ajudava os presos políticos.

Eu gosto de morar na Brasilândia, porque apesar de tudo, a gente tem que passar a valorizar o lugar. Meu pai me falava que as pessoas tinham muito preconceito quando ele falava para outras pessoas que ele morava na Brasilândia. A gente sabe que o bairro foi formado, principalmente, por pessoas negras. Meu pai era branco, mas ele se sentia mal quando outras pessoas faziam gozação, muitas vezes, motivada por racismo, por causa do bairro em que ele viveu.

Quando eu era pequena, a Brasilândia era um lugar muito bonito, com muita natureza. Eu colhia frutas, nadava e pescava no rio... Foi muito triste ver as mudanças. Os terrenos passaram a ser loteados e começou a urbanização da região. As pessoas que chegavam, eram simples, tinham dificuldades, e eram bastante solidárias entre si. Por isso que acredito que essas lutas por melhorias e as coisas que conquistamos vieram da união dessas pessoas. Infelizmente, hoje não está mais assim. Há desencontros, mais correria. Eu acredito que devem ter pessoas que ainda estão lutando. Deu a impressão de que quando se conquistaram algumas coisas.

“Consegui colocar meu filho na creche”. “Minha rua foi asfaltada”. As pessoas se retraíram, que já fizeram o que tinha pra ser feito. No entanto, nós tivemos as ocupações das escolas em 2013, que reacendeu essa coisa da luta e tudo mais.

Eu gosto de contar história. Quando eu fui na França, me perguntaram o porquê eu escrevi esse livro, o que eu pensei e quais eram as minhas intenções. Eu nem pensei que eu ia até lá e nada disso. Não pensei em vender livro, nem em ficar famosa, nem nada. A única coisa que eu pensei é que a memória precisava ser preservada e precisava ser repassada. É obrigação nossa repartir e distribuir conhecimento. A memória não tem que ficar guardada, senão morre, não é transmitida a ninguém e não tem utilidade alguma. Então, a minha intenção mesmo é ter preservado a memória. Ninguém morre se permanecer na memória de alguém. Quando você conhece a história, você tem mais possibilidades para não repetir os erros.

Sônia Regina Bischain, 60 anos Escritora e fotógrafa

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Wilma Xavier é moradora do Morro Grande há mais sessenta e três anos.

No dia 14 de Novembro de 2017, ela nos contou sobre como sobre as transformações na Brasilândia e de seus moradores. Ela também ressalta as dificuldades de ascensão social e a importância dos estudos para um indivíduo pobre, principalmente, se este for negro. Em seu relato, ela se orgulha de sua determinação, por ter conquistado um diploma universitário e em ser uma funcionária pública concursada.

DIÁRIO DE CAMPO WILMA XAVIER

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“Você não sabe que negro só consegue ser alguma coisa se tiver estudo?”

Meu nome é Wilma Xavier, eu moro na rua Professor Teodoro Braga nº 91, na Vila Yara, há 73 anos. Minha mãe conseguiu comprar esse terreno e a gente mora ali desde então. Meus pais morreram, e nós continuamos ali, eu e minha irmã. Tenho três filhos, adultos já. A minha caminhada foi difícil, mas ao mesmo tempo, não. Foi difícil porque tudo pra pobre é difícil e pra mim é. Mas eu fui empregada doméstica, depois fui funcionária pública.

Eu estudei, consegui passando por etapas. Eu sou formada em serviço social. Já tem quatro anos. Fui estudando depois de adulta. Terminei o ginásio, fiz o curso de auxiliar de enfermagem, prestei concurso, fui pro hospital, que eu trabalho há 16 anos, lá na Vila Mariana. É o centro de referência e tratamento da AIDS. Com meu salário, salário de funcionário, nem todo funcionário ganha bem, esse negócio de que funcionário ganha muito dinheiro, não, ganha não. Então eu fui passando de faculdade em faculdade, parei de estudar dois anos, voltei e consegui terminar, eu acho isso pra mim uma vitória, apesar de não exercer. Muita gente na época em que eu entrei na faculdade não conseguiu continuar, não teve pique, e eu tive, eu me considero uma vitoriosa. A faculdade, o colégio e o trabalho me deram uma vivência muito boa. Tenho a vivência da minha família, o sofrimento, mas tenho a vivência do estudo. O estudo abre a cabeça da gente, a gente passa a ver muita coisa que você nem imagina, tanto quanto no estudo como através dos colegas, da vivência de cada um, do que passa cada um pra estudar, você vai vendo as histórias e vai juntando aquilo, fica um apanhado bom, né?

E evolui por mim, eu acredito, pela minha mãe falar, por ela sempre ter vontade que a gente estudasse, não tinha condição, mas ela sempre quis que a gente tivesse uma vida melhor, porque ela foi empregada doméstica e morreu como empregada doméstica. Então, nós conseguimos através do esforço da minha mãe, porque nós conseguimos estudar, eu estudei. Minha irmã estudou, não terminou, mas ela estudou. A minha irmã fez Direito, faltava seis meses pra terminar, ela largou tudo, porque não tinha condições de continuar pagando. “Eu já to

84 velha”. Eu falei: “Termina, falta pouco”. “Não”. Então eu posso dizer que formada lá em casa só eu.

Minha trajetória foi difícil porque eu criei três filhos sozinha, sou separada, mas graças à Deus consegui. E acredito que com toda dificuldade, minha vida não foi ruim não. Eu tenho história pra contar, agora quanto ao bairro, aqui na Brasilândia, tá muito bom porque já foi difícil, muito difícil. A condução era difícil, tudo era difícil.

Não tinha hospital perto, não tinha nada, a criminalidade era tremenda, agora ainda existe, mas não tanto como antigamente. Antes era pior… Traficante de droga, aquela drogalhada. Era coisa assim, quando era mocinha. a gente vinha no baile aqui, porque lá perto de casa muito pouco tinha. Tinha uma sede ali perto da igreja, naquela rua, a gente ia dançar ali. O povo ia na sede pra fumar maconha e oferecia pra gente. Então, eu fico pensando: “Passei aquilo tem quantos anos?”. Eu tô com 70. Isso tem mais de 50 anos, uns 55 anos mais ou menos. O povo antigo, os moradores antigos eram mais amigos, a gente conhecia um ao outro, ia na casa um do outro, entendeu? Então qualquer problema que você achasse que podia falar com alguém, até que dava certo alguma coisa. Agora não, eu não sinto isso, pode até ser que tenha alguma coletividade que eu não esteja sabendo. Não vejo. De vez em quando tinha quermesse, às vezes vinha algum parquinho e se alojava ali na praça Morro Grande, ficava ali uma temporada. Mas era assim, esporádico, não era uma coisa que tinha sempre.

O que eu posso dizer da minha idade é que eu fui no baile, não tinha muito isso. E outra coisa, eu tive uma amiga que estudava na Freguesia e o irmão dela não deixava ela sair sozinha, ela queria encontrar com os amigos da escola, então ele me botava pra ir junto, e com isso eu aproveitei muito porque a gente ia pro cinema, assistia muito Mazzaropi. Eu sou da época da antiga, assisti muito Mazzaropi por causa dela, que ia encontrar com os amigos, daí a gente ia sair. Tinha um cinema ali onde é o Banco do Brasil da Freguesia, ali era o cine, que chamava Cineclub. Eu fui muito naquele cinema, posso dizer que eu fui várias vezes, e ia nos parquinhos na adolescência e mais velha já conseguia sair mais longe, assim, com a minha irmã, com algumas colegas ali do bairro, ia nos bailes.

No geral, ser negro, dentro da comunidade, dentro da Brasilândia, do Morro Grande, eu não senti grande diferença, porque tanto negro quanto pobre que mora na periferia é porque não tem condição,então você vai contrabalanceando, você tem uma vivência, porque o seu poder aquisitivo é pouco mesmo então, querendo ou não. Fora, assim digamos, que eu achei discriminação, eles acham que pobre não tem inteligência, não sabe nada. Sabe, pelo menos por onde eu passei, onde eu fui trabalhar na época, eu tinha dezesseis anos, fui trabalhar na casa, na época, da irmã do senador da república, uma amiga me arrumou. Quando ela soube que eu sabia ler, ela ficou espantada, e aqui dentro da minha casa é normal, porque meu pai sabia ler, mas minha mãe falava que não sabia, mas ela andava São Paulo todinha. Como que ela andava São paulo sem saber ler? Ela sabia o número do bonde, ela pegava o bonde pros lugares pelo número, ela ia trabalhar, onde precisasse ir, minha mãe ia. Eu me lembro muito bem. Então, é umas coisas assim. Quando você é negro, você não tem condições, sua condição é pouca, limitada, mas se você se esforçar, vai pegando aos poucos, como eu consegui. Eu estou aqui com setenta anos com nível de universitária. Eu quase não falo que eu tenho nível de universitária, é muito difícil, porque o povo acha que negro não merece nada, daí falo só pra aquelas pessoas que eu conheço. É uma coisa, é incrível.

Assim a gente vai passando.

O importante é que eu consegui, eu acho assim, e eu espero que minha filha consiga. Os meus filhos não ligam muito não, mas a minha filha está estudando e eu estou sempre falando: “Você não sabe que negro só consegue ser alguma coisa se tiver estudo?”

Wilma Xavier, 70 anos Funcionária pública

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Nesse relato, a voz é de uma figura atuante na reivindicação por direitos no bairro da Brasilândia. Coordenador da Casa de Cultura da Brasilândia, Rodrigo Olegário, desde o início deu apoio ao projeto. Ele trouxe à tona episódios de sua infância e de lutas que travou por cidadania. O encontro aconteceu na própria casa de cultura no dia 26 de setembro de 2017, bem no início do projeto. Os alunos haviam acabado de concluir a etapa teórica do curso de História Oral e ali estavam iniciando o processo de reconhecer a historicidade no outro, por meio da coleta de relato. O depoimento de Olegário é, antes de tudo, um apelo por mudança.

DIÁRIO DE CAMPO RODRIGO OLEGÁRIO

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“É a indignação” Meu nome é Rodrigo Olegário. Sou nascido e criado aqui no distrito da Vila Brasilândia. Tenho 39 anos. Minha infância foi maravilhosa. Eu sou de uma família de cinco irmãos. Eu sou trigêmeo. Eu sou o caçula. Quando a gente nasceu a minha mãe pensou ‘para’, já tinha outros dois. E aí fechou a fábrica.

Foi maravilhoso, a gente jogava bola, empinava pipa, fazia essas brincadeiras que não tem mais hoje.

Memória dessas brincadeiras, né, Bolinha de gude, pião, esconde-esconde, mula-mula…tudo isso era muito sadio. A gente ia jogar bola. A gente jogava aos sábados. Chegava sexta-feira a gente nem dormia. De sexta para sábado. Não via hora de chegar aquele horário para gente ir jogar bola e rever os amigos. Esse calor da periferia não tem igual. As pessoas que moram aqui nesses condomínios não têm os mesmos privilégios que nós temos, porque a gente pode abrir a janela da nossa casa e gritar da nossa própria janela para o nosso vizinho para emprestar algo para nós. Não tem essa coisa que é muito legal que é a brincadeira na rua. Aquele calor de colocar apelido, de fazer umas brincadeiras. O lance de jogar bola também, a piadinha. Então isso não tem preço, é muito rico.

Na minha época não existia, por exemplo, o que hoje é inviável pensar, você ver jovens ou crianças envolvidas no tráfico. Era inadmissível ver uma pessoa menor envolvida com droga. Então era mais difícil na minha época. Naquela época a malandragem de fato existia. Isso era malandragem para mim. Tinha respeito. A gente não tinha esse problema de assalto como tem hoje. No ponto de ônibus.

Roubam o celular… As pessoas naquela época roubavam porque não tinham condições. Ia lá e roubava um cara, sabe. Mas essa questão tem a ver com a questão de dominação de classe, porque muito das

88 pessoas que roubam hoje é por questões materiais, roubam por causa de uma moto, por causa de um carro ou por causa de status. Roupa de marca, tênis de marca…Só que isso tem um preço. Mas assim a propaganda da tv fala para gente consumir, a música jovem fala para você consumir. Então isso fica no automático da pessoa. Você não precisa estar com uma roupa de marca para você conquistar uma pessoa. O que vale é sua atitude, o seu pensamento, o seu respeito. Então, isso é muito triste. Vale a pena refletir sobre isso.

A violência vem aumentando cada vez mais, infelizmente. Na década de 90 tinha, mas o que era é uma rivalidade entre as pessoas que comandavam a região. Uma coisa que não esqueço é de uma chacina, teve toque de recolher, no bairro onde moro, no Guarani, os caras se digladiando, uma semana que ninguém podia andar na rua, eu tinha uns 12 anos. Isso foi no meio da semana e, domingo, estava tendo festival na quadra e começou um monte de tiro. Não esqueço disso até hoje, uma hora da tarde, fui descer o escadão e tinha quatro corpos estendidos. Fiquei assustado. Não entendia o porquê disso.

Isso durou mais de uma semana e tinha até informação na rua: “A partir das 18h até 20h da noite, não pode ficar na rua”. A rua ficava um breu total.

Naquela época quem morria eram pessoas mais velhas, mas hoje não, quem estão morrendo são os jovens e principalmente na mão da polícia. E os principais fatores que levam o jovem a cometer muito dos furtos são as questões materiais. O capitalismo é o principal causador dessa questão dá gente consumir para simplesmente falar que você é bem-sucedido. Eu não preciso disso, eu posso ser bemsucedido do jeito que eu sou. Não uso uma roupa, nem uso muita grana, não preciso usar uma marca.

O conhecimento é tudo. Respeito e conhecimento são fundamentais. Na Constituição fala que todos as pessoas nascidas e vivas elas podem usufruir de tudo: saúde, educação, cultura e lazer. E também tem a questão racial, quem está morrendo? Se pegarmos podemos ver que a Brasilândia era o segundo distrito mais violento comparado com 2017 feito agora em junho ou maio. Um gráfico que mostra como vêm aumentando a cada ano que passa o número de pessoas mortas. O homicídio no Brasil mata mais que uma guerra civil. Isso é absurdo. Mata mais que uma guerra civil.

Por exemplo, a Brasilândia tem 74 anos ou 73 e agora está sendo construído o Hospital da Brasilândia.

Quando você tem 74 anos para pensar em atender os moradores da Brasilândia, isso é um absurdo!

Sendo que na Constituição fala lá que todo temos direito a saúde, a moradia e educação. Fiquei sabendo anos atrás que, para construir hospitais precisam ter 100 mil habitantes, a Brasilândia tem 300 mil, o ideal seria mais dois, quase 74 anos e estão pensando em construir o primeiro. Então, são coisas para se questionar: “Olha estão construindo um hospital aqui, mas o ideal são mais dois”. E tem muito terreno para isso, mas depende de nós, precisamos pensar no coletivo.

Voltamos naquela questão dominação de classe. Os pobres têm que ficar nessa condição miserável. É desumano você morar na Brasilândia e saber que tem gente que está morando em cima do esgoto.

Esses dias eu fui lá no Iraque, tem pessoas que moram em cima do esgoto. Às vezes elas convivem com ratos. Isso é triste. Você vê crianças dividindo ali com ratos, sendo que São Paulo é o centro financeiro do país. O Jardim Peri o pior lugar com Índice de desenvolvimento humano. Se você for ali atrás no Jardim da Vista Alegre e você vê que lá as pessoas vivem numa condição bem vulnerável. É a indignação. Eu fico indignado ainda de saber que tem pessoas que não tem saneamento básico aqui, saber que a cada dia que passa os filhos dos meus amigos ou até meus sobrinhos podem entrar dentro dessa estatística

89 de estar envolvido com o tráfico, com o crime, de ver as mães de amigos meus que ficam pedindo ajuda de como buscar essa informação. Você pensa: “pô, mas tem esses equipamentos públicos, mas eles não estão trabalhando direito. ” São poucas pessoas que sentam lá na cadeira e pensam: “o que eu posso melhorar essa relação com a comunidade com essa galera.” E é isso que me motiva, é a indignação. É inadmissível, é inaceitável ver uma situação como essa.

Em 2011, dei início ao projeto Bairro Limpo. A Brasilândia tem muitos pontos viciados de lixo. A ideia era acabar com os pontos viciados de lixo e isso deu uma repercussão bem bacana. Com a movimentação de amigos meus grafiteiros e envolvi as empresas responsáveis pela coleta de lixo e pela coleta de bagulhos e entulhos. Isso deu uma repercussão bem positiva, que eu pensei assim, normalmente esses pontos viciados de lixo, que você percebe, são em áreas públicas e em espaços ociosos. Simplesmente se a gente dá vida a esses pontos viciados, o que é dá vida? É você colocar equipamentos de exercícios, é você colocar equipamentos de lazer para que a comunidade usufrua daquele espaço para ela de fato respeitar. Porque eu fiz isso preocupado com a nossa imagem. Porque para muitos, o pessoal que mora na periferia é um bando de pobres, com um monte de lixo. E não é isso. Eu também sou contra essa ideia porque você desconstrói a cidadania. Então é isso, a gente precisa promover essas ações, esses gestos de cidadania. Que vai criar uma boa relação. Nós não somos um bando de pobres, porque tinham pessoas que tinham vergonha de trazer seus amigos, namorados, namoradas, na sua casa porque simplesmente tinham de passar por uma viela onde tinha um monte de lixo.

Olha, eu não planejei nada na minha infância. Hoje eu faço uma reflexão, nós nascemos para que?

Por que que nós nascemos? Eu vivo o meu dia a dia assim. Por que eu nasci? Eu nasci para brigar?

Eu nasci para odiar pessoas? Eu nasci para quê? Para mim cada um tem um dom dentro de si, mas eu não procuro buscar esse dom. Eu sempre procuro esse olhar: Eu nasci para quê e o que eu posso fazer. EU acho que é assim. Eu estou aqui como um cidadão morador da Brasilândia. Faz dois meses que eu estou na Casa de Cultura, eu vim e aceitei esse desafio porque eu gosto. Eu sempre gostei de coisas relacionadas a cultura…. Eu percebi que eu não poderia perder noites de sono. Eu percebi que eu não precisava ficar num ambiente só para falar sobre putaria, aquelas coisas de que homem tem que dominar mulher.

Eu faço várias coisas preocupado com a melhoria da Vila Brasilândia. Atuo também como coordenador da Casa de Cultura da Brasilândia e líder comunitário da comunidade onde moro, Vila Icaraí, que é um bairro do distrito da Brasilândia. Desde 2000 junto com uns amigos que moram na mesma comunidade a gente estava preocupado em querer fazer algo bom para o bairro devido muitos relatos deles de falar de que só tem coisa ruim na região, de que eles estavam até desestimulados de sair fora do bairro.

Aí com uma simples roda de conversa, de querer entender o que era isso que estavam desmotivados para querer mudar para outro bairro. A gente percebeu que através de umas parcerias a gente poderia trazer algumas coisas que melhorassem a autoestima deles. Por exemplo, algumas atividades culturais e musicais.

A gente fez o primeiro projeto em 2003 chamado “Basta”. Que era um evento que a gente podia falar Basta! Pela falta de existência de cultura de lazer, e basta para violência, para a violação de direitos, do não investimento em políticas públicas. A gente fechou a rua. Cada um se articulou para fazer alguma

90 coisa. Eu como adoro música e tenho vários contatos com artistas e músicos do cenário musical. A gente conseguiu trazer uns artistas bacanas e do nada o evento cresceu. A gente fez no fundo da garagem de um amigo nosso, que tinha um estúdio bacana no fundo da garagem dele. Deu uma repercussão muito grande. Foi parar até no jornal da Globo. Dali começou a anunciar e fazer outras coisas para comunidade, para bem comum nosso. Quando eu vejo algo e fico indignado, eu vou lá e tento resolver isso. Não é ódio, nem raiva, é indignado. É uma situação que me deixa indignado que vai mover para uma mudança. Então isso me ajudou muito porque eu ficava indignado com a questão do lixo. De repente meu sobrinho descobriu que o Campos em 2007 foi considerado a pior escola. Então tinha um histórico dentro daquela escola. Então eu fui até o Ministério Público. Peguei a Constituição, artigo x, y. A Brasilândia sempre foi sinônimo de violência, mas não é isso. É porque a gente não tem investimento de política pública. Tem muita gente boa aqui no bairro.

Por exemplo, no mês agora de novembro que é o mês da consciência negra eu vou fazer uma exposição de um artista plástico aqui da região da Brasilândia. O cara é o maior talento, mas ninguém aqui da Brasilândia conhece esse cara. A gente também tem aqui um cara que é oficineiro daqui da Casa de Cultura, ele é professor de capoeira e foi campeão esse ano mundial de maculelê, que uma dança de cultura africana e foi vice-campeão mundial. Então é outro morador da Brasilândia. A gente tem muita gente maravilhosa. A gente tem outro atleta paralímpico que disputou as Olimpíadas, que é da Brasilândia. Então a gente tem muitas pessoas boas aqui. A gente tem que falar desse lado pra Brasilândia.

Comecei a fazer parte de coletivos de direitos humanos. Comecei a fazer parte de coletivos contra o extermínio da população negra, pobre e periférica. Ultimamente estou fazendo parte de um coletivo que fala sobre encarceramento da população da periferia. A gente percebe que essas indagações e esses questionamentos, hoje a gente consegue olhar que tudo tem uma maneira intencional. Se a gente pegar, fizer uma avaliação onde estão as melhores escolas, elas com certeza não vão estar no enquadramento da periferia. Estão nas áreas nobres. De classe média alta. E se a gente pega as piores escolas, elas estão na periferia. Quando a gente faz outro olhar social passando pelo encarceramento, se você pegar a maioria das pessoas que estão no sistema prisional, quem está preso, a maioria são pessoas pobres. Se eu perguntar para vocês com certeza vocês vão ter alguém próximo que está preso.

A gente consegue fazer esse ligamento. É uma questão social. Se você não tem escola, que é a base de tudo, e não tem uma cultura, você não tem um estímulo para pensar em ser alguém na vida. De fato, vai para o caminho errado. Acho que se a gente começar a perceber, começar a ter essa visão…todos conhecidos nossos estão traficando ou tem um histórico familiar. É uma questão social. Tem muitos em que os pais já são envolvidos nessa questão do tráfico e isso que estimulou eles para esse caminho que não é legal.

O primeiro movimento que participei foi sobre o extermínio da juventude negra periférica. Em 2012 saiu o Mapa da Violência, a Brasilândia saiu como segundo distrito com mais jovens mortos pela polícia.

Participei dos questionamentos sobre as políticas públicas na questão da juventude na nossa região e eu fui na ‘coordenaria’ da juventude da prefeitura de São Paulo. Participei de encontros no Largo de Direito, no Largo São Francisco. E outro foi sobre a chacina de Osasco, que aconteceu em 2015,

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com várias pessoas mortas pela polícia. Inclusive, um dos meninos que foi assassinado na Chacina de Osasco ele nasceu aqui na Brasilândia e com 8 anos de idade foi morar lá em Osasco. Vi que eu estava saindo da Vila Brasilândia preocupado com Osasco. Eu percebi que poderia estar lá e ajudar na hora de fazer a denúncia e dizer para as famílias que elas poderiam contar comigo. Porque é inadmissível aceitar a gente achar que isso é uma coisa normal. Se a gente assistir TV, como o Datena, programada da Record ou a Rede Globo, fala assim: “Olha tanto jovens foram mortos, mas X tinham passagem”.

Independente da pessoa ter passagem, ela já cumpriu o que ela tinha. E eles jogam isso como se fosse uma coisa normal. Mesmo que a pessoa tenha cumprido a pena dela. “Ela tinha passagem”. O que isso tem a ver? Isso é absurdo, isso não é justificativa. Isso não é papel da polícia. O papel da polícia é ver se alguém cometeu algum crime, ir lá prender e fazer com que a Justiça cobre o que precisa ser feito,

92 não a televisão. E eles pegam e fazem isso de uma maneira natural.

A cada ano que passa vem aumentando o extermínio da população e quando você separa os dados por raça e etnia, você vê lá que os negros são sempre o alvo da polícia, não só aqui em São Paulo, não só no Brasil, mas nos Estados Unidos, com o Trump lá está voltando o movimento da Klu Klux Klan, a supremacia branca, os brancos no poder. Então, assim, esse ódio é mundial, não só no Brasil, mas no mundo todo. E você faz esse mesmo comparativo, porque essa intolerância só por causa da pigmentação da cor da pele? Se você pegar os dez países mais miseráveis eles ficam todos no continente africano. Então, não gostar de uma pessoa por causa da cor da pele dela, da opção sexual que ela tem, por causa de uma religião, do jeito delas falarem... Qual o símbolo de justiça no Brasil?

Temos a balança “dois pesos e duas medidas”, e a mulher dos olhos vendados “ a justiça é cega”, modelo europeu e, estamos falando de um país em que a maioria da população é afro-brasileira. E qual é o símbolo da justiça Africana? O símbolo da justiça africana é aqueles dois pontilhados que é o símbolo de Xangô, que é um machado com dois lados afiados, a mesma justiça que condena a pessoa por alguma forma errada, ela entende que se condenou erradamente, ela volta para punir a pessoa.

Nosso país, onde a maioria é negra, não tem representatividade. Por exemplo, os monumentos de referência, as ruas da cidade de São Paulo, levam o nome de negros? Não. Na Europa eles trabalham com a identificação das pessoas, da cultura do país, por exemplo, o dinheiro, uma forma de identificar a população, aqui a gente tem algo assim na nossa cédula? Não tem representatividade. Temos o monumento do Zumbi dos Palmares na Praça Antônio Prado, perto da rua Boa Vista. Também tem o Museu Afro no Ibirapuera. Mas, são poucas, a maioria é cultura europeia, bandeirantes, militares.

Será mesmo que vale a pena ficar assistindo aquela novela que fala de escravidão? E o outro lado da cultura do negro, não lado bom na história? Ficam sempre colocando o negro como empregado, como escravo, como objeto de desejo, o que isso enriquece na minha vida. Comecei a fazer esses questionamentos. O Rap me traz muito para essa reflexão. O Gabriel Pensador, fez essa música “ Até Quando”, que fala sobre isso: “Até quando você vai ficar preso na cadeira, na poltrona do sofá, assistindo aquele programa de tv?”. Você está com o controle na mão, se não está fazendo, mude de canal. Tem uma música da década de 90, dos Racionais, que me inspira até hoje, que se chama “Negro Limitado” e tem frases nesta música que me instigou muito: “A informação é uma grande arma, mais importante que uma PT carregada. Roupas caras de etiqueta, não valem nada, se comparadas a uma mente articulada”. “Contra os racistas otários, a química é perfeita”.

Eu gosto de onde eu moro. Eu adoro a Brasilândia. O fundamental é pensar no coletivo e não no individual. “Não é meu filho que foi preso, nenhum parente próximo meu”, “Ah, isso não está acontecendo comigo“. Eu ainda me sinto pai da galera da Brasilândia, quero cuidar das pessoas. Eu, às vezes, penso que não dá para ser pai, porque ainda tenho muita coisa boa para agregar e dividir. Sou muito mais cuidar dos outros para depois pensar em mim.

Rodrigo Olegário, 39 anos Coordenador pedagógico

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Nesse relato, trazemos a transcrição exata da entrevista, com as nossas perguntas e intervenções, visto o seu valor para a História Oral, quanto para a naturalidade do trabalho. Sthefani Ribeiro, Jovem Monitora da Casa de Cultura da Brasilândia, foi quem indicou a moradora histórica do bairro, Dona Maria Lourdes.

No dia do nosso encontro, que aconteceu 12 de dezembro de 2017, a senhora de 95 anos estava na companhia de Valdete e Dilermando, sua filha e seu genro.

Enquanto Lourdes contava histórias olhando para a sua coleção de fotografias, recriava as histórias com seus familiares. Em dado momento, compreendemos que seria muito mais enriquecedor que entrevistássemos não apenas Lourdes, mas também toda a família presente ali naquele contexto. Portanto, Valdete e Dilermano também compõem essa entrevista por conta de suas vivências como moradores e cidadãos da Brasilândia, assim como também agentes históricos.

Lourdes nos trouxe conteúdos de sua vida de trabalho, como mãe e moradora.

Valdete trouxe informações sobre a violência, locais de lazer e desenvolvimento do bairro. DIlermano dialogou com conteúdos simbólicos da Brasilândia já citados em outros relatos, como o Cinema da Brasilândia e a traficante Nenê.

DIÁRIO DE CAMPO MARIA DE LOURDES, VALDETE E DILERMANO

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“As pessoas que moram na comunidade não são aquelas pessoas que estão naquele quadradinho, eles tem toda uma história” Lourdes: Eu nasci em 1922. Dia 2 de novembro de 1922, que eu nasci. Eu estou com noventa e cinco anos, né? De lá pra cá fiquei mocinha, casei, enviuvei, tornei a casar e tive esses dois... [ela interrompe, se corrigindo] essa filha o outro já faleceu, mas tem um outro que mora em Tremembé, esse nunca morou aqui mas ela eo que faleceu morou aqui. Talvez vocês já até chegaram a conhecer ele mas não vai lembrar né, um tal de Heitor, ele era alfaiate, ele era aqui do bairro, tinha muito muitos amiguinhos, amigo e tudo, ele morreu com 61 anos. Depois, meu marido também morreu, fiquei morando pra cá.

Antes daqui, digo de mudar pra cá, eu morava na rua João Teodoro. Sabe aonde é a rua João Teodoro?

Na... na Luz! Valdete: No Brás!

Lourdes: No Brás. Eu morava lá. De lá que eu vim pra cá, e aqui não era assim, não tinha todas essas casas, Aí perto da igreja era um arvoredo que só vendo, tinha que ir de ônibus, até a ... a pé até a freguesia pra pegar um ônibus pra ir pra cidade... E outras “coisitas” mais, a gente ia na feira... aqui na Brasilândia mudou 100%. Não tinha condução, não tinha água encanada, era água de poço, não tinha luz na rua, depois que veio tudo isso eu tava aqui já. Já faz mais de 40 anos que eu moro aqui.

Dilermando: Não tinha asfalto na rua!

Lourdes: É, não tinha não, não tinha. É, não tinha telefone, não tinha nada! Quem vem de fora pra cá,

96 que já esteve aqui: “Nossa, como mudou isso aqui, como aumentou!”. Agora a gente tem tudo, tem mercado, tem farmácia, tem drogaria, tem de tudo que quer...

Valdete: Não vai ter o tal do metrô!?

Lourdes: Vai “tê” até metrô aqui... Adiantou bastante né? E esse foi minha trajetória... trabalhando sempre, trabalhei na Atma. Conheceu a Atma!? nem ouviu... nem... nem... nem conhece de conversa, uma fábrica de boneca.

Dilermando: Uma fábrica de brinquedos Lourdes: Alisava cabelos na cabeça das boneca, na máquina. De lá, em 72 eu me aposentei por causa de problemas, de doença, coração essas coisa, o médico me aposentou e dê lá pra cá eu tô aposentada.

Vitor Hugo: A senhora nasceu aqui no bairro?

Lourdes: Eu nasci em Campinas, eu vim de campinas morar pra cá com 2 anos... Agora tô com 95 quer dizer que são... 43 né?

Vitor Hugo: Chegou aqui em mil novecentos e vinte e ... quatro?

Lourdes: É! De lá pra cá foi sempre aqui em São Paulo, nunca mais saí daqui. E aqui foi a trajetória da minha vida, casei, viuvei, tornei a casar, tornou a morrer [Ela ri]. Tive meu primeiro filho com 73 anos, meu primeiro filho que mora lá no Tremembé, minha filha caçula, e outro que faleceu que era alfaiate, o Heitor, tinha 61, ta tudo véio! [Ela ri] É assim, depois que aposentei fiquei só em casa costurando, sou costureira também. Tive muitas amizades por aqui, tudo eles me conhecem...

Valdete: Conhece por causa que são duas irmãs né?

Lourdes: E nós somos duas irmãs, porque o meu pai … o meu pai faleceu e deixou a herança, que é a casinha que elas moram alí em cima, eu não morava aqui, eu to aqui faz 3 meses, é ...

Valdete: Não, 6 né mãe, porque a gente só veio pra cá em Julho... Junho, 3 de junho que a gente veio pra cá.

[Pegaram fotos antigas da família para olharem] Vitor Hugo: Como que era o nome dele, desse aqui? [Falando sobre uma das fotos] Valdete: Esse aqui eu acho que era o Wilson.

Lourdes: É o Wilson sim, o meu filho mais velho, o Wilson.

Vitor Hugo: Seu filho mais velho. Foi o primeiro esse aqui? Você teve ele com quantos anos? Você lembra?

Lourdes: Acho que foi com uns 20 anos, que eu tive ele.

Henrique: Conta pra gente um pouco como que foi a infância da senhora, a senhora veio de campinas?

Lourdes: Eu não morava aqui na Brasilândia eu morava lá em Santana, conhece Santana? Então eu morava ali em Santana, era tudo completamente diferente de hoje, a educação era outra, era... era... num... Não... não sei nem explicar, De lá estudei lá, mudei pra cá, morei em vários bairros e vim parar aqui, e daqui acho que vou lá pra cidade de Presunto. [Ela ri] Valdete: Mas você brincava do que mãe?

Vitor Hugo: O que a senhora gostava de fazer quando era criança?

Lourdes: Ahhh, eu gostava de brincar de boneca! Fazer roupinha de boneca, e continuei até agora.

97 Sempre na agulha... sempre na agulha! E era essa minha brincadeira. Com meninas também, tudo completamente diferente de hoje. Moçada, vocês que são moças, era completamente diferente da data de hoje. Hoje eu fico olhando pra televisão e... me espanta. Certas coisas que eu vejo, me espanta.

Vitor Hugo: E a relação com seus pais, como é que eram?

Lourdes: Ah, meu pai, meu pai era músico... Gostava de tocar bateria! Meu pai não era desses pai que é carinhoso, que trata bem, não, meu pai só gostava de tocar e ir pro salão. Agora nos baile tem vitrola, tem não sei o que lá, mas naquele tempo era música ao vivo, e meu pai tocava num conjunto ao vivo.

Ele era baterista!

Vitor Hugo: Então ele passava muito tempo fora de casa?

Lourdes: Não! passava assim... de sexta pra sábado, de sábado pra domingo. Muito vaidoso, muito convencido meu pai, meu pai era pedreiro. Minha mãe era lavadeira - lavava roupa, e eu, com 13 anos, comecei a trabalhar em uma fábrica de bala, embrulhando bala. Cento e cinquenta reais o quilo da bala.

Vitor Hugo: Aonde que era essa fábrica?

Lourdes: Na Rua Bandeirantes, lá no Brás. Conhece a rua Bandeirantes?

Lincoln: Com 13 anos?

Lourdes: Com 13 anos! Daí eu não parei mais, sempre trabalhando, trabalhando.

Vitor Hugo: Tinha mais irmãos?

Lourdes: Não, só eu e a minha irmã! Nós somos 2 irmãs. A minha irmã tem 94, e eu tenho 95. A minha irmã vai fazer 94, e eu já fiz os 95. Sou 1 ano mais velha que ela.

Bruno: Como era o seu relacionamento com sua mãe?

Lourdes: Ah, com a minha mãe era muito bom! Só que a minha mãe era... meia... como se diz... ela era meia dura, num era que nem essas mãe de hoje não. Minha mãe era seca, num dava, assim, confiança, essas liberdade que as filhas hoje tem, nada disso tinha. Respeitar a mãe, era pra respeitar mesmo, senão o couro comia.

Bruno: E como foi a sua adolescência? O que é que a senhora gostava de fazer na sua adolescência?

Lourdes: Brincar com as criança! Só brincar. Eu comecei de ir no baile quando eu fiquei viúva. Na minha mocidade meu pai não dava essa chance, não. Era trabalhar e ir pra casa e de casa pro trabalho.

E cuidar... lidar como se fosse uma dona de casa, pensar no arroz, no feijão, nas coisas que tem que pagar, eu era uma dona de casa. Depois que eu me tornei mocinha eu passei a ser responsável... uma coisa que num tinha que ser minha, tinha que ser do meu pai, não é mesmo?!

Lincoln: Existiam bailes essa época? Que bailes eram esses? Como que eram?

Lourdes: No Paulistano, tem ainda! Vinte oito não tem mais porque morreu muita gente queimado lá, que teve um incêndio no salão, quando tava tendo baile, e a turma tava querendo sair tudo correndo de lá de dentro do salão, então morreu muita gente atropelado, pisoteado.

Vitor Hugo: Nesse Vinte oito? E a senhora frequentava?

Lourdes: Eu tava lá esse dia, mas eu sai.

Vitor Hugo: Mas como foi esse dia? Como foi que aconteceu isso?

Lourdes: Eu não sei! Tavam todo mundo dançando, e de repente começaram a gritar “Fogo, fogo”, a

98 turma ficou tudo alvoroçada, e começou a sair um montão de gente numa porta só, e morreu bastante gente, viu. E eu sai de dentro, porque eu sou muito precavida, viu. Quando eu vejo que não ta bom, eu já fico perto da saída. Até agora eu sou assim, em todo lugar que eu vou. Quando eu vejo muito aglomeramento eu já procuro um jeito pra procurar a saída.

Valdete: A senhora tinha quantos anos na época, mais ou menos? Ai dá pra saber quando foi o ano.

Lourdes: Eu acho que tinha uns... vinte e cinco... é não, vinte e cinco não. Eu tinha uns trinta anos, nessa época! Nesse tempo, tinha muito baile assim, bailinhos, bailes, assim, era diferente de hoje, não era essa bagunça que é hoje.

Vitor Hugo: Mas os bailes eram daqui?

Lourdes: Daqui da Brasilândia? Não, da cidade!! A gente ia pro Centro dançar. É.... aqui não tinha nada.

Valdete: Não tinha água, não tinha luz aqui, não tinha nada.

Henrique: A senhora lembra da história, do motivo que colocaram o nome dessa rua de Estrada do Sabão?

Lourdes: Não sei.

Henrique: Porque é... como era muito barro, não tinha via, não era asfaltada, então as pessoas escorregavam na lama.

Lourdes: Sim, era, diz que isso aqui era uma floresta, diz que era uma floresta, ai depois que lotearam, é que veio a derrubar e vender lotes assim, que virou nisso que ta agora.

Valdete: Ela veio pra cá foi em cinquenta... não, em sessenta... 1970! A gente pegou aqui, eu lembro que quando a gente pegou, não tinha ônibus até aqui. Era só até ali na igreja da Freguesia... da Itaberaba. De lá pra cá é que tinha que pegar o “pau de arara”. Que colocaram o apelido de “pau de arara” que eram um caminhão que vinha, e deixava o pessoal aqui em cima na Igreja de Santo Antônio.

Ai depois, que veio a ter um ônibus até aqui. E então que começou a ter isso, é que começou, algumas ruas, a ter asfalto. Que foi só a Parapuã que tinha, e aquelas ruas de lá de cima, de lá pra baixo era tudo barro. Aqui, nesse local aqui em baixo, era uma espécie de um... de um pântano, que era muita, muita lama, você pisa e se afundava lá pra baixo. Ai depois, que tendo córrego que foi drenando a água...

Lourdes: Aqui era muito mal falado, aqui. Quem vem da cidade pra cá... motorista não queria vim até aqui na Brasilândia, quando vem aqui, ou ele apanhava, ou ele morria. É... era muito mal falado aqui.

Henrique: Mas acontecia alguma coisa?

Lourdes: Acontecia!

Valdete: Acontecia, tinha muito assalto.

Lourdes: É, muita malandragem antigamente, tinha aqui.

Valdete: E também, que aqui era uma concentração de muitos negros, aqui. tinha muito negro. Muitas famílias de negros aqui.

Lourdes: E foi se melhorando, melhorando, melhorando, e agora, agora tá ótimo aqui. Agora essas pessoa pesado, ta morando lá pro Guarani, Paulistano, Terezinha, pra esses lado, pra lá, pra lá pra cima.

Aqui já se tornou… Itaberaba, Freguesia do O… ta uma cidade agora.

Isaac: Como que foi, quando a senhora morava em Santana, pra levar seus filhos lá pro Centro? Como

99 que era a condução? Era cara? Tinha muito ônibus?

Lourdes: Lá não tinha... Quando eu morava em Santana, eu era menina ainda, todo lugar, a escola que eu ia, tinha que ia a pé. Negócio de ônibus, perua pra levar criança não tinha nas escola, não. Isso quando eu morei na ponte pequena, ali eu tinha quanto... quatorze anos... eu ia da ponte pequena até Santana, sabe aonde é Santana?! Então, dali, eu ia lá em Santana, na escola, e a gente tinha que passar na ponte grande, não tem o bairro ponte grande? Lá tinha um clube de... de natação, e eu tinha medo de passar na ponte, porque, quando passava, a gente passando, de lado, aquilo estremecia, ahhh meu Deus. Por isso eu saí da escola, com treze anos... terceiro ano, alias, eu tava no terceiro ano quando eu saí da escola. Eu só estudei até o terceiro ano. Assim, pra ganhar diploma e tudo, eu não estudei mais nada. Com treze anos eu fui trabalhar... pra ajudar minha mãe.

Vitor Hugo: E a metalúrgica, como funcionava esse tipo de trabalho?

Lourdes: Tenho até a marca no meu dedo aqui, olha. Conforme bateu a prensa aqui, abriu o dedo, ó o sinal no dedo. [Ela mostra a cicatriz no dedo]. Quando eu arrebentei esse dedo, na metalúrgica, eu tava grávida de seis meses do meu primeiro filho.

Bruno: Então a senhora trabalhava mesmo grávida?

Lourdes: Trabalhava... trabalhava grávida!

Vitor Hugo: Quantas horas por dia, você lembra?

Lourdes: Umas oito horas.

Marcos: A senhora recebia bem?

Lourdes: É...

Dilermando: Não mudou muita coisa sobre isso com hoje em dia Vitor Hugo: E os benefícios?

Lourdes: Não tinha nada… Quando Getúlio Vargas decretou esse negócio de aposentadoria, é que eu comecei pagar. Pois aí é que eu comecei a ser sócia da BNDES. Vitor Hugo: Mas a senhora acha que melhorou?

Lourdes: O pouquinho que era, mas dava, viu. Agora... agora eu não ganho nem mil cruzeiros. Mil cruzeiro era dinheiro, né?!

Vitor Hugo: Era muito dinheiro?

Lourdes: Ô, se era... e agora não é nada.

Henrique: Como foi cuidar de dois, separada, depois de viver tudo isso? Foi difícil? A senhora encontrou dificuldades?

Lourdes: Não...

Valdete: Foi facinho, né, mãe? Comia ovo, né, todo dia, né mãe? Fala a dificuldade mãe, por favor .

Lourdes: Ah, quando tinha ovo, comia ovo, quando não tinha ovo, comia só arroz e feijão. E assim eles criaram... e tão tudo ai, O outro já faleceu, que gostava “duma” cachacinha... então ele já foi. Se vocês conhecesse ele, vocês iam adorar o jeito dele.

Valdete: Foi fácil não, viu. Quando eu completei 13 anos, eu que comecei a trabalhar...

Lourdes: Ela trabalhou aonde eu estava trabalhando. Quando chega no fim do ano, essas pessoas mais

100 velhas, são mandada embora, pra pegar as pessoas mais novas, e eu fui uma que saiu naquela ocasião, na Atma.

Valdete: Lá na Atma, não podia entrar parente. Por exemplo... uma mãe, e uma filha não podia entrar... então, como ela tinha saído, eu entrei. E aí, eu entrei lá, tava com 13 anos, e quando eu saí de lá, eu já tava com 21 anos.

Andressa: Trabalhou muito tempo lá?!

Valdete: Trabalhei bastante tempo, lá.

Lourdes: Entrou solteira e saiu casada.

Valdete: Eu tava de casar, só faltava um mês pra me casar, aí eu saí de lá. E trabalhei na Sabó por mais cinco anos, aí depois, quando eu tava na Sabó, foi ai que eu tive o meu primeiro filho. Que é o meu menino. Ai eu saí da Sabó, depois de cinco anos, e ai que demorou uns seis anos... depois foi ai que eu tive minha menina. Mas eu comecei a trabalhar bem cedo, pra ajudar em casa. Foi aí que a gente foi colocar... bomba, no poço, porque tinha que puxar a água com a manivela... jogar na caixa, pra poder ter água dentro de casa, ou então ficar com o balde do lado de casa, assim, pra poder ficar usando... pra tomar banho... pra tomar banho era na bacia, com a canequinha, né!? O banheiro não era dentro de casa, era lá no fundo do quintal...

Lourdes: Não tinha descarga, nem nada... daí foi melhorando.

Valdete: Daí, depois que comecei trabalhar, que foi melhorando. Veio o asfalto, do asfalto veio a água, depois veio a água da rua... Bem depois, bem depois. Eu já tava mocinha, já! Daí que foi melhorando a Brasilândia.

Lourdes: Foi melhorando, melhorando, melhorando e melhorando, e tá melhorando até agora.

Valdete: Mas a infância dela, ela conta muito pra mim, que era muito difícil, porque era... a carvão, porque a maneira de cozinhar era... carvão, e carvão... demora pra pegar fogo. Então ela falava que quando descascava a laranja – é as histórias que ela conta pra mim, que quando ela descascava a laranja, ela pegava e pendurava assim, perto do fogão... E aquelas cascas, elas ressecam. E quando ela queria acender logo o carvão, ela colocava aquela casca de laranja ali no meio, e acendia o fogo... e acendia o fogo lá. E pra conservar comida conservar comida elas colocavam no chão, pra não estragar.

Lourdes: Não tinha geladeira!

Valdete: E pra comer, era muito difícil. Hoje em dia você vai no açougue, e você compra um rabada, é um preço enorme. Naquele tempo eles davam, eles davam rabo, davam o pé de porco, pé de boi... a cabeça do porco. E quando tinha cabeça de porco pra elas comer, ela contam pra mim, as duas, e eu morro de rir, elas diziam: “Oba, hoje tem cabeça de titia pra gente comer”. “Cabeça de titia era cabeça de porco”, elas falavam que era cabeça de titia.

Valdete: Mas tem umas coisas que a senhora não esquece, quando a senhora namorava, como é que a senhora escolhia os namorado, fala pra eles como a senhora fazia!

Lourdes: Eu olhava pra sola do sapato, se tava muito gasto. Marcava um encontro com o moço...

Quando chegava na porta do cinema... cadê o moço? Em vez de esperar na porta, pra pagar a minha entrada, ele ia me esperar lá dentro. E eu comigo pensei: “Se agora que tá namorando, imagina quando

101 ele casar, como é que vai ser? Imagina! Se não tem dinheiro pra pagar uma entrada de cinema pra namorada, o que que ele quer então?!”. Eu gostava muito de pessoa mais velha que eu, sempre gostei.

Nunca gostei de mocinho.

Vitor Hugo: como é que você fazia pra escolher, que você não contou pra gente.

Lourdes: Eu olhava bem, se ele tá com o colarinho bem limpinho, a boca em dia, o cabelo cortado, educação, se não fosse muito adiantado... todas essas coisas.

Com meu marido foi assim... eu trabalhava lá no Largo da Concórdia, sabe o Largo da Concórdia?! No Brás. Então, tinha uma fábrica de goiabada peixe, meu marido trabalhava ali, e ele era solteiro, e eu também era solteira, eu trabalhava ao lado, na outra fábrica. Então, quando eu passava, na hora do almoço, que eu ia pra casa almoçar, eu passava justo na hora que ele também saía pra almoçar. E na hora que saia, tinha turma de moça, uma, duas, três, tudo de braço dado, e eu não sei o que que ele achou, que ele apontou eu... e veio falar comigo. Sapatinho, couro crocodilo, naquele tempo se usava sapato couro de crocodilo, um homem não andava sem gravata. Um homem não dançava com uma moça sem um lenço pra por nas costas... Agora já estão dançando quase os dois pelados. Ai eu falei pra ele: ó eu não vou mais namorar com você... Falei pra ele: “Chego em casa, meu pai me desce a lenha em mim.“ E ele: “Não, se for por isso, eu vou lá na sua casa e vou falar com seu pai”. E não é que eu foi mesmo?! E ele tava noivo! Largou da noiva...

Vitor Hugo: E aí, o que ele fez?

Lourdes: Terminou, continuou namorando comigo, namoramos um ano e pouco, ele que fez todo o casamento, gastou o que tinha com o que não podia, mas até o carvão que não tinha pra gente cozinhar, ele colocou na casa. Ele foi homem. Trabalhador, honrou o nome dele.

Vitor Hugo: E ele foi pedir pro seu pai? Como é que foi?

Lourdes: Meu pai falou assim, pra minha mãe... eu não quero nem falar o nome... Meu pai era muito atrasado. “Fala ai com a sua cafetina que tá ai”. Que é a minha mãe. Tudo o que a gente sentia, a gente ia conversar com a mãe, com meu pai a gente não tinha diálogo, não tinha papo, e minha mãe é que era a apaziguadora, a amiga. E ai foi conversar com a minha mãe, ela falou: “Tudo bem?”. Não teve nada, casamos, só que ele viveu só 4 anos, ele viveu, depois de casado comigo.

Valdete: Ela ficou viúva com vinte e dois, e depois de três anos ela foi conhecer meu pai, ela não tinha 30 anos ainda. Trinta anos é jovem. Ai, então, ela ficou dos 30 até os 34, 35, com o meu pai. Depois daí, ela ficou sozinha, nessa época aí é que ela sofreu muito pra cuidar dos dois, porque até então o outro já estava adolescente, já era alto o suficiente, já tava trabalhando, mas nós, eu e o Heitor, nós éramos menores ainda. Então foi uma fase muito difícil, por que depois que o pai dela morreu, que deixou essa herança aqui, que ela construiu uma casa, a aposentadoria dela, na época, às vezes, o governo dava o aumento, e não vinha. Então quando entrou o governo do Jânio Quadros, ele foi lá e “reveu” todos os aumentos dos aposentados, e ele viu que o governo tava sonegando, e não dava, aí ele pegou, e fez o governo pagar tudo. Quando pagou, e ela recebeu uma quantia razoável, o que ela fez!? Ela comprou um terreno, lá na Vila Esperança, Penha, e ela tava viúva, né, não tava com o meu pai, mas ela comprou esse terreno, aí depois passou-se mais alguns anos, foi que o pai dela morreu e deixou esse

104 terreno aqui, e o que ela fez?! Ela vendeu aquele terreno de lá, e construiu aqui, foi ai que nessa época, começou a melhorar um pouquinho a vida dela e pra cá, porque aí começou a ter a casa dela, né.

Lourdes: É, ai ela começou a trabalhar, me ajudar... e assim vai.

Valdete: E ai a gente já conseguiu colocar poço, o poço tinha vinte e cinco metros, mas ele não dava água, porque lá em cima é muito alto. Então tinha que refundar o poço, e pra refundar era caro porque o poço já tinha vinte e cinco metros construído. Aí depois que a gente refundou mais quatro metros, ele ficou com vinte e nove, quase trinta metros de profundidade... A água ainda não era boa, porque logo mais em cima, tinha uma fossa, porque não tinha esgoto, aqui na Brasilândia não tinha esgoto.

Então, pela fossa ter na parte de cima, o poço na parte de baixo, aquela fossa lá contaminava o poço aqui, então, a nossa água, do nosso poço, que era tão fundo, ainda mesmo tendo muita água, mas era uma água meio contaminada. A gente usava mesmo somente pra lavar roupa, lavar outras coisas da casa. Beber e fazer comida, tinha que pegar no vizinho, no outro lado da rua, lá em baixo. Então a gente tinha que ir lá pegar água, pra trazer pra beber, fazer café, fazer comida... Ai depois que veio a água da Sabesp, foi que a gente mandou fechar a fossa, mandou fechar o poço, e começou a vim a água da Sabesp. Mas a nossa luta era com a água, que era muito difícil aqui na Brasilândia, todas as casas daqui tinha um poço, e a casa dela o poço era o mais fundo que tinha, tinha trinta metros de fundura.

Lourdes: É que minha casa é do lado de cima.

Valdete: Isso quando era no tempo de chuva, que chovia muito, a água... vocês não tem ideia, quando chovia muito, a água vai descendo, e tem um buraco no meio, ai ela começa a desbarrancar. O poço não era tijolado, porque não tinha dinheiro pra tijolar. Então, o que fazia, tijolava ele só até o pedaço aonde tinha água, e depois, pra cima, não tijolava, deixava ele sim, quem tinha dinheiro, tijolava de cima até embaixo.

Então essa é o pouco da nossa história. E eu lembro que, quando eu comecei a trabalhar aqui, que o ônibus vinha até a igreja de Santo Antônio, a gente... lá é igual pau de arara, você ia pendurado na porta, o ônibus é aqueles CMTC antigo, que você entrava por trás, e saia pela frente, era ao contrário, não sei se vocês pegaram ônibus nessa época. Vocês nem sabiam que era assim, né?! Você entrava pela porta de trás, e saia pela frente, mas só que, sempre, uns espertinhos, faziam o que? Ficava todo mundo na parte de trás, que é pra não pagar condução. E ai você queria entrar, e não entrava, porque tava um monte de gente atrás. Então começou a mudar... entrava pela frente, e saia por de trás, que era já pra parar com essa mania. O povo tem que pagar a condução, e muito, muito assalto de ônibus... tinha muito assalto.

Lourdes: Só de ônibus? Nossa senhora... tinha motorista que saia daqui pelado, sem roupa, porque a turma depenava o cara aí. Tinha má fama aqui. Chegava lá no Paissandu... falavam assim: “Pra onde o senhor vai?”. “Quero ir pra Brasilândia!”. “Pra lá eu não vou”. O motorista não queria vim pra cá, disse que aqui não vinha, disse que aqui é lugar de gente desordeira... desses malandro, né?!

Valdete: Era um tempo, que tinha... teve um tempo, que a condução começou a ficar muito difícil, aí tinha a lotação, ai então tinha pessoas que, não era taxista, mas eles pegaram, e faziam lotação, por

105 cabeça… cinco reais por pessoa. Tiveram acidentes muito feios aqui, por causa dessa folia de lotação, e de carro pra lá e pra cá, para poder trabalhar. Muita gente deixou de pegar a lotação e começou a melhorar mais a condução. Mas tinha muito disso... nessa época.

Henrique: Aproveitando essas duas gerações aqui, que conviveram na Brasilândia, ela contou um pouquinho pra gente sobre os bailes... Mas e você? Com a sua idade, um pouquinho mais jovem que ela [Lourdes], o que você pegou aqui de entretenimento na Brasilândia?

Valdete: Peguei cinema... outro que era... uma loja “Taka-Taka”, de sapato, ali tinha um cinema, cinema da Brasilândia. Primeiro era só no Largo do Clipper que tinha, depois é que teve ali, que foi o primeiro cinema que teve aqui na Brasilândia que ele me levou, nós fomos namorar naquele cinema lá. E ali na Freguesia, quase em frente o Sonda, tinha um salão de baile que se chamava “Brandini”. Eu nunca ia, ele ia muito, eu não, eu não era de ir em baile, mas ali tinha um salão de baile que ele ia muito, e uma vez ele falou assim: “Vamo no baile”. Pela primeira vez, eu tinha uns dezenove anos, dezoito pra dezenove anos, foi que eu fui no baile. Chegou lá – foi engraçado. Ai gente, como eu era fofa. Ai eu to no baile lá, e lá tinha um globo, e tinha aqueles espelhinhos, e eles colocaram o refletor, em cima, né, e aquilo dá um efeito, e aquele coiso fica girando. Ai gente... Eu olhava pra aquilo e começava a dar uma tontura... Aquilo deixava eu tonta, ao invés de eu ir pra lá, eu ia pra cá, e ele, sabe, e ele todo assim... gentil, porque naquele meu tempo ainda tinha muita gentileza, viu rapazes?! É, os meninos não são muito gentis. E ai, ele muito gentil, e tal, e eu ia dançar com ele, e quando eu vinha embora eu ficava assim... “meia” com medo, sabe?! Uma vez ele me veio – a gente já tava namorando - me beijar, e eu disse: “Não... você não vai me beijar não, não te conheço. Pra que você vai me beijar?”. “Não mas é só um beijinho”, e eu falei: “Nananinanão, é pelo beijinho que começa, não quero!”. Não deixei, não!

Não deixei ele me beijar...

Pra começar, eu tava namorando com ele a um mês e meio, quase dois meses, e eu não conseguia pronunciar o nome dele, porque eu não lembrava.

Henrique: Senhor Dilermano, como foi essa história ai? Um mês e meio e não falava porque não lembrava o seu nome.

Valdete: O nome dele é difícil! Eu, uma “mucurunga”, uma menininha, a minha vida era: do serviço pra casa, da casa pro serviço. Eu trabalhei nove anos, e não faltei um dia! Eu cheguei um dia atrasada dois minutos, na Atma... Um dia, só... Trabalhei nove anos e nove meses, quase dez anos, cheguei um dia atrasada por dois minutos, porque se você chegasse atrasada mais que dois minutos, você não podia entrar, e perdia um doming Como você ganhava um salário, se não tinha um domingo, você perdia o dia, o salário era pouco, se perdesse, então... como é que ia fazer? Hã?

Então eu era assim. Eu fui aquela menina caseira mesmo! E o meu primeiro namorado... foi com ele que eu me casei, o único homem que colocou a mão em mim, e mais ninguém, entendeu?! E foi assim... E sempre fui bem tranquila. E outra coisa... na minha época, moça que trabalhava em fábrica era vadia! Era considerada vadia, não tinha valor. Porque, uma que ali as mulheres já estavam um pouco mais liberais, tentando ser mais liberais, né. Elas iam lá pro meio do mato mesmo, subia lá pro chefe... E eu não, eu sempre fui uma pessoa bem reservada. Então, eu achava – eu achava não, eu acho,

106 eu tinha certeza com as minhas convicções, que eu tinha que me casar direito, e ele ser de uma mulher só. Eu ainda já falei pra ele, falei assim: “Eu... sou, uma mulher de um homem só, se eu ficar viúva, se morrer e eu ficar viúva, eu vou ficar viúva mesmo”. Tanto eu, quanto ele, nós vamos ficar “viúvo”, porque eu não me consigo me ver com uma outra pessoa. Então eu sempre fui assim, bem quieta, bem caseira, bem tranquila, e assim vai...

Vitor Hugo: Você pode nos contar alguma história de sua mãe?

Valdete: Ah, ela me contava que uma vez ela encontrou um rapaz... além desse do cinema, e ela marcou com ele, e ele... parece que ele chegou atrasado, ou alguma coisa assim... aí ela pegou e falou assim: “Mas espera um pouquinho aí, você chega atrasado, e nem explica direito do porquê que chegou atrasado”. Ai ela falou: “Não, não, não... ele tá mentindo pra mim, se ele tá mentindo pra mim, ele não vai servir pra ser meu namorado... não vou ter nada com ele não, porque ele tá mentindo pra mim”.

Porque ele contou alguma coisa que eu até nem mesmo lembro o que foi que aconteceu. Mas ela disse que foi alguma coisa assim, que ela notou realmente que era mentira dele, que ele tava contando uma história pra ela, e ela falou: “Não, não vou cair na sua não, isso ai é mentira”. E ai... ela desistiu dele, e não quis saber dele não.

Henrique: Senhor Dilermano, conta um pouco pra nós, da sua história...

Dilermano: Ih... rapaz, a minha história... bom, agora senta aí, agora vocês pega papel e caneta. Bom, primeiramente, eu sou um filho adotivo. E meu pai se chamava Altair Sabino Ferreira, que me criou, e a mulher, chamada dona Maria Benedita Ferreira. Antigamente, hoje em dia é uma coisa que não se tem mais, pra vocês que estão estudando, não sei se já ouviram falar de um livro chamado O Cortiço, principalmente estudante, né?! Eu acho que não tem estudante que não leu sobre isso.tão, esses dois, morava em cortiço, lá na Brigadeiro Galvão, quatrocentos e setenta e cinco, aonde que é a Brigadeiro Galvão?! Tem a praça Marechal, aonde tem a... escola, faculdade Oswaldo Cruz. Não é isso?! No lado do metrô Marechal. E essa mulher que fez essa junção com o senhor Altair, não podia ter filho. Então, eu acho que na época veio uma moça, que é bem provável que seja do interior, veio pra São Paulo, pra trabalhar aqui, se envolveu com alguém, e teve duas crianças, um desses, foi eu. Como essa senhora dona Benedita não podia ter filho, ela chegou, conversou com a patroa dela: “Olha, eu não posso fica ficar com essa criança, não tem uma outra ai, que possa querer?“. E como as duas patroa era amiga, ela falou: “Olha, tem uma moça que mora comigo, e teve duas crianças e quer dar um”. Então, imediatamente, essa que me adotou, correu lá, e me adotou. Isso daí foi em 1956. E meu pai, até então, morava nesse cortiço, na Brigadeiro Galvão quatrocentos e setenta e cinco. E, logo em seguida, porque antigamente não existia esse negócio de papel. Essa que me adotou fez o seguinte... pegou, e já me levou pra Minas, eles eram de Pouso Alegre então, caso a mulher querer de volta, aí a gente fica lá um mês... dois mês... e a mulher fala: “Opa, o que é que eu fiz da minha vida?”. Entendeu?!

Ai depois voltou pro mesmo lugar, na Brigadeiro Galvão. E ai foi indo, foi indo, foi indo. E, antigamente, existia esses cortiços conforme vocês leram no livro, né? São quartos daqui, quarto de lá, e banheiro lá no fundo. E tinha um senhor chamado senhor Emanuel, que era português, dono do cortiço, entendeu?!

Meu pai pagou – esse que me criou, pagou o aluguel na quarta–feira, quando foi no sábado, logo de

107 manhã... [palmas] “Aluguel, Aluguel”. “Mas como se eu só recebi na quarta-feira?”. “Não, vocês tem que sair!”. E dinheiro meu pai não tinha, trabalhava de pintor, e meu pai tava com um serviço na rua Capote Valente, não sei se tem ali... perto do campo do Palmeiras, a rua Cotoxó... E meu pai precisava terminar esse serviço pra receber o dinheiro pra vim pegar minha mãe e eu pra alugar um outro quarto, antigamente se alugava muito quarto. Ai meu pai chegou no cortiço – hoje nóis tamo rico, viu?! Se você falar do operário de hoje, e o operário de cinquenta anos atrás... o operário de hoje tá no céu, tem tudo. Quando eu falo tem tudo, você tem: água, luz, telefone, máquina de lavar, microondas, televisão, tem carro, de cinquenta anos atrás, minha esposa falou alguma coisa, e minha sogrinha... que nada!

Então, o que é que tinha?! Ele olhou, pra minha mãe sentada comigo na calçada, com a trouxinha de roupa, esperando ele vim, com o dinheiro pra alugar um outro quarto, foi ali que ele pegou, olhou assim, e falou: “Não... isso não é vida... eu vou ter que ter uma casa, nem que for num buraco de tatu, mas tem que ser meu”. E ele ficou com aquilo na cabeça. E ele tava fazendo um trabalho aqui no Pio XI, não sei se vocês conhecem, tem a lapa, subindo ali a rua Pio XI e tem um Colégio. E ele tava com um colega chamado Lico, e meu pai foi até padrinho desse Lico que morava na Vila Gilda, lá na Terezinha, e meu pai contou a história pra ele. “Rapaz preciso fazer um jeito pra comprar um casa”. “Ah, e por que você não comprar um lá na Brasilândia?”. “Mas aonde fica essa Brasilândia?”. Porque meu pai é de Ribeirão Preto! Quando ele veio de Ribeirão Preto, Barra Funda já era um lugar bom, então a primeira concentração de negros, na época do café. Então tinha grandes mansões na paulista, então os negros se concentravam ali por causa do trabalho!

Vitor Hugo: Que tinha a ferrovia que facilitava o transporte...

Dilermano: isso mesmo! Inclusive, ali trabalhava o Inocêncio do camisa verde, né. Então foi a primeira de concentração de negros, após a escravidão, foi ali na Barra Funda. Ai ele falou: “Pô, eu não conheço... esse Vila Brasilândia… Vamo fazer o seguinte, eu te levo lá!”. ”Ah, então tá fechado”. “Quando for num sábado, a gente sai um pouquinho mais cedo, e vamo pra essa Vila Brasilândia”. E assim ele fez... Mas era tudo mato, tinha nada, nada, nada, nada, nada mesmo! Ai meu pai chegou foi até um homem chamado José Marcelino de Freitas – que amanhã eu tenho que ir lá na rua que deram o nome pra ele.

E ele era o corretor não tinha companhia que nem se tem agora. Você vai comprar qualquer imóvel, você vai pra uma companhia. Então tinha um senhorzinho que tinha uma casinha lá, que tinha os imóveis, o terreno, e ali fechava o negócio. E já naquela época, em cinquenta e... foi em cinquenta... é isso mesmo, que ele voltou. Meu pai foi e voltou, já tinha separação. E aí o senhor José Marcelino falou com meu pai, e disse assim: “Olha, o que acontece é o seguinte, eu to com minha filha, e ela ta se separando, e tem uma casinha pra vender!”. Ai meu pai falou: “Quanto que é?”. “É dez contos de réis!”. Não era cruzeiro ainda. Depois eu vou mostrar pra vocês aí, depois do réis é que veio o cruzeiro.

Ele falou: “O senhor vai ter que dá uma entrada”. Ai meu pai falou: “Olha, eu não tenha essa entrada agora, eu vou deixar um dinheiro aqui pro senhor segurar, e quando for no sábado que vem, eu volto pra poder dar entrada”. Ai ele falou: “Ah, então fechado”. E foi aonde meu pai comprou essa casinha, e está lá até hoje. Na rua um, antigamente, número vinte e um, hoje é rua José Marcelino de Freitas.

Henrique: O cara que fechou o negócio...

108 Dilermano: Isso, o corretor, José Marcelino de Freitas, né?! E essa foi toda a história. Então eu fui criado na Vila Terezinha, né, depois meu pai bebia muito, quando eu falo beber, é beber mesmo. Já a minha mãe que me criou, que era um casal, né, eles maritalmente viveram mais de trinta anos juntos, e não sabiam ler, nem escrever, e só que meu pai deu uma parada de beber sete anos, durante sete anos não bebeu, e ele tinha uma visão muito ampla, assim, do que é viver com qualidade de vida, um pouquinho melhor, umas condições melhor. E nesse sete anos ele deu um arranco muito bom na vida dele, ele parou de beber mesmo, e foi ai que conta no banco que ele abriu... E em mil novecentos e setenta eu estudava, e eu estudava em escola particular, datilografia, admissão, e já pagava com cheque. Até a primeira vez que ele me deu um cheque, eu falei: “oh papai, mas esse papel aqui vale alguma coisa?”.

Em mil novecentos e setenta, com cheque... jámais, né?! Ai ele falou: “Pode levar lá pro professor”.

Que é aqui na avenida Parapuã, eu lembro que era o professor Valdomiro. E então eu fiz o quinto ano, você tinha que fazer o quarto ano, e o quinto ano pra poder entrar no ginásio. Só que o quarto ano, você tinha que fazer os três, que era o quarto, datilografia, que era como se computador dos dias de hoje, e admissão, pra você entrar no ginásio. E as coisas foi melhorando, as coisas foi se encaixando e criando um volume, e tudo, foi que apareceu uma oportunidade, e foi ai que ele comprou aqui. Ai que ele vendeu o de lá – comprou por dez contos de réis, e vendeu por oitocentos cruzeiros, e comprou aqui por dois mil e oitocentos cruzeiros. Depois eu vou mostrar as papelada pra vocês ai. Ai as coisas foi criando um rumo, né, e aí que as coisas foi melhorando nesse ponto de vista. Então, a Vila Terezinha, para mim, é uma referência... porque aonde é o Guarani hoje, não sei se alguém de vocês tem acesso ao Guarani, ali você tinha nada. Eu ia pra comprar verdura pra mim ali, ali era dos japoneses, e saíram de á mil novecentos sessenta e... nove, que saíram devido a muito assalto, assaltavam demais, foi por causa dos assaltante que já tinha na época, antes do Esquadrão da morte, mas isso é uma outra história, e como tiravam o dinheiro deles, eles pegaram e desistiram. Aí foi aonde que virou loteamento. Mas o primeiro loteamento que teve aqui em cima foi na Vila Terezinha, e esse loteamento foi feito pelo senhor José Marcelino de Freitas.

Eu tinha um amigo, chamado Bombeiro, e ele morava ao lado da casa da minha sogra. E a gente saía muito, isso pra baile, isso e aquilo, coisa e tal. E aí a gente foi num baile... foi até em um sábado, e esse amigo meu, ele tinha uma companheira, e com essa companheira, que foi que eu até estive pela primeira vez no hospital Mandaqui, ela tem problema de tuberculose e “tava” internada lá... Aí ele: “Oh, vamo visitar ela lá!”, aí eu: “Vamo!”. Quando ele era casado ele não tinha muita responsabilidade. E foi que eu cheguei um pouco mais cedo na casa dele, e começamos a conversar sobre umas coisas, e eu a vi, mas quando eu a vi, não foi aquele ver de interesse – nunca me esqueço. E ele era muito gozador, sabe aquele tipo de amigo que tudo o que ele fala, se torna engraçado, não sei se vocês tem amigos assim, uma coisinha que ele fala se torna engraçado, só que eu falei isso mas sem... Né? Ai “peguemos,” fomos lá no hospital, e voltamos. Quando nós voltamos, ele perguntou: “E ai?!”, e eu falei: “E aí o que?” – eu tinha até esquecido. “Você não falou que ia falar com a amiga ai?”. Agora se eu não falar, a torcida do Corinthians e do Flamengo vai ficar sabendo e vai ficar ruim pra mim esse negócio. Ai eu falei: “Bom, tudo bem, vamos lá!”. Ai a casa veio a cena, peguei e dei a volta, “PÉÉ”, na campainha, e ela

109 desceu. “Por favor, eu preciso falar com você!”. Sem interesse nenhum mesmo, só pra não ficar mal na fita com os demais, com os corintianos e com os flamenguista. Ai eu cheguei: “Desculpa, você namora com alguém?”. “Não, não namoro! Coisa e tal”.

Vitor Hugo: Já direto assim?

Dilermano: É, foi!

Valdete: To falando pra você que eu não lembrei o nome dele... fala assim, “PUF”, de um vez. Primeira vez que um rapaz vem falar comigo, e fala um nome disgramado desse de Dilermano...

Dilermano: E ai eu pegou e disse: “Não”... Ai nós fomos ao cinema, o primeiro filme que a gente assistiu foi “Dio, como eu te amo”. Tava no auge esse filme, até hoje ainda faz muito sucesso.

Henrique: Cinema da Brasilândia? Foi o primeiro encontro?

Valdete: Da Brasilândia! Meu primeiro encontro.

Dilermando: Ai ela falou: “Vou falar com a minha mãe”. Mas até então, nada de interesse nenhum, meu negócio era sair fora da gozação. O outro já tava na janela dele pra ver se eu tava por fora. Ai quando ela falou “tudo bem”, é que eu fui pra casa dele. Peguei moral! Ai fomos pro cinema, as coisas foram acontecendo... Foram acontecendo de uma forma legal mesmo. E até eu falo, se for pra casar, eu casaria com a mesma pessoa. E eu, do meu lado, até me emociono em falar disso. Eu enriqueci muito. Quando eu falo enriquecer, não é enriquecimento monetário, mas sim, como ser humano. Porque essa daqui [Valdete], eu não vejo só como uma mulher, eu vejo como uma companheira. Hoje, vocês vê aqui dessa forma, mas nós sempre lutamos juntos, trabalhamos, né, sempre trabalhando num serviço pesado... recebendo dinheiro. A importância pra mim, até hoje, com sessenta e dois anos é que nem eu sempre falo: isso daqui, enquanto ela ta aqui, isso pra mim tem valor, a partir do momento que ela falecer...

Não tem. Meus filhos já estão tudo criado, eu tenho um casal de filho ai, Paulo Henrique e Juliana, e os netos. Então, foi tudo uma conquista. Eu falo pra qualquer lugar que eu vou que eu enriqueci muito.

Tivemos esses dois filhos maravilhosos que é a Juliana, e o Paulo Henrique, né. Temos sete netos, tem quatro meninas no lado da menina, e três do lado do menino. São duas menina, e um rapaz. Então, essa é tudo uma história, e eu tenho o prazer de contar.

Então, o que você falar pra mim, modéstia à parte, sobre: Vila Terezinha, Paulistano, Guarani, Carumbé, reconheço muito bem, porque desci de lá, desde 1965, e até os moradores. E essa é a história do Dilermano.

Henrique: Eu vou lançar uma pergunta, mas vocês três podem complementar ela e responder. Vocês falaram muito de criminalidade, a gente viu em discursos de outras pessoas que falamos e entrevistamos, e teve uma pessoa aqui que era representação maior de respeito, mas que tinha esse vínculo com a criminalidade. Ela fazia os crimes - era uma mulher, ela cometia esses crimes, mas ainda assim, ela tinha um olhar muito que as pessoas viam ela como se fosse uma mãe, ela protegia. Como era o nome dela?

Valdete e Dilermano: Nenê!

Henrique: Conheceram essa personalidade?

Dilermano: Sim!!

Valdete: Ele conhece mais. Aqui em baixo tinha uma tal de Toninha.

110 Dilermano: É, mas essa daí já não era tanto!

Valdete: Mas essa Nenê era! E baixinha, hein, pequenininha ela.

Dilermano: Inclusive até conheço os filhos dela, mora tudo lá perto da Vila Terezinha. Morava tudo na rua, nós morava na rua 8 eles moravam na 9. Mas até então ela mantinha, até um amigo meu, que tá sendo até outro dia, eu tava no campo e um outro amigo perguntou: “Ah sabe quem perguntou de você? O Sullivan”. O Sullivan era o braço direito dela, entendeu? Até inclusive, engraçado que mataram ela, e o Sullivan ficou, mas tudo bem, porque era pra matar ele, né, mas povo ta achando pelo ligamento que tinha, mas ele sobreviveu, depois a Nenê. Ela ja é mais pra cá, ela já é 1970, nem isso era 80. Então ela começou lá na Vila Terezinha, e a gente morava na rua 1...na rua 2, não é que ela…é aquele negócio. Ó, o cara rouba sua casa aqui, aí cê tem a mulher que se via, e cê vai lá e fala: “Me roubaram”. “Ah quem foi?”. “Fulano de tal”. Então vai criando aquele volume de expectativa em cima dela, né? E até que ela começou a “dominá”, então… Não era que “ela tinha uma padaria”. Você tinha uma padaria e ela pegava propina de você, e ia pedindo propina, propina e propina, chegava uma hora que você fala: “Quer saber de uma coisa, nao aguento mais”. E ela ficava com seu estabelecimento. Ela ficava lá na Vila Terezinha, depois daqui ela desceu na Estrada Lázaro Amancio de Barros, na hora que você desce assim, antes do posto de gasolina, era dela também, foi até na época do Gil Gomes, que veio toda essa história que foi quando ela morreu, entendeu? Então tudo isso eu conheço com profundidade, 1965 aqui, estou aqui até hoje, então toda essa turma, eles me viram pequeno e eu ja vi toda a trajetória deles. mas independente da Nenê, que mais marcou assim mesmo, so que nao era que nem a Nenê, ela era aquela de te ajudar e depois nas necessidades ela te cobrava, e você ficava num beco sem saída, ne? Falou: “Oh, preciso da sua casa…”. Como é que você faz? Ela te ajudou. E ai como que você faz, tem que ajudar? É difícil!

Henrique: Como é ser uma família negra, bem organizada, dentro da Brasilândia?

Lourdes: É difícil.

Dilermano: Veja só como é as coisas. Nós temos um filho, que fala inglês, modéstia a parte, fluentemente.

Francês e espanhol. E muito bem relacionado no português. E trabalha numa empresa americana, e lá falam pra ele: Valdete: “Você não é negro. Você tem dente bom, você fala mais do que um idioma”. “Você não é preto, acho que você é japonês”.

Dilermano: “Te pintaram”! As pessoas que moram na comunidade não são aquelas pessoas que tão naquele quadradinho, eles tem toda uma história, por algum motivo eles foram parar ali. Mas tem todo um contexto por trás de tudo isso.

Lourdes: Verdade, a gente é muito mais. Foi um prazer conversar com vocês, agora que estou no fim dos tempos, preciso despejar tudo!

Maria de Lourdes Barbosa, 95 anos, aposentada.

Dilermano Sabino Ferreira, 65 anos, pintor.

Valdete da Silva Ferreira, 63 anos, costureira.

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Desde o início do projeto, pretendíamos encontrar sujeitos históricos com bagagens e experiências acerca do que de fato é conviver na gigantesca Vila Brasilândia. Em um desses trabalhos de campo, nos deparamos com o contato de Maria Paulina ou Vó Tutu, apelido que faz jus à maneira como a entrevistada se relaciona com a comunidade, principalmente, com as crianças. Ao longo da caminhada até umas das partes mais altas da Vila Brasilândia, nós estávamos convictos de que iríamos encontrar um sujeito histórico de extrema importância para a dinâmica de assistência social do bairro.

Era 27 de novembro de 2017 quando fomos recebidos em um grande salão, na própria casa de Tutu, espaço em que faz ações comunitárias. Hora ou outra, a entrevista “sofria” com interrupções de alguns moradores da vizinhança, que iriam conversar com a personagem. Em seu relato, a narradora não se limita a contar sua história, mas também a história dos outros.

De certo modo, as subjetividades que envolvem essa figura, permeiam muito mais o senso coletivo do que o individual. Rodeada por olhares concentrados, Vó Tutu, relatou a história dos cuidados que teve com crianças em estágio de vulnerabilidade. Se emocionou diversas vezes durante os relatos, mas pontuava a necessidade de dividir essas histórias com outras pessoas.

Entre o momento de sensibilidade e resgate de memória, cumpríamos naquele momento o exercício de reconhecer no outro as experiências de vida.

Os entrevistadores, tentavam entender como a ideia de ajudar o outro evoluía na trajetória de vida da personagem. O relato nos deu margem para analisar as relações de desigualdade social presentes no bairro, questões étnicas, questões de imaginário coletivo e, a falta de assistência básica dos órgãos públicos.

DIÁRIO DE CAMPO VÓ TUTU

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“A minha história é a história dos outros”

Meu nome é Maria Paulina, sou mais conhecida como Vó Tutu. É, esse “Vó Tutu” veio devido alguns trabalhos que eu e os meus filhos, e algumas pessoas da comunidade fazemos, em prol do nosso pessoal. Eu nasci na Brasilândia. Nasci no dia 27 de outubro de 1951, então, já tenho muito anos de Brasilândia. A minha infância foi uma infância difícil. Eu estudei em colégio de freira, fiquei 6 anos internada, eu tive uma outra formação. Quando eu saí de lá, já saí mais preparada. A vida inteira foi de luta. Me casei, tive 6 filhos, criei esses filhos sozinha, porque o meu marido era viciado em drogas, alcoólatra, então não teve condições de me ajudar a criar os filhos. Mas eu consegui trabalhando e vendendo marmitex com meus filhos, vendendo cocada, vendendo gelinho. Tive condições, na época, de colocar eles numa escola boa, porque a minha ideia era sempre dar o melhor, e o melhor para mim era o estudo, para que eles não tivessem a mesma vida que eu tive. Eu posso dizer que sou uma vencedora. Sou mãe de 6 filhos, são 6 homens, um já faleceu, que era adotado. E tenho 5 homens e a Vânia, que é a minha filha, que me ajuda em todos os projetos que a gente faz. Os meus filhos também são muito unidos. Acho que fui uma mãe vencedora, pelas lutas que tive, e pelos filhos que eu tenho, que podem andar de cabeça erguida, que são filhos que só me trazem orgulho. Então eu acho que a minha história foi de vencedora.

Meu trabalho começou com uma menininha, que hoje eu considero ela minha neta. É uma menina que morava em frente de casa e de uma família muito, muito carente. Eu cheguei do serviço, essa menina

114 na época tinha 4 anos de idade, e ela estava me esperando no portão porque estava com fome. Eu perguntei da mãe, ela falou que a mãe estava em casa, que a mãe estava muito doente e eu fui lá verificar e a mãe estava mesmo. Já fazia uns 15 dias que se encontrava na cama, já num estado deplorável. Nessa época eu trabalhava no Hospital das Clínicas, e eu encaminhei essa mãe para lá, essa mãe ficou internada e como tinha 4 filhos, eu peguei a guarda da criança provisória, até a mãe sair do hospital. E nesse ínterim que eles ficaram na minha casa, eu comecei a precisar de doações, porque eles não tinham roupa, não estava preparada para alimentar eles. E eu fui no Conselho Tutelar, e eles falaram que eu não tinha condições de ficar com as crianças, porque eu não tinha uma autorização e iriam retirar as crianças. Mas, Deus me ajudou muito, que um dos rapazes que vieram para retirar, era amigo do meu filho e me conhecia. Conhecia meu filho. Então eles acharam que era viável ficar comigo, e então acabei assinando um termo de responsabilidade, e essas crianças ficaram comigo. Daí eu comecei, por causa dessas crianças, mover, ali entre o pessoal, para ajudar com roupa, com comida, porque eles não tinham nada. E o pessoal começou a trazer. E o retorno foi muito grande, eles conseguiram tudo. E daí eles ficaram comigo por volta de uns 15 dias. Quando a mãe veio do hospital, que eu fui devolver as crianças, essa pequenininha não quis ir mais. Ela pediu para mãe para que ficasse comigo. Como a mãe não tinha condições, ela perguntou se eu poderia ficar, e a Bia acabou ficando. Ela chama Beatriz. Daí começou a surgir uma ideia de por que não fazer um trabalho social. A gente não enxergava essas necessidades, mesmo morando ali, a gente não percebia, que tinha criança tão de frente da minha casa, passando fome. Comecei a desenvolver esse trabalho. E, nós saímos para rua e começamos a falar com as pessoas, surgiu a ideia de fazer o Natal das crianças. Que a primeira ideia que surge é fazer um Natal para as crianças. Se bem que não é só isso que elas precisam, só de coisas de Natal, não é mesmo? Mas como também estava perto do Natal, a gente fica muito motivado. E foi um projeto que deu certo. Começamos a arrumar pessoas que se interessavam em ajudar essas crianças, um pequeno prazo, outro só para um presente de Natal, mas teve muitas crianças que foram beneficiadas por muito tempo, com cestas básicas que vinham. E esse projeto foi crescendo, e a gente fez uns 5 anos o Natal das crianças. Nós tínhamos a escola do bairro que oferecia o espaço, nós fazíamos na véspera do Natal, fazíamos a ceia deles, passava o dia todinho com eles das 9 horas da manhã às 5 da tarde. Dávamos a senha para eles, para pegarem as coisas e no dia 25 eles iam na minha casa receber os presentes. A gente queria que eles fossem no dia 25, que era para eles ter a ciência de que eles estavam ganhando um presente no dia do Natal. Esse projeto foi criado lá na Macedônia [zona sul de São Paulo], depois eu mudei para cá, e aqui eu comecei a ter uma outra visão, porque as crianças começaram a pedir coisas muito caras. Corríamos o risco de prometer e não poder dar.

Dependíamos de outras pessoas aqui da Brasilândia. Na minha rua aqui, nós temos uma faixa de uns quinze idosos, acamados mesmo, muito carentes, que não tem assistência familiar, que não tem assistência médica. Daí eu comecei a amadurecer essa ideia de fazer um projeto para cuidar dos idosos da Brasilândia.

E, começamos a implantar esse projeto aqui, no meu salão, de a gente fazer uma festa, a festa da Consciência Negra, aproveitar essa data, nós fazemos feijoada, algumas coisas típicas, e a gente coloca em venda em um preço bem acessível, tem pessoas que vêm, e nos ajudam com doações e a gente angaria esse dinheiro, para fazer a festa dos idosos. Nós temos na faixa de uns cinquenta e poucos idosos, que recebem, aqui a gente faz uma ceia para eles, eles são apadrinhados com tudo que eles precisam, desde o remédio, fralda geriátrica, tudo. Esses padrinhos, eles vêm mesmo, no intuito de acompanhar

115 esses idosos até aonde eles derem e eles puderem. Tem idosos aqui que já há 3 anos, ainda recebem doações, cesta básica, visitas... E a festa também, ela é feita na véspera do Natal, eles são recebidos aqui no salão com a ceia que a gente faz, com esses recursos que a gente recebe, se não dá, a gente completa com nossas posses e a gente recebe esses idosos. Os idosos que não podem vir, que estão acamados, tem uns que não querem vir porque não quer deixar o cachorrinho, não deixar a televisão.

Pegamos as nossas crianças daqui da nossa rua, que esse também é o intuito nosso, pegar as crianças, levarem até os idosos com os presentes, e as crianças estarem presenteando os idosos. No dia da entrega dos presentes aqui para os idosos, são as crianças que fazem isso. Que é para também aproximar a criança do idoso, porque muitas crianças, eles não gostam de chegar perto dos idosos, então a gente faz essa aproximação e está sendo muito gratificante, hoje nossos idosos são mais reconhecidos, eles respeitam mais, pedem a benção para eles, coisa que é difícil você ver uma criança, um jovem, um adolescente pedindo a benção para Vó Tutu, para os nossos idosos daqui. Então, trabalhar dentro das nossas condições que também são poucas, depende do pessoal da nossa periferia, para fazer esse tipo de ação. Algumas crianças que nunca tiveram uma festa (pode parecer besteira), mas na minha porta sempre bate criança: “Vó, tô fazendo aniversário”. Já é uma dica né. “Vó vai me dá um bolo”. “Vó, tal dia, né, tal dia eu vou fazer aniversário”. Nós tivemos uma menina, que eu gostaria de colocar, porque é uma história que mexe muito com a gente. Nós tivemos uma menina aqui, ela se chamava Andreia. Andreia Marcondes, ela tinha problema mental, a idade dela mental era de 12 anos. A idade dela era de 36 anos.

Ela tinha o sonho de ter uma festa de 15 anos. Veio aqui me pedir para fazer um bolo. E eu falei: “Faço Andreia, um bolo e um refrigerante a Vó faz aqui, e você convida seus amiguinhos”. Mas a Andreia, ela conhecia a Brasilândia inteira, a Brasilândia inteira, Zona Norte inteira, para falar a verdade. E ela foi falando para todo mundo. Para o pessoal que ela via no ônibus, ela foi falando, porque ela tinha um histórico de saúde, muito precário. E a caminhada dessa menina era uma caminhada solitária. Ela fazia um tratamento, quando estava saindo para fazer o tratamento, um rapaz pegou ela e ela ficou sumida uns 5 dias. Ela sofreu um estupro, e desse estupro ela pegou HIV e uma gestação, o menino dela hoje deve ter uns quinze anos. Agravou mais o estado dela, tanto psicológico, como físico. E essa menina começou a ter muito problemas de saúde depois disso. Mas sempre indo sozinha, sempre foi sozinha.

A mãe dela é ex-alcoólatra, agora, com um irmão de Down, com uma irmã deficiente também, que tem uma pequena deficiência mental, devido ao alcoolismo, então é uma família muito, muito carente, né, então a mãe não podia acompanhar. E essa menina ia todos os dias fazer essa trajetória. E daí a gente resolveu unir a comunidade, eu saí falando com as pessoas daqui, para poder fazer essa festa para ela.

Mas, foi tão maravilhoso, que ela conseguiu tudo. Tudo que vocês podem pensar numa festa de uma menina de 15 anos conseguiria, ela conseguiu. Teve gente que doou 6 mil salgados, ela conseguiu banners. E eu lutei muito, pedi carta, mandei para o Portiolli, para tudo quanto é lugar, mas não consegui o retorno. Daí o meu filho pegou a carta, levou num ateliê, o ateliê mandou que levasse ela lá e falou para ela: “Cê pode escolher o vestido que você quiser ”. Ela teve o vestido que ela quis, cor de rosa, de princesa, com coroa, com tudo. Daí a outra vizinha doou outro vestido, enfim. Ela conseguiu uma festa maravilhosa, com 300 pessoas, a rua foi até fechada, para fazer a festa dela. Meu filho conseguiu autorização para fechar a rua. E.… foi a felicidade dela. Isso foi em Agosto, dia 30 de Agosto foi feita a festa dela, quando ela estava experimentando o vestidinho dela, que eu fui levar ela na costureira pra

116 experimentar o vestido, eu percebi que uma das mamas dela estava diferente. Perguntei para ela, se a mama dela era daquele jeito, e ela falou: “É. É assim”. Mas eu percebi que tinha alguma coisa diferente.

Daí eu falei pra mãe dela: “Olha, eu percebi alguma coisa errada na mama da sua filha, e assim que terminar a festa dela a gente vai ter que ver isso daí”. E foi feito isso. Quando foi na segunda feira, eu falei para mãe, para levar ela no hospital, acompanhei, quando chegou no hospital, o médico transferiu pro Hospital Pérola Byington, infelizmente ela estava com um câncer já, muito adiantado. Ela estava com um câncer muito adiantado na mama. E foi uma correria, mas foi muito rápido e foi bom que foi rápido, porque a Andreia não sofreu. Ela não sentiu dor, ela fez uma pequena cirurgia lá no Pérola Byington, e de lá eles encaminharam pra Cachoeirinha. E eu fui com ela, para saber o resultado final.

Como eu não era mãe dela, e eu falei que eu não era a mãe, que eu era uma vizinha, a médica não quis passar o diagnóstico fechado. Mas, eu já tinha entendido que o caso dela era gravíssimo. Lembro que ela me abraçou e naquela hora ela teve uma lucidez de adulto e ela falou para mim assim: “Mãe, eu não vou morrer né? Eu não estou com aquela doença?”. Daí eu falei: “Não Andreia, você não confia em Deus? Você não está com aquela doença”. Mas, ela estava sim. E uns 15 dias depois ela deu óbito. Ela estava na cadeira de hemodiálise, lá em Santana, e a médica dela tinha prometido um óculos Ray Ban pra ela, e ela passou aqui e falou pra mim: “Mãe, hoje eu vou fazer a hemodiálise e acho que eu vou ganhar o meu presente”. Daí quando chegou lá, a médica deu o Ray Ban, ela sentou na cadeirinha de hemodiálise, tirou foto com os óculos, daí a médica falou: “Agora vamos ficar quietinha para fazer a hemodiálise”. E a médica quando ligou, ela deu a parada e faleceu. Então o que eu guardo disso, acho que de tudo que eu passei na minha vida, com 66 anos, é a Andreia, sabe. É uma menina que cresceu aqui, que a gente nunca conseguiu enxergar as necessidades dela. E que, não fui eu que fiz a festa. Foi a comunidade, Deus que instruiu a gente, cada um fazendo a sua correria, para poder dar essa alegria pra Andreia, então eu acho que a minha trajetória de vida, de amor e de aprendizado, que nos meus 66 anos eu aprendi, e agradeço a Deus, foi ter tido uma Andreia na minha vida, que faz você mudar muitas coisas na sua cabeça e pensar em fazer alguma coisa, por mais pequena que seja, não importa o montante, é você dar um carinho, é dar um abraço. A Andreia passou tanto tempo aqui sozinha, na rua, e a gente estava vendo a Andreia ir para hemodiálise, a Andreia sozinha, a gente nunca reparou nas necessidades dela. Precisou ela vir aqui pedir um bolo, para mudar uma história. Uma história dentro da gente, para gente vê que a gente pode fazer alguma coisa, não precisa de Portiolli [apresentador de TV], não precisa de ninguém. Nós mesmos podemos fazer alguma coisa. Então eu acho que a trajetória de ter criado meus filhos sozinha, que foi difícil? Foi. Mas, nada é tão quanto a Andreia. A Andreia foi um exemplo de vida para gente. Uma menina que passava aqui todo dia, ela tinha um bordão que falava assim, todo dia ela falava isso pra todo mundo, se ela visse vocês, ela falaria a mesma coisa: “Aonde vai, tão bonita assim, parecendo uma princesa?”. Ela falava isso todo dia. Então às vezes eu estava meio caída assim, mas quando ela passava e falava isso, eu falava: “Meu Deus, a Andreia com tudo isso”. Você perguntava pra ela se ela tava bem: “Eu tô ótima!”. Nunca reclamou. Os bracinhos tudo cheio de calombo, né, da hemodiálise, toda cortada, né, fazendo tratamento de HIV, sem beber água. Na festa ela não comeu nada, ela pediu um copinho de refrigerante, porque ela não podia comer. E com vontade de comer. Com vontade de beber, e não podia. Daí eu só tenho que agradecer a Deus. E o meu anjo é a Andreia. Eu acho que eu queria ter tido a oportunidade de ter feito

117 mais para ela, sabe. De ter visto antes, né. Mas infelizmente, a gente faz o que pode, né. Mas é isso aí filhos, entendeu. Desculpa a emoção, porque a Andreia mexe mesmo com a gente. E eu quero levar essa história para um monte de gente para poderem ajudar outras pessoas.

Eu cresci aqui na Brasilândia. Aminha infância, foi uma infância muito, muito difícil. É, meu pai, era uma pessoa muito truculenta, ele não tinha vícios, ele não bebia, mas gostava de espancar muita minha mãe, presenciei a minha mãe apanhando muito do meu pai. Quando eu completei 9 anos, a minha mãe resolveu me internar num colégio de freira, na Rua da Mooca, sofri muito, porque me separei da minha mãe e meus irmãos ficaram. Mas a minha mãe já percebia que meu pai, ele me olhava com olhos diferente. Então para evitar algum mal maior, a minha mãe resolveu me internar. E eu fiquei no colégio de freira durante 8 anos, foi ruim porque eu me separei da minha família, foi muito sofrido para mim, eu não entendia. Naquela época o tratamento era chicote, de castigo pesado. Eram muito rigorosas, eram mesmo, muito rigorosas. Sofri. Os métodos delas eram muito doídos. Ela batia no chicote. Uma vez, eu machuquei a menina no colégio brincando, a menina quebrou o braço, faltava 15 dias para gente sair de férias. Nós éramos em 180 meninas, e a freira como castigo, ela não deixou eu vir para casa. Era o que eu mais sonhava, era passar as férias com a minha mãe e com meus irmãos, porque eram 30 dias de férias, era o contato que eu tinha mais prolongado, com a minha família. E ela simplesmente mentiu para minha mãe, que eu tinha ido para uma retaguarda, que eu tinha sido convidada para passar essa temporada no outro colégio, que era em Guarulhos, a minha mãe acreditou, e que não ia poder vir. Que era eu e mais 20 meninas. E na verdade, era mentira, ela me deixou sozinha. Então todas as meninas foram embora e eu fiquei sozinha. E eu me lembro que nos primeiros dias eu conseguia ainda ter noção de dia, de horas, porque no horário do café da manhã vinha uma serviçal me dava o café e ia embora, depois, na hora do almoço, também, e consequentemente, na hora das refeições aparecia alguém. E no restante do dia eu era sozinha. Imagina uma criança de 9 anos, sozinha dentro dum colégio aonde cabiam 180 meninas, num dormitório que cada dormitório dormia 60 amiguinhas, você ter que dormir sozinha, com muito medo. E, eu contava os dias. Depois de uns 5 ou 6 dias, já fui perdendo a noção de tempo, de horário, e eu tinha muito medo, porque menina de colégio naquela época tinha medo de tudo. Eu tinha muito medo, e eu chorava muito.

Foram 30 dias, que Deus me livre, foi terrível, eu só via a freira na hora de dormir, elas tinham um modo de chamar a gente, elas batiam palma duas vezes, e tinha que ouvir, aonde elas estivessem. Então, eu já tinha aquilo na minha cabeça. Daí elas batia palma e era hora deu recolher. Daí eu subia, ela abria a porta do quarto e me trancava lá, só no outro dia. E, quando você fazia alguma coisa errada, que desagradasse elas, batiam. Batia, colocava num quarto escuro, tinha uma caveirinha, que ficava num quarto 2x2, e conforme a gente fazia arte, eles colocavam a gente naquele quarto, com aquela caveira. E a caveira, ela era toda iluminada, quando ficava escuro você via ela. E tinha algum mecanismo lá, que a caveira dançava. Ficava balançando e fazia um barulho muito estranho, e ela batia o maxilar, era mesmo para apavorar a gente. E, todo mundo tinha pavor de ir pá aquele quartinho. E um dia eu fui pegar água para professora, e a menina estava limpando o quartinho. Porque a gente achava que era de verdade. Daí a menina estava limpando o quartinho, e eu fiquei atrás da porta, observando, e eu vi ela limpando lá. E eu vi que era de mentira. Daí eu descobri que era uma coisa de mentira. Em vez de eu ficar quieta, eu saí falando para as meninas. Então, o colégio virou um pandemônio, todo mundo queria brigar, para ir

118 para o quartinho. Era um tal de uma bater na outra, de pegar as coisas da outra, porque quando a freira perguntava quem foi, todo mundo falava que tinha feito algo. Porque elas queriam ir lá no quartinho, quando a freira chegava lá, que achava que estava aplicando um castigo. Quando elas abriam a porta, via lá as meninas dançando junto com a caveira. Acabou o castigo. Eu também tinha essa parte, meio peralta. Mas, não justificava, espancar do jeito que espancava, nossos braços era tudo marcado de beliscão.

Eu por ter a pele bem escura, se você olhasse bem, você via marcas. Você imagina as minhas amigas que tinham a pele mais clara. E quando elas aplicavam esse castigo, nós éramos proibidas de ter visita, de vir para casa, porque sabiam que o pai, a mãe, a família ia ver. Porque nós não podíamos falar. Nós, no segundo domingo do mês, nós tínhamos visita, da família. E já era instruído: “Não fala!”. Nada que acontecia. Então a gente sentava ali no banco, por mais que o pai e a mãe perguntassem, a gente não falava, porque a gente tinha medo, de sofrer punição mais severa. A freira ficava ali de pé, durante a visita toda, olhando, para ver se a gente tinha algum gesto de mostrar alguma coisa, então, era muito difícil, às vezes eu tentava até falar com a minha mãe, para contar. E muitas vezes até consegui, mas a minha mãe não tinha muito o que fazer, ela precisava de mim. Eu entrei nesse colégio como órfã. Porque era um orfanato. Para poder ter direito de ficar no colégio. Depois a minha mãe, conversando com a patroa dela, que foi através da patroa dela que conseguiu a Dona Eleonor Mendes de Barros, provar que eu era órfã só de pai, que não era de mãe. Então, meu pai não aparecia, nem nas visitas, não podia ir.

A minha mãe, coitada, para ela aquilo ali era a minha sobrevivência. Ela preferia se calar e me deixar lá, porque ela sentia que eu estaria mais segura lá do que ficar com meu pai.

A gente tentava fugir, a gente tentava mil e uma coisa, a gente saía com a freira para pedir doação na rua e a gente tentava às vezes falar para alguém, mas elas estavam sempre ali muito perto, e quando elas percebiam: torciam o braço da gente, davam beliscão, que às vezes a gente chegava até a urinar de dor. Então a gente ficava com medo. Então essa fase ruim. Mas de uma certa forma foi bom porque eu tive uma outra formação, de educação, para mim esse lado foi muito bom. Se eu fui a pessoa que fui paro meus filhos, a mãe, eu devo a educação, que a minha mãe me proporcionou. Eu tive assim, uma rejeição muito grande com a minha mãe no começo, porque eu não entendia o porquê que ela tinha me separado. Foi difícil a nossa convivência depois que eu saí do colégio, com 3 dias que eu saí do colégio, ela me colocou em casa de família, aonde eu não podia vir para casa, porque ela impôs isso.

Ela falou pra patroa: “Olha, ela só vai uma vez por mês em casa”. Daí eu já achei que era... né, um outro modo de se livrar de mim. Quando chegava no dia do pagamento, meu pai ia lá buscar o pagamento.

Eu nunca recebia. Eu nunca via o dinheiro. Meu pai já ia lá, e já pegava o dinheiro. Ficamos muito tempo separados. E eu não aceitava, porque eu via meus dois irmãos com ela, e eu sempre longe. E na minha cabeça, passava que ela não queria eu perto, e na verdade não era isso, ela estava me protegendo Imagine na época da minha mãe então, que ela era de 1933, trabalhava em casa de família, ela chegou aqui na Brasilândia com 17 anos, e logo já engravidou, eu acredito que o gesto de amor que ela demonstrou para mim, foi a hora que ela decidiu me colocar no colégio. Mas na época eu era muito criança, eu tinha 08 anos, estava no auge, eu queria ficar com meus irmãos, queria brincar com meus amigos, tinha minha escola, minha cama, meu brinquedo. Eu não queria. Podia comer pedra, mas eu queria comer ali com a minha mãe. Me lembro que a gente catava lá no Mercado Municipal, lá no Parque

119 Dom Pedro, nós íamos catar as coisas lá, para comer. Mas era a maior felicidade para mim, quando eu ia para lá pegar, achava manga, melancia, aquelas coisas, que a gente chegava em casa, limpava, e era tudo escondido do meu pai porque meu pai não dava, mas não aceitava. Mas para nós, aquilo era uma festa.

Mas eu queria estar ali, naquela vida, mas eu queria estar com a minha mãe. E ela não. E ela pensou em condições melhores para mim.

Então a minha história é essa sabe...esse sentimento... foi um sentimento de não poder ter convivido com ela, de dividir, junto com meus irmãos, a infância. Por mais dura que fosse, eu queria estar ali junto.

Mas hoje eu entendo que ela fez o melhor, que foi dentro das condições, dos limites que ela tinha, dos conhecimentos, que ela teve o que ela fez. Então é isso. Só que eu absorvi isso de modo diferente.

Acabou depois se separando do meu pai, logo depois eu conheci o pai dos meus filhos, com 19 anos eu tive o primeiro filho depois vieram os outros.

Engravidei com 20 anos, porque quis engravidar. Fui posta para fora de casa. A minha mãe não aceitou.

Porque naquela época, a moça, quando ela engravidava, eles falavam que ela se perdeu. “Ah, não anda com fulana porque ela se perdeu”. Todo mundo se afastava, parecia que você tinha uma doença contagiosa. A moça, para casar, para ter um relacionamento, não tinha pai e mãe para te explicar as coisas. Hoje você faz as coisas mais consciente, você sabe o que você está fazendo. Às vezes você é levado por um sentimento que você acredita que vai dar certo, mas naquela época a gente saía muito de casa por conta de outras coisas, da violência, achando que ia ser melhor, fugindo do pai, mas, às vezes, acaba caindo no braço de outra pessoa até pior. Era isso que tinha naquela época para gente.

Fui para a rua, fui morar na rua. Dormi debaixo de ponte, junto com o meu marido, mas ele foi solidário, ele ficou ali junto comigo. Dormi para debaixo de ponte, depois, quando a barriga estava muito grande, eu já não estava aguentando mais, ele trabalhava numa oficina mecânica, de consertar geladeira. E ele ficava o dia inteiro na oficina, o patrão saía para pegar cliente. Daí ele combinava comigo: “Quando for... mais ou menos dez horas da manhã, você vem para cá, que você fica aqui no banheiro, escondida. ” O banheiro era nos fundos. “Você fica aqui no banheiro e eu fico lá na oficina. Meu patrão não pode ver”. Daí eu ficava lá escondida, porque não tinha para onde ir. E tinha uma pastelaria, que durante o dia, eles davam caldo-de-cana, eles davam, à noite, aí a gente pegava os pastéis que sobrava, os salgados. Eles davam em troco deu ir limpar a pastelaria para ele. Então de manhã eu ia, limpava a pastelaria, quando era umas dez horas mais ou menos, eu ficava lá no banheiro porque eu não tinha para onde ir. Patrão chegava, passava o serviço para o meu marido que chamava Marcos, e ia embora.

A loja ficava praticamente na mão dele. Daí a gente fechava a loja, e a gente vinha aqui para Praça da República, dormir aqui... nos bancos, né. Aí a gente dormia ali. Um dia apareceu uma senhora, que estava precisando de uma pessoa para trabalhar. Daí, acabou me levando para ir trabalhar com ela. No Parque São Domingos. Daí eu fui trabalhar lá. Mas já estava bem adiantada, já estava de 5 meses de gestação. Daí era ela e dois filhos, e o marido.

Ela não era ruim não, foi uma patroa muito boa para mim. Mas o marido era meio malandrinho. E, como não tinha aonde dormir, ela quis me colocar lá no quarto junto com os meninos. E ele não deixou porque ele falou que a empregada não ia dormir junto com os filhos, me colocou para dormir no banheiro. Eu dormia no banheiro. Montaram aquelas camas de abrir e fechar, e eu dormia ali no banheiro. Mas para mim estava ótimo. Entre dormir na rua e dormir no banheiro, para mim estava bom demais. Eu tinha

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121 comida, tinha tudo. Mas, ele ia no banheiro à noite, e mexia comigo. E eu tinha medo de falar para ela, porque na minha condição de empregada, eu falava: “Ela não vai acreditar. Ela não vai acreditar, porque durante o dia ele mal me olhava, mal me dava bom-dia”. E quando ele vinha mexer comigo, ele falava assim: “Ah, você já tá grávida mesmo, você não vai engravidar de novo. ” E eu não permitia! Nem que ele colocasse a mão. E quando fazia muito barulho, as vezes ela perguntava: “Aí Rodolfo, o que que foi? Onde você está?”. “Não, não, já tô indo”. Eu fiquei desesperada e acabei fugindo. Esperei ficar de madrugada, eles tudo dormindo, eu abri a porta e fugi. Eu saí do Parque São Domingos, a oficina do meu marido era lá na Liberdade. E eu fui do Parque São Domingos, até a Liberdade a pé, com aquela barrigona imensa. Daí cheguei lá, falei para ele, ele me trouxe aqui na casa duma tia minha, para morar aqui no Penteado, na Vila Penteado, mas a minha tia também não tinha condições, que era paralítica, uma senhora já de idade, paralítica das duas pernas. Morava num barraquinho muito pequeno, e ela não tinha condições.

Meu padrasto ficou sabendo que estava na rua, das minhas condições. Intimou minha mãe de ir me buscar. “Não, você vai buscar. Você vai buscar, é sua filha e ela tá grávida, e você vai buscar”. E a minha mãe acabou indo me pegar, me trouxe para cá, mas com a condições que eu não ficasse mais com o pai do meu filho. “Cê vai ficar aqui, vai ter seu filho, depois cê vai cuidar da sua vida, mas eu não quero você com ele”. Mas eu gostava dele, né. E ele morava de frente. Daí acabei ficando aqui, aceitando as condições dela, porque eu falei: “Quando o neném nasce, daí eu dou um jeito na minha vida”. Eu já estava de 9 meses, e aqui era água de poço. E o poço aqui tinha 25 metros, era muito fundo. E eu não tinha mais força para puxar água no balde. Daí a minha vizinha, que é muito minha amiga hoje, ela falou: “Vem pegar água aqui, eu te ajudo”. Daí tinha aquelas lata de óleo, que eles colocava aquele cabo, então eu ia na casa da Sueli, que são 4 casas abaixo, e ia pegar água lá. E trazia, para fazer a limpeza da casa. E numa dessas que eu fui pegar água, eu já estava com uns 9 meses completo. É... tinha chovido muito e a escada da Sueli era de madeira. E eu subi com o balde, daí quando eu coloquei no penúltimo degrau..

Conforme eu virei pra pegar, quando eu peguei a lata, que eu virei, eu caí. Eu caí e a lata bateu na barriga. E na hora eu senti uma... assim, uma dor muito forte, daí a minha amiga veio: “Ai, machucou, machucou?”. Mas logo eu me recuperei e vim embora. E daquele dia em diante eu comecei a perder apetite, a ter dor de cabeça, né, cada dia uma coisa. E, não tinha essa liberdade, que hoje eu dou para minha filha de papo aberto, de conversar, de falar tudo. Aquele tempo era muito restringido.

Mãe não falava sobre sexo, não falava... minha mãe nunca tocou no assunto sobre gravidez. Ela nunca perguntou se estava bem, não, ela não falava isso. Eu comecei a emagrecer muito. Perguntei para vizinha do lado, Dona Elvira, falei “Dona Elvira, meu neném não está mexendo mais e eu estou sentindo muita dor de cabeça”. Ela falou: “Ah, é assim mesmo! É porque ele já se encaixou para nascer, é assim mesmo”.

122 E eu achei que era. Daí quando chegou um belo dia, comecei a sentir dor de parto, e não deu tempo de me levar para o hospital, porque foi tudo muito rápido. Chamaram uma parteira, e.…me lembro como se fosse hoje, era umas 5 horas da tarde, quando comecei a ter essa dor. A Dona Lurdes chegou logo em seguida, me colocaram no quarto da minha mãe para fazer o parto. Mas eu não tinha força mais. Eu estava muito debilitada. E, a parteira, de tanto tentar induzir o parto, falou para o meu marido: “Olha, eu vou ter que sentar em cima da barriga dela, para ajudar a expulsar esse neném, né, porque, já está com horas aqui. Já tem tempos, que ela está desse jeito e eu não estou conseguindo”. Daí o Marcos autorizou, e conforme ela sentou duas vezes, o neném coroou. Só que quando eu caí na escada, depois foi diagnosticado no IML, a lata bateu, bateu na cabecinha dele, e deu um coágulo, na cabeça. Esse coágulo... ele faleceu. Morreu, né, dentro da barriga. Ele ficou 22 dias, morto na barriga.

Meu marido também, filho único, era muito mimado, se envolveu muito cedo com droga, depois a bebida, e foi muito difícil também, a convivência com ele. Mesmo assim, ainda levei o casamento 22 anos, porque eu precisava dele para ajudar pelo menos, a cuidar das crianças. Porque ele tinha esse lado ruim, mas assim, para cuidar dos filhos, ele era bom. Para mim trabalhar, eu sabia que eu tinha uma pessoa de confiança que podia cuidar deles. Fui trabalhar no Hospital das Clínicas, na faxina, estudei, prestei concurso interno, cheguei até atendente de enfermagem. Não fiquei como atendente lá porque, infelizmente têm aquelas discriminações, e para quem vinha da limpeza, para chegar na enfermagem, eles não aceitavam muito. Então acabei me decepcionando um pouco, e pedi para voltar para limpeza. É onde eu me sentia mais segura, onde eu tinha meu rol de amizade, então, abri mão da enfermagem e voltei para limpeza. Mas agradeço ao H.C que me deu dignidade para cuidar dos meus filhos. E essa é minha história, minha história de vida!

De certa forma, essa trajetória toda, despertou o meu interesse para ajudar as pessoas, por conta dessas coisas, das coisas que vi no hospital, no convento. Faço esse trabalho comunitário desde 98, mas, começou tudo com a Bia, na verdade. Acabei criando a Bia. A Bia está com 21 anos, sou bisa. Acabou de ter uma bebê, que é a Ana Clara. E, acabei trazendo a Bia para minha companhia, meus filhos também aceitaram muito. Também sou avó dela. E, foi a partir da Bia, que eu comecei a ver esse lado, porque eu fiquei constrangida, porque eles moravam bem de frente da minha casa. Como que podia, uma pessoa estar passando fome?! A mãe estava a 15 dias deitada numa cama, num estado lastimável. Com 4 filhos para criar, e ninguém se atentava, e eu ali tão perto, porque você dá bom dia, dá boa tarde, mas você não sabe se o dia da pessoa está bom. Você só dá bom dia, você não pergunta se estão precisando de alguma coisa. E quando a Bia pareceu no meu portão pedindo, falando que estava com fome, que queria um pedaço de pão, que eu fui saber o que estava acontecendo. Isso abriu meu coração, abriu minha mente, para olhar um pouco envolta.

Dentro das nossas condições, tudo o que a gente pode fazer para poder estar ajudando. É interessante, porque as pessoas vêm aqui, sabe, pedir: “Ô Vânia, olha, eu tenho um parente ali que está doente, e a gente não tá conseguindo, é... não sabe aonde levar”. Daí a Vânia vai lá, e fala com as meninas do posto, para poder dar uma assistência. Eu abri esse espaço aqui, para o nosso pessoal usar como posto de saúde, porque têm muitas pessoas aqui que são hipertensos, que não tem condições de chegar até o posto, porque é lá no alto do morro. Já fui lá, já pedi para fazer a triagem aqui: “Gente, está lá. Eu não quero nada. Vocês vão encontrar lá o salão limpinho, arrumadinho, com água... com tudo para vocês. Mas

123 coloca lá no salão para atender esse pessoal daqui. Tem muita gente que não faz o controle, porque, não conseguem subir. A família, às vezes não ajuda, é omissa, não ajuda, não tem paciência com idoso.

Então, não consegui. Pedi também para implantar aqui uma prevenção contra cárie das crianças daqui.

Para ajudar. Vieram duas vezes, só. Depois não vieram mais. Então a gente tem lutado muito para fazer um trabalho social aqui. É um trabalho de Capoeira para crianças, é Panificação e Confeitaria, porque eu fiz o curso no Batuíra. Tem um Centro Espírita aqui, que ajuda muito a comunidade. Com sopa, com doações de roupa.

Na minha vida como casada, o meu marido, apesar dele ter tido esses vícios dele, ele tinha uma boa relação de amizade aqui. Então a minha casa sempre foi assim, muito cheia de gente, sabe, a gente sempre participou muito de festas... “Ah, fulano tá fazendo festa, ah, vamos lá, vão ajudar”. Então aqui, o quintal aqui, onde minha filha mora, foi um quintal muito festivo. Onde a gente recebia muitas pessoas. Aqui tinha tradição, que era festa de São Benedito, a gente participava muito. Quando a Tia Ivone fazia as festas de terreiro, porque antigamente não tinha salão, a gente fazia em casa mesmo, capoeira no quintal, fazia o pagode, o samba, no quintal de casa. E, foi uma fase muito boa, a gente vivia um na porta do outro. Natal, hoje Natal é muito reservado, naquela época, eu lembro que a minha mãe fazia, coitada, aquela ceia dentro das condições dela, mas ninguém comia, porque cada um passava de casa em casa, abraçava, esperava dar meia-noite, corria a Brasilândia inteira, e daí, comíamos um salgadinho em uma, tomava um refrigerante em outro, que hoje, isso faz muita falta, porque hoje em dia não tem mais isso. A minha casa era sempre cheia de gente. Eu sempre queria, de sábado e domingo, os filho, os amigos da minha filha, os meus filhos, né, sempre traziam eles dentro de casa, eu estava sempre pronta pra fazer alguma coisa, se não tinha nada pra fazer, a gente fazia pelo menos o bailinho lá pra eles. Era muito bom.

Eu não quero me enganar, quando eu vejo a Brasilândia, hoje, é diferente da Brasilândia que eu conheci quando era pequena. A Parapuã era um trilho. O ônibus, a gente pegava lá na Itaberaba, a gente ia a pé até a Itaberaba, para pegar o pau de arara. Eu sou do tempo do pau de arara, que era um caminhão, que tinha um mastro assim, que a gente ia segurando, as crianças sentadas no chão, e os adultos segurando. Hoje eu vejo isso daqui. Só, que todo esse progresso, essas coisas que eu vejo, me dá muita tristeza. Não me traz alegria, porque, na minha época era difícil, mas a gente saía sem luz na rua, sem polícia, a gente ia para os bailinhos e voltava, um respeitava o outro, sabe. O meu pai, como era muito truculento, meu pai era muito brigão, meu pai era muito pequeno, mas o danado brigava.

Gostava de dar cabeçada, ele acabava com a pessoa na cabeçada. Não tinha tamanho, o danadinho.

E, mas era muito respeitado por causa disso. Então, eu sempre fui muito sozinha. Eu andava, e eu ia para os bailinhos, e vinha sozinha. E, às vezes, encontrava algum amigo do meu pai, falava: “Oi Tutu, cê tá indo embora? Ó, vô levar você.” E trazia, sabe, sem mexer, sem fazer graça, com respeito, sabe. Às vezes, algum menino no bailinho, você não queria dançar e os menino queriam brigar... “Ó, cê não mexe com ela, que é filha do Marinho Bandeira. Ó, respeita ela.” E não só a mim, como as minhas amigas também. Não tinha polícia, não tinha delegacia, não tinha luz de mercúrio. Rua de terra , tudo muito difícil, mas a gente era muito mais feliz. Tinha respeito. Tinha união. Hoje, o progresso entrou, acho tudo muito bonito, mas me traz muito sofrimento. Porque, eu sei que em todos lugares há violência, muita gente fala que a Brasilândia é um dos lugares mais violento. Não, eu não acredito

124 que seja um dos lugares mais violento. Quando eles falam da Brasilândia, eles abrangem, Parque Tietê, todos esses lugares aqui, mas, em vista da minha época de infância, de juventude, a Brasilândia que eu vejo agora, me entristece muito, tudo que eu ouço, de tudo que eu vejo, quantos jovens, quanta criança que eu já vi morrer aqui, sabe.

São tantas histórias, na época, Nenê [uma traficante] era como se fosse um Deus, Eu nunca vi ela desse jeito. Mas já pedi coisa para ela sim. Coloquei um bujão de gás, aqui na frente, enquanto eu fui pegar o dinheiro, o menino veio e roubou o bujão de gás. Eu fiquei sem como fazer comida para as crianças.

E não tinha onde correr, que ela também não permitia que chamasse polícia. Daí eu fui pedir para ela, que eu precisava do bujão de gás, porque o menino tinha pego. Não demorou, o menino apareceu aqui, com o bujão de gás, cheio, porque ela fez ele encher o bujão de gás. Mas o menino estava tão deformado, que eles bateram tanto no menino, que o menino mal conseguia me pedir desculpa. Que a boca dele estava tão inchada, que ele mal pediu desculpa. Então, para mim isso não era modo de fazer justiça. Eu não queria isso. Eu queria o meu bujão de gás. Por trás daquele menino, tem uma mãe, e eu me senti no lugar, daquele menino. Da mãe daquele menino. E a Neném, ela usava muito as crianças, para fazer esse tipo de coisa, que ela falava que eram os anjos dela. Os meninos para roubar.

Famílias e famílias, perderam muito, aqui na viela, perdemos dois, que eram do comando dela, de uma família muito boa, muito boa, muito respeitada, tradicional daqui. Mas os meninos se envolveram. Eu sei que eles faziam o trabalho, vendiam droga para ela. Esses meninos que faziam a droga circular por aqui, então, as pessoas idolatravam ela, porque quando tinha algum problema, porque como ela não aceitava que tivesse algum problema, para não vim polícia, então ela ia em cima. Mas ela usava os métodos dela, de bater, de espancar, muitas vezes de tirar a vida de alguém, e foi nessa leva aí, que nós perdemos muitos, muitos mesmo. Sem sombra de dúvida, que muito mais de cinquenta famílias que eu conheço, daqui da redondeza, perderam filhos nessa época. Então não dá nem para te falar o que dói mais... tudo dói! Quando você lida com criança, a dor é muito grande. E eu tive a oportunidade de trabalhar lá no hospital e aprender muito. Acho que, o meu grande aprendizado mesmo, foi forte, me trouxe para cá com outra visão, uma visão de ajudar, e de querer fazer alguma coisa, como mãe, como mulher. Isso desenvolveu meu lado humano.

Maria Paulina, Vó Tutu, 66 anos Auxiliar de serviços hospitalres

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Experiências como conclusão Me chamo Barbara e tenho 19 anos. Morei no Jardim Elisa Maria até 2014, foi quando me mudei para Vila Mazzei, próximo ao Jaçanã. Em 2016 houve uma enchente, perdemos muitas coisas, então vim junto com meus pais morar na Vila Serralheiro, próximo ao Jardim Elisa Maria. Frequentar a escola sempre foi um problema pra mim. Meus pais com medo de eu abandonar os estudos me incentivou a entrar no magistério e assim o fiz. Em 2014 mudei de escola e comecei o curso junto com o ensino médio. Nesse mesmo ano conheci o Movimento Social de Educação Popular- Rede Emancipa e comecei a entender porque achava tão angustiante ir à escola e todas as normas do sistema educacional. Quando me inscrevi no Projeto “Fala Quebrada!”, queria conhecer mais sobre a Brasilândia e sua história. os livros, infelizmente, limita as histórias de resistência não estou surpresa que em conversas com parentes antigos, nas ruas, em filas de bancos e de mercados consigo perceber o quão a luta das pessoas foram inferiorizadas e ignoradas de forma desumana. Dentro do projeto discutimos muito sobre as minorias e, percebemos que os problemas que encontramos aqui não são individuais, que as periferias precisam cada vez mais se organizarem e falar a história de dentro da quebrada e mostrar que há história aqui e não são menos importantes.

Bárbara Scatolin

127 Meu nome é Isaac Felix, tenho 17 anos. Tudo começou no começo do 3° ano do Ensino Médio com a minha prof° Tina de Sociologia, que fez despertar em mim um olhar da periferia e da relação dos negros com a sociedade em geral.

Foi aí que eu descobri o “Fala Quebrada!”, que iria tratar de questões periféricas e as pessoas que estão nela. Não sei me expressar muito bem, mas só tenho agradecer o “Fala Quebrada!”, que despertou em mim um olhar diferente sobre a minha quebrada, jamais passaria pela minha cabeça que temos esportistas, artistas, escritores e pessoas que fazem o bem pela quebrada. Tem uma frase do Eduardo Marinho que eu gosto muito que é: “ A humanidade tá na periferia, que divide o último pão sem pensar no amanhã. E nesses últimos meses eu vi o que realmente é a periferia.

Isaac Felix Olá, meu nome é Nathalia Almeida Goes, tenho 17 anos, sou residencial na vila Brasilândia dês que nasci, entrei no projeto com o intuito de conhecer melhor onde eu moro, novas histórias de vida, sobre o que se passou no bairro; Participar desse projeto foi muito interessante. Desde o começo, todas as entrevistas foram muito emotivas e inspiradoras, Pois cada um tem a sua história oral de vida.

Poder presenciar a cada momento foi muito gratificante, Adquire conhecimento e sabedoria. Obtive outras experiências, pois lembrei dos meus familiares! Que passaram por isso também. Além de ter presenciado uma terça parte do acontecimento em que ouvi falar na entrevista, fiquei super fascinada.

Todas as história de vida foram muito interessantes, cada um com a sua história, porém no mesmo bairro uma “lado do outro”, foi um prazer participar de todos os momentos. Vivendo e aprendendo!

Nathalia Goes Meu nome é Andressa Neto Dos Santos, tenho 17 anos e moro na região da Brasilândia desde que nasci, nunca fui uma pessoa que tinha muito contato com meu bairro, ou que sabia o que acontecia na região, mas sempre soube que era um bairro marginalizado, quando eu conheci o projeto “Fala Quebrada!”!, pensei muito antes de decidir participar, não sabia se era algo pra mim, mas assim que fui na primeira aula senti que poderia aprender muito com ele, então decidi participar, uma decisão que não me arrependo pois acrescentou muito no meu caráter e em quem eu sou através das aulas, mas principalmente, nas entrevistas que fizemos, muitas vezes eu saía do curso após uma entrevista muito mexida com toda história que ouvia, mas ao mesmo tempo, me sentia inspirada por aquelas histórias, que apesar de tristes, mostram que a vida é assim, uma mistura de emoções, coisas boas e ruins, também foi interessante conhecer mais sobre a história do bairro, é incrível pensar como a periferia é tão rica em história, aquele tipo de história de superação, aquelas que mexem com a gente e nos fazem pensar, que ao contrário do que dizem, tudo podemos, até mesmo na periferia.

Andressa dos Santos

128 Meu nome é Bruno Barbosa de Souza (O Doutor), tenho 18 anos, moro na Brasilândia a 18 anos também, mais precisamente no Damasceno. Quando meu amigo me chamou para participar de um projeto para escrever um livro sobre a história de vida dos moradores da Brasilândia eu achei que seria algo fácil, vendo que eu gosto de escrever bastante, mas toda a experiência da feitura do livro foi algo muito complementar na minha base de conhecimento em geral. Tendo tido as aulas antes de começarmos a fazer as entrevistas eu aprendi bastante sobre como saber escutar uma história de maneira diferente de antes, de maneira mais pessoal, agora eu olho para as pessoas na rua e fico imaginando o tanto de acontecimentos ela já não viveu, o tanto de coisa que ela já passou, quantas histórias de superação ou de queda ela já não vivenciou. Conheci várias pessoas incríveis no processo de criação, tanto em meio os entrevistadores quanto em meio aos entrevistados, pessoas que são inspiração de superação e de força, pessoas que conseguiram alcançar seus sonhos, pessoas que conseguiram fazer a diferença no bairro onde moram, que tem histórias chocantes, engraçadas, tristes, assustadoras, dramáticas, entre várias outras, isso é algo imensurável como valor pessoal. Em todos os meus anos morando na Brasilândia, nunca passou na minha mente que algum dia iria participar de um projeto que fosse me fazer ver o mundo um pouco diferente, porque agora tudo que eu quero fazer é escutar a história de vida de cada pessoa que eu vejo na rua, isso me faz imaginar o quão importante as pessoas são para a história em um todo, quem decide de quem é a história mais importante? Quem decide que histórias devem ser contadas nos livros? Quem decide quem é grandioso ou não? Felizmente, hoje em dia somos nós que decidimos.

Bruno de Souza Olá, meu nome é Lincoln Roberto Lima da Silva, tenho 17 anos, moro na capital de São Paulo, no Jardim Sydney, e irei contar para vocês como foi a minha experiência dentro do projeto “Fala Quebrada!”. No início, eu não sabia no que eu estava me metendo, pois, só fui descobrir a fundo sobre o que o projeto se tratava quando eu realmente fui participar das oficinas, na Casa de Cultura da Brasilândia, eu apenas sabia que se tratava de um livro, no qual estamos escrevendo neste momento. O Henrique, que é um dos cabeças desse projeto, é filho de minha madrasta, com isso, somos irmãos porém não de sangue mas de convivência, ele que me “forçou” a ir participar do projeto, mal sabia eu que poderia me arrepender de não ter ido. Depois dele insistir eu fui, fui com uma coisa em mente, absorver tudo que eu supostamente poderia aprender ao decorrer do projeto. Nossas aulas me ajudou bastante o que é a história oral, história temática e também sobre a história de tradição, nós também aprendemos sobre a sensibilidade, como deveríamos nos comportar perante a uma entrevista propensa a emoções tristes por exemplo, quando que nós poderíamos entrar em um assunto mais fechado, mais difícil de retirar, como chegar a esses tipos de assunto, quais caminhos seriam necessários para nós chegarmos lá, aprendemos também sobre o Tombamento, inclusive fizemos uma atividade bem bacana com base nisso, nós tivemos que escolher algum lugar na região em que morávamos que seria bom, para nós moradores, que fosse tombado, tivemos que tirar foto do lugar, explicar o porquê seria vantajoso tombar e tudo mais, enfim, botamos em prática o que nós aprendemos, e essas pequenas aulas que tivemos de preparação foi

129 bastante enriquecedor não só para mim mas aposto que para todos que participaram desse projeto, e garanto que irei usar muito esse conhecimento que adquiri ao decorrer de minha vida.

Lincoln Roberto Silva Olá meu nome é Thayná Natucci P. Sousa, tenho 16 anos, sou moradora da Brasilândia desde que me conheço por gente, quando entrei no projeto entrei com uma visão totalmente fantasiosa onde eu simplesmente iria escutar histórias de pessoas desconhecidas e transformar em textos, na teoria seria exatamente isso se não fosse por um detalhe, não estamos lidando com histórias somente mas sim com pessoas, pessoas que mais do que contar suas histórias, estavam confiando em nós doando suas lembranças mais particulares, nós mostrando suas fragilidades, histórias tão fortes quanto seus donos, as lembranças dessas pessoas me envolviam a cada dia, pensava como poderia pessoas tão diferentes mas tão iguais, acreditando que as coisas podem mudar, tendo esperança que o amanhã pode ser melhor, lembranças que resistem a fome, medo, violência e opressão, pessoas que gritam em silêncio nos mostrando que a luta é diária e necessária, histórias despercebidas mas muito importantes, mais do que relatar histórias elas relataram esperança, aprendi com o projeto que todos temos o poder da mudança que a empatia é essencial para um mundo melhor, que se colocar no lugar do outro é necessário e muitas vezes passa a se tornar incrível, se enxergar no outro nos faz entender melhor as pessoas, nos torna mais sábios para enfrentar a nossa própria existência, a única coisa que tenho pelo “Fala Quebrada!” e acima de tudo pelas pessoas que ajudei a entrevistar é gratidão, gratidão por me oferecer tanto com suas memórias, nada pode apagar a sabedoria que aprendi com essas pessoas, a melhor palavra que pode transparecer o que sinto é gratidão.

Thayná Natucci

Meu nome é Giovanna Vitória Braz, tenho 16 anos. Moro na Brasilândia há pouco mais de 2 anos, mas minha família sempre morou aqui. Minha experiência no curso de história oral foi uma coisa que fez eu mudar muito meu modo de pensar, nunca tinha me interessado em saber as histórias das outras pessoas do meu bairro. Na nossa primeira aula foi uma experiência inacreditável, nos conhecemos e fizemos uma dinâmica muito interessante, parecíamos que nós éramos detetives. Foi uma coisa mágica que não tem explicação. As aulas foram correndo e ao longo delas veio mais uma dinâmica incrível do misterioso “Sapato”, era pra descobrir de quem era aquele sapato, e cada um teve sua sugestão. Aprendi muita coisa com isso que nem sonhava em saber, dentro da nossa sala de aula todos nos demos bem, então era fácil de lidar principalmente com os nossos professores que são magníficos. Quando fomos fazer a nossa primeira entrevista, eu estava com medo de não exercer o que eu tinha aprendido, não fomos bem, mas também não fomos muito mal. Gostei bastante da entrevista, e depois dela veio mais

130 e mais algumas entrevista foram emocionantes, outras pavorosas... por você ver o sofrimento nos olhos daquela pessoa que batalhou tanto mais não conseguiu nada e mesmo assim agradece a Deus pela vida que tem.

Giovanna Braz Eu sou Marcos Antônio, tenho 18 anos. Através deste projeto comecei a enxergar as pessoas de forma ainda mais humana; em cada indivíduo enxerguei valores que antes eu não enxergava. Através deste projeto, pude entender um pouco mais a respeito da majestosa complexidade da vida. Em cada oficina que eu estive presente, pude entender mais sobre a sociedade (com ênfase no povo da periferia) e as questões de inclusão. Não consigo dizer de forma técnica sobre esse projeto, só consigo dizer o sobre o impacto que teve em minha vida, fazendo com que eu olhe de forma mais ampla para a sociedade.

Marcos Antônio Silva Eu sou o Pedro, tenho 14 anos. O projeto “Fala Quebrada!” me ensinou muitas coisas. A cada aula me via mais empolgado para atingir o nosso objetivo. No início, contava as horas para começar a entrevistar pessoas, escutar tudo que elas tinham para nos contar, entender o que cada uma daquelas pessoas sentia. Ao escutá–las, me imaginava dentro de cada umas das histórias. Isso me fez imaginar o quanto foi difícil enfrentar as situações que elas vivenciaram. Percebi que a sociedade já evoluiu bastante, porém, ainda falta muito para nós consigamos entender os pensamentos dos outros, nos colocarmos no lugar deles e ver que as pessoas têm jeitos diferentes, mas no fundo somos todos iguais. Com cada entrevistado, pude ter um visão diferente, mas que chegava sempre ao mesmo resultado, todos eles queriam que a Brasilândia se tornasse um lugar melhor para viver. Uns entendem que a mudança tem que partir deles, então viviam e ainda vivem para a comunidade, fazendo projetos sociais, algo mais coletivo. Outros preferem se estabilizar, trabalhar, quando possível estudar, e pensam que se cada morador fizer a sua parte, todos conseguem sair do sufoco. Agora, com o fim do projeto, o objetivo concluído, posso dizer que foram 8 meses de muito aprendizado. E que qualquer nova oportunidade que tiver para participar de outros projetos como esse, vou realizar com o maior prazer e dedicação do mundo. Pois, todos temos histórias, e são elas que nos mantém vivos.

Pedro Pinotti

Da esquerda para a direita, Isaac, Lincoln, Pedro, Bárbara, Nathalia e Tayná.

Vitor Hugo e Henrique em uma visita numa escola pública para a divulgação do projeto.

Um dia de oficina na Casa de Cultura da Brasilândia.

Otília Leal

Rodrigo Olegário

Sônia Bischain Vó Tutu

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Tio Tรณ Wilma Xavier

Mรฃe Pulqueria Luiz Flรกvio

Luciano Luna Luiz Martins

Lourdes, DIlermano e Valdete

Ă?talo Cairo

JoĂŁo Pereira Neusa Caixeta

Murilo Augusto

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