Rio das flores

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eu tinha um homem que voltava da caça, mal olhava para mim, e deitava-se a meu lado a ressonar a noite inteira, esperando que eu o reconhecesse como um herói! Amparo ficou calada, olhando a sogra de viés. - Não é disso que me queixo, D. Maria da Glória. Não me queixo de que o meu marido esteja aqui para ir caçar. Do que me queixo é que ele não esteja aqui e que a única razão verdadeiramente forte que tem para voltar seja a abertura da caça. A senhora tinha um homem que estava em casa e que, quando podia, ia à caça. Eu tenho um homem que não está cá e que só promete estar para ir à caça. Há uma diferença... - Tens razão, há uma diferença. Mas o teu marido está em trabalho, não está a viajar por viajar. Não tenho dúvida alguma de que ele tem saudades tuas e dos miúdos. - E de si, e do Pedro, também. Mas nada disso o faz apressar o regresso: só a caça. Foi o que ele escreveu e acredite que é o que ele pensa. Conheço-o bem. Maria da Glória olhou a nora: gostava dela, mas gostava ainda mais do filho. - Eu também o conheço bem, Amparo. Sei que é difícil para ti habituares-te a certas coisas no temperamento do Diogo. Mas acredita que nada do que ele faz, esta viagem ao Brasil e tudo o mais, é sinal de que gosta menos de ti- Ele gosta muito de ti. O Diogo é um homem de família, sai a mim. Mas é também um homem que precisa do seu espaço, da sua solidão, de resolver as suas dúvidas e as suas angústias a sós para poder estar bem com os que ama. É demasiado impaciente para conseguir habituar-se a situações desconfortáveis. Quando se sente apertado, precisa quase de fugir, como se fosse à procura de ar. O Brasil vai-lhe fazer bem, vais ver. - E eu, D. Maria da Glória? - Tu? - Sim, eu! Eu não conto? Não tenho também o direito de me sentir desconfortável, de precisar de mudar de ares? Será que também tenho o direito de fugir e voltar para a abertura da caça? Maria da Glória olhou-a, assustada. - É diferente, Amparo. Eu sei o que tu queres dizer. Também o senti muitas vezes, ao lado do teu falecido sogro, que não chegaste a conhecer. E acredita que ele era bem mais difícil de aceitar e de compreender do que o Diogo. De geração para geração, as coisas vão mudando, Amparo. Lentamente, mas vão mudando. Até hoje não sei se o meu marido me amava. Nem sequer sei se eu própria o amava. Estávamos ali, um para o outro - ou eu para ele, quase sempre - até que a morte nos separasse, como aconteceu. Tu, pelo menos, sabes que o teu marido te ama. Não queiras tudo de uma vez. Tens muito mais do que eu alguma vez tive.


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