Nao te Deixarei Morrer DC

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Ao longo do caminho É a primeira imagem da minha existência, a coisa mais antiga de que me lembro. Estava sentado no chão de madeira da copa da casa. Brincava com uns búzios do mar, fazendo um comboio com eles. Um raio de sol entrou pela janela, como uma lâmina, e veio pousar no chão, onde eu estava. Senti que me aquecia e que era um calor reconfortante: devia ser Inverno ou Outono. E lembro-me de ter ficado sentado a olhar o raio de sol e a reparar como havia um rasto de poeira suspensa ao longo dele. Nunca percebi por que é que uma coisa tão banal haveria de tornar-se a minha memória mais antiga, entre tudo o que me prende à vida. Tenho um filho pequeno a quem injecto doses maciças de imagens igualmente banais, na esperança de que ele não esqueça nada. Estou sempre a massacrá-lo com o nome das árvores, com a identificação do canto dos pássaros, com os cheiros das coisas ou com conhecimentos mais elaborados, como a divisão do ano em estações, a origem da água dos rios ou o nome das estrelas. Ele devolve-me o esforço com uma memória sensitiva prodigiosa. Lembra-se nitidamente do dia, uma manhã de Inverno, em que caiu a um ribeiro quando o atravessávamos sobre uma tábua de madeira que eu tinha improvisado como ponte. Lembra-se, com uma saudade magoada, de um cachorro vadio que tínhamos baptizado de «Bolota» e a quem ele chamava «o meu cão», e que foi morto pelos caçadores, embora ele não saiba e continue ainda, dois anos depois, à espera do seu regresso. Pergunto-me a mim mesmo de que será que o meu filho se lembrará mais tarde e que nunca mais esquecerá. Lembrar-se-á de atravessar a rua de mão dada comigo, a caminho da escola, e de roçar-se em mim, como os animais fazem, para que eu não me fosse embora? Lembrar-se-á das madrugadas no Hospital de Santa Maria, de andar ao meu colo, enfiado em cobertores, ao longo do interminável corredor do Serviço de Otorrino? Lembrar-se-á de subir as ondas do mar, agarrado a mim, dividido entre o terror e o gozo, gritando «nós não temos medo das ondas»? A memória é a nossa escola da vida. É a nossa única verdadeira defesa contra a traição e o abandono. Tudo pode ser traído e abandonado, menos a memória. É mais fiel que qualquer amigo, é mais longa que a própria vida, é mais verdadeira do que qualquer verdade que temos como certa. Tal como o Adriano, de Yourcenar, também eu lamento que a memória da maior parte dos homens seja um cemitério abandonado, onde jazem, sem honra, os que deixámos de amar. Adriano reclamava o direito de chorar, sem fim e 96


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