Nao te Deixarei Morrer DC

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A passagem do Hale-Bopp Muitas vezes me acontece isto: sentar-me no terraço, com vista para o Alentejo, e pensar se Deus existe. O terraço dá para um vale, lá em baixo há um pomar, um campo de oliveiras, um poço, uma horta e um pequeno ribeiro com uma fila de marmeleiros que assinala o fim do terreno plano. Depois, eleva-se uma colina povoada de sobreiros e pinheiros bravos e é atrás dela que o Sol se põe. Há três momentos mágicos, ao longo do dia, no vale. De manhã cedo, quando o mundo desperta e vamos reconhecendo, um a um, os sons do novo dia a instalarem-se. Ao fim da tarde, quando o vale é atravessado longitudinalmente por bandos de pássaros apressados, nos seus últimos voos antes da noite: pombos bravos, patos, falcões, cegonhas, pardais de toda a espécie e às vezes uma perdiz voando rasteiro. No fundo do vale, mora um pica-pau, que não se deixa ver, mas que se faz ouvir com o seu matraquear na madeira. Na Primavera, há um cuco que chama por nós regularmente como se nos quisesse anunciar que está vivo e de volta, depois de mais um ano. À noite, finalmente, o vale é da coruja e só ela, os grilos, no Verão, e as rãs, quando há água, quebram o silêncio das estrelas. A noite é o terceiro momento do vale. Em noites de luar, na Primavera e no Verão, as sombras roçam-se em nós, com o seu tecido fino de luz, e as estrelas são tão baixas e tão visíveis que, se falarmos com elas, ouvimo-las à escuta. Em Março e Abril, uma hora após o pôr-do-sol e a nordeste, víamos todas as noites o cometa Hale-Bopp, que ali esteve pela última vez antes dos antigos egípcios e que só voltará de novo daqui a seis mil anos. Passei noites fascinado a olhar para o Hale-Bopp e a pensar se seria ele Deus, Osíris, o Grande Construtor do Universo? Nunca me tinha acontecido ter um cometa a olhar para o terraço da minha casa, vigiando os meus gestos, lendo os meus pensamentos. Em algumas noites, com a lua cheia no tecto da casa, Marte nascendo amarelo ao mesmo tempo que a Lua e o Hale-Bopp no horizonte, tudo ficava suspenso, em silêncio: eu, a coruja, os grilos, as rãs. Nenhum barulho de lagarto passando rápido no chão, nenhum voo de insecto vindo acabar contra a luz da vela acesa dentro da lanterna de vidro. O vento parado, as sombras nos ramos das árvores, reflectidas no chão pelo luar, quietas e mudas. Homens, animais e plantas, todos em silêncio olhando o cometa. O Hale-Bopp é o mais próximo que eu já estive de Deus. Lá, onde ele aparecia, é o limite que conhecemos do Universo. Para lá desse limite, é o buraco negro, onde mesmo a 71


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