Tcc natalia machado 09 10 2013 alterado 02h57min

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Natรกlia Machado


“Eu vivia diariamente com a sensação de uma arma apontada na minha cabeça.” “O medo de sofrer a crise é constante e paralisa.” “Por mais instrução que eu tivesse, aquela situação era diferente: era eu que sentia tudo aquilo.” “Eu pensava: Estou enlouquecendo... Sentia vergonha da minha família, o que causava a eles parecia não ter volta.” Depoimentos de mulheres que, em algum momento, já se sentiram aprisionadas em si por conta dos transtornos mentais que enfrentaram e enfrentam diariamente.

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Aprisionada em Mim

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Autora: Natália Machado Orientação: Dra. Eliane Freire de Oliveira Diagramação: Iran José Fonseca Sampaio Fotografia: Natália Machado e Ludmila de Castro Revisão: Dra. Miriam Bauab Puzzo

Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBi/UNITAU Biblioteca Setorial de Comunicação Social

M149a

Machado, Natália de Oliveira Aprisionada em mim: história de mulheres que enfrentaram transtorno mentais. / Natália de Oliveira Machado - 2013. 76 f. Projeto Experimental (Graduação em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo) – Universidade de Taubaté, Departamento de Comunicação Social, 2013. Orientação: Profª. Me. Eliane Freire Departamento de Comunicação Social. 1. Mulheres. 2. Transtornos Mentais. 3. Doenças Mentais. 4. Superação de Transtornos Mentais. I. Título.

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NatĂĄlia Machado

Aprisionada em Mim

Universidade de TaubatĂŠ - SP 2013 -5-


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Dedico “Aprisionada em Mim” a todas aquelas pessoas que, alguma vez, tiveram suas vidas tomadas pelos transtornos mentais. Pelas dores, pelas famílias afetadas por estas dores, mas, sobretudo, por se esforçarem a enfrentar, diariamente, a luta contra o invisível. Que cada uma dessas mulheres possam, enfim, contar suas histórias e se libertarem das celas das dores da alma. Natália Machado

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Agradeço à minha orientadora por me guiar com sabedoria em cada etapa do meu projeto e por ser paciente em todas as vezes em que cheguei à sala me perdendo nas palavras por tamanho receio em não conseguir concluir o trabalho da forma como tanto ansiei. Durante o ano de desenvolvimento do trabalho, tive o prazer de ter mais que uma professora, mas ganhar uma amizade, a qual levarei por toda a vida. Não posso me esquecer de ser grata, e demonstrar tal gratidão, a cada fonte que se tornou personagem deste livro. É claro: sem vocês seria impossível que as páginas fossem preenchidas, mas, mais do que isso, sem vocês seria impossível descobrir o que é, de fato, um transtorno mental, e quão dura é a realidade de quem o encara. Agradeço por me permitirem entrarem suas casas e por me permitirem descobrir um pouco sobre suas vidas. Agradeço à proteção divina que senti receber durante todo o projeto, nos momentos em que a ansiedade se tornava insuportável, eu pedia calma e sentia, que, de alguma forma, era reconfortada. Não posso afirmar que Deus exista, mas sei que a fé em “algo maior” me moveu a cada dia. Aos meus amigos, que me auxiliaram com todas as ferramentas que puderam para que o meu livro fosse concluído. Em especial, agradeço à Ludmila de Castro, à Renata El e à Tatiana Machado, responsáveis pela participação nas imagens presentes nas páginas do projeto. Assim como sou grata à TV Câmara, dedicando uma atenção ao João Luiz, que permitiu que eu me ausentasse do estágio quando necessário para execução do trabalho de conclusão de curso. Faço, agora, um especial agradecimento àqueles que mantinham a atenção sobre mim enquanto eu contava pela milésima vez sobre aquela entrevista, aquela entrevistada e aquelas horas de conversa. Àqueles que mantinham a paciência enquanto eu, pela milésima vez, temia não sustentar a minha coragem e persistência até o final. Eles se mantinham! Foram, como sempre, as razões para eu buscar a razão em meio as minhas tantas emoções.

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Mãe, pai, tia e tio, avó, irmã, namorado e amigos, a vocês eu não precisaria escrever uma dedicatória, pois todas as páginas e todo o meu amor são dedicados aos meus amores. De qualquer forma: Jefferson, Maria Aparecida, Maria Auxiliadora, Teófilo, Maria Teresa, Julia e Hélio. Obrigada por existirem em minha vida e obrigada por me permitirem existir da forma como precisei ao longo de todo esse ano de trabalho. Amo vocês com tudo, por tudo e acima de tudo!

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Sumário Introdução .................................................................................... 15 Alguém que a entenda ................................................................... 18 Anos perdidos ................................................................................ 32 Dentro dela moram duas ................................................................ 52 Renascer como mãe ....................................................................... 70 Aprendendo a ser feliz ............................................................................ 80

Ainda dá para emagrecer mais ......................................................... 90 Afastada da própria vida .................................................................. 108 A mania que se tornou doença ........................................................ 124

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Prefรกcio

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Introdução Na sala de espera de um hospital, pais, irmãos, primos, filhos e amigos aguardam ansiosamente uma notícia sobre os entes queridos internados. Dedos estalando, pés batendo no piso de taco, ecoando por toda a sala, mãos agarradas umas às outras fazendo menção a uma reza, dentes rangendo, corpos inquietos. Quando uma mulher adentra o local correndo, a aflição daquela mãe chama a atenção. Ela sua frio e não consegue pronunciar uma palavra sem se perder nas letras. — Minha filha, eu preciso ver minha filha!!! – ela dizia para o guarda. — Quem é? O que ela tem? – questionava o porteiro, que não entendia a quem aquela senhora procurava. — Ela me ligou agora, disse que estava com muita dor. Lembro-me de imaginar que a filha dela devia ter uma doença grave, que o estado dela era terminal. Nesse momento, a mãe, que não se continha em suas próprias pernas, consegue pronunciar o que desejava ao entrar naquela sala: — Ela tem só 19 anos, ela está, está com... como chama mesmo? – ela grita: — Ela está com depressão pós-parto! Após a explicação perturbada, a mulher passa pelo homem que a barrava e sai com a filha sustentando todo o corpo nos ombros largos e morenos da mãe. A menina não possuía qualquer estabilidade, ela se apoiava como quem pede socorro. Parecia que aquela garota não comia há dias, ela aparentava estar mais fraca do que qualquer paciente presente naquele hospital. Em meio aos doentes com agulhas enfiadas nos braços magros, outros deitados sobre as macas nos corredores, outros ainda respirando com auxílio de aparelhos, aquela menina tão jovem possuía os olhos mais tristes, os lábios mais pálidos e os cabelos mais opacos que eu já havia visto. Cada centímetro do seu corpo era um reflexo da sua alma, que gritava por ajuda. A minha agonia em presenciar aquela cena e a minha curiosidade diante dos inúmeros transtornos que atingem as pessoas, sobretudo mulheres, segurou meus braços, me chacoalhou e me obrigou a contar -15-


essa história ao mundo e descobrir tantas outras espalhadas por aí. O que seria afinal depressão pós-parto? Por que essas palavras ecoavam tanto em minha cabeça? E como essa doença poderia afetar alguém daquela forma? Buscando respostas para essas perguntas, outras mulheres e outros transtornos vieram à tona e se transformaram em histórias a serem contadas. Sair daquele estado é uma luta diária delas contra elas mesmas, uma parte diz sim, a outra diz não, pelo amor de Deus. Depressão, síndrome do pânico, anorexia, transtorno bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo serviram como norteadores desse livro. Os personagens são as vítimas, a vizinha aparentemente feliz, a chefe que parece não carregar nenhum sentimento, as mulheres que andam pelas ruas, as mulheres que estão escondidas dentro de casa. Cada uma delas vive uma explosão de sentimentos que se tornam exageros do que realmente são: a que enfrentou uma tristeza exacerbada, por motivos diversos, e assistiu a vida se transformar, lentamente, em depressão; tem aquela que nasceu doente e precisou de razões para afetar suas emoções; existem as mulheres que perderam os primeiros meses de cuidados com os próprios bebês recém-nascidos, por conta de um transtorno inexplicável e doloroso; uma outra se viu deprimida e eufórica em momentos próximos uns dos outros e precisou encarar hospitais psiquiátricos como um novo lar; ainda existe a que teve anos e anos da vida preenchidas por manias doentias e as que se sentiram com os pés à beira de um abismo e o corpo e espírito à beira da morte; e ainda aquela mulher que já havia deixado de ser menina há tempos, mas que almejou uma magreza em detrimento da saúde. Cada uma delas sofreu, ao longo de muitos anos, com o caminho que a vida havia tomado. Entretanto, cada uma delas, conseguiu traçar um novo destino para a própria vida. Elas são mulheres de fibra, que lutaram contra os dados comprovados pela ciência: “Em geral, os estudos epidemiológicos apontam para o fato de que a depressão é mais comum em mulheres do que em homens, na razão de duas a três mulheres para um homem. A

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síndrome do pânico é uma doença crônica que afeta 5% da população ao longo da vida, atingindo duas vezes mais mulheres do que homens.A proporção da anorexia está de dez mulheres para apenas um homem, assim como os demais transtornos mentais, que atingem o sexo feminino expressivamente mais que o sexo masculino” – ressalva o psiquiatra Thales Pereira. Os estudos demonstram, dentre outros motivos, que as mulheres têm mais chance de desenvolverem transtornos psicológicos do que que os homens, primeiramente devido aos fatores biológicos –os esteróides sexuais femininos, particularmente o estrógeno, agem na modulação do humor, o que, em parte, explicaria a maior prevalência dos transtornos do humor e de ansiedade na mulher – além do estresse que sofrem ao desempenharem diversos papéis impostos pela sociedade, visto que, desde a infância, desde os tempos mais remotos, coube ao sexo feminino o dever de cuidar do lar, do marido e dos filhos, e, às vezes, ser chefe da família, sustentando-a. As personagens desse livro nadaram contra a maré e comprovam serempessoas que, por vezes, sofrem de doenças da alma, mas ainda sim são pessoas com inúmeras complexidades, como tantas outras que não sofrem destes males. O dito sexo frágil, enfim, precisa ser forte, e enfrentar barreiras que nem a ciência consegue desvendar.

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AlguĂŠm que a entenda

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“Sonho. Não sei quem sou neste momento. Durmo sentindo-me. Na hora calma Meu pensamento esquece o pensamento, Minha alma não tem alma. Se existo é um erro eu o saber. Se acordo Parece que erro. Sinto que não sei. Nada quero nem tenho nem recordo. Não tenho ser nem lei. Lapso da consciência entre ilusões, Fantasmas me limitam e me contêm. Dorme insciente de alheios corações.” Fernando Pessoa (1888-1935)

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Alguém que a entenda

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jovem, nascida em Guaratinguetá (SP), já havia se sentido triste anteriormente, mas “aquela” tristeza era a primeira vez. O sofrimento de Helena de Paula Santos a consumiu e a família começou a perceber o que acontecia. A jovem havia se tornado apática diante da vida, os programas habituais de uma garota de 18 anos foram substituídos por um quarto fechado. Ela acordava, mas não se levantava. Os olhos pesavam, como se algo os mantivesse fechados. A água do banho, ao tocar sua pele, parecia com lâminas que cortavam seu corpo. A luz do sol era mais intensa que qualquer claridade. Ela se deitava em um canto da cama, agarrando o travesseiro com força e chorando baixo para não acordar os que dormiam em paz. O travesseiro tinha cheiro de coisa limpa, de coisa simples, algo que a vida dela não havia se tornado. Dentro de Helena se encontrava uma sujeira, com cacos acumulados durante os poucos dias que se passaram naquele quarto. Viver se tornou uma bagunça, que parecia não ter solução. Como seria bom respirar sem aquele peso no coração. Desde pequena, a garota apresentava comportamentos nem um pouco comuns. Maisa, mãe de Helena, se lembra quando a filha, em uma apresentação de violão da escola, entrou em desespero. A criança de nove anos chorava alto e preocupava, sem intenção, a todos que estavam ali presentes. O modo como agia era inexplicável, afinal, como entender uma angústia por conta de algo tão simples? Helena justificou a atitude dizendo que a professora a colocou atrás da colega de classe, e ela se sentiu menosprezada. Ser reposicionada na apresentação significava ser diminuída na vida. A vontade de ser querida sempre pertenceu à menina, mas a forma como se fechava em um mundo próprio afastava as pessoas que buscavam se relacionar com a garota. — Ela é mais fechada que uma ostra. – explica Maisa, sobre um dos traços mais marcantes da filha. A menina cresceu, mas os olhos alagados de lágrimas, a timidez excessiva e o sentimento de inferioridade continuaram a ser caracte-

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rísticas marcantes de Helena. No final da adolêscencia, a jovem parou de chorar esporadicamente, deixou de sofrer por conta de uma apresentação e passou a encarar cada detalhe como um problema, a enxergar a vida como um problema. O sofrimento não era mais por conta de um certo dia, de uma determinada situação, mas por não encontrar forças para continuar a persistir. Quem a via, podia pensar: “Uma garota de 18 anos, no início da vida, com problemas tão pequenos, estava assim, tão triste...” Até que a jovem teve a crise que marcaria a própria vida e dos familiares para sempre. Os pais, preocupados com a situação, levaram a filha ao médico, que decretou: Helena tinha depressão. José Francisco e Maisa se questionavam o que poderia ter levado a caçula ao excesso de tristeza. Receberam do especialista a explicação de que a garota não precisou de motivo, pois possuía um desequilíbrio químico no cérebro, levando-a a apresentar os mesmos sintomas de pessoas que sofrem de depressão por conta de motivos extremos. A doença de Helena é denominada depressão endógena, considerada o tipo mais sério do transtorno. Existem pessoas que sofrem de diabetes, assim como existem as vítimas deste transtorno. Aos 18 anos, Helena perdeu 10 quilos, perdendo junto a felicidade e vontade de viver. — Depressão endógena é uma nomenclatura usada para denominar a depressão constitucional e biológica, ou seja, que tem poucas influências do externo – explica a Doutora em Psicologia, Maria Barreto. Os pais da moça não compreendiam a doença, buscavam encarar o transtorno como algo passageiro, um estado e não uma situação permanente. Eles sofriam com a depressão e com os olhares preconceituosos, que estavam presentes em todos os lugares, de todas as pessoas. — A maioria pensa que é luxo, não entendem o sofrimento – explica Maisa, ao lembrar-se do modo como as pessoas agiam quando contava que a filha era vítima da doença. A jovem não reagiu ao diagnóstico, a doença a deixava apática e nada mais importava para ela. Independentemente dos acontecimentos, do presente e do futuro, era como se o corpo de Helena estivesse travado para

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qualquer reação. O transtorno desafiava a vontade de viver da vítima, e cada empecilho tornava-se um muro aparentemente impossível de ser derrubado. — Eu vivia diariamente com a sensação de uma arma apontada na minha cabeça. – explica Helena, sobre a sensação de ser depressiva. Ela se lembra da maior barreira que precisou derrubar, quando trabalhava em um banco e inúmeros problemas apareciam, cujas soluções não dependiam dela. A fase da insegurança tomou conta do cotidiano da funcionária, que não entendia se aquele problema era realmente tão grave, ou se, na realidade, era a cabeça da jovem que estava problematizando uma situação de fácil solução. A insegurança de Helena não envolvia apenas o trabalho, mas a vida pessoal. — Parece que eu sou a última pessoa da face da Terra, que todo mundo é melhor que eu, que se eu sumir ninguém vai sentir minha falta – desabafa Helena, que hoje, aos 38 anos, avalia a trajetória de desafios que enfrentou. Todo o medo, todo o sentimento de insignificância social, atrapalhou ainda mais o contato de Helena com o resto do mundo. Até mesmo em momentos necessários, como ao fazer terapia, ela encontrou dificuldade. De acordo com o Instituto de Psicologia Comportamental, de São Carlos (SP), a depressão não ocorre devido a um fator isolado, mas por conta de uma interação de fatores de ordem biológica, psicológica, histórica e ambiental. Especialistas definem que todo mundo, às vezes, fica triste e pensa que tudo dá errado ou não sente vontade de sair de casa ou de se levantar. Porém, na depressão, isso acontece com maior intensidade e maior frequência, chegando a comprometer a saúde, os relacionamentos e o trabalho dos indivíduos. — No começo é muito fácil, eu estou com um problema e, embora o terapeuta não me dê a solução, ele abre a minha mente e me orienta. Mas quando a situação imediata é resolvida e é necessário falar sobre mim, eu encontro dificuldades. Minhas terapias nunca duraram mais de seis meses, eu resolvia problemas cotidianos, mas nunca consegui me abrir tanto. Mesmo com a doença e com a dificuldade de persistir, Helena insistiu. A jovem entendia que dentro dela existia uma mulher forte.

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— Parece que tem na minha cabeça um anjo e um diabinho e que, a cada dia, eles tentam me convencer de como levar meu dia. O anjo vence e Helena entende que sobreviver não é a solução, ela tem que querer viver. É preciso encontrar uma forma de guiar a vida, porque a dor de não estar vivendo é maior. Iniciando e persistindo em um acompanhamento psiquiátrico, a jovem encontrou soluções para um problema aparentemente incurável. Além do tratamento emocional, Helena recorreu ao auxílio médico, já que, com a doença, problemas físicos apareceram na vida da vítima, como o maxilar travado devido à tensão descontada no ranger dos dentes, dores fortes no ouvido, incômodos ainda mais intensos no coração, e o travamento do corpo. Lutando com a própria dor, Helena atingiu inúmeras conquistas. Por um tempo, a jovem observou a vida passar pela janela, sem coragem de seguir em frente. Porém, ela mesma se chacoalhou e abriu os próprios olhos. Aos vinte e poucos anos, seguindo os passos do pai, que na época, havia se aposentado e iniciava um escritório de contabilidade, e, por ter intenção de garantir um futuro seguro, a garota inicia o curso de contabilidade. Porém, após dois anos de faculdade, José Francisco falece, e Helena se encontra mergulhando em um futuro então incerto. A jovem concluiu o curso, e, logo após, iniciou Administração de Empresas, devido à compatibilidade de matérias, concluindo a faculdade em apenas dois anos. Todos os dias de aula, Helena entrava no ônibus fretado e se locomovia até Taubaté (SP), a quase 49 quilometros de sua cidade natal, onde se situava a Universidade escolhida. A jovem não podia deixar de ouvir as conversas dos outros passageiros, estudantes de Direito, que pareciam se orgulhar do curso escolhido. Os gestos entusiasmados, os sorrisos sinceros e os olhos brilhando transmitiam a Helena uma sensação de que aquela era a profissão ideal. A estudante concluiu Administração, e, logo após, entrou com estudo de currículo para iniciar a carreira de advogada. Porém, a notícia sobre a mudança não era das melhores: a época de vestibular havia passado, sendo necessário aguardar um ano para a próxima prova. Helena decidiu esperar. Era o início da década de 1990, quan-

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do as crises de depressão ainda aconteciam, mas a vontade de subir os degraus da própria vida gritavam e começavam a ofuscar o transtorno por algumas horas. A vida profissional caminhava e o lado pessoal seguia os mesmos passos. A jovem conheceu um rapaz, educado e gentil, que a conquistou. Ambos estavam felizes, a união parecia proporcionar alguma alegria à jovem, mas esta, por sua vez, não pensava no futuro do namoro, apenas vivia os momentos que se apresentavam. Após um ano de relacionamento, Helena engravida e inicia uma fase de desespero. O receio sobre o futuro da criança que estava por nascer era intenso. A jovem não entendia se conseguiria cuidar de outra pessoa, já que havia se tornado tão árdua a batalha de cuidar de si mesma. Além do mais, o relacionamento com o pai da criança nunca havia se projetado como futuro, e a dúvida sobre se deveria casar ou não a perturbava. Helena tinha medo de não ser feliz no casamento e repassar a dor para o bebê, que ganharia vida e viveria em um lar de papel assinado com a razão, mas sem emoção. A moça tinha, além de tudo, receio de como seria a relação entre pai, mãe e a criança à distância. O companheiro morava em Campinas (SP) e sair de Guaratinguetá não era, definitivamente, um plano de Helena, que precisava do apoio familiar quando o bebê nascesse. Ela se perguntava: “Como será viver um lar apenas aos finais de semana?” A jovem confiava na mãe e, mediante as indecisões que tomavam forma, ela pediu o conselho de sua confidente. Maisa, juntamente com a filha, decidiu que a criança teria de nascer. Quanto ao casamento, ela a aconselhou de maneira surpreendente: — É melhor não haver casamento e a criança viver em um ambiente familiar, do que vocês dois juntos em um lar de hostilidade – disse a mãe. O companheiro, ao contrário, pressionava o casamento. Helena estava ansiosa com a chegada da criança, mas usar a aliança dourada na mão esquerda era algo que não fazia parte dos pensamentos dela. Como é habitual com vítimas da depressão, a jovem resolve empurrar a decisão para o futuro, alegando que se mudaria para a cidade do companheiro após o nascimento do bebê.

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Passados os habituais nove meses, Helena dá vida a uma menina, que salvaria a sua vida. Ao nascer a filha, nascia também a esperança da jovem. Pequenos dedinhos se puseram em cima das mãos dela. Ela era o presente mais delicado e com tanta força ao mesmo tempo. De repente, a vontade de viver ganhava rosto, nome e voz. Mariana era o nome dela, e aquelas cinco letrinhas soavam como a alegria que havia chegado. — Dizem que há males que vêm pra bem, eu concordo. A Mariana é quem move o meu dia a dia. Ela veio para me manter em pé. O companheiro pressionava o casamento e a ideia de viver com alguém não tomava forma como para quem sonha com véus e grinaldas. Helena, enfim, termina o relacionamento amoroso de maneira amigável. Mariana cresce morando apenas com a mãe e presenciando, constantemente, o sofrimento dela. A cama de Helena não era a proteção que a filha ansiava nas madrugadas. Para aquela mulher, o travesseiro tinha cheiro de coisa limpa, para a menina, eles eram sinônimos de lágrimas, que manchavam toda a fronha e não permitiam amparo. Era difícil para a mãe ser uma depressiva. Era impossível para a filha entender os sentimentos da mãe. Embora a filha a tenha colocado em pé novamente, Helena possui lacunas incompletas na própria vida e começa, enfim, a procurar preenchê-las. Buscando cumprir suas metas e alcançar seus sonhos, Helena inicia o curso de Direito quando a filha já conquistava alguma independência. Porém, Mariana percebe que o comportamento da mãe é inconstante e a menina cresce convivendo com isso. — Uma hora, minha mãe está sorrindo comigo. De repente, eu chego em casa e ela está na cama chorando – conta Mariana, se lembrando das atitudes da mãe. Certo dia, em uma tarde comum, Maisa estava em casa cumprindo seus afazeres, quando Mariana, já adolescente, entrou em lágrimas na residência da avó, situada em frente à casa da menina. A neta procurava algum consolo, algum amparo, e o colo de Maisa era como os travesseiros confortáveis que nunca encontrava na própria casa. Mariana se deitou no sofá, apoiou a cabeça confusa nos braços e pernas macios da

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avó e iniciou um choro alto, um choro de criança, um choro de desespero. Em meio a soluços, a garota desabafou: “Eu não aguento mais, eu quero morar aqui”. Ela pedia segurança, ela gritava por amparo. Maisa, que já havia entendido melhor a depressão, pode explicar, com a paciência de quem oferece carinho, que a situação de Helena era permanente, mesmo que triste, mesmo que desesperadora. — Eu fui explicando que a Ana é doente e que não tem culpa de ser doente – explica Maisa, se lembrando do momento que mudaria a concepção da neta sobre o transtorno. A avó, atendendo ao pedido, permitiu que Mariana morasse com ela, quando a neta, como quem cresce 10 anos em 10 minutos, entendeu a situação e disse que continuaria a morar com a mãe e, ainda, garantiu que cuidaria da mãe quando as crises chegassem e roubassem a felicidade de Helena. — No fundo, eu acredito que minha missão é dar suporte a minha mãe e fazer com que ela consiga seguir em frente, porque a raiva que eu sinto, não é por ela estar triste, mas sim da depressão que toma conta do corpo dela, que a impede de lutar, que a faz pensar de forma negativa – desabafa Mariana. Hoje, a jovem de 20 anos é quem cuida da mãe quando esta está em crise, quem oferece abraços de proteção e palavras de cuidado. Enfim, toda a família passa a entender o que Helena sente, contribuindo para o tratamento da vítima do transtorno. A mãe, por outro lado, busca proteger a filha como se esta ainda estivesse em seus cinco anos e precisasse de um beijo no joelho quando se machucasse correndo no “pega-pega”. É o mundo se mostrando doloroso para Helena e Helena tentando proteger para que Mariana não sinta o que ela sente, como se a depressão fosse uma opção, como se pudesse ser evitada com o cuidado de mãe. Independentemente da enorme proteção, a batalha da vítima do transtorno se deve ao fato de buscar construir um futuro ideal para a família. Após se formar em Direito, Helena abriu um escritório de advocacia. Embora a timidez excessiva dificulte a comunicação com os clientes, ela persiste em acordar cedo todos os dias e estabelecer o compromisso com quem atende em sua sala. Além do trabalho diário, a advoga-

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da estuda diariamente para concursos públicos, visando um cargo na promotoria. Além do trabalho, Helena busca suportes que a ajudam a combater a depressão. Há mais de 10 anos, um amor por cavalos acontece: um colega de classe lhe ofereceu um potro, e, em um momento de coragem, ela comprou o animal e descobriu ali uma paixão permanente. — Comprei o primeiro, e eu não entendia nada de raça de cavalo, era um de trote, duro pra passeio. Passado o tempo, comprei um para a Mariana, quando ainda era pequena, buscando criar o mesmo amor que eu sinto, além de comprar um mais confortável para passeio para mim. – explica Helena sobre os animais, aos quais oferece carinho verdadeiro. Hoje, ela mantém três cavalos em três diferentes hípicas na cidade de Guaratinguetá. Os animais se tornaram os melhores amigos de Helena, que passa finais de semana inteiros na companhia dos bichos e das amizades do local, donos de outros cavalos. Os finais de semana são semelhantes, pois a alegria que os animais proporcionam é inexplicável e insubstituível. Num sábado à tarde de outono, por volta das três horas, o sol era forte, o que deixava Helena feliz. A tranquilidade parecia dominar o coração, e a mulher que antes segurava firme ao volante, falava como quem tem receio de viver, carregava no olhar uma insegurança diante da vida, deixava então um sorriso sincero transparecer. Com a roupa impecável e um pingente de ferradura pendurado ao pescoço, Helena chega à Hípica, abre o porta-malas do carro e retira, com cuidado, o feno do animal, enquanto, ao mesmo tempo, explica que no local não há cuidado suficiente com as plantas que o cavalo consome, e que para ela parecia uma obrigação alimentar o seu amigo com o melhor e mais nutritivo alimento. Caminhando no corredor dos estábulos, onde diversos cavalos estão, Helena parece conhecer cada animal, entender o que sentem, como agem. “Será que cuidaram da pata dele?”, pensa alto, preocupada com o bicho de outra pessoa. Até que ela chega ao Zouk, com cuidado, abre a porta, coloca a sela no animal e conversa em voz baixa com o cavalo, chamando-o para passear. A mulher entende o animal e Zouk parece compreender os

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sentimentos da mulher. Existe sentimento verdadeiro nessa relação de amizade. Helena solta o cavalo e o deixa andar com liberdade. Ela bate o pé no chão e faz gestos para que o bicho entenda que pode correr, e este, na mesma hora, obedece percorrendo todo o local cercado em que está. Helena sai do local para buscar algo no carro, e Zouk prontamente para de correr e a segue até onde é possível. Ele fica olhando-a, observando os gestos da dona, e continua andando ao encontro dela em todo o tempo, até que a mulher volte ao cercado. As mãos de Helena são leves, o carinho é sereno, ela percorre, com os dedos, por entre os olhos do animal e sorri timidamente em direção ao amigo, deixando transparecer uma emoção sincera ao encará-lo. Ele a olha de volta e não desvia o olhar em nenhuma fração de segundo. Depois de trinta minutos, estava na hora de ir embora. Helena prende o animal com carinho e o leva até o estábulo. No caminho, ela conversa com Zouk, explicando que voltaria depois. Antes de chegar ao final do percurso, a dona do cavalo para, olha uma mangueira extensa, de um laranja chamativo, ligada a uma torneira, e retorna o olhar ao bicho. Direcionando o amigo ao espaço adequado – um quadrado que comportava apenas os dois – ela joga água em direção ao animal, passa com cuidado o sabão na pelagem do bicho, espalhando o cheiro de limpeza e retirando toda poeira. O banho tem início nas costas, indo em direção à cabeça e retornando à crina. Zouk está impaciente, mas como uma mãe se direciona ao filho, Helena explica com firmeza que é hora do banho. Após a limpeza, o cavalo volta ao estábulo e a mulher continua caminhando pela Hípica. Ela passa por todo o local, como se ali fosse sua casa, explicando sobre o espaço construído pelos amigos para confraternizações, a funcionalidade da máquina que corta o feno, até chegar ao hospital, onde ela entra e mostra a sala de cirurgia. — Aqui você pode olhar o seu animal sendo operado, é ótimo para os donos acompanharem o procedimento, mas eu não tenho essa coragem, tenho dó. Estas palavras e as atitudes de Helena entregam o carinho que ela possui por animais. Um gesto em particular confirma a tese. Ela chama

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um cachorro pelo nome e ele parece conhecê-la bem. — O dono daqui não cuida dele. Ela abre uma vasilha e deposita no piso todo o alimento que carregava. O cheiro de arroz, feijão e mais alguma mistura ali presente atraem o cão, que imediatamente consome toda a comida e olha para Helena como quem agradece um gesto de carinho. Já estava na hora de ir embora, mas não para casa. Ainda restava o finzinho da tarde do sábado, que seria preenchido com mais uma visita. Helena entra no carro e percorre um caminho extenso, após dirigir muitos quilômetros, ela finalmente chega a mais uma Hípica, onde outro cavalo é mantido. Ao entrar no local, ela abaixa o vidro do carro, para acenar para as pessoas presentes, que a recebem com o mesmo carinho, enquanto vai perguntando: “Não vai sair para cavalgar hoje?”, “Ei, melhorou a dor?”, dentre inúmeras perguntas que deixam claro que Helena conhece cada pessoa dali e sabe o que se passa com cada uma delas. Ela estaciona o carro e caminha em direção ao Cadilac. Ele está pastando, para, olha para a dona, e continua a pastar. Helena faz um carinho nele, mas não aconselha que ninguém mais o faça no momento. — Ele não gosta que mexam nele quando está comendo – diz a advogada, como quem sabe cada atitude que o animal tomará diante das mais diversas situações. Helena caminha pelo local e observa todos os animais ali presentes, até mesmo as galinhas ganham a atenção dela. “Ué, cadê o cavalo marrom?”, deixa o pensamento escapar em voz alta. O sábado termina, e, no domingo, ela visitaria mais um cavalo. — Parece que eles me entendem. Às vezes, eu não estou muito bem, mas eu saio para ver eles, o dia passa e eu não percebo. Às vezes, eu vou pra hípica chorando, mas eu vou. Ao invés de eu ficar sozinha em casa, só vou piorar. Daí eu vou lá e fico melhor – diz Helena, deixando transparecer que a relação entre ela e os animais proporciona uma alegria insubstituível. Ela afirma que a toda a família percebeu os benefícios proporcionados graças ao contato com os animais e Maisa confirma a melhora na vida da filha.

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Alguém que a entenda

— Há quem faça terapia com cavalo, para necessidades especiais, e eu acho que a depressão não deixa de ser uma necessidade especial, essa relação é uma troca – avalia Maisa. Além dos cavalos, todo o conjunto proporciona felicidade. Na Hípica, Helena mantém contato constante com a natureza, além de iniciar novas amizades, o que é extremamente benéfico para uma pessoa tímida como ela. A vítima da depressão se torna uma pessoa “normal” perto dos animais, ela transfere toda preocupação para os bichos, evitando passeios longos e gastando pequenas fortunas com cada cavalo. — É o meu remédio, não me importo de gastar esse dinheiro – repete a advogada, inúmeras vezes. Medicinal ou não, o tratamento com os cavalos é a solução imediata para os problemas de Helena. É sempre sol quando eles estão por perto, não há lágrimas quando ela pode oferecer cuidados a eles e esquecer um pouco de como é difícil sofrer de depressão. — Os animais de estimação ativam a emoção, positivamente, além de ser sempre uma companhia, diminuindo a solidão – explica a Doutora em Psicologia Maria Barreto. Aquela arma apontada para a cabeça se abaixa e deixa espaço para a mulher viver. Os olhos focados com quem conversa estão de volta outra vez, mesmo que por algumas horas. As mãos impacientes agora encontram lugar para se apoiar. Suas roupas simples, mas impecáveis, contornam o corpo jovial e saudável da mulher, vestindo a alma que não se acalma. Com os cavalos, ela pode mostrar a verdadeira Helena que se encontra escondida dentro da criança insegura e inquieta que o mundo pode ver. — Ela é uma pessoa agradável, alegre, divertida, a Ana verdadeira é assim. – explica sabiamente a mãe que conhece a filha doce que se esconde em uma vida amarga. Helena estava quase morta, mas voltou à vida graças ao apoio da família e a seus cavalos. Ela se renovou para enfrentar o medo que sentia de viver.

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“O desespero dá lugar pra paz quando entendemos que na vida, além da vida, nada é eterno. Nem a alegria, nem a dor.” Camila Lourenço

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odos os anos, a família de Elisandra Aparecida Capelete da Silva se reunia no Natal, e, no final de 1993, as salas da casa estavam com sofás repletos de convidados, as mesas repletas de comes e bebes. Entes queridos – que há muito tempo não se encontravam – podiam, enfim, desfrutar das conversas recheadas de novidades: as crianças cresceram, os jovens estavam se formando na faculdade, todos pareciam felizes e em paz. A ceia havia sido como todos ansiavam e, no dia seguinte, era o momento do almoço de final de ano. Foi quando o marido de uma tia da jovem Elisandra, de 15 anos, entrou no local onde a família se encontrava. O rapaz andava com dificuldade de se manter em pé e falava torcendo as palavras, os olhos e o nariz estavam vermelhos, as roupas mal colocadas sobre um corpo alcoolizado e drogado. Sem maiores justificativas, ele apontou uma arma e disparou dois tiros em direção a Jorge Luiz, pai de Elisandra. Entre os familiares presentes no local, alguns se mantinham como estátuas, com medo de reagir, outros gritavam em desespero, e os corajosos retiravam o assassino da sala. Mas a reação de maior desespero era de Elisandra e de Maria Celina Capelete da Silva, mãe da menina. Para elas, os dias que se seguiram foram torturas inexplicáveis e incomparáveis com qualquer dor que já tivessem sentido. Jorge faleceu no hospital, naquela mesma noite. O motivo do crime ninguém jamais soube, mas atribuiuse o ocorrido ao efeito das drogas consumidas pelo assassino, que foi julgado e cumpriu pena pelo que fez. Sem o chefe de família, o tempo ia passando para a viúva e a filha, mas ambas estavam sempre assustadas e receosas em viver sem o amparo do pai e marido que se fora. Barulhos de motores de motos na rua eram o suficiente para que elas se escondessem, achando que o assassino havia voltado para matá-las. — Cheguei a ligar para a polícia com medo de barulhos que nada tinham a ver com tiros. – conta Elisandra, com as mãos inquietas e trêmulas, sobre a situação. A indignação diante do fato, a dor da perda e as cenas dos tiros – que passavam lenta e claramente na cabeça delas – não as deixavam

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viver. Maria, que já enfrentava um quadro de depressão crônica, começou a estacionar a vida por completo. Elisandra se via no papel de ajudar a mãe, colocando a própria dor na gaveta para limpar a bagunça da vida de Maria. Com o sofrimento trancado, Elisandra buscou seguir a própria vida. A vida dela nunca mais seria a mesma, as cores não eram mais tão coloridas, estar em casa significava notar a ausência que ela buscava esquecer. “Mas o céu está em festa”, pensava ela, que precisava prosseguir. Antes do brutal assassinato, a menina possuía planos, sonhos a serem alcançados. Na época, ela já namorava um rapaz, com o qual buscou ser feliz. Após quatro anos de namoro, o casal oficializa o relacionamento e aluga uma “casinha” próxima à residência da mãe da garota. A vida parecia ser pintada novamente, como uma tela em branco que ganha cor, e Elisandra conseguia enxergar esperança. A saudade do pai não passaria, perder um ente querido é se perder, mas era passada a hora de se encontrar. Pensou em fugir. Desistir. Desaparecer. Mas não o fez. Continuando a própria vida, aos 21 anos, ela dá à luz o primeiro filho. A chegada do bebê alegrava toda a família. Até que, quando a criança completa dois anos de idade, o marido resolve se mudar para a casa da mãe, levando o filho e a esposa. Mãe de primeira viagem, com auxílio de alguém experiente, casa própria e confortável, uma vida estável e desejada por quem acabara de constituir família. Porém, essa não era a vida que Elisandra ansiava. Afastada da mãe em depressão, se sentindo sozinha e sem amparo, ela rezava por mudanças. O marido saía com os amigos, raramente estava em casa, e ela receava perder mais uma pessoa importante: o pai falecido e a família distante já causavam sofrimento excessivo. Após seis meses de sofrimento em uma casa estranha, em uma vida estranha que nada tinha a ver com os sonhos de menina quando brincava de boneca e formava um futuro perfeito, Elisandra entra em crise. Às 11 horas de uma noite em 1999, ela começou a correr pela casa como quem foge de um tiroteio, acendendo todas as luzes e gritando, pedindo para não morrer. Sogra, marido e filho, todos acordam e presenciam a mulher

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desesperada, que tentava se agarrar à quina da mesa querendo viver. Elisandra não encontrava mais o ar, as mãos se posicionavam no peito e contavam as batidas do coração, que parecia que não resistiria a mais um dia. Gotas de suor percorriam todo seu corpo, ela fechava os olhos na esperança de que a escuridão levasse embora aquele pavor. Com dificuldade, o marido e a sogra a ajudaram a dormir. No dia seguinte, despertando de um pesadelo, Elisandra acorda e não se lembra das atitudes daquela noite. Porém, recebe recomendações da família para que procurasse um especialista. Ela vai ao neurologista, que imediatamente explicou que a mulher sofria de Síndrome do Pânico. Ela não entendia a doença e tampouco aceitava que aquele transtorno causasse aquele ataque repentino e aterrorizante. O medo maior se tornou realidade: as crises voltaram a se repetir, tomando conta da vida daquela mulher. — Qualquer um via que ela não estava bem. – dizia a mãe, assustada com a situação em que a filha se encontrava. — Fiquei preocupada, com medo de que ela ficasse depressiva também. Segundo dados divulgados pelo DSM-IV, a prevalência estimada do transtorno é de 1,5% a 3,5%, sendo duas a três vezes mais frequente em mulheres. Conforme o tempo passava, as cenas voltavam a acontecer e os neurologistas não acertavam os medicamentos. O transtorno começou a afetar a vida da moça por completo, pois as crises aconteciam pelo menos uma vez por semana. Elisandra não conseguia ter forças para mais nada, era impossível sair de casa sozinha, até se alimentar tornou-se uma tarefa árdua, e ela chegou a emagrecer 20 quilos. — A Síndrome do Pânico ocorre por algum acontecimento, podendo ser de um tempo muito distante, mas a pessoa precisa ter predisposição para tal. – explica a Doutora em Psicologia Maria Barreto, sobre o motivo das crises de Elisandra. Para ajudar na compreensão da doença, um site brasileiro com o nome da síndrome divulga alguns dos sintomas como os que aco-

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metiam Elisandra: são tonturas extremas, visão embaçada, sensação de formigamento e falta de ar. Quando estas sensações acontecem e as pessoas não sabem a razão, acham que contraíram uma doença ou algum grave problema mental. A ameaça de perder completamente o controle parece bastante real e, naturalmente, assustadora. Meses se passaram até que um médico foi a salvação da moça, receitando um remédio, que, embora extremamente forte e de tarja preta, amenizava o sofrimento e as consequentes crises de Elisandra, ou as crises e o consequente sofrimento. Junto com os medicamentos, a vítima do transtorno iniciou um tratamento com terapeuta. A esperança era que, na terapia, Elisandra se entendesse melhor, podendo compreender as crises e encontrar forças para evitá-las. Os dias da jovem passaram a se restringir à preocupação de como seriam os próximos minutos. “Como eu desligo isso?”, era a pergunta que ela se fazia, ao refletir sobre a vida que estava levando. O filho estava sob os cuidados da mãe, o trabalho foi abandonado, afinal, era impossível prever os comportamentos de quem vivia constantemente apavorada. As pessoas ao redor olhavam para ela e buscavam entender como ela perdera a graça, onde foram parar os sorrisos diários daquela moça. Muitos pensavam, não diziam, mas pensavam: “Nossa, olha só, coitadinha”. Elisandra achava estar à beira da loucura, sem entender o que acontecia e sem se lembrar das crises. Era como se ela tivesse perdido o controle sobre seu corpo e sua alma, era como ela tivesse perdido as rédeas da própria vida. — Eu achava que aquilo nunca iria passar. Caí em um mundo onde parecia que só eu era doente. Eu não queria depender das pessoas eternamente. – conta a jovem, sobre o desespero que passou. A mistura de três medicamentos – calmante, antidepressivo e remédio tarja preta – aliada à busca pela solução da doença, reerguiam Elisandra ao menos algumas horas do dia. Se a crise durava uma hora, ainda restavam vinte e três, e ela precisava buscar forças nesses momentos. Elisandra começou a procurar informações sobre a Síndrome do

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Pânico, com pesquisas na internet, e em programas de televisão, o que se tornou a rotina da vítima. — Quando, por exemplo, um jornal anunciava que explicaria sobre o tema, eu marcava o horário para saber o que eles falariam. Queria saber se eu me enquadrava naquela doença. – explica. Os medicamentos e a terapia eram as únicas saídas para Elisandra, que evitava ingerir qualquer remédio adicional. As dores de cabeça teriam que passar sem interferência, a pressão baixa não deveria ser curada com soro hospitalar, porque aquilo “causaria a morte” da mulher. Era como se episódios ruins fossem acontecer a todo instante, como se um antibiótico fosse parar as batidas do coração de Elisandra e ela fosse morrer ali, naquele momento. O pavor de remédios que também acometeu a jovem começou junto com uma dor forte no braço. Certo dia, Elisandra se automedicou com um relaxante muscular e foi para a cama para descansar. Após exatos quinze minutos, ela se levantou apavorada: mais uma crise aconteceu. A partir de então, qualquer medicamento era evitado. Mesmo que buscasse se medicar, ela chorava com a caixa de comprimidos na mão, até jogá-los em um lixo e sem ingeri-los. Elisandra sentia vergonha da situação em que se encontrava. Havia parado de ministrar aulas para educação infantil, como fazia há algum tempo. Ela não podia mais cuidar do próprio filho, que a via jogada em uma cama chorando sem motivos diariamente. Como ele cresceria presenciando tais cenas? O marido não entendia a doença da esposa, era como se a força de vontade fosse suficiente para a cura da companheira. Ele saía de casa para jogar futebol com os amigos, enquanto a mulher estava em casa, deitada como quem é amarrada por uma camisa de força, sem vontade para se levantar. E ela se culpava por aquela situação. Preocupada com a forma como a vida era conduzida, Elisandra começou a buscar se reerguer. Seguindo os medicamentos corretamente, comparecendo às consultas com o neurologista a cada três meses, ela, enfim, começava a se mexer. Uma tia da jovem, que tanto se preocupava

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com a sobrinha, ofereceu um emprego no salão de beleza do qual era proprietária. Conhecendo a doença de Elisandra e sabendo que as crises poderiam vir, o trabalho se tornava um local seguro para que a vítima pudesse agir independentemente da doença. As crises ainda existiam, em frente aos clientes, em algumas ocasiões. Elisandra se apavorava e se retirava do local, mas a tia, sempre paciente, compreendia a situação e buscava mostrar que a sobrinha poderia levar uma vida “normal”. Passados quatro meses da primeira crise, a vítima da doença retornou à casa “de onde nunca deveria ter saído”. De uma residência confortável, ela volta para um local humilde, que, em meio piso de taco e as paredes com goteira, abrigava a segurança de um lar. Não havia nada mais reconfortante que estar ali, que viver ali. As gavetas abrigariam novamente o sofrimento de Elisandra, e a mãe morava logo ao lado. Ela estava segura. Era aniversário do menino da família, o filho merecia uma festa que marcaria a volta da mãe para a vida. Ela se levanta bem cedo, organiza a mesa com um bolo branco e chamativo para a criança, os brigadeiros eram posicionados simetricamente, os personagens da Disney enfeitavam o local. As crianças da festa ganhavam chapéus enfeitados, como uma típica festa de aniversário, e à frente da mesa estava escrito em letras azuis e garrafais o nome de seu filho “Guilherme”. Era por ele que Elisandra iria se reerguer. A vida voltava ao controle da jovem, mas a Síndrome do Pânico não é algo que aparece em um dia e descansa em outros. As crises não marcam hora para acontecer. Então, no meio das madrugadas, ainda era comum ouvir os gritos de socorro ecoando pela casa, em situações difíceis, as crises voltavam a acontecer. O marido continuava a evitar o assunto, e mais, evitava oferecer segurança à companheira. A promessa de ajuda “na saúde e na doença” não existia mais. O único apoio que ela tinha era da família e da melhor amiga, que estava sempre pronta para ajudar. — Ele começou a cansar, sempre pensava que era coisa da minha

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cabeça. – lamenta Elisandra, balançando a cabeça em sinal de desaprovação. — No casamento, quem mais está presente é o marido, mas ele não se interessava mais. O tempo passou, dez anos se foram, e o companheiro persistia em abandonar a mulher com o mundo dela envolvido pelo transtorno. Era vez de Elisandra abrir mão dele, e pedir o divórcio parecia a solução. Ela não precisava de mais uma dor. Após o divórcio, a jovem começa a finalmente se sentir leve, e, ao contrário do que muitos pensavam, a separação a ajudava a se reerguer. Após continuar a superar a etapa dolorida pela qual havia passado, Elisandra ganhou sete quilos e adquiriu mais motivação para viver. O corpo novo abrigava também uma nova alma. Com disposição para a vida, ela conhece o homem que mudaria seu mundo. Ele era farmacêutico e compreensivo, o “pacote” perfeito para a vítima de Síndrome do Pânico. Elisandra contou sobre a doença que a perseguia, e ele, prontamente, explicou que os remédios deveriam ser mantidos para a saúde que ela buscava. Então, ela podia finalmente desfrutar da segurança de um companheiro que a entendia e apoiava. O homem parecia ser a fonte de toda a vontade de viver de Elisandra, que se acalmava apenas com ligações do novo marido. As crises passaram a acontecer a cada quinze dias, se espaçando cada vez mais. — Eu tenho a absoluta certeza: foi destino ele entrar na minha vida. – conta a mulher, sobre o homem com quem ela construiu uma nova fase. Com o ex-marido, ela se mantinha dentro da igreja, rezando e buscando a solução para os problemas que apareciam diariamente. Era como se o templo sagrado fosse a fuga da vida e do mundo que ela enfrentava. Com o novo companheiro, Elisandra passa a entender Deus como importante, mas não mais o responsável pela salvação. Era ela quem deveria lutar. Com o tempo, apenas o antidepressivo e o calmante bastavam para controlar o transtorno. Há um ano, Elisandra não sabe o que é ter uma crise de pânico. O filho finalmente voltou aos cuidados da mãe e

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cresceu um menino saudável e compreensivo. Hoje, com treze anos, ele se tornou sensível ao mundo. — Eu tinha medo que a minha situação afetasse a vida dele, mas ele é um adolescente espetacular, muito carinhoso e extremamente ligado a mim. – diz Elisandra, que se orgulha do menino que cresceu e se tornou a peça essencial para a vida saudável que ela busca. As idas ao neurologista passaram a ser necessárias apenas a cada seis meses, até não ter na agenda consultas com médicos para a doença. Mesmo assim, os medicamentos ainda fazem parte da rotina de Elisandra. — Tenho medo de parar e tudo voltar, preciso controlar a minha ansiedade. – explica ela, sobre os remédios que mantém. Após mais de dez anos, Elisandra se orgulha em manter uma vida “normal”. De dependente, ela passou a traçar o próprio futuro. Iniciando um curso de Pedagogia, ela busca se tornar professora efetiva, pois só possui o magistério. Com a situação financeira complicada, ela ainda encontra forças para controlar a ansiedade e buscar resolver cada problema racionalmente. Ficar presa no trânsito por conta de um semáforo desligado ou dirigir na Dutra são algumas das situações que ainda a apavoram, mas Elisandra busca manter a calma. Se for preciso, ela fala alto dentro do carro, grita consigo mesma, mas, no fim, ela se convence: “Eu sou capaz!” — Eu procuro dizer que não tenho mais Síndrome do Pânico, porque não quero ter. Não estou curada, mas consigo lidar com a minha própria vida! A descrição feita pelo psiquiatra Thales Pereira, define a “ansiedade paroxística episódica” como uma doença crônica, persistente na segunda e terceira décadas da vida. Cada sintoma, cada causa e consequência definem um transtorno atualmente conhecido por grande parte da população, porém, apenas quem a vive poderia explicar a dor de ser uma vítima do pânico. — O transtorno de pânico é caracterizado pela presença de ataques súbitos de ansiedade recorrentes, acompanhados de sintomas físicos, afetivos e comportamentais. Esses ataques são seguidos de preocupações persistentes acerca de ter um novo ataque e modificações

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do comportamento relacionadas a eles – argumenta o médico. Apesar de persistente em determinada faixa etária e de acometer mais aquela pessoa do que essa, a síndrome não escolhe raça, situação financeira e nem tampouco profissão. Até mesmo quem se dedica a cuidar de pacientes com o transtorno pode ser vítima da síndrome e ter que lidar com ela enfrentando o mesmo sofrimento. _______________________ O divã da paciente Arranhava as pernas, procurando sentir seu corpo. Gritava alto, procurando sentir sua alma. Ela era apenas uma adolescente e não queria morrer, mas, em sua cabeça, tinha a sensação de que a morte se aproximava. Tudo isso acontecia num dia comum, quando ela estava em casa. Se alguém lhe perguntasse: “Tudo bem?”; ela responderia: “Com certeza”. Lá fora, sob o céu azul, as pessoas andavam apressadas, enquanto, dentro do coração daquela jovem, morava um turbilhão de sentimentos. Ana Paula da Silva Rocha Brito, tem um sobrenome grande para uma menina que estava acostumada a vivenciar coisas grandes. Na casa em que morava com os pais, em Pindamonhangaba, a mãe tinha constantes crises de pânico, que assustavam a filha. A mãe sofria sem buscar ajuda, a filha presenciava as cenas sem entender o que de fato acontecia. Embora hoje seja psicóloga por formação, Ana Paula ainda encara a doença que a transformou desde a adolescência. Até se tornar ela mesma uma vítima do transtorno que acometia a mãe, ela estava acostumada a ser uma menina ansiosa, mas aquilo era completamente diferente. Nas crises decorrentes da Síndrome do Pânico, entre palpitações aceleradas, a garota buscava o ar, como quem implora viver, enquanto tudo ao seu redor girava e girava. A mãe já sabia do que se tratava. Apesar de nunca ter sido diagnosticada, ela entendia o transtorno, e explicava à filha que esta sofria da mesma doença com a qual ela passara anos lutando.

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Durante o ensino médio, 10 minutos era o tempo que Ana Paula levava de sua casa até o colégio em que estudava. Esses 600 segundos eram suficientes para que a menina tivesse uma crise e toda cena se repetisse. Passava um, passavam dois, três, quatro anos e ela continuava a depender de companhia para se dirigir à escola. “Será que é hoje que vai acontecer uma tragédia?”, “Será que é hoje que eu vou morrer?”, eram as perguntas, que mais soavam como afirmações, que impossibilitavam Ana Paula de ter vontade de sair, de ter vontade de aproveitar o auge da adolescência. — Eu pensava em morte todos os dias – relembra a psicóloga sobre os efeitos do transtorno do qual sofre. — Junto com esses pensamentos, morreu em mim a vontade de sair, de aproveitar. – completa ela. A garota se tornou supersticiosa. Ao ver uma coruja, Ana Paula fazia o sinal da cruz; se ela não o fizesse, alguém iria morrer. Ao menos era nisso em que acreditava. As crenças foram herança familiar, mas, com a Síndrome do Pânico, elas se tornaram exageradas e passaram a prejudicar o dia a dia da menina. Os filmes também eram evitados. Ana Paula e o namorado combinavam o que fariam naquele final de semana. “Podíamos ver Cidade dos Anjos, está passando no cinema...”, sugeriu o garoto. “Tem cena de morte, violência?”, respondeu a garota, apavorada com a ideia de presenciar algum terror. Uma descrição detalhada, a qual a irmã havia narrado, foi o que o menino precisou fazer para convencer a namorada que aquele território era seguro. — Lembro-me exatamente: só de pensar que eu poderia passar mal, eu ficava assustada. - relembra. Para que Ana Paula conseguisse viajar a qualquer lugar, era necessário que a jovem fosse amparada por algo para comer e beber, o que evitava possíveis ataques de pânico. Quando as crises aconteciam, a pressão arterial da garota caía, as tonturas impossibilitavam as ações da vítima do transtorno. Nesses momentos, a comida salgada e as garrafinhas de água eram as companheiras essenciais de viagem.

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Ela sabia como agir, porque pesquisava incansavelmente sobre o assunto. Artigos on-line ou em livros, programas de televisão e tudo mais que pudesse explicar sobre a Síndrome do Pânico eram necessários para prender a atenção da garota. Independente do meio em que buscasse informação, entender o transtorno que ela enfrentava a ajudava a se entender. Embora a mãe sofresse da mesma doença, os pais consideravam desnecessária a ida a qualquer especialista. A família tentava ajudar a garota da maneira como considerava que seria a melhor saída, sem deixar que ela se entregasse em demasia à doença. Estas atitudes faziam Ana Paula superar desafios e entender que era capaz de enfrentar as barreiras impostas pelo transtorno. Por outro lado, ela percebia que precisava de ajuda psicológica e médica. Como funciona a cabeça do ser humano? Como um problema mental afeta a vida daquela forma? Tais indagações levaram a menina, que agora já havia se tornado uma mulher, com 19 anos, a buscar ser a própria ajuda de que tanto ansiava. Talvez a terapia fosse a solução para aquela vida que parecia não ter mais solução. Após se formar no ensino médio e passar pelo medo do desconhecido, Ana Paula iniciou uma faculdade: o curso de Psicologia. O entendimento sobre si e sobre o mundo de quem enfrenta transtornos mentais era a meta da estudante. — Eu fui fazer Psicologia porque eu queria entender as pessoas, mas, principalmente, porque eu queria me entender, porque eu achava que o psicólogo era mágico. – explica a profissional. Conforme as aulas progrediam, Ana Paula se apaixonava pelo curso que havia escolhido. Ser a terapeuta dela mesma não era mais a única opção, ela queria ajudar outras pessoas que também sentiam felicidades e dores aparentemente inexplicáveis. As pilhas de livros sobre transtornos mentais aumentavam na casa da jovem, crescendo também a vontade da aluna de contribuir com pacientes que sofriam de Síndrome do Pânico. Ana Paula havia se tornado uma pessoa mais sensível para a vida.

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Compreendendo que ser terapeuta não era a solução para os próprios problemas, a vítima da doença se entendia cada vez mais. Da mesma forma como um médico está sujeito a se adoentar, psicólogos possuem sentimentos como quaisquer pessoas. Psicologia não era a mágica, mas a profissão com a qual Ana Paula nunca havia sonhado, e que se tornara seu sonho e sua meta. Para se entender, a estudante buscou ajuda de uma terapeuta já graduada. Os pais não entendiam a necessidade da filha de procurar ajuda profissional, mas a garota compreendia as consultas como a luz que ela havia desistido de tentar enxergar no final do túnel. Enquanto cursava a faculdade, Ana Paula ainda não trabalhava, e era necessário algum dinheiro para o transporte, para comida e as cópias dos documentos do curso. A estudante juntava cada moedinha que sobrava na semana e se dirigia a um consultório. Lá, encontrava a terapeuta, que, por apenas R$ 10, dedicava o tempo a auxiliar a paciente a compreender o transtorno que transformava sua vida e a deixava coberta de dúvidas. — Ela cobrava um preço super em conta para as sessões, e eram estas que me ajudavam. – conta Ana Paula, sobre a ajuda da psicóloga, quando teve sua primeira oportunidade para encontrar alguma solução para a Síndrome. A jovem caminhava com destino a encontrar o entendimento do maior problema de sua vida, mas as crises eram persistentes e ainda bloqueavam a vida da garota. Além do pesadelo no cotidiano, as madrugadas também eram momentos que a assombravam. Terror noturno é o que aterrorizava as noites de Ana Paula. Ela acordava assustada durante a noite, assustando também quem com ela dormia. O pânico noturno acontecia quando a garota se mantinha ansiosa em relação a algum momento de sua vida. As pernas bambas, o coração disparado e a boca seca completamente entregavam as crises que chegavam. — O distúrbio do sono é caracterizado por gritos e demonstração de desespero, que são características de alguns pacientes que sofram da Síndrome do Pânico – explica Doutora em Psicologia Maria Barreto.

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Para este e todos os outros problemas consequentes do transtorno, Ana Paula, antes, buscava lidar como algo que dependesse só dela a solução, como havia feito sua mãe. Antes, ela queria vencer a doença com as próprias mãos e pernas, como se aquela dor pudesse ser combatida com força de vontade, como se não fosse necessária ajuda para tratar um problema que parecia eterno. Após se formar em Psicologia e buscar terapia, ela entendeu que a ajuda externa era essencial. Mesmo assim, lidar com as crises diurnas e noturnas era ainda uma meta que ela não havia alcançado. Em 2006, um psiquiatra apresentou uma saída. O diagnóstico estava prescrito e afirmado: Ana Paula sofria da mesma doença da mãe e precisava de medicação para controlar o mal que a atingia há mais de 10 anos. O médico explicou à paciente que ela sofria de um transtorno de ansiedade generalizada, que gera a Síndrome do Pânico. Todo esse conjunto pode agravar crises depressivas, como já haviam acontecido com a estudante. A garota que parece não se deixar abater por nada, que esboçava um sorriso no rosto como quem ri das adversidades da vida, que cumprimenta as pessoas com a simpatia e educação que nela sempre moravam, enfrentou, um dia, quadros depressivos. Para especialistas responsáveis pelo site sindromedopanico.net, voltado para o esclarecimento sobre a doença, a ansiedade é uma das emoções humanas mais comuns durante a vida. No entanto, a maioria das pessoas que nunca teve um ataque de pânico, ou extrema ansiedade, não consegue compreender a natureza assustadora desta experiência. — É difícil eu me abater, mas já aconteceu de eu ficar sem perspectiva de futuro, sem ânimo de vontade de buscar ser feliz. – relembra a psicóloga sobre fase triste que a derrubou temporariamente. Mas Ana Paula entendia que precisava ser feliz apesar de que, na vida, as fases são passageiras, não tomam forma duradoura. Assim como devem ser, as tristezas passam e dão lugar à esperança que a garota precisava para superar o transtorno. Ela passa, então, a não mais ansiar a cura, mas a obter o tratamento para uma vida normal.

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As causas da Síndrome eram tratadas na terapia, e, para trabalhar os sintomas, o psiquiatra receitava os medicamentos necessários para evitar as constantes crises desesperadoras. É ele, o médico, quem entende a medicação mais eficaz, a dosagem desta, e suas mudanças na vida da cada paciente, com cada doença diferente. — Agora eu vejo os resultados dos remédios e penso: por que não procurei ajuda antes? – lembra-se da época em que se tratava por conta própria. A garota passa a discernir as causas que levam ao transtorno. Se antes fome era confundida com pressão baixa, a psicóloga passa a buscar se acalmar diante de momentos que geram ansiedade. As crises não são constantes, mas o medo de que elas aconteçam são as principais peças que faltam no quebra-cabeça da doença que ela vivencia. — O medo de sofrer a crise é constante e paralisa – fala como quem se sente amedrontada — É quando tudo fica irracional, mesmo que eu saiba que sou saudável. Com o tratamento e a persistência em melhorar e seguir uma vida normal, Ana Paula encontrou uma pessoa para racionalizar as crises que, para a mulher, pareciam acontecer apenas no coração. Ela queria encontrar alguém que se sensibilizasse diante do transtorno e acreditasse no poder de superá-lo. Foi quando conheceu o futuro marido. Foi ele que, após um ano e três meses de namoro, presenciou crises da companheira e, mesmo assim, seguiu em frente ao lado dela. Em 2011, o casamento aconteceu e a psicóloga pode finalmente encontrar a segurança que tanto buscava. Agora, ela tem alguém para dormir junto e a acalmar nas madrugadas. O terror noturno ainda acontece, mas ter alguém para apoiar esses momentos é o que reergue a vítima da síndrome. Certa vez, Ana Paula dormia com o marido, em uma noite aparentemente tranquila. Ambos dividiam o mesmo cobertor, na mesma cama, quando ela acordou dizendo que passava mal e gritava por socorro. O companheiro, na tentativa de acalmá-la, se dirigiu à cozinha

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para pegar um pouco de água, e o líquido no recipiente tremia e do copo saíam gotas de água que molhavam o caminho até o quarto. Ana Paula, ao observar, mesmo que em meio à crise, o comportamento do marido, entendeu que aquele desespero atingia a todos que estavam próximos a ela. É quando ela considerou injusto acordar alguém naquele susto, disparando o coração dele também. As noites posteriores se seguiram, até que em uma das madrugadas, quando a vítima do transtorno estava prestes a ter mais um terror, ela começou a dizer: “Você precisa se acalmar. Você pode se acalmar” para o próprio corpo, para o próprio coração. Fazendo exercícios de respiração, ingerindo um leite morno, receita de mãe para qualquer criança dormir bem, ela consegue reverter a situação e acalmar a si e ao marido que estava ao lado dela. Superar aquela noite, superar aquela crise, significava vencer mais uma etapa. Uma heroína era como ela se sentia, uma heroína da própria vida. Não são todas as vezes que a receita da mãe e os ensinamentos de respiração, que aprendeu em algumas aulas de Yoga resolvem, mas entender que ela pode, são passos incontáveis rumo à vitória. A ansiedade ainda mora no coração de Ana Paula, em determinadas épocas, ela aparece junto com as crises, muitas vezes diárias. Mas saber que um dia ela se controlou, que os calmantes estão guardados na bolsa logo ali pendurada, que o marido não sairá de perto e que a família a acolherá, contribui para que ela tenha força para lutar e buscar caminhos que lhe façam bem. — Com medicação, a minha vida é completamente normal. É só eu tomar comprimidinhos depois do almoço. – conta orgulhosa da própria situação. Mesmo assim, Ana Paula busca controlar o uso de medicamentos. Hoje, ela ingere a dosagem máxima, mas possui como meta a diminuição, já que ela sonha em engravidar e os remédios podem prejudicar a gestação. Além dos desafios da vida pessoal, o lado profissional também é abalado. A rotina das 8 às 18 horas sufocam Ana Paula, que já passou por

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diversos empregos e deles saiu por não conseguir enfrentar o cotidiano de trabalho, que gera ansiedade e leva a crises. Hoje, com o consultório estabelecido desde 2005, ela possui a flexibilidade quanto aos horários, porém, nos dias em que não trabalha, o dinheiro não marca saldo positivo na conta. — Meu maior desafio é eu conseguir me estabilizar profissionalmente além da Síndrome. Em seu local de trabalho atual, ela marca e desmarca as consultas conforme convém. No início, Ana Paula tinha receio em atender os pacientes. Com medo das crises inesperadas, das reações das vítimas que ela recebia na situação de uma vítima também. Com medo de que a terapeuta competente desse lugar à mulher fragilizada e vitimizada. Depois de um tempo, Ana Paula começa a entender que da mesma forma que crises poderiam acontecer, os pacientes estão sujeitos às dores que os impeçam de prolongar as consultas. É um ser humano que está sendo atendido, mas é também um ser humano que está atendendo. Em meio a sessões, a psicóloga já sofreu crises e precisou adiar com os pacientes. Ao perceber que o divã rodava e o chão se perdia, assim como os sentidos do corpo, Ana Paula buscava explicar a situação e adiar as sessões. Neste dia, nenhum valor era cobrado e nenhuma mágoa acontecia. — Percebi que era muito mais honesto eu explicar do que eu continuar e focar em mim apenas. – confessa Ana Paula, hoje com um olhar diferente de quando era ainda uma recém-formada. Além do mais, a empatia é uma das características do profissional de Psicologia e passar por uma situação de transtorno mental, permite uma identificação instantânea de ambas as partes. Entender o que o outro sente é um conforto que não se aprende em livros. Após se entender e buscar melhorias em todos os âmbitos da vida, Ana Paula encontrou no artesanato o refúgio, onde ela deixa os pensamentos tormentosos de lado e exerce apenas uma atividade manual que ela tanto ama. O contato com a natureza é também um conforto para a vítima da síndrome. Em um curso básico de mergulho, que prati-

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Anos perdidos

cou na lua de mel no mar do Caribe, com a água limpa e a temperatura ideal, Ana Paula parou, admirou a paisagem que a ela se apresentava, notou os cinco sentidos sendo intensificados em meio a tanta simplicidade e grandeza simultâneas e percebeu que deseja aquilo por toda a vida. Em cada saída, eram possíveis dois mergulhos. No primeiro momento, a ansiedade tomou conta e impediu que a mergulhadora desfrutasse das sensações que a ela eram proporcionadas. Mas bastou mais uma vez, que é quando o relaxamento toma conta e o aproveitamento é intenso e inesquecível. — Pensar em uma pessoa que vivencia a síndrome e consegue mergulhar – ela respira e sorri – não dá nem para imaginar que eu consigo. O casal continuou praticando mergulho em outras ocasiões. Embaixo da água, já aconteceram crises, em uma delas, a mulher tentou subir repentinamente. O companheiro a segurou pela perna, a socorrendo e evitando o pior, já que eles se encontravam a 33 metros de profundidade. — Quando a síndrome está intensificada, eu não mergulho, porque sei que não ficarei tranquila. – complementa. Se crises acontecem, na superfície ou nas profundidades do mar, Ana Paula liga para a mãe logo após, referência de quem, hoje, completa 49 anos com o transtorno praticamente controlado. Ela aprendeu a viver com a própria doença. Ana Paula anseia pela chegada desse dia para ela, mas admite que nada é mais como há quase quinze anos. — Estou muito diferente de quando eu tinha 14 anos, quando tudo começou. Na vida de Ana Paula, existe a expressão “Era uma vez...”, que não se refere a um conto de fadas, mas há pessoas felizes com a vida que construíram apesar de todas as dificuldades.

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“Que as palavras que eu falo Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor Apenas respeitadas Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos Porque metade de mim é o que ouço Mas a outra metade é o que calo. Que essa minha vontade de ir embora Se transforme na calma e na paz que eu mereço Que essa tensão que me corrói por dentro Seja um dia recompensada Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão. Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável. E que a minha loucura seja perdoada Porque metade de mim é amor E a outra metade também.” Oswaldo Montenegro

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aura Werbe tinha tudo o que uma pessoa precisaria para ser feliz: oportunidade de estudar, relacionamento amoroso, vida estável, sem preocupações que pudessem afetar a jovem de forma brusca. Mesmo assim, a angústia repentina aconteceu. Um sentimento de vazio, uma tristeza profunda, uma sensação de não mais pertencer ao mundo. De imediato, a família toda se preocupou com o que acontecia e procurou ajuda para a jovem. Psicólogos, psiquiatras e até benzedeiras foram chamadas para trazer de volta a felicidade para Laura. O pai pensava que aquela era uma consequência de brigas de namorados, típicas da juventude. A filha nem sequer entendia o próprio estado. Após um mês, sem que quaisquer destes tratamentos precisassem ser levados adiante, a tristeza passou e a estudante voltou à vida normal. Dois anos se passaram, e a vontade de viver intensamente estava presente na vida de Laura. Tanta motivação para buscar o que lhe proporcionava alegria fazia com que a garota encontrasse seus próprios meios para se manter emocionalmente e financeiramente. Ela se dividia entre fazer faculdade, ministrar aulas de vôlei e cozinhar. As receitas de brigadeiro da jovem eram famosas entre os que as experimentavam e as lições esportivas de Laura eram produtivas para quem as acompanhasse. Em uma determinada semana, na qual Laura não precisaria exercer a profissão de professora, por causa de um campeonato esportivo que acontecia em Arapongas, a cidade onde morava no Paraná, ela decidiu cozinhar ainda mais que o usual e intensificar as vendas. No horário do lanche dos atletas, a jovem vendia os brigadeiros para os esportistas e para a plateia que os assistia. Na época, a cidade estava repleta de pessoas que viajavam de todos os lugares para presenciar o campeonato que acontecia, o que representava uma coisa: centenas de doces feitos por Laura seriam vendidos a centenas de barrigas famintas e bocas sedentas. A vendedora improvisava para agradar os clientes, e as receitas com morangos e uvas faziam a diferença no chocolate granulado. No quarto dia de campeonato, Laura já se sentia “dona do mundo”. Brigadeiros saíam, dinheiro entrava, e ela achava que poderia, então, conquistar tudo o que

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quisesse. A euforia tomou conta da jovem, as falas eram aceleradas, até a televisão se tornou companhia de conversas. Os assuntos eram mudados com uma frequência absurda, vontade de consumir, consumir bens, consumir a vida e tudo que nela se apresentava, inclusive o sexo, já que a libido da jovem passou a ser intensa. Laura estava eufórica. A hiperatividade tornou-se constante e a necessidade de dormir começou a não mais existir. A realidade repentinamente alterada, fez com que a jovem se visse voando em uma dimensão da qual não parecia possível resgatá-la. — Euforia consiste em um humor persistentemente elevado, expansivo ou irritável. O período de humor anormal deve ser acompanhado por pelo menos três sintomas adicionais de uma lista que inclui autoestima inflada ou grandiosidade, necessidade de sono diminuída, compulsão para falar demais, fuga de ideias, distraibilidade, maior envolvimento em atividades dirigidas a objetivos ou agitação psicomotora, e envolvimento excessivo em atividades prazerosas com um alto potencial para consequências dolorosas – explica a Doutora em Psicologia, Maria Barreto. Laura praticamente se tornou uma pessoa desconhecida para os amigos e familiares mais próximos. Uma moça amável e obediente havia se transformado em uma criança birrenta, que não conseguia ouvir “não”. Uma jovem madura se tornou uma criança desobediente, que vivia em mundo imaginário onde ela podia tudo, ela sabia de tudo. Logo depois, uma tristeza a tomou. Chegou rápido, passou rápido. A família não entendia o que acontecia, o namorado pensava que a companheira havia entrado em um estado de loucura. A “louca” retornou à casa do pai, que morava em Limeira (SP) e que dela cuidou até que a moça voltasse à normalidade. Ao voltar ao estado que as pessoas ao seu redor ansiavam em rever, ela voltou também à vida que a esperava em Arapongas. Ao trabalho como professora, aos doces vendidos para adquirir uma situação financeira melhor e ao companheiro, que permaneceu no Paraná. O pai era quem mais havia oferecido suporte à filha, era quem tinha acreditado na força da jovem de superar aquele problema. Ele, por outro

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lado, tinha a própria situação para administrar: demitido do emprego que possuía como professor, ele se viu obrigado a se mudar de Limeira a Taubaté (SP), onde um dos quatro filhos residia e poderia oferecer suporte à família. Simultaneamente ao novo negócio de jogos de bilhar, o pai buscava solucionar o problema da filha e vários médicos foram procurados. Limeira, Rio Claro, Campinas eram algumas das cidades em que a família entrava em consultórios e contava a situação aos especialistas, pedindo socorro e a cura. A princípio, os psiquiatras pareciam não entender o problema e como solucioná-lo, até que um dos médicos detalha um diagnóstico: Transtorno Bipolar, era o nome designado às euforias e às tristezas simultâneas que aquela paciente sofria. Segundo a Associação Brasileira de Transtorno Bipolar (ABTB), o disturbio é caracterizado por alterações de humor que se manifestam como episódios depressivos, alternando-se com episódios de euforia (também denominados de mania), em diversos graus de intensidade. Remédios foram receitados para melhoria da jovem e ela os ingeria diariamente. Para superar as loucuras e lágrimas, ela tomava cada comprimido ali prescrito. Quando, porém, as euforias e depressões passavam, os medicamentos eram abandonados. O tempo passou, o casamento com o namorado aconteceu, dois filhos nasceram e as “loucuras” permaneceram. Bastava que o uso dos remédios fosse interrompido, que as crises retornavam. Ainda de acordo com a ABTB, o tratamento para o transtorno, em linhas gerais, inclui necessariamente a prescrição de um ou mais estabilizadores do humor em associação, como carbonato de lítio, ácido valproico/valproato de sódio/divalproato de sódio, lamotrigina, carbamazepina, oxcarbazepina. A associação de antidepressivos de diferentes classes e de antipsicóticos – em especial os de segunda geração, como risperidona, olanzapina, quetiapina, ziprasidona, aripiprazol – pode ser necessária para o controle de episódios de depressão e de mania. — Eu não entendia o que acontecia, meu pai estava confuso, meu marido assustado. Justo eu, que nunca tomei um analgésico para dor de cabeça. – lamenta Laura, pelas vezes que precisou tomar e pelas decisões de parar.

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Era quando o pai se dirigia a Arapongas, levando a filha para Taubaté. Nessas crises, a jovem era guiada a uma casa alta, com um quarto com janela alta e objetos dispostos de forma nada usual: a cama de casal se mantinha encostada na porta, onde a moça passava os dias e noites de euforia. Vestidos entravam em seu corpo, saíam e eram despejados na cama. Bagunças eram feitas no aposento e na vida da mulher e de toda a família. Durante toda a noite, a cena se repetia e a professora parecia não se cansar. O pai torcia para o dia despertar, para o sol aparecer na janela daquele quarto alto, da casa alta. Era quando ele chamava a filha para passear. Em meio a voltas e mais voltas, Laura conversava com pessoas que dizia conhecer, abordava casais na rua e contava situações sem sentido com palavras sem sentido. Até que ela se cansava, chegava em casa, tomava um banho, fechava os olhos e embalava um sonho profundo. Era a hora que o pai podia sair para trabalhar. Após os curtos períodos de sonolência, Laura despertava do sono como quem desperta de um pesadelo. Passados dias, por vezes, ela acordava da euforia e a tristeza tomava forças. Outro momento ela abria os olhos sem se lembrar das recentes vezes em que estivera com os olhos abertos, facilmente esquecia os momentos que criara e fizera a família passar. Era quando ela, aparentemente, se recuperava e retornava a Arapongas. O marido a recepcionava sem entender o que havia acontecido. Laura chegava sem conseguir dar explicações e, assim, o tempo prosseguia. A ABTB afirma que o Transtorno Bipolar acarreta incapacitação e grave sofrimento para os portadores e suas famílias. Dados da Organização Mundial de Saúde evidenciaram que, ainda na década de 1990, o distúrbio foi a sexta maior causa de incapacitação no mundo. Estimativas indicam que um portador que desenvolve os sintomas da doença aos 20 anos de idade, por exemplo, pode perder 9 anos de vida e 14 anos de produtividade profissional, se o transtorno não for tratado adequadamente. Enquanto a filha vivia com o marido e sogra em meio a idas e vindas a Taubaté, o pai prosseguia administrando a própria vida. Em uma das semanas que seguiam, ele passava uns tempos em Santa Catarina com

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um dos filhos que lá estava. O irmão de Laura avisou ao pai que retornaria a Taubaté, mas que este poderia permanecer na cidade. Porém, o “sexto sentido” avisava que era hora de ele entrar no carro e dirigi-lo de volta ao município em que residia. Chegando lá, antes de colocar a chave no cadeado do portão e entrar na casa que os aguardava, a vizinha corre até eles comunica: alguém do Paraná os procurava. O pai, imediatamente, destranca a fechadura e corre em direção à sala da residência. Ele passa a mão no telefone, liga para o número em que Laura atenderia. Esse alguém era a sogra da mulher, que foi direta: “Sua filha não está bem, ela está causando problemas”. Sem aguardar que o dia completasse 24 horas, o homem viajou até Arapongas, onde recebeu a notícia: Laura havia tentando suicídio. No hospital, a mulher estava deitada, ainda recobrando a consciência e círculos vermelhos rodeavam seu pescoço, diversos deles. Vergões e sangue parado completavam a mistura das cores vermelha e roxa logo abaixo ao queixo da vítima do transtorno. No lugar de um corpo delicado e uma pele sadia, apareciam feridas, muitas delas, escondendo a beleza e felicidade da mulher. Laura havia enrolado o balanço do filho no pescoço. A tristeza a havia consumido e a morte parecia a única solução. Ela não tinha consciência dos próprios atos, mas sabia de uma coisa: ela não queria tirar a vida, ela queria arrancar a dor. Mas as correntes embolotadas prendendo a respiração eram a fuga da depressão que a tomara. Entre 30% e 50% dos brasileiros portadores de Transtorno Bipolar tentam suicídio. Essa é a estimativa sustentada pela Associação Brasileira de Transtorno Bipolar, que divulga o alerta: “De todas as doenças e de todos os transtornos, o bipolar é o que mais causa suicídios”, diz Ângela Scippa, presidente da entidade. — Aquela não era a filha que eu havia deixado em Arapongas. Ela estava completamente mudada, fora de si. Ela estava delirando. – desabafa o pai, sobre o momento em que se deparou com a jovem naquele estado. Neste dia, ela retornou com o pai a Taubaté, que trouxe junto a

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neta mais velha, Beatriz, filha de Laura. O outro filho, um garoto novo e frágil, ficou sob os cuidados do pai, lá em Arapongas, enquanto a mãe retornava para casa, onde receberia os cuidados necessários. No início das internações, os filhos de Laura eram ainda pequenas crianças, sem poder de compreensão sobre o que de fato acontecia. Beatriz não tinha mais que 6 anos quando a figura materna foi ausentada de sua vida e, para compensar a situação, as visitas, quando possível, eram frequentes aos hospitais. Em uma mão, ela segurava os dedos do avô como forma de segurança, caso sentisse medo de adentrar em um mundo desconhecido; na outra mão, havia uma cesta de frutas, levada para um divertido piquenique nos gramados da clínica onde a mãe estava internada. — Eu me lembro de ficar sem mãe, nem pai, de repente. Às vezes, eu sentia medo, mas, quando eu ia nas visitas, achava que aquilo era uma diversão. Na adolescência, eu comecei a entender o que de fato acontecia, e, na vida adulta, eu continuei a fazer as visitas, mesmo que não me agrade ir até esses locais. – revela Beatriz. Já em Taubaté, novas crises apareceram e com elas maiores dificuldade em administrar e contornar a situação Algumas delas foram acalmadas com o cafuné do pai, e, quando passavam, Laura repetia a mesma pergunta: “O que aconteceu?”. Ela não se lembrava, mas a família havia presenciado a mulher nas euforias e loucuras que ainda assustavam a todos. O pai buscava contornar a situação, falando sobre assuntos que em nada tinham ligação com o transtorno, mas em seus pensamentos permanecia a questão: “O que farei agora?” — Eu me sentia impotente, queria ajudar, mas não sabia como. – conta o pai, preocupado com a situação. Após cinco delírios, após cinco baldes de lágrimas, após cinco injeções para dormir, a conclusão era apenas uma: os transtornos não podiam mais ser evitados. Havia uma única solução. Era triste e desesperadora, mas ainda assim era uma solução: Laura teria que ser internada. — O paciente deve ser avaliado quanto ao risco de heteroagressividade, de exposição moral e de suicídio, quanto ao insight e à capacidade

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de adesão ao tratamento. Com base nessa avaliação, deve-se decidir sobre a conduta a seguir, se ambulatorial ou hospitalar. – explica o psiquiatra Thales Pereira, sobre a necessidade de internação. O pai era quem tomava conta da filha e do transtorno que ela possuía e, portanto, era quem escolheria a melhor clínica para o tratamento. O Hospital Psiquiátrico era uma extensão da Santa Casa de Piracicaba. Laura chegou ao local como quem entra em um encontro de amigos. Ela estava eufórica e as inúmeras pessoas que preenchiam o espaço soavam como colegas que a entenderia. Eles não pareciam pacientes, aparentavam “normais” para o mundo de Laura, ali ela não era mais a diferente, não sofreria olhares preconceituosos. Mas a diversão não durou todo o período de internação. Ela não entendia o que acontecia em sua cabeça, seu corpo, assim como se comportavam pacientes que ali estavam. Com comportamentos normais ou não, por diversas vezes os pacientes dali eram amarrados. A prisão de estar encarcerada em um local sem contato com o mundo externo, exceto pelas visitas, não era o suficiente. Cordas prendiam os pés e as mãos de Laura, que não entendia se aquela situação era mesmo necessária. No toque de recolher, era chegada a hora de dormir. A mulher era conduzida pelos enfermeiros, que passavam por uma primeira porta, onde muitos de seus novos amigos estavam presentes se aprontando para se deitarem. A segunda porta dava para um “quadrado”, um quadrado gélido, sem cor, sem conforto, sem cadeiras e nem camas com lençóis. A humilhação prosseguia quando um dos enfermeiros passava as mãos pelo corpo de Laura, que sofria assédio sexual sem saber. Tinha também aquele outro, que a levou à rouparia e fez com que ela mesma passasse as mãos nele. A paciente estava com a libido alterada por conta da euforia, o que, certamente, não dava o direito dos enfermeiros cometerem esses deslizes. Uma, duas vezes, Laura foi internada em Piracicaba, e por uma, duas vezes, o abuso prosseguiu, até que a vítima contou ao pai, que se dirigiu ao diretor do hospital com os nervos explodindo em veias na testa, mãos fechadas e olhos raivosos, em busca dos próprios direitos. O administrador do local não hesitou em tratar Laura como

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uma “louca”. O próprio responsável pelos pacientes parecia vê-los como figuras que têm delírios, que cometem loucuras, mas não têm sentimentos. “Como vou levar o que ela diz a sério?”, dizia, em tom de deboche. O pai não relutou, retirou a filha daquele lugar sem que esta recebesse alta. As crises persistiam e a vontade da família de proteger Laura, misturada às dúvidas de como proceder diante de tanta bagunça em que a vida havia se tornado, levaram tormentos aos parentes daquela mulher. Como filha, ela era preocupante, como mãe, era alguém que tirava férias da sanidade, como esposa, ela era maluca. O marido não aceitava a doença da vítima e tampouco a acudia quando esta mais precisava. E, ao invés de persistir no apoio a Laura, ele resolve abandoná-la.. Ele entendia que ela se mantinha sã quando estava em Taubaté, com a família, mas ele não entendia como ser essa família, e, ao invés de tentar, ele desiste da esposa. A vítima do transtorno voltou à casa dos pais e buscava retomar à vida normal que levava antes da chegada do distúrbio. Enquanto o pai tentava tratar a filha, ele tratava também da própria situação financeira, que se agravava. O bilhar havia falido, os clientes que frequentavam o local deixaram de fazê-lo com frequência e o aluguel aumentava o preço a cada dia. O local acabou fechando e a família retornou a Limeira, onde os amigos estavam presentes e poderiam oferecer algum suporte. Enquanto os pais faziam as mudanças, Laura esperava em Taubaté. Logo ela, que nunca foi fã de baladas com as amigas, nunca ansiou por frequentar bailes com os colegas, resolveu sair para espairecer, buscar um refúgio para toda a loucura que a própria vida havia se tornado. É nesse dia, nessa festa que o olhar de menina assustada cruza com o olhar de um homem decidido. Esse homem se chamava Carlos, e daí surgiu uma “paquera” sem perspectiva de futuro, surgiram conversas sem cobranças de promessas. Laura contou àquele homem sobre a doença que a afligia, e ele a escutou, mas pareceu não se assustar com o fato. Os dias passaram, as conversinhas e carinhos continuaram a acontecer entre o casal. Enquanto isso, um outro homem, em uma outra circunstância começou a também buscar um relacionamento com Laura,

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a moça bonita, que despertava atenção dos rapazes em cada esquina que virava. A indecisão da mulher a atormentava, que não sabia quem escolher e como escolher. Até que uma nova crise acontece e a internação se faz necessária. Em uma mesma cidade, em um hospital diferente, Laura foi levada pelo pai à clinica de recuperação. Mesmo com os abusos sofridos pela vítima no primeiro hospital, esse outro parecia ser diferente. Não existiam enfermeiros, apenas enfermeiras, mulheres que se dedicavam a cuidar dos pacientes da melhor forma. Assim, o local parecia ser confortável para tratar a mulher que estava novamente eufórica. Após 15 dias internada, era chegado o momento das visitas. Ao abrir a porta para o visitante que chegava, Laura tem uma surpresa: era Carlos quem entrava no lugar para tentar confortá-la. Ela sabia que poderia contar com aquele homem, o que ainda não havia descoberto, era que ele procurou o melhor psiquiatra de São Paulo para buscar se informar sobre o problema. Estava certo, que aquele era o companheiro que ela precisava,tinhachegadoparamantê-laempé,independentementedoquefosse necessário ser feito. — Meu ex-marido me chamava de louca, mas Carlos entendia o meu problema. – conta, orgulhosa do relacionamento que havia iniciado com a pessoa certa. Não precisava mais de escolhas, estava certo que era com ele que Laura construiria um novo futuro. Uma nova internação aconteceu, e, sem problemas nessa nova clínica, a jovem conseguiu repousar. Mesmo com o tempo, mesmo com o hospital, mesmo com a doença, aquele homem continuava a comparecer nas visitas, às vezes levando junto o sogro, o pai de Laura. — Eu não gostava daquele lugar, considerava um ambiente pesado com todas aquelas pessoas, mesmo assim, às vezes eu ia com o Carlos, porque eu sabia que era a coisa certa a se fazer. – explica o pai, sobre os momentos que marcou presença nos finais de semana de visitas. As internações constantes aconteciam pelos mesmos motivos que

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levavam ao retorno das crises: bastava Laura se sentir bem para que os medicamentos fossem deixados nas cartelas. Ela não os ingeria, e qualquer acontecimento extraordinário a deixava eufórica e, logo após, depressiva. Após cada clínica, Laura precisava retornar sua vida rotineira. Sem clínicas, sem enfermeiras, mas com controle absoluto. — O pior é ser dependente de alguém, não poder sair na rua sozinha, não poder dirigir. Nas minhas recuperações após as crises, eu achava que não valia nada, todos me olhavam e eu pensava: “Eles sabem que estou doente, eles estão me julgando”. Eu não sabia nem como voltar a trabalhar. – com a cabeça baixa e as mãos impacientes, de um modo envergonhado, ela conta dos episódios pós-internações. Quando ela retornava à rotina saudável, as ações envergonhadas voltavam a aparecer. Mas logo os remédios eram deixados de lado e as crises retornavam. Após quatro internações, Laura retornaria ao hospital, a clínica de Piracicaba já não era mais viável, já que agora todos estavam residindo em Limeira. O local mais próximo que atenderia a vítima era em Itapira (SP) e lá foram o pai e o irmão mais velho a caminho do tratamento. Em uma parada para descanso da viagem, Laura saiu do banheiro e se deparou com casais rodeando uma mesa, com conversas soltas e sorrisos leves. Sem pensar, ela caminhou em direção ao grupo e jogou um copo de cerveja no rosto de um dos homens ali presentes. Com um dedo rodeando a cabeça, o pai sinaliza aos casais que aquela mulher não estava bem. O policial rodoviário se aproximou, mais uma vez a explicação sobre o estado mental da filha foi necessário, e o militar apenas disse ao pai de Laura: “Que enorme cruz que você carrega”. Para o pai, aquela não era uma cruz, não era um fardo, era apenas uma luta, que ele iria vencer juntamente com a filha, que era ainda uma menina para ele. Aquele era o pior momento de Laura, ela estava na quinta crise, caminhava rumo à quinta internação, mas alguma coisa estava diferente para a vítima. A sanidade, por alguns momentos, parecia ter aberto mão da vida da mulher e a deixado sozinha, abraçada com a insanidade. O pai relutava em interná-la, mas, em tempos como estes, as clínicas pareciam ser

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os únicos espaços capazes de acolher uma pessoa naquele estado. Ela não estava louca, mas o fato de não entender a doença e a falta dos medicamentos faziam com que se comportasse como tal. Chegando em Itapira, Laura estava novamente animada, em um lugar que, embora fosse enorme, era cheio de pessoas em todos os cantos, as salas, os quartos, os pátios, em cada um deles havia pacientes e pacientes, cada qual com o próprio problema. A mulher dessa história em questão, em meio a tantas mulheres e homens, estava feliz porque estava eufórica, sem conseguir distinguir o que era realmente animação por conta de um fato, ou por conta de todos os fatos que aconteciam diariamente. O pai sentia enorme angústia em deixá-la ali, não queria abandoná-la, mas aquela parecia a única forma de tomar conta da filha, mesmo que de longe. — Você já teve alguém internado? É horrível! Quando o familiar está por perto é uma coisa, mas quando a gente sai, é impossível prever como ela será tratada, o que irá acontecer. – dizia o pai, aflito com o mundo em que sua menina teria que viver, mesmo que por pouco tempo. A filha estava animada, mas o pai pareceria prever o que aconteceria. Como em um filme de terror, as cenas do primeiro hospital se repetiriam nesse novo ambiente. Três meses se passaram ali, por dentro das paredes ela era amarrada, sofria abusos sexuais e violências por parte dos enfermeiros e agressões até mesmo provindas dos próprios pacientes. — Em Itapira era inferno, eu parei em cada buraco, eu era amarrada, judiada, vinha doente bater em mim. – relembra Laura, assustada com as situações por que passou. — Eu penso que se fazem isso comigo, devem fazer com muitas outras pessoas – complementa. Laura vivia ali com um eterno medo, andava com receio de apanhar, dormia com medo de acordar machucada. Até mesmo no seio ela foi mordida por uma das enfermas. Não apenas agressões físicas, mas também violências verbais aconteciam naquele local por parte das próprias famílias dos pacientes. Maridos que abandonavam as mulheres doentes, pessoas que não entendiam a situação em que aquelas vítimas se encontravam. Não entendiam a necessidade dos medicamentos, do tratamento, da

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terapia e mais, a necessidade do apoio. Quanto a isso, Laura não precisava temer. Compreensão e carinho era o que ela mais recebia por parte da família, na casa de quem passou o tempo da recuperação após sair de Itapira. — Depois da internação, o médico estabelece uma média de seis meses para o paciente voltar ao normal. – relembra a vítima do transtorno bipolar sobre as palavras de um especialista que a atendeu certa vez. Após ter superado toda uma fase turbulenta ao lado de Carlos, ela decide ir morar com ele. Sem igrejas e padres, sem festas e convidados, apenas os dois, na mesma casa, esse era o casamento dos sonhos dela: com o companheiro que fizesse jus às promessas que dizia nos momentos de paixão. O filho, que estava sob os cuidados da sogra, retornou à proteção de Laura, que se sentia completa. “Mais feliz impossível” com a vida que havia construído, ao lado de quem a amava e queria bem, a vítima da doença retornou ao trabalho como professora, às vendas de brigadeiros e de vestimentas de esportes. Mais que isso, ela manteve os medicamentos, sem interromper o uso e permaneceu por sete anos enxergando o mundo que ela havia ansiado. Passados os 84 meses, os rins de Laura começam a apresentar problemas. Com três infecções por conta dos medicamentos para o transtorno, os médicos efetuaram a troca de remédios. Nesse período, uma euforia toma conta da mulher, que, na nova casa em Taubaté, passa noites sem dormir na nova cama, impaciente em permanecer na residência. A “dona do mundo” havia voltado, trazendo com ela toda a necessidade de um tratamento mais rigoroso. Ela passava novamente para o outro lado, como o pai costumava dizer, e se tornava irreconhecível. A família estava ciente dos problemas que Laura havia enfrentado na clínica em Itapira, até que conheceram um hospital em Araras (SP) e lá a internaram para que a vida tão esperada pudesse retornar aos eixos que a mulher e todos que a rodeavam tanto tinham lutado para conquistar. A casa de repouso era menor e menos pessoas ali permaneciam. Mas bastou uma paciente dar um soco, repentinamente, nos olhos de

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Laura e aparecer, junto com o sangue, o pesadelo que a mulher tanto temia. Com as violências, porém, aprendeu a se defender e ter cuidado com o que poderia acontecer. — Eu ficava com muitos olhos. – conta Laura. — Não dava para saber o que acontecia na cabeça daquelas pessoas. Em pouco tempo, a recuperação chegou, e a Laura sã estava de volta, retornando para casa, com o marido e filhos, como tanto almejava. As crianças tinham se tornado jovens, que entendiam os problemas da mãe e ofereciam suporte para que esta voltasse à vida familiar. Todos eles tinham um medo em comum: que a vítima do transtorno tivesse uma nova crise e que a necessidade da internação viesse à tona novamente. Em casa, era possível oferecer amor, compaixão e compreensão. Lá não havia assédio, não havia enfermos perturbados e muito menos violência, mas outro item dessa receita era ausente no lar, e este colocava tudo a perder: Embora a família se esforçasse, com os pais, filhos e marido, Laura não recebia proteção e tampouco tratamento para a doença que a transformava e colocava no lugar da mulher doce que ela sempre fora, uma pessoa agressiva, incontrolável e inconsequente. Nesse ponto da história, Laura residia em Taubaté e ali encontraram para ela a clínica ideal para o acompanhamento médico que ela necessitava. Nos momentos de crise, é para essa “grande casa” que ela se dirigia, onde ficava até receber alta. Além dos enfermos, psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, nutricionista, professores de Tai Chi Chuan atendiam no local, caminhando em passos calmos e sorrisos esperançosos. Um profissional em especial despertou a atenção da paciente: um professor de Educação Física, assim como ela, estava ali, mas permanecia no lado são da própria vida. “Quem sabe um dia não seria ela a ensinar aqueles enfermos? Quem sabe não seria ela a estar do outro lado?”, pensava Laura, ao vê-lo. Enquanto Laura percorria os corredores da nova casa temporária, ela encontrava uma sauna, piscina, um salão de jogos, biblioteca, videoteca, dentre inúmeros confortos oferecidos pela estrutura do local. Na clínica, permaneciam homens e mulheres, mas a possibilidade de perigo não mais assustava aquela mulher. Por uma única vez, um enfermeiro passou as mãos

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nas nádegas de Laura, mas, na primeira denúncia, o especialista foi retirado do local para não retornar. Então, ela sabia: ali ela viveria com segurança. A clínica foi descoberta pelo marido, Carlos, que em todas as vezes que a esposa esteve internada, ele a visitou duas vezes por semana e efetuou inúmeras ligações a fim de confortar a companheira. Laura podia fazer uma ligação a cada sete dias, e aquela possibilidade a deixava calma, só de saber que poderia ouvir a voz de quem amava ou pedir para sair do lugar quando se sentisse bem. Carlos teve inúmeras chances de desistir, mas permaneceu ao lado da esposa. Ele é quem mais visita a mulher nas internações. — Eu dou graças a Deus, todos os dias, pelo fato de Laura ter esse marido, ele é quem faz ela bem. – conta o pai, orgulhoso do “bilhete premiado de loteria”, como ele mesmo se refere ao genro. Após quatro anos sem internação, muitas coisas ruins aconteceram na vida de Laura: ela foi vítima de um assalto à mão armada, o irmão veio a falecer por causa da diabetes, o pai precisou de tratamentos de radioterapia, já que descobriu um câncer de próstata que tomava seu corpo. Laura persistia nos medicamentos, mas as emoções que a assolaram desencadearam uma nova crise. — Eu me decepcionei com essa última crise, achei que nunca mais teria. – rememora a vítima do distúrbio. Mesmo com a decepção, mesmo com o transtorno em evidência novamente, Laura encontrou o lugar para correr quando precisar, as pessoas com quais ela pode sempre contar com ajuda e amparo. Hoje, os filhos já são adultos, e percebem na mãe os traços de um início de uma nova crise. Eles já podem cuidar de quem tanto deles cuidou. Toda a família sabe que, por mais vezes que o transtorno insista em aparecer, eles conseguirão tratá-lo. Laura agora sabe que as crises vão passar e a que vida tomará as formas de alegria que ela vive atualmente. Ao todo, sete internações aconteceram na nova clínica, os enfermos se tornaram amigos da mulher. Ela conseguiu passar para o lado são que ela enxergava naquele professor de Educação Física e ministrou,

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Dentro dela moram duas

por dois anos, as mesmas aulas, naquele mesmo local. O desejo de Laura é o mesmo que de toda a família: que ela nunca mais precise ser internada, que ela se mantenha a pessoa “sensacional”, nas palavras do pai; com um “coração enorme, capaz de ajudar qualquer pessoa e perdoar qualquer mal”, na concepção da filha. Após muita procura, a mulher encontrou uma nova casa para residir em Taubaté, com um quarto do jeito que ela sonhava, capaz de abrigar o pai e manter a família unida. Os medicamentos estão em uma gaveta, a qual ela abre todos os dias e ingere os compridos a fim de permanecer sem crises e com a vida que hoje ela construiu. — Hoje eu só posso dizer uma coisa: tenho tudo que busquei ter, e não quero sair desse estado nunca mais.

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“Eu me esforço para ser cada dia melhor, pois bondade também se aprende. Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir.” Cora Coralina (1889-1985)

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L

aís tinha acabado de completar um ano, quando o ultrassom feito na barriga de sua detectou a batida de dois corações: Silvia Aparecida Vieira estava grávida de gêmeos. Com uma criança tão pequena e frágil para cuidar – que passava os dias na casa da sogra enquanto a mãe trabalhava – mais dois bebês que nasceriam e precisariam de amparo, a jovem grávida se questionava: “Como eu cuidarei de mais um bebê? Como eu vou conseguir me dividir com a mesma dedicação entre ser mãe e ser trabalhadora?”. Em todos os momentos, a cada chute na barriga, a cada enjoo repentino, a cada dose de adrenalina, a sogra desmotivava a nora. “Você não vai conseguir”, era a frase que Sílvia escutava repetitiva e duramente. Era como se as palavras afirmassem os pensamentos e sentimentos daquela mãe: Ela não era capaz. Foi quando o desespero tomou conta de Sílvia, que decidiu pedir demissão do trabalho como assistente administrativa em uma fábrica para conseguir cumprir um papel que ela pensava ser incapaz: o de ser mãe. Os filhos nasceram – um casalzinho cheio de saúde – mas a felicidade ao encontrar os bebês não era a mesma da primeira gravidez, quando teve Laís. A mãe só pensava em fugir. Fugir daquelas crianças que ela não mais encarava como seus filhos. Sílvia estava, pela primeira vez na vida, realmente deprimida. Sem querer sentir tamanha tristeza, ela buscou ajuda médica, com o intuito de retomar ao posto de mãe e de uma mulher feliz que ela havia sido. Exames e mais exames foram feitos em busca da causa das lágrimas que não cessavam, sem que nenhum problema físico fosse detectado. Até que o especialista recomendou que a paciente procurasse um psiquiatra. Naquele momento, a jovem mãe e dona de casa teve a certeza de que estava “louca”. — Por mais instrução que eu tivesse, aquela situação era diferente: era eu que sentia tudo aquilo – desabafa Sílvia, lembrando-se do que passou. Um anjo sem asas foi o que o especialista representou àquela mulher em desespero. Depressão pós-parto era a doença que afligia Sílvia. Ela não era a primeira paciente a sofrer o transtorno e nem seria

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a última. Remédios e terapias existiam e seriam a cura para uma vida apagada. — Depressão pós-parto é o termo utilizado para designar o conjunto de fatores que dificultam a relação mãe-bebê, com sintomas parecidos aos de uma depressão comum, e que impedem os cuidados adequados. Os motivos são muitos, mas podem ser agrupados em: modificações corporais e hormonais ligadas à gravidez e as representações da maternidade, como cuidado, dependência e responsabilidade. – explica o psiquiatra Thales Pereira De acordo com a Revista Brasileira de Psiquiatra, os distúrbios do humor que caracterizam o período pós-parto incluem também a melancolia da maternidade (baby blues) e até mesmo as chamadas psicoses puerperais. O primeiro quadro, que se caracteriza por um distúrbio transitório de humor, atinge cerca de 60% das novas mães entre o terceiro e o quinto dia após o parto. Porém, geralmente, tem remissão espontânea. Já as psicoses puerperais apresentam sintomas acentuados, os quais frequentemente requerem tratamento intensivo e, por vezes, hospitalização. A incidência desse quadro, de acordo com os pesquisadores da área, é de apenas dois a quatro casos em cada mil partos, ocorrendo entre as duas primeiras semanas após o parto. Além da depressão, Sílvia havia encarado um quadro de Síndrome do Pânico depois do parto sem ter conhecimento. O transtorno se manifestava todos os dias quando a noite chegava, a escuridão tomava conta das ruas, das casas e do coração da vítima do transtorno. Era como se “a colocassem em um túnel e pedissem a ela para sair, sem que nenhuma luz pudesse iluminar o caminho”. O horário exato em que a tristeza chegava era às 17h30 e quando o relógio apontava essa hora, isso a consumia. A jovem mãe tinha um receio maior: Dormir e não acordar, fechar os olhos e não abri-los novamente para cuidar dos filhos. Para tanto, o médico receitou um calmante e um remédio natural, a combinação de ambos proporcionaria o sono que Sílvia havia perdido. — Eu sentia uma sensação de morte durante a noite, era como se

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aquilo fosse me consumindo. – relata a dona de casa. Aliado ao uso do medicamento, o psiquiatra iniciou, juntamente com a paciente, um processo de regressão, em que Sílvia se recordava de detalhes de toda a vida e poderia, enfim, compreender a causa da depressão, para então combatê-la. Aos poucos, ela se recordava da infância austera que tivera e de todas as vezes que olhava para a mãe e pensava: “Espero ser diferente quando for a minha vez”. Para Sílvia, a mãe era uma criatura fechada no próprio mundo, uma pessoa dura e incapaz de oferecer afeto. Uma mulher de pele negra, cabelos encrespados e mãos cobertas por calos resultados do trabalho pesado e que sofreu preconceito ao longo da vida. Era vista e se via como alguém que serviria apenas para o trabalho da casa, como se lavar louças e passar a vassoura fossem o seu destino. A mulher educou Sílvia sem amor, sem perspectiva de futuro. Com apenas 13 anos, a menina foi obrigada a cuidar dos irmãos mais novos e a administrar a casa. Erros não eram aceitos e era preciso ser perfeita nas 24 horas de todos os dias. Com isso, a menina se tornou mulher, mas cresceu sem conseguir aceitar as próprias falhas. No momento em que se viu grávida pela segunda vez, ela imaginava que seria inconcebível buscar ajuda. Mesmo fraca por conta da depressão, ela preferiu se manter sozinha na criação de Laís e dos dois bebês que nasceram. O marido, embora não apontasse as falhas de Sílvia, não a motivava a buscar o melhor para si. Um homem racional, incapaz de destinar amor à esposa e depositar fé nas atitudes da mulher. Ele a acompanhava ao psiquiatra, mas não era o companheiro que ela precisava nos piores momentos. Ele via a depressão como um resfriado: “Está doente? Toma remédio. Conforme os dias passem, as lágrimas secam como um nariz desentope, o coração acelerado acalma como uma garganta desinflama”, dizia ele, de maneira prática, como o transtorno não é. Nem na doença, nem durante todo o casamento, ele encorajou Sílvia a buscar se sentir capaz de ser mãe e de ser feliz, e ela precisou arcar com a própria dor para encontrar a felicidade e a autoestima.

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— Até para tirar carteira de motorista ele me desmotivava, dizia que era bobeira. Ele não queria me ver andar com as minhas próprias pernas. Existem motivos que levam ao transtorno da depressão pós-parto. A Revista Brasileira de Psiquiatria aponta que uma série de estudos tem evidenciado uma associação entre a ocorrência da depressão pós -parto e o pouco suporte oferecido pelo parceiro ou por outras pessoas com quem a mãe mantém relacionamento, além de uma série de fatores biológicos, obstétricos, sociais e psicológicos que se inter-relacionam. Além disso, a literatura médica aponta também para o caráter conflituoso da experiência da maternidade como um fator de risco para a depressão da mãe, uma vez que a maternidade implicaria em assumir novos papéis e em mudanças profundas na identidade da mulher. Diferentemente da mãe, o pai de Sílvia foi o grande companheiro e amigo da jovem. Um homem calmo e com o carinho para oferecer à filha, que precisava de alguém que acreditasse no poder que ela tinha de se reerguer e que a ajudasse nessa tarefa. A dona de casa era acompanhada pelo pai em todas as consultas e levada a tomar os medicamentos nos horários corretos e da forma correta. Com a ajuda do pai, com os medicamentos e com o auxílio psiquiátrico, Sílvia aprendeu a lidar com a doença e com a mãe que ela era capaz de ser. A vítima não queria ser mais vítima, ela recuperou a autoestima e o poder de proteção aos filhos. Hoje, ela busca encarar a depressão como uma missão que foi cumprida. — Minha vida, sem dúvidas, foi outra após a minha superação. Quando eu comecei a transformar os “porquês” de eu estar passando por aquilo nos “para que”, eu finalmente entendi que eu precisava passar por aquilo para me tornar o que me tornei. Após entender a capacidade que tinha de superar as barreiras, Sílvia passou a administrar a própria vida de outra forma. Ela perdoou as falhas da mãe, que se ausentou quando a filha precisou de proteção e assumiu o papel de protetora.

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— Hoje sou eu quem é a mãe dela, se ela está doente, eu cuido, se ela precisa de carinho, eu dou. Ela sente falta se me ausento por apenas dois dias. – explica, com orgulho, a dona de casa, que entrou na faculdade de Pedagogia, prestou concurso público para professora e se tornou educadora de outras tantas crianças que precisavam do suporte que há tempos atrás parecia ser incapaz de dar. Após passar um período atuando como orientadora pedagógica de escola, pedagoga na Secretaria de Educação de Lorena, cidade onde nasceu e vive até os dias de hoje, ela se tornou gestora de uma creche. No atual trabalho, ela se tornou a mãe de inúmeras crianças, as quais precisam do instinto de proteção que ela adquiriu após a superação do transtorno. — Foi Deus quem colocou a creche em minhas mãos. – diz Sílvia, que olha para cada menino e menina como os bebês que ela pode cuidar sem perder momentos preciosos das vidas que se iniciam. A alma de Sílvia, nas palavras do psiquiatra, era um funil, uma bagunça que se afunila em uma única vida. Hoje, após mais de dois anos de tratamento, este funil está ao contrário, são as felicidades da mulher que se ampliam e lhe permitem ser mãe dedicada e uma gestora de escola exemplar. De segunda a sexta-feira, Sílvia entra na creche, entre às 7 e às 8 horas, levando consigo todo o carinho e atenção para crianças que necessitam. Sem olhos marejados, mas com um olhar que acolhe cada menino e menina e a eles se mantêm atentos. As funcionárias ali presentes deixam transparecer que possuem imensa admiração e carinho por Sílvia, mas o respeito chega antes e não permite qualquer abuso por conta da amizade estabelecida. As mães das crianças da creche também ganham a atenção da gestora que, de forma dócil e prestativa, atende as que passam por situações difíceis, além de proporcionar amparo às crianças que precisam das figuras maternas, que se ausentaram por conta da depressão. “Pode deixar que eu cuido dela”, diz a gestora a uma das mães, preocupada com

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a filha que permaneceria no local naquele dia. Nas festas de final de ano, Sílvia se transforma em mais de dez mulheres, capazes de conseguir presentes para os menores carentes e alimentos para as famílias que possuem como maior problema o dilema de colocar comida na mesa todos os dias. — Às vezes, eu preciso mostrar para ela que é necessário dizer não. Existem dias que a encontro perdida, sem saber como ajudar, e me sinto no papel de mostrar que antes, ela precisa se ajudar. – conta Juliana Monteiro, funcionária da creche, que construiu uma relação que ultrapassa o lado profissional e ganha confiança e conforto que a administradora do local proporciona. De segunda a sexta, Sílvia percorre a cidade de Lorena, toma a estradinha de terra em direção à zona rural da cidade e chega finalmente à creche, para um trabalho que se tornou uma paixão. Lá, ela desempenha o papel que aprendeu após a superação do transtorno, lá ela se torna mãe. Em todas as outras horas do dia, ela atua na própria casa, com os três filhos. Vitória Vieira Bastos é a grande vitória de Sílvia. A menina dos gêmeos, que hoje tem 15 anos, se orgulha da figura materna e deixa claro que, se em outra vida ela tivesse o poder de escolha, aquela seria a mãe eleita de seu coração. Em meio à timidez, a garota deixa escapar palavras como “deusa” e “tudo”, ao descrever a mulher que batalhou para conseguir oferecer a proteção materna aos seus filhos. A jovem Vitória ainda se recorda da mãe deitada no sofá, enquanto ela fazia um “miojo”, o único prato que conseguia preparar sem erros durante a infância, a fim de alimentar aquela mulher e ajudá-la a se reerguer. Mas as imagens tristes parecem ser apenas cenas que tomaram novas formas e se tornaram páginas viradas de uma etapa superada em família. — Eu me lembro de que eu e meus irmãos cuidávamos da casa, tentávamos fazer o que podíamos até que ela melhorasse. Eu era pequena, não entendia muito bem o que acontecia, mas sabia que ela estava doente e eu precisava ajudá-la. – conta a filha, sobre como buscou ajudar a mãe.

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Está certo que família não se escolhe, mas, em qualquer circunstância, os três filhos e a mãe se elegeriam sem pestanejar. O laço que os une supera uma “obrigação” familiar, a amizade que entrelaça os quatro torna aquela casa um lugar para se chamar de lar. — Há quem encontre a saída para a doença praticamente no mesmo momento em que ela se manifesta. Mesmo que a dor não seja aliviada imediatamente, a segurança do tratamento medicamentoso e comportamental se transforma na esperança que as vítimas dos transtornos psiquiátricos perderam ao longo do tempo. Sem diagnóstico, não há tratamento, e, sem tratamento, muitas mulheres sofrem por motivos encontrados na infância que afetam até mesmo a fase adulta. É o caso de Heloísa, que perdeu o chão em uma idade em que nem ao menos entendia o que era essa sensação e arrastou o sofrimento por toda uma vida.

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“Só há uma coisa na vida que precisamos aprender, e ninguém ensina isso nas escolas. A capacidade de suportar.” Khaled Hosseini

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om as pálpebras pesadas, as mãos trêmulas e o coração em disparada, Heloísa Ferreira da Silva chegou, com apenas cinco anos de vida, ao orfanato, onde viveu por sete longos anos. Foi colocada lá pela mulher que a gerou, mas que estava cansada de ser mãe, apesar de ter outras três filhas. O lugar se transformou em lar, as freiras em família. O pai havia falecido e a criança se sentia como uma órfã. “De que adiantava ter uma figura materna que não representasse a tal figura materna?”, pensava a menina, que, desde cedo, indagava sobre a vida. Em uma idade em que os adultos raramente se lembram dos momentos que passaram, Heloísa guardava cada lembrança da rotina em sua nova casa. Todos os dias, às cinco da manhã, Heloísa acordava, tomava um banho de água gelada, que escorria em seu corpo e a lembrava do dia duro que estava por vir. Logo após, todas as meninas e meninos iam à missa rezar como obrigação e implorar silenciosamente para sair dali. O alimento era servido em seguida. De segunda a sexta-feira, os menores eram responsáveis por limpar os assoalhos do orfanato. Todo o resto da tarde era dedicado aos estudos, latim era a língua mãe ensinada e aprendida naquele lugar. Ao “repassar” os ensinamentos bíblicos, as freiras pregavam Deus como um homem que brinca com as pecinhas que estão abaixo do céu. Com frases, como “Ele castiga”, as beatas aterrorizavam as crianças e as convenciam a obedecer. — A verdade é que eram elas quem castigavam. Se a gente não comia, elas colocavam nossa cara na comida. – relembra Heloísa, sobre os tristes momentos vividos em sua infância. Heloísa vivenciou um dos castigos na própria pele: A cada segundo domingo do mês, as freiras levavam as crianças a passeios externos. A menina havia cometido algum pecado, segundo as mulheres diziam, e foi proibida de acompanhar os colegas nas ruas. À medida que os amigos caminhavam para diversão, a menina permanecia sentada na escada, observando a movimentação. A cada passo que eles davam à rua, mais um pouco ela ficava sozinha. As tias, irmãs da mãe de Heloísa, questionavam o motivo pelo qual a menina precisava viver ali, e porque as outras três irmãs da criança continuavam a viver sob a guarda familiar. Nas visitas mensais,

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uma das tias, acompanhada da melhor amiga, observou aquela realidade e se convenceu de que a solução seria adquirir a guarda familiar, retirando a menina do orfanato. Até que esse momento se torna realidade. O orfanato estava em silêncio e a menina esperava aflita no corredor, enquanto a amiga da tia conversava com as freiras em uma sala do local. Heloísa vivia uma confusão de sentimentos, ela se sentia amedrontada em morar ali, mas temia ainda mais o futuro com a própria mãe. Quando a garota completou 12 anos, a autorização da saída aconteceu. O medo de Heloísa se tornava realidade à medida que vivia, novamente, em casa. A mãe estava casada com um homem que assustava a criança ainda mais que as freiras do local onde viveu por anos. — Passei muitos medos com ele, por várias vezes, eu levava minhas três irmãs e mais os três filhos do meu padrasto ao quintal, com medo de que nós apanhássemos. O marido da minha mãe voltava bêbado em casa, agressivo, e dizia que queria matar as crianças. – relata Heloísa, que hoje está idosa, mas se lembra com nitidez do que aconteceu há mais de 60 anos. Além da situação difícil que encarava com o padrasto, a criação materna a obrigava a abandonar os estudos e se dedicar a ajudar a família no comércio que possuíam, e ainda aprender os afazeres domésticos, tudo aquilo que “uma mulher precisa saber desde sempre para encontrar um marido que a queira para sempre”. Enquanto a mãe imaginava que estava “preparando” a filha para um casamento perfeito, ela estava, na verdade, aprisionando a menina em um universo irreal, onde se aprende a costurar, mas se esquece de viver. A garota cresceu e se tornou uma mulher, que possuía uma inocência de criança e carregava no coração o peso de uma idosa. A sensação de abandono que sofreu, aos cinco anos, ainda a perseguia, e a falta de preparo para a vida era nítida nas atitudes de Heloísa. Contra a vontade da família de Nourival Correa da Silva, com quem mantinha um relacionamento há cinco anos, ela se casou com o companheiro, aos 22 anos. — Até hoje minha mãe carrega essa mágoa, ela me contava que a minha avó paterna e as irmãs do meu pai não foram nem ao dia do

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casamento. Apenas meu avô, ele apoiou como pôde e até o fim. – explica a filha mais velha de Heloísa, Maria Claudia da Silva, sobre a tristeza da mãe em relação à sogra e às cunhadas. Inexplicavelmente, depois de apenas um mês de casamento, um processo de tristeza ainda mais profunda que havia carregado desde a infância se inicia. — Quando eu era solteira, eu dormia bem, nunca tinha nada, dor de cabeça, eu não entendia o que acontecia, mas sei que não estava preparada para casar. – descreve a idosa, sobre a falta de experiência que possuía diante do marido, que embora fosse apenas dois anos mais velho, parecia ter vivido 20 anos a mais que ela. Em meio à madrugada, muitas vezes inconsciente, Heloísa corria até o portão da casa onde morava, destrancava o cadeado e só parava de correr quando entrava na casa da vizinha da frente. “Eu vou morrer”, ela gritava para a mulher, que não entendia o que acontecia, mas buscava, de todas as maneiras, ajudar a amiga a se acalmar. A mulher possuía um terrível medo da vida. Despreparada para caminhar passos incertos, Heloísa passou a sentir receio em cumprir atividades corriqueiras, como tomar um banho ou colocar os pés na rua, enquanto estava consciente de seus atos, cada atitude parecia terrivelmente arriscada. A mãe mal olhava para a filha, ainda menos para o que ela encarava. As pessoas ao redor diziam que aquilo era bobeira, um drama passageiro. A própria Heloísa não compreendia o que estava acontecendo consigo, mas, de acordo com a American Psychiatric Association, a negligência dos pais e/ou violência sofrida na primeira infância aumentam o risco dos filhos apresentarem quadros depressivos. Os conhecidos diziam que aquilo iria passar, mas não passou. O marido, muito paciente, buscava forças para o entendimento do quadro apresentado pela esposa e se esforçava para ajudar. Diversos médicos foram procurados como um pedido de socorro e receitaram terapias e medicamentos que pareciam sem solução. Cada um dos especialistas indicava diferentes tratamentos, mas todos afirmavam um mesmo diagnóstico: trauma. Trauma era o termo utilizado na época, para descrever o conjunto de sintomas que a paciente sofria.

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— Eu não sei explicar o que eu sentia, só posso dizer que era uma dor mais que física, era uma dor na alma. A cada crise, os médicos iam até a minha casa e me davam muitos remédios, eu ficava dopada, mas nada adiantava, eu acordava ainda pior. Na minha alta da depressão, eu não sentia nem fome, nem vontade de nada, apenas medo de morrer. Eu escutava meu coração a todo o momento. – ressalta Heloísa, que sentia como se a morte estivesse próxima de tomar seu corpo. Após sete meses de casados, Nourival e Heloísa viram nascer a primeira filha. Quando a criança nasceu, a jovem mãe sentiu que uma série de situações que havia vivido – a criança que havia se perdido no orfanato sem que ela pudesse resgatar, a vida de solteira, que fora educada e guiada a uma vida de casada, a felicidade e vontade de viver, que já estavam mortas há tanto tempo – afloraram, dando a sensação de que algo precioso se fora. A sensação de morte era o sentimento mais intenso e presente na vida de Heloísa a partir de então. Ela sentia que morria aos poucos e não compreendia como poderia ter dado vida a um ser tão pequeno, tão frágil. Ela sentia vontade de morrer e, incontrolavelmente, buscava matar sua primeira filha. A mulher havia perdido o controle sobre suas atitudes. A avó do bebê precisava estar presente quando Nourival se ausentava para trabalhar, pois todos temiam quais seriam os próximos passos de Heloísa. Mais medicamentos foram receitados para que a vítima do “trauma” pudesse guiar a própria vida e a daquele ser que dela dependia. Após um ano de tratamento intensivo, o segundo filho nasceu. A tristeza ainda era uma parte daquela mãe, mas dessa vez o sentimento negativo não a consumiu por inteiro, permitindo desfrutar de alguns momentos com o bebê que chegara. A família estava esperançosa com o futuro da doença de Heloísa, pensavam que a tortura emocional estava por acabar. Até que, na terceira gravidez, a situação parecia ter saído totalmente de controle. — Nessa época, eu tomava muitos e muitos calmantes, mesmo assim, era impossível dormir. Era como se eu não estivesse consciente. Dessa vez, eu não tentei matar meu filho, mas também não consegui viver. Eu apenas ‘existia’ naquele tempo, sem saber direito o que fazer e como fazer. – frisa a idosa. Um dos especialistas que Heloísa procurou afirmou que não haveria saída para aquele quadro clínico e que a única solução seria que a paciente fosse

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internada em um hospital “para gente louca”, o Hospital Psiquiátrico do Juqueri, criado em 1903, para onde as pessoas consideradas completamente insanas eram levadas e recebiam tratamentos cruéis e desumanos. A vizinha e amiga da mulher, profundamente insatisfeita com a situação e com os tratamentos que os médicos proporcionavam, buscou uma nova opinião. Até encontrar um psiquiatra, que seguia o espiritismo e acreditava nos benefícios que a espiritualidade, além da Medicina, podia proporcionar. O especialista designou um tratamento simples, que todos os médicos, antes seguidores apenas do poder da ciência e dos fortes remédios, foram incapazes de indicar: Heloísa estava proibida de conversar sobre a doença, o chamado “trauma” deveria ser esquecido, e, no lugar dele, a paciente preencheria o cérebro e o coração com novas atividades. O novo especialista receitou um chá para desintoxicar o corpo da paciente dos fortes medicamentos ingeridos anteriormente e acreditou e fez Heloísa também acreditar na capacidade de se curar. A simples frase “Você vai melhorar” motivavam a mulher a buscar a melhora. Sem receitas mirabolantes, sem tratamentos prolongados e cruéis, o poder de crer era a saída que a paciente e o marido buscavam há tanto tempo. Um conhecido de Nourival, certo dia, previu que o quarto filho do casal traria de volta uma parte da alegria perdida por Heloísa aos cinco anos. Contra a vontade de toda a família, que imaginava que dessa vez a mãe iria falecer no parto, o caçula do casal nasceu na presença do médico espírita, que também depositava fé no bebê que vinha ao mundo naquele momento. A motivação para seguir em frente nasceu junto com aquela criança, naquele dia. A partir daquele momento, Heloísa seguiu o conselho de seu novo médico, e buscou “ocupar a mente”. Aos 30 anos, ela encontrou a Comunidade da Paróquia São Pedro Apóstolo, lá fez catequese por três anos, logo após, foi catequista para os cristãos que buscavam a doutrinação na Igreja, ainda ministrou a mesma área na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, APAE para as crianças que lá permaneciam e buscavam a religião. De uma mulher tímida, com dificuldade para falar sobre assuntos polêmicos ou mesmo para conviver com diferentes pessoas, ela passou a fazer reunião com pais, ministrar palestras sobre temas como educação sexual para os jovens e, ainda, participou de congressos em diferentes

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cidades. Heloísa se tornou proativa, aprendeu como se portar em diferentes situações, saiu de casa, do universo particular onde convivia com dores e angústias para um novo mundo, com diversas pessoas dispostas a ajudá-la, começou a finalmente entender sobre a vida e a buscar viver. — Não foi para suprir a minha depressão que eu entrei na comunidade, mas sem dúvida, foi muito importante para me reerguer. Eu não tinha estudo e eles me acolheram, me permitiram trabalhar. Precisei de muita ajuda, mas consegui entender o que era me sentir útil. Encontrei o que precisava para ter coragem de me levantar todos os dias. Heloísa passou também a fazer as ‘pílulas da fé’ de Frei Galvão, em Guaratinguetá (SP) e respondia as cartas de quem precisava de ajuda, como um dia ela precisou. As ‘pílulas’ são pequenas orações escritas em papel, enroladas bem miudinhas para serem engolidas pelos fiéis do Santo brasileiro. As pessoas as recebem diretamente no Seminário Frei Galvão, ou então enviam uma correspondência, mandando dentro outro envelope já selado, para que as pílulas sejam enviadas. Parte desse trabalho é feito por voluntários, como Heloísa. Depois de tanto tempo ingerindo diversos medicamentos fortes, que a deixavam dopada e impossibilitada de seguir com as atividades rotineiras, hoje ela só toma um calmante para dormir. Porém, a dificuldade em encontrar o sono, todas as noites, ainda é constante na vida de Heloísa, que também convive com o medo da morte. — Eu ainda escuto meu coração, várias vezes, quando estou com medo. O médico fala que é mais fácil eu morrer de um raio que do coração, mas que minha saúde está em dia. Hoje eu vejo que, apesar do tratamento ser fundamental, a pessoa depressiva precisa se ajudar e eu me ajudei. Eu comecei a me informar sobre o assunto, busco informações sobre depressão e Síndrome do Pânico, para evitar que tudo volte. Quero me cuidar. Heloísa havia, finalmente, se recuperado da dor que sentia na alma. Os resquícios da depressão sempre existirão, mas nunca a atormentarão como antes. Porém, como fatalidade da vida, o marido ainda novo, faleceu aos 50 anos, vítima de Diabetes, deixando a esposa viúva aos 48 anos. Ele

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havia se tornado o maior companheiro que a mulher teve: Após anos de um casamento coberto pela depressão, Heloísa superou a doença e viveu um relacionamento com estabilidade e, enfim, felicidade. Ela encontrou no marido um porto seguro para os momentos de sofrimento que apareciam, e, dali em diante, precisava encarar uma grande infelicidade sozinha. Mesmo assim, Heloísa havia se tornado forte para os tropeços nos caminhos, e passou anos buscando enxugar as lágrimas e demonstrar sorrisos. A solidão da vida idosa ainda a atormenta. Aos 72 anos, viúva e com os filhos com a vida já estruturada, ela ainda sente ansiedade diante dos dias que se aproximam e, principalmente, das noites. Ao chegar a hora de dormir, todos fecham os quartos e ela ainda vai para a cama sozinha. Ao acordar, ela reflete sobre de que forma irá lutar contra o próprio medo de morrer e o medo de viver na solidão. Mesmo assim, a idosa sabe o que é ser feliz, e enfrenta a própria vida como a de uma jovem em busca dos próprios sonhos. — O medo dela de morrer é tanto que, às vezes, ela até esquece um pouco de viver. Mesmo assim, ela tenta lutar contra isso. – conta a filha Maria Claudia, que convive diariamente com a mãe e com sua ansiedade latente. Embora Heloísa sinta um constante medo da morte, ela sabe que não precisara enfrentá-la sozinha. Na idade em que precisou encarar a solidão de perto, ela acabou por consolar a solidão de outros idosos. Hoje, ela faz visitas frequentes a asilos e busca contribuir, com toda a sua educação e generosidade, aos idosos que ali permanecem como crianças que foram destinadas a viver nesse “orfanato” para terceira idade. Muitos deles encaram a depressão, assim como fez Heloísa. — Eu vejo muitos idosos sozinhos. Enquanto eles vivem mais tempo, crescem mais jovens sem paciência para cuidar dos mais velhos. É triste. – desabafa a idosa, com razão, pois o site saudemental.net estima que cerca de 15% dos idosos apresentem alguns sintomas depressivos e cerca de 2% tenham depressão grave. Esses números são ainda maiores entre os idosos internados em asilos ou hospitais. — Hoje eu posso ajudar muita gente porque também passei por muita batalha, mas consegui vencer! Vim a ser ‘gente’ com 30 anos e assim irei viver. – avalia a vencedora da depressão.

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Ainda dรก para emagrecer mais

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“Se eu pudesse deixar algum presente a você, deixaria aceso o sentimento de amar a vida dos seres humanos. A consciência de aprender tudo o que foi ensinado pelo tempo a fora. Lembraria os erros que foram cometidos para que não mais se repetissem. A capacidade de escolher novos rumos. Deixaria para você, se pudesse, o respeito àquilo que e indispensável. Além do pão, o trabalho. Além do trabalho, a ação. E, quando tudo mais faltasse, um segredo: o de buscar no interior de si mesmo a resposta e a força para encontrar a saída.” Mahatma Gandhi (1869-1948)

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Ainda dá para emagrecer mais

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uatro comprimidos de laxante eram tomados de uma só vez, o único alimento ingerido nos últimos 20 dias foi melancia combinada com água muito gelada. O gelo ajudava a aliviar

a dor no estômago, proveniente de uma infecção no órgão. Com 36 quilos, era uma mulher com voz de menina, uma adulta com corpo de criança, praticamente um esqueleto vestido de pele. Já no hospital, ela recebeu um diagnóstico: Anorexia! Ela se perguntava: Como era possível trabalhar na área da saúde – como terapeuta – e não ter percebido o que acontecia? Essa foi mais uma vez em que foi internada por conta da saúde delibitada. Anterior a esse episódio, ela permaneceu por seis dias em um hospital, onde recebia litros de soro glicosado, a fim de ganhar saúde física. Um amigo, que era médico, já havia falado sobre a possibilidade da doença. “Besteira”, ela pensou. Mas dessa vez era diferente, a palavra anorexia atormentava sua cabeça e a fazia perder o chão. Valéria Soares tinha 41 anos quando foi internada no Programa de Atenção aos Transtornos Alimentares (Proata), em São Paulo, com uma doença tipicamente de adolescente e com uma estimativa de vida de um doente terminal: Três meses eram o que lhe restavam, se ela não se tratasse. — Como o início da doença ocorre prioritariamente em adolescentes e jovens, em média até 25 anos, fala-se em anorexia tardia quando ocorre em pessoas maduras. – explica a Doutora em Psicologia, Maria Barreto. Ela tinha um distúrbio grave, que não se inicia repentinamente, é necessária uma história que sustente uma doença que pode ser só uma fase, ou tomar toda uma vida. No caso de Valéria, essa história não só existe, como vem de toda sua trajetória. Na infância e na adolescência, a mãe de Valéria esbanjava beleza, aquele era o cartão de visita da mulher, que deixava de levar comida para os filhos, mas gostava de gastar dinheiro adquirindo joias, que enfeitavam todo o corpo, mas não recheavam a mesa da família. “Uma Serra Pelada de pedras”, é como define Valéria a quantidade de ornamentos que a -93-


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mãe possuía. Enfeitiçada pelos pensamentos da figura materna, a menina se olhava no espelho e se via gorda. Quando adolescente, pesava apenas 49 quilos, mesmo assim, a mãe a levava ao endocrinologista em busca da magreza que tanto estimava, e comprava remédios para a filha emagrecer. Se fritasse batatas, as crianças precisavam permanecer trancadas no quarto, para não correrem o risco de devorar as frituras e acabarem gordas. As despensas da casa eram cheias de refrigerantes de soda em garrafinhas e Valéria os amava. Escondida da mãe, abria um por um, ingeria o refrigerante e depois preenchia as garrafas com água para não haver xingamentos. A menina cresceu, se tornou mulher, se casou e teve três filhos. A cada gravidez, ela ouvia da mãe o quanto as gorduras do corpo estavam aumentando. Nesses momentos, ela estava sempre presente, a postos para exigir que a filha mantivesse um corpo que considerasse perfeito. Porém, quando Valéria precisava de ajuda e de apoio materno, ela se ausentava. De acordo com a pesquisa divulgada pela Sociedade Brasileira de Pediatria, a busca por uma única causa para a anorexia nervosa já foi abandonada. Acredita-se, atualmente, que características biológicas, psicológicas, familiares e socioculturais são fatores que interagem na determinação da manifestação de anorexia nervosa. Em relação às características psicológicas, a descrição comumente encontrada é a de indivíduos frustrados, insatisfeitos e raivosos, que se sentem incapazes de resolver suas insatisfações. Ao contrário, acreditam que as suas próprias necessidades é que são inadequadas e devem ser negadas. Valéria, por conta da constante má alimentação e da consequente baixa imunidade do corpo, passou por diversas doenças e precisou encará-las sem ajuda materna. Contraiu dengue, sendo necessários três meses de repouso absoluto para recuperação, pois, sem resistência à doença, em cada um desses meses foi internada para tratamento. A meningite veio logo depois, o que deixou a mulher ainda mais fraca, sem conseguir se levantar da cama e tomar um banho. Permanecia refugiada em um quarto escuro. Como se não fosse suficiente, meses depois, retirou dois tumores do osso da perna, do lado direito da parte superior

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da nádega. Eles não eram malignos, mas estavam necrosados há um ano e meio, e toda a pele que ali os rodeava foi retirada. — Meu bumbum começou a murchar, era como se ele estivesse sendo sugado por algo. – lembra Valéria. Para reverter o estado do local onde estava o tumor, gorduras do corpo deveriam ser retiradas e injetadas no local. Mas as operações só poderiam se iniciar após sete meses, tempo necessário para cicatrização interna da ciruruga. Nesse período, Valéria se olhava no espelho e não se encontrava. Uma somatória de tristezas carregadas ao longo da vida, que até então pareciam sem importância, tomavam forma. Enquanto ela enxergava seu reflexo e observava a parte direita da nádega que havia perdido, ela passava a não mais acreditar na reversão daquele problema, sem crer no sucesso da cirurgia. Do local, nove nódulos foram retirados, o que resultou em onze internações em apenas um ano. Com o excesso de medicamentos, os cabelos começaram a cair em tufos, as unhas já eram imperceptíveis. Ela não soube lidar com aquela situação, e enfrentou depressão profunda, início de Síndrome do Pânico, inapetência gradual e necessitou de consultas com psicóloga todos os dias. O cóccix “entortou” pela forma errada como precisava sentar, o que causava dor física e emocional. Valéria se sentia deformada e achava que nunca mais conseguiria ficar nua na frente de um homem. No estudo divulgado pela Sociedade Brasileira de Pediatria, há uma relação entre os transtornos mentais e alimentares: Depressão maior é o transtorno afetivo mais comum na anorexia nervosa. Os transtornos afetivos representam 70% das comorbidades – mais de um transtorno ocorrendo simultaneamente – no momento da internação de pacientes que buscam tratamento. A depressão maior é diagnosticada em 53% das pacientes que buscam tratamento para anorexia. Durante os períodos das cirurgias, Valéria se mantinha, por dias, fechada no quarto e pouco comia. Os filhos adolescentes precisavam de terapia para que pudessem se estruturar emocionalmente diante

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daquela situação por que a mãe passava. Depois de doenças e tristezas, a anorexia chegou e se mostrou a pior doença e tristeza que Valéria enfrentou. Contra dengue, meningite e tumor, ela podia lutar, mas o transtorno alimentar era uma batalha interna, uma briga contra o invisível. Em todo esse tempo, as dificuldades tiveram de ser vencidas sem auxílio materno, a mãe de Valéria chegou apenas quando recebeu a notícia de que a filha corria risco de morrer. Mesmo assim, ela levou alegria ao coração da vítima do distúrbio. Chegando ao Proata, Valéria se deparou com meninas extremamente magras, doentes, em estados deploráveis. A mulher, de mais de 40 anos, não podia e não queria aceitar que era, também, uma daquelas adolescentes, implorando um socorro interno. Para socorrê-la, foi designada a médica Veruska, uma psiquiatra jovem, educada e que olhava como quem entende o que aquelas pessoas ali passavam. Sem recriminação. — Ela tinha cara de colinho, é assim que eu me lembro dela. – diz Valéria, a respeito da profissional que a acompanhou no Proata. A médica pediu que a paciente subisse na balança. O aparelho registrou 39 quilos. Veruska olhou para o peso que registrava, tornou a observar a vítima e disse em alto e bom tom: “Essa doença pode te matar”. Valéria possuía anorexia nervosa e purgativa. Portanto, ela precisaria permanecer internada e o prazo da alta do hospital estava diretamente ligado ao prazo de vida da vítima. Valéria não se conformava em ser uma anoréxica! Ela tinha medo de sal, tinha pavor de comida, a nutricionista da clínica mandava frutas e vitaminas sem leite para que a paciente pudesse se alimentar. O quadro clínico da anorexia, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, se caracteriza pela recusa do paciente em manter o peso no limite inferior (ou acima dele) para a idade e altura – por exemplo, perda de peso e manutenção desta em 15% ou mais do esperado, ou ausência de ganho de peso esperado para aquele período de crescimento, levando a um peso menor do que 85% do esperado. Ocorre, nos pacientes,

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um medo intenso de ganhar peso ou tornar-se gordo, mesmo estando abaixo do peso para a altura e para a idade, acompanhado de distorção da imagem corporal e, no caso das mulheres, amenorréia, ou suspensão da mesntruação. As complicações mais comuns são semelhantes às de um quadro de desnutrição crônica. Anorexia? Como uma doença podia ter tomado conta da vida de uma terapeuta? Valéria buscava se policiar, dizendo a ela mesma que não queria passar por aquilo, que iria se curar. Porém, o transtorno parecia falar mais alto, gritar e ofuscar a voz da mulher. No dia seguinte à internação, a vítima se deparou com uma bandeja repousada em cima da mesa. Cobrindo o retângulo bege, os alimentos da doente estavam ali presentes. Na primeira colherada, uma ânsia de vômito a consumiu. Durante toda a madrugada, a mulher vomitava sem pausas. O chão, o lençol, todo o banheiro estavam sujos, ela não tinha controle. A cena se repetia nos dias seguintes, enquanto carregava o pedestal do soro, Valéria se aproximava da comida. O cheiro estava cada vez mais nítido e o desespero cada vez mais intenso. Comia, vomitava, pedia nova alimentação e retornava a vomitar, involuntariamente. A enfermeira entrou no quarto e não encontrava onde pisar: tudo estava consumido pelo vômito da paciente. Nem água era possível ingerir, Valéria estava exausta com aquela situação. A médica chegou para a visita e explicou que o organismo da paciente não aceitava mais o alimento, que a doença estava no ponto crítico e a solução seria a alimentação feita via sonda gástrica. Impôs o uso do aparelho e afirmou que, se Valéria se recusasse a utilizá-lo, os enfermeiros deveriam amarrá-la, ou senão ela iria morrer. Considerando que a mortalidade de anorexia nervosa está em torno de 4% a 8% no Brasil, o prazo de 72 horas era o que a paciente teria para viver se resistisse ao tratamento. A equipe clínica avisou a toda a família e explicou a situação em que a mulher se encontrava: à beira da morte. Ao mesmo tempo, Valéria tinha alucinações, sonhava com o pai que já havia falecido, conversava com o homem que lhe pedia para que se recuperasse.

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— Eu só fui entender a doença quando tive esse pico: eu estava morrendo de anorexia. – lamenta a mulher. – Eu não estava mais ali, eu estava quase morta, eu não sei se existe vida após a morte, mas entendo o que eu passei. — Só me dei conta [da gravidade da doença da mãe] quando percebi que ela se encontrava muito debilitada, doente com frequência e não conseguindo trabalhar. Não sabia da existência de uma doença com essas características. – conta a filha Nátali, sobre o momento que percebeu que a mãe estava, de fato, à beira da morte. A fraqueza da mulher continuou, enquanto estava internada e tomar banho era como um enfrentamento de guerra para Valéria: a deixava sem forças e, quando conseguia se lavar, logo em seguida ela precisava se deitar para descansar. Durante dias, a enfermeira passou a vestir a paciente enquanto esta estava ainda deitada. Mesmo com o cansaço diário, mesmo com a luta, o risco de morrer não era mais uma possibilidade. Ela havia adquirido peso graças ao uso da sonda por dozes horas diárias, que não deveria ser retirada, pois era necessária para o retorno a uma vida saudável. Valéria recebeu alta ao final de um mês, mas se comprometeu a seguir a dieta por sonda mesmo na própria casa. Ao chegar à residência, ela imediatamente acessou a internet buscando informações sobre a doença. Entrava em grupos das redes sociais para conversar com anoréxicas e bulímicas. — Queria encontrar alguém como eu, queria entender o que estava acontecendo comigo. – justifica a atitude, já que, mesmo tendo enfrentado um pesadelo, os pensamentos de emagrecer eram ainda presentes. No mês seguinte, Valéria se dirigiu a uma nutróloga e descobriu que havia engordado 10 quilos. O novo peso era motivo de vitória para a família, mas de angústia para aquela mulher insatisfeita com o próprio corpo. A vítima do transtorno havia se tornado um paradoxo: um lado dela dizia que somente as pessoas magras conseguem ser felizes e que ela estava imensamente gorda, o outro se desesperava com aquela situação e buscava uma saída. — Eu tinha chegado em uma contradição e estava imensamente triste com isso. – relata a terapeuta que, quando via pessoas rindo na rua

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pensava: — Como elas conseguem sorrir? Como conseguem ser feliz? Será que mais alguém sente o que eu sinto? A Valéria anoréxica havia se tornado mais menina que mulher. Os mais de 40 anos de idade não refletiam os comportamentos juvenis que ela tinha. Pensava ser incapaz de reverter aquele quadro clinico, e, o pior, pensava ser incapaz de ser mãe. Todas as vezes que entrava na Sala do Proata, as pernas bambas e a expressão assustada demonstravam como ela era, então, uma garota frágil, aguardando atendimento. Embora houvesse chegado o momento de retirar a sonda, um alívio para Valéria, ela ainda ouvia uma voz internamente que a atormentava e a “obrigava” a emagrecer. Por conta própria, a mulher começou a ingerir medicamentos visando à magreza, contra, é claro, indicação médica, além de retornar ao uso frequente de laxantes. As pequenas calças que não lhe serviam mais, o espelho que refletia uma imagem com marcas de gordura, um pensamento obsessivo de se tornar magra faziam com que a anoréxica deixasse de lembrar o sofrimento de quase morte por que passou. — Eu pensava: Estou enlouquecendo... Como podia esquecer em tão pouco tempo tudo que passei? Sentia vergonha da minha família, o que causava a eles parecia não ter volta. A família era a única estrutura que mantinha Valéria viva, apesar de estar, fisicamente e emocionalmente, quase morta. Até que um dos seus alicerces, o filho do meio, Rafael, vivenciou uma tragédia e foi internado, de imediato, em estado grave. Ele precisava da mãe mais que nunca e ela teve que encontrar forças para se levantar e socorrer o seu “menino”. Rafael fora agredido por um segurança em um bar e agora estava em operação, e seria encaminhado para a UTI em coma induzido, já que havia sofrido traumatismo craniano e os médicos retiraram parte do osso do crânio. Ele sofreu uma lesão tão profunda, a ponto de afetar o lobo temporal. Quando Valéria o viu, no hospital, ele estava com a cabeça enfaixada e o corpo entubado. O restante da história é a cirurgia e o desespero por que toda a família passou. — Pensava que Deus havia me abandonado. Por que tudo

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aquilo acontecia comigo? Que medo eu estava que meu filho sofresse consequências, e, pior, que medo eu estava de perdê-lo. O acontecimento foi alvo de curiosidade e o ferimento da cabeça de Rafael causou alvoroço na imprensa, que ligava diariamente em busca de informações sobre o garoto e a tragédia que o envolvia. Todos os familiares que ali estavam acompanhando o caso e conheciam o estado de saúde de Valéria, “brigavam” com ela a fim de convencê-la a se alimentar. Ela, por outro lado, variava entre o quarto da filha, internada em estado de choque por conta do que ocorrera com o irmão, e os olhos na porta da UTI que, a cada vez que abria, despertava a atenção da mulher. A falta de preocupação com a própria saúde obteve os resultados que, aparentemente, para ela eram positivos, mas que acarretariam graves consequências. Valéria havia emagrecido quatro quilos em apenas dez dias. Mesmo com os quilos a menos, ela ainda conseguia sentir gorduras quando tocava em seus ossos da costela, se via gorda no espelho quando estava esquelética aos olhos da sociedade. — Eu tinha certeza que estava enlouquecendo. Com o passar dos dias, Valéria perdia cada vez mais peso e, consequentemente, uma parte da vida. Neste ritmo, a morte seria, novamente, uma real possibilidade. Contudo, o filho se recuperou e saiu do hospital, restabelecendo-se, depois de um tempo, e levando uma vida normal. Mas, para Valéria, a vida teve outro rumo. Para obter o corpo “perfeito”, ela continuava a fazer uso de laxantes e medicamentos visando emagrecimento, enquanto ingeria os antidepressivos e antipsicóticos receitados pela psiquiatra. Precisou ser internada novamente. Sete dias de repouso e soro glicosado: era o que a médica havia receitado, buscando salvar a vida da paciente. A cada gota, Valéria tinha a sensação que estava engordando incontáveis quilos. Sem pensar nas próprias atitudes, ela jogava, a cada dia, a comida no vaso sanitário e despejava a dieta na pia do banheiro. Passada a semana, a médica responsável, ao perceber que a paciente não havia se fortalecido fisicamente, e tampouco

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emocionalmente, recusou oferecer alta da clínica. Valéria não conseguia mais encarar um novo período de internação. Aquele local, aquelas pessoas com as vestimentas brancas lembravam-lhe a morte que estava tão clara em sua vida. Ela resolveu se responsabilizar pela própria saúde, assinando a alta hospitalar e prometendo, a ela mesma, repensar em tudo o que havia cometido contra seu corpo e sua felicidade. Durante toda a semana, ela se esforçava para comer de três em três horas, tempo estabelecido para quem se compromete a possuir uma rotina alimentar saudável. — Também prometi ser mais sociável e aceitar comer em público, coisa que não fazia antes. Minha consciência latejava por tudo que tinha aprontado no hospital, o mínimo que tinha que fazer era tentar algo pela boca mesmo. Ela voltou a trabalhar como terapeuta e passou a atender as crianças especiais em seu consultório, que estava trancado e abandonado por conta da doença. Iniciou, também, um curso de capacitação para professores do ensino fundamental, já que ministraria palestras sobre déficit de atenção, hiperatividade e distúrbio de aprendizagem. Mesmo com os fortes remédios que ingeria diariamente, ela conseguia ter forças para os trabalhos. A vontade de agir não estava morta, mas adormecida em uma Valéria doente, que despertava, mesmo que em passos lentos e desenhava uma nova mulher. A vontade de ser magra, de obter o corpo perfeito, em seus pensamentos, ainda permanecia, mas a persistência em evitar que a anorexia a dominasse tornava-se maior. Havia também o desgaste físico e emocional das cirurgias pelas quais teve que passar e que aconteciam a cada quatro meses: na última operação, a gordura das costas foi retirada para ser injetada no cóccix, nas nádegas e na vagina. Mesmo com toda a dor e com os hematomas, mesmo com a imagem daquele corpo constantemente modelado e da gordura que insistia em aparecer como reflexo, Valéria buscava a abstração dos pensamentos anoréxicos.

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Para cuidar de si mesma, a terapeuta persistia no tratamento com psicóloga de Taubaté e com a psiquiatra Veruska, em São Paulo. Nesta época, seu peso normal era 46 quilos. Após a última cirurgia, Valéria viveu outro drama. Sua mãe sofreu uma isquemia cerebral e teve morte encefálica decretada pelos médicos. A filha estava proibida pelo médico de viajar, pois estava recém-operada novamente, mas ela não pensou duas vezes, arrumou as malas e se dirigiu ao município onde a mãe se encontrava internada, que não resistiu ao quadro. No momento do enterro, Valéria retirou um terço que estava nas mãos de sua mãe e o pressionou próximo ao peito. Aquele colar, que significava muito mais que um objeto, foi guardado como um resto da figura materna que havia se perdido para sempre. Aos poucos, a fé no destino seguro que as almas de seus familiares teriam tomado, a fé na vida que levaria sem eles, mas que deveria a surpreender de forma positiva e principalmente, a fé em si, a moveu para continuar buscando a própria evolução. Por mais que o espetáculo da vida houvesse aberto cortinas para o sofrimento, o tempo guardava boas notícias para Valéria. Tempos depois, uma médica do Proata, ao perceber o comportamento da paciente em questão – que conversava com vítimas de distúrbios, entrava em espaços em que estas estavam em busca do entendimento da doença, lugares estes que permitiam a entrada apenas de médicos – a convidou para montarem um grupo sobre transtornos alimentares. A especialista queria entender os pensamentos e sentimentos daquelas meninas e mulheres. Valéria buscava compreender os tratamentos para a doença, o uso das medicações, o lado medicinal daquele sofrimento que era tão presente em sua vida. Os estudos aconteciam ao longo de duas horas de todas as quartas-feiras. Um clínico geral também propôs um convite: ajudar as anoréxicas e bulímicas internadas no hospital. Diante de ambos os convites, Veruska, a mulher em que a paciente mais confiava, entendeu uma oportunidade para que Valéria encarasse um desafio mais que profissional, e sim pessoal, e permitisse que a terapeuta nela adormecida gritasse mais alto que a anoréxica sem limites.

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— Eu teria que, no mínimo, ter consciência de me alimentar corretamente para ajudar as outras pessoas com o mesmo problema. Viver com elas esse momento foi muito especial, eu sabia o que elas sentiam e sabia acolhê-las sem crítica, apenas com carinho. Aos poucos, as meninas se reeducavam a comer e a adulta Valéria fazia o mesmo. Enquanto suas medicações aumentavam, ela criava forças para não desistir e persistia na alimentação diária de três em três horas. Aliados aos novos trabalhos que apareciam, a TV Vanguarda aprovou um projeto que Valéria havia proposto há um mês à emissora: um CD de tabuada organizado por Valéria seria colocado em prática, em uma gincana que aconteceria nas 46 cidades que recebiam sinal da rede de televisão em questão. Ela contaria com a ajuda do apresentador Daniel Pasqualim para promover o “Tabuada Vanguarda”. Juntamente com o secretário de Educação do município de Taubaté e com os educadores de todas as regiões, o piloto do programa foi editado e ganhou vida, levando alegria à vida de Valéria, a criadora de um projeto de imensa repercussão e valor para aquela mulher. — Estava feliz com tudo que estava acontecendo, assim eu me envolvia no trabalho e tirava o foco constante sobre mim. Valéria começava a entender, enfim, que podia guiar a vida apesar da anorexia. Quando a primeira gravação aconteceu, a terapeuta via as crianças vibrando com a gincana e vibrava por dentro também. — Ao mesmo tempo em que eu me emocionava, eu perguntava: “Como eu consegui tudo aquilo?” E percebia que precisava encontrar forças para sair da minha doença, pois eu sou capaz de muitas coisas e não podia permitir que aquilo me dominasse mais. Para adquirir peso de forma saudável, a nutricionista do Proata atendia Valéria, que sentia cada vez mais afeição pela especialista. Dentre todos que diziam “vamos engordar”, a frase “vamos nos nutrir” chamou atenção da paciente, que buscou a nutrição como saída para aquele problema. Em bora os pensamentos anoréxicos permanecessem os mesmos, um lado do cérebro, ainda mais forte, comandava para que a

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mulher entrasse em uma reeducação alimentar. Estudos revelam que a prevalência da anorexia nervosa é nove vezes maior no sexo feminino, e somente 5 a 10% dos pacientes com o transtorno são do sexo masculino. — Fatores socioculturais, como culto à magreza, são mais frequentes em mulheres, o que pode ser considerado fator de risco. – explica a Doutora em Psicologia, Maria Barreto. A Sociedade Brasileira de Pediatria esclarece que o tratamento da anorexia está ligado a seis essenciais fatores: psico-educação entre pacientes e familiares, reeducação alimentar, uso de medicação baseada na presença de quadros psiquiátricos associado, terapia cognitivo-comportamental, psicoterapia individual e abordagem de aspectos da dinâmica familiar. Cada vez mais, Valéria buscava cuidar do próprio corpo de forma saudável, se atingir a magreza parecia impossível a ela, cuidar do restante de sua imagem era uma nova meta. Ela deslizava a escova por entre os fios dos cabelos negros, que, apesar de fracos, recebiam cuidados diários. Aquele cabelo, de um preto brilhante e de uma maciez notável, significava a cura do tumor e a superação, mesmo que lenta, da anorexia. As madeixas eram o símbolo da própria luta diária contra o espelho que refletia uma mentira que ela não mais queria ver. Ela ainda se via gorda no espelho e as recaídas emocionais não cessavam totalmente. Certa vez, em uma consulta ao Proata, que havia se fundido ao Caps, ouviu da nova médica que sua doença era crônica e que não teria cura. Nesse ponto, a paciente já tinha 44 anos de idade e não queria passar mais 44 como uma anoréxica. De volta a Taubaté, Valéria se desesperou e jogou os medicamentos de tratamento no lixo. Sua irmã Eny gritava em desespero para que sua irmã parasse, mas esta parecia não dar ouvidos, estava surda, cega e muda diante da notícia que havia recebido. — Enquanto eu jogava os remédios fora, Eny os pegava de volta e dizia que eu não podia abandoná-los repentinamente, que meu organismo poderia reagir à falta imediata de medicação. Eu não me importava, imaginava que pior que a situação que eu estava, não poderia ficar. Valéria chorou por dias seguidos, sem encontrar um caminho

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para a cura da doença. Enquanto as lágrimas escorriam, seu corpo todo tremia por conta da falta de medicamentos. Em menos de seis meses, a anorexia parecia ter ganhado a força inicial, a vítima parou de comer, comprou novos remédios para emagrecimento e não se importava com o próprio futuro. Lucas, seu filho, dizia à mãe que ela estava se matando. Rafael, embora se decepcionasse com tais atitudes, não se manifestava. Nátali estava morando a quilômetros de distância, e, antes que recebesse a notícia por outras bocas, Valéria mandou um e-mail tentando explicar seus atos, mas a filha, revoltada com a situação, respondeu: “Você não tem o direito de nos abandonar, meu maior sonho é ver aquela mulher antes da anorexia. Por que em seu trabalho você é tão segura e na vida pessoal você age dessa forma?”. — Lembro-me que desabafei que lamentava por meus filhos talvez não conhecerem a avó. Minha mãe diz que, depois dessa fala, muita coisa mudou no seu interior, ela finalmente decidiu sair do quadro e perceber o quão desgastante era para a família toda. Não é uma pessoa que possui a anorexia, todos acabam pertencendo ao quadro! – desabafa a “menina da casa” sobre como era ser filha de uma mulher que sofria de anorexia. Valéria entendia que Nátali era tudo que ela buscava ser, mas pensava não conseguir. — A Nati é a alegria daqui, sua risada ecoa por toda a casa, ela é feliz, determinada e corajosa. Adoro o seu jeito de se vestir. Ela é menina mulher, sensual, e tem um corpo maravilhoso de perfeito, ela é o referencial do que eu era e do que eu perdi com o tempo. Ela tem vergonha de eu ser anoréxica, para ela isso é inadmissível, ela não me entende, mas não me abandona, isso me acalma. Lendo e relendo a conversa com a filha, Valéria começou a pensar que não tinha o direito de tomar aquelas atitudes que afetavam a toda a família. Inicialmente, ela abandonou o inibidor de apetite, o próximo passo foi retornar à alimentação regrada, mesmo sem ter fome, e escolher uma única roupa para usar durante todo o dia, os espelhos do quarto, sala e banheiro foram tampados com cartolina, com apenas um

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espaço para refletir a face, evitando que ela pudesse olhar o próprio corpo. — Na anorexia a percepção corporal está muito afetada, misturando realidade com fantasia. A pessoa não se reconhece no espelho, então não vê a magreza que pode apresentar. – explica a Doutora em Psicologia, Maria Barreto. As idas ao CAPS passaram a acontecer a cada dois meses, a paciente deixou de comprar os medicamentos indicados pelo psiquiatra, mas focava nas consultas com a nutricionista, que a auxiliava na reeducação alimentar. Substituiu os purgativos por vitaminas que auxiliavam o funcionamento do intestino. Fome, salivação, prazer em comer eram as metas impostas por Valéria, que deixava de pensar que poderia engordar, mas entendia que teria um corpo sadio e forte, livre da anorexia. — Se eu soubesse o mal que estava fazendo a mim mesma, não agiria daquela forma. Passei anos sofrendo com isso e ainda é uma luta diária. Sei que a doença está dentro de mim, mas hoje sou eu quem mando nela. Em certa vez, chegando em casa à noite, depois do trabalho, Valéria se dirigiu à cozinha para comer. Passando por um espelho descoberto no corredor da residência, que refletia o movimento da sala, a mulher percebeu uma figura no cômodo e, no mesmo instante, se sentiu amedrontada com a hipótese de ter alguém em sua casa naquele horário. Voltando com os passos em ré, Valéria olhou no espelho e o susto misturado à felicidade a tomou, quando se deparou com a imagem de uma pessoa alta, com o corpo coberto por um vestido e sapatos de salto alto. Por debaixo da vestimenta estava uma mulher magra, excessivamente magra. Naquele instante, ela se reconheceu. Era ela naquele espelho que, pela primeira vez, após anos encarando a anorexia, enxergou o real reflexo de sua aparência. Apesar dos ossos evidentes, a terapeuta não podia deixar de se entusiasmar, como há tempos não fazia. Finalmente, a doença estava superada, o espelho não mais mentiria e nem traria de volta a tão temida anorexia. Na mesma noite, ela acordou a todos que dormiam na casa para contar a novidade, dizia que podia se olhar e reconhecer o que era de fato o transtorno e as consequências em sua vida. Em dezembro de 2009,

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ela se sentia real e finalmente curada. Pela primeira vez, as festas de finais de ano foram comemoradas com sorrisos e uma alegria notável. Com as forças renovadas, Valéria publicou as páginas que escrevia durante a superação e o “Diário de uma Anoréxica” chegou às bancas, com o intuito de auxiliar outras vítimas do distúrbio alimentar. — Quero deixar claro que essa doença é como o alcoolismo, quem tem é para o resto da vida e colocá-la de lado e viver a vida é difícil, mas nunca mais me permitirei ser como antes. A cura da anorexia não é algo palpável, como uma caixa de inibidores de apetite, pensamos e sentimos algo que parece estar além das nossas forças, mas acredite, tudo é possível. Com a superação do distúrbio, ela aprendeu a se valorizar, e conheceu um companheiro – Celso Linguanotto – que a entende e apoia, vivendo com Valéria um relacionamento maduro e sadio que ela tanto buscara. — Ela é uma pessoa intensa em tudo que se propõe a fazer, não consegue se manter fria a nada, porém, hoje vejo que ela sempre encontrará uma maneira de suplantar a dor, as agruras da vida de alguma maneira, por isso tenho certeza que a anorexia está morta em sua vida. – conta Celso, sobre como é a companheira que ele conhece hoje. Atualmente, Valéria busca reduzir o ritmo de trabalho para desfrutar mais dos momentos de lazer, da maneira que ama e com as pessoas que ama, lutando por ser aquela mãe que se perdeu ao longo da doença. Sem problemas com espelhos, hoje ela se diz feliz, “inexplicavelmente feliz”. E, como uma mulher vitoriosa, afirma: — Conheci a morte de perto e agora anseio por viver cada dia.

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Afastada da pr贸pria vida

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“Caí em meu patético período de desligamento. Muitas vezes, diante de seres humanos bons e maus igualmente, meus sentidos simplesmente se desligam, se cansam, eu desisto. Sou educado. Balanço a cabeça. Finjo entender, porque não quero magoar ninguém. Este é o único ponto fraco que tem me levado à maioria das encrencas. Tentando ser bom com os outros, muitas vezes tenho a alma reduzida a uma espécie de pasta espiritual. Deixa pra lá. Meu cérebro se tranca. Eu escuto. Eu respondo. E eles são broncos demais para perceber que não estou mais ali.” Charles Bukowski (1920-1994)

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a família Ribeiro, a maioria dos membros é do sexo feminino. O engenheiro Carlos Alberto é pai de Mariana e casou-se com a diretora Márcia Aparecida, mãe de Nina. O casal teve duas filhas: Camila e Carla. Esta última é a caçula, que nasceu em 27 de setembro de 1991, em Lorena (SP), e convive com a depressão há mais de três anos. Tudo começou no início do ano letivo de 2010, quando Carla Ribeiro, aos 19 anos, chegou à sala de aula do cursinho pré-vestibular, em São José dos Campos (SP), no horário estipulado e se sentou em uma carteira na primeira fileira, ajeitando o material no local escolhido. A jovem se comportava com atitudes semelhantes àquelas que tinha no ensino médio, pois o ambiente de aula parecia familiar, mesmo situado em outra cidade, e não permitindo a Carla ter um enorme círculo de amizades, como acontecia na escola. A estudante esperou o professor chegar e oferecer instruções aos alunos do cursinho exclusivamente voltado para aqueles que queriam prestar Medicina. Quando o docente entrou na sala, disparou frases de estímulo, e, ao mesmo tempo, colocou medo nos alunos: “Vocês têm que estudar até o ouvido sangrar”, relembra Carla, as palavras proferidas pelo educador. A estudante estava assustada, mas entendia que precisava ser forte e permanecia atenta ao que aquele homem dizia, sem se preocupar em buscar novas amizades ou algum apoio confortável para ela. Embora Carla não se relacionasse com alguém da turma de alunos, a segurança de saber que a sua amiga de infância estava na sala de aula ao lado a confortava, pois entendia que as aulas acabariam no horário previsto e que ela poderia encontrar um rosto familiar na saída. As oito horas diárias de duração do cursinho passaram rápido, a estudante nem escutou os tique-taques e logo o relógio já marcava nove horas da noite. Carla estava eufórica e não parecia difícil ser feliz naquele ambiente. Apesar do medo, a vontade de explorar novos horizontes era tentadora. No caminho da volta para casa, Carla começou a pensar nas pessoas presentes naquele espaço. Gente de todo canto do Brasil se reunia em um mesmo local em busca de um mesmo sonho: acer-

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tar as questões nas provas, e ver o nome na lista de classificação para o curso de Medicina. Todos na turma tinham estudos reforçados, foco diário na meta, competição extrema com os colegas que se sentavam à frente, atrás, ao lado; havia competição entre todos ali presentes. Naquela noite, Carla chegou à república na qual passara a morar e se aprontou para dormir, pois o dia havia passado e ela estava exausta. Arrumando a cama, ela pensou no novo quarto em que estava, em uma outra cidade, com outras pessoas e responsabilidades. O frio na barriga aparecia, mas a garota não se deixou abater e a ansiedade em explorar o novo mundo permanecia. O tempo foi passando e, conforme os dias completavam as 24 horas, encarar o que viria parecia mais difícil. Após 60 dias morando em São José dos Campos, a garota não conseguiu suportar. A pressão por parte dos professores, o constante medo de não atingir a meta imposta e a distância de casa e do lugar seguro fizeram com que a estudante iniciasse o processo de tristeza profunda. Certo dia, em uma prova, as questões presentes na folha de papel ficaram com as respostas em branco. Carla não conseguia preencher as linhas, não pensava ser capaz. A estudante fazia uma grande força para segurar as lágrimas, a vontade era sair dali, correr para bem longe e só parar quando encontrasse a paz. Com o coração disparado, um olhar assustado e as mãos trêmulas, a garota se sentia insegura diante do restante do ano que a aguardava. “Será que eu vou dar conta?”, “Será que eu vou ser aceita?”, eram as perguntas que dominavam os pensamentos dela naquele momento. “Como seria viver o próximo ano que ali se apresentava? Como seria 2010?” Aquela não era apenas uma simples mudança de lugar, mas a passagem de um ambiente conhecido e confortável para um novo mundo. — Eu só pensava em voltar para casa – se lembra Carla. Os pais perceberam o que acontecia quando a filha começou a ligar todos os dias, de repente. Até que começou a ligar todas as horas, e as ligações eram acompanhadas de choro, de desespero. A estudante decidiu parar de fazer os simulados de domingo impostos pelo cursinho

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e, após as aulas, todos os sábados entrava em um ônibus e voltava para casa, em Lorena. — Pertencer e se identificar com um grupo é tão necessário ao ser humano quanto para a maioria dos animais. É por isso que nos unimos e formamos famílias, amigos, grupos, sociedade. Mas quando temos que nos apartar de nosso grupo de origem, corremos o risco de nos entristecermos. – explica o psiquiatra Thales Pereira. Carla não conseguia acabar com o sofrimento, ela não queria senti-lo, mas a angústia diante da vida era imensa. O pesadelo que vivia no cursinho se confundia com as inseguranças que nada tinham a ver com a sua vida profissional. Era impossível escapar do medo de ser infeliz para sempre, do desespero em não se sentir satisfeita. Aquela luta era só dela, mas atingia uma centena de Carlas, que a dominavam e não cediam lugar ao descanso. A imensidão da dor começou a afetar aos pais da jovem, até que Márcia e Carlos decidiram: havia chegado a hora de procurar um especialista. A mãe já previa o que resultaria da consulta. Não, ela não era vidente, mas a depressão que a consumiu na vida adulta fez com que a diretora de escola entendesse o que é ser infeliz, como doía buscar solução para o que está dentro de si mesma. O resultado foi o esperado: a psicóloga de São José dos Campos diagnosticou o transtorno depressivo e Carla iniciou, simultaneamente à terapia, o tratamento psiquiátrico na cidade natal, Lorena. Segundo a American Psychiatric Association, que, entre outros estudos, divulga pesquisas sobre a depressão em adolescentes, ter um dos pais com depressão aumenta de duas a quatro vezes o risco da criança apresentar um quadro depressivo durante a vida. No Brasil, a Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) realiza congressos há mais de uma década, onde discute, entre outros assuntos, as representações sociais da depressão na adolescência, o que demonstra a preocupação dos especialistas com a questão. Todas as quintas-feiras, dali em diante, passaram a ser marcadas para as consultas à terapeuta. A estudante se levantava cedo e se dirigia ao

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consultório da psicóloga, com quem a jovem simpatizara, a especialista era sempre muito atenciosa, espalhava um sorriso no rosto ao ver Carla chegar. Uma mulher de cabelos loiros que pareciam iluminar o ambiente, com pernas eram longas e afirmavam a posição que ela buscava passar ao pacientes; o corpo magro e delicado, coberto por roupas de estilo sóbrio, passavam a Carla a imagem que ela construía de uma psicóloga perfeita. Terapeuta por formação e carinhosa por educação, a mulher parecia interessada na vida da paciente, fazia perguntas, buscava assuntos, incitava a menina a desabafar e entender porque estava assustada por não entender a própria doença. A promessa do tratamento era de melhorias significativas para a vida da garota. No início, ainda com receio, Carla entrava na sala de consulta, buscava parecer confortável, mas sentia apenas medo do que aconteceria ali. Com a cabeça baixa, a estudante estalava os dedos a cada minuto, buscava um misto de distração como uma fuga para o nervosismo. Às perguntas da terapeuta, Carla respondia apenas “sim” e “não”. Com o passar do tempo, as conversas fluíam, e a especialista conseguia entender o que se passava com a paciente, aconselhando-a a tomar atitudes positivas. Os encontros aconteciam semanalmente, nas quintas-feiras, na nova cidade onde residia. Quando chegavam as sextas-feiras, a estudante retornava à casa dos pais, onde finalmente se sentia bem e segura. O momento de chegada era marcado com alegria. Ao descer do ônibus, os pais se aproximavam da jovem e a recepcionavam da melhor maneira que encontravam. Os sábados e domingos eram tranquilos e familiares, a estudante passava tardes relendo o material escolar, enquanto os pais continuavam as rotinas dos finais de semana, mas a segurança em saber que havia alguém do outro lado da parede a confortava imensamente. Nas segundas-feiras, Carla se dirigia ao psiquiatra em sua cidade natal, que receitava tranquilizantes e tratava da jovem para que ela voltasse um pouco melhor para São José dos Campos. O médico, apesar de não prescrever medicamentos constantemente, entendia que o caso

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daquela paciente merecia atenção especial, e, que sem os remédios, seria ainda mais difícil superar a depressão. — O tratamento bem orientado tem se mostrado eficaz e protetor da saúde daqueles que sofrem. Estatísticas demonstram tal eficácia. Na prática clínica, observam-se excelentes resultados. – explica o psiquiatra Thales Pereira Além da ajuda médica, a compreensão da família era fundamental. Nada confortava tanto a garota quanto o amparo familiar. Os pais sabiam, conheciam a filha que haviam criado e cuidado sob a proteção diária. A menina, ela tinha certeza, o cheirinho de “lar”, o quarto pintado com a parede verde escolhida por ela, o tapete felpudo que já rendera uma noite procurando a lente de contato que havia enroscado nos pelos, os bichos de pelúcia que ganhara dos amigos. Dos amigos, ela se lembrava com carinho e se tornara cada vez mais difícil buscar novas amizades naquela cidade desconhecida. Após as segundas-feiras de consultas, Carla retornava a São José dos Campos. Ela adentrava o ônibus chorando, mas ia, sentava-se na poltrona indicada na passagem, abria a janela e se despedia dos pais. Com um sorriso forçado e os olhos marejados a estudante acenava, enquanto ouvia o barulho do motor do ônibus funcionando, começava bem baixo e aumentava gradativamente. Passados 103 km, o ônibus estacionava no terminal rodoviário do município onde se situava o cursinho. A jovem descia, retirava a mala e se direcionava a casa onde vivia com as outras duas amigas. Lá, não havia o quarto só dela, nem as cores que ela tanto amava, mas era preciso permanecer ali até o próximo final de semana. O tempo passava e a rotina não mudava: acordar às 4h30 para estudar, arrumar a casa e ir ao cursinho. Assistir às aulas, retornar à residência e ler um pouco mais da matéria aprendida. Aos finais de semana, participava de provas de vestibular. Carla viajava por diversas cidades, percorria as universidades em busca da sala em que seu nome estivesse presente, um dos primeiros da lista por causa da ordem alfabética, e era fácil encontrar o local destinado, era simples sentar-se à

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mesa e aguardar orientações para começar a avaliação. A complicação começava quando a prova era colocada sobre a mesa. Questões e mais questões estavam em frente aos seus olhos e os pontos de interrogação causavam desespero. “O que responder?” Carla havia estudado, e cada resposta constava nas pilhas de livros encontradas em seu quarto, mas o nervosismo e a cobrança extrema da estudante dificultavam qualquer entendimento sobre as perguntas ali presentes. Ela se perguntava, angustiada: “Qual das respostas seria a certa: a-b-c-d-e? Como escolher?” A garota saía das salas, os pais aguardavam as reações da filha e esta apenas respondia: “Não consegui, não vou passar”. Era o que ela tinha certeza, nunca iria obter aprovação em um vestibular de Medicina, não importasse o quanto estudasse, estes eram os pensamentos da jovem. A falta de autoestima sempre assombrou a vida de Carla. Embora vivesse rodeada de amigos, embora fosse querida pelos pais destes amigos, pelos professores, por todos que a conhecessem, a insegurança era constante. — Ela quer ser perfeita, ela não admite errar. A minha filha só vai ser feliz quando entender que é imperfeita, como todos. – desabafa Carlos, pai da menina, ao lembrar com tristeza das atitudes da adolescente. Nas situações das mais diversas, Carla se comprometia a agir de determinadas formas que não lhe agradavam. A busca por fazer com que os amigos a quisessem sempre por perto determinava as atitudes da garota. Ela queria se sentir querida, ela queria ser aceita. Carla não entendia que não precisava tomar as atitudes impostas para ser amada, pois o jeito dócil, o amparo constante a quem precisa e a lealdade sempre foram traços marcantes na jovem, que conquistavam quem estava ao seu redor. Mas não bastava para ela. — A Carla é aquela amiga que você sabe que pode contar a qualquer hora – explica Camilla Fucuda, amiga de infância da vítima de depressão. Ainda criança, Carla ligava no meio da madrugada para os pais pedindo para voltar para casa. Quando ocorriam as ligações, a menina sempre estava no quarto de colegas onde havia dormido, mas não queria permanecer. Ela sussurrava ao telefone: “Mãe, vem me buscar, mas

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não conta pra fulana, senão ela vai ficar chateada”. A tal fulana não se chatearia. Apesar de ser criança, qualquer amiga entenderia a situação, mas Carla, com medo da reação, pedia que os pais fossem buscá-la alegando saudade da filha, ou qualquer coisa que o valha. O que passava na cabeça da menina? Insegurança, medo de permanecer no local desconhecido. O “não explorado” a aterrorizava e a garota buscava se refugiar no abrigo seguro. O quarto dos pais era o local mais aconchegante e seguro que ela conhecia, em meio às madrugadas, Carla puxava a coberta e o travesseiro e os levava para a cama de Carlos e Márcia. Para a psicóloga Marystela Rodrigues Ribeiro, crianças com esses comportamentos demonstram falta de segurança e autonomia, pouca tolerância à frustração e baixa autoestima. Além disso, podem apresentar dificuldades em se relacionar com outras pessoas e fazer amigos. Tais traços, apresentados pela especialista, se encaixam com a personalidade da Carla criança e de determinadas atitudes da Carla adolescente. A falta de interesse em desfrutar de um novo círculo de amizades e o medo diante da vida que se apresentava não deixavam a menina respirar. Vivia com o medo de as cortinas se abrirem e o futuro se apresentar diante dela, ou pior, não possuía perspectiva de futuro. A neblina que cegava a estudante permanecia nas mais diversas situações. Como, então, ingressar em uma faculdade se não há segurança em pisar em novos pisos? Como fazer uma prova se errar é a única opção que Carla pensa existir? Tal medo e insegurança a perseguiram em São José dos Campos e na vida de vestibulanda. Cada vez se tornava mais difícil imaginar felicidade no novo ambiente em que se encontrava. O tempo passou, as provas iam e vinham, e o tão sonhado nome na lista de classificação das universidades estava esquecido. Parecia impossível ser uma estudante de Medicina. A família, por outro lado, buscava mostrar a realidade à menina. Conquistar o vestibular era um sonho de muitos, e o fato da meta não ser atingida na primeira tentativa não significava que ela sabia menos que os outros. A depressão e a auto-cobrança excessiva a colocavam em uma situação de desvantagem. O nervosismo não cedia.

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O pai ligava para a filha via Skype, buscava a comunicação constante. — Ele me falava que não podia me tocar, mas podia me ver e falar. – conta Carla, se lembrando do essencial apoio dos pais. A mãe apoiava a filha com a mesma intensidade e entendia que Carla estava doente, e precisava dos medicamentos e do tratamento. — Cabe à família compreender, aceitar e acolher a pessoa com depressão. É importantíssimo que a família compreenda o depressivo e não exija comportamentos dele os quais ele ainda não é capaz de ter. – explica a psicóloga Denise Pacheco, que atua com Recursos Humanos. O ano em que fez tratamento passou, 2011 chegou e o vestibular ainda era o pesadelo da estudante, porém, dessa vez seria diferente, ficou decidido que Carla voltaria a Lorena e retomaria os estudos no cursinho do município. As aulas ainda eram integrais e a pressão por parte dos professores não dava folga. A jovem via os colegas ingressando em faculdades e saber que com ela seria diferente a apavorava, mas o conforto de casa e da família era o chão seguro que a garota tanto buscara na outra cidade. Apesar de voltar ao abrigo seguro, Carla não abandou o tratamento. Com uma psicóloga de Lorena e o psiquiatra, a garota continuou as consultas para que pudesse levar uma vida saudável. Nos primeiros momentos, a terapeuta observava as atitudes da garota e logo pode afirmar o que acontecia. A paciente se lembra das palavras da especialista: “Você pegou trauma de prova, precisamos tirar isso de você”. Dois anos se passaram, embora Carla não estivesse feliz com a vida que levava, estar perto da família era o conforto diário que ela ansiava. Em uma tarde de janeiro de 2013, a garota estava em uma reunião de amigos, todos felizes, pois as férias trouxeram os colegas que moravam em outras cidades, quando a estudante recebeu a notícia que mudaria tudo: Carla havia passado no vestibular de Medicina da Universidade de Vassouras, e poderia iniciar o tão sonhado curso. A empolgação era imediata, a menina ligava para os amigos para contar a novidade, e tratava de arrumar os documentos necessários. Após viajar 187 km, Carla chegou à Universida-

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de, efetuou a matrícula e assinalou o início de uma nova fase. Retornando a Lorena, era o momento de aguardar o início das aulas e a nova vida que se abria. Finalmente, a estudante realizaria o sonho de cursar Medicina, finalmente seus pais a veriam evoluindo com os próprios pés. Passado apenas um dia ao receber a notícia, a estudante buscava novas informações sobre o curso, conquistando o novo espaço que a aguardava. Na página da instituição em uma rede social, Carla se anunciou como caloura e buscou outras “bixetes” para iniciar o novo círculo de amigos. A garota combinou horário e local para o encontro especial. Quando a data se aproximou, uma semana antes da viagem, uma nova ansiedade se iniciou no coração de Carla: “O que eu vou fazer?”, “Como será o novo mundo que eu terei que enfrentar?”, “Pior, será que meu sofrimento de São José dos Campos irá se repetir?” A última pergunta tomava conta dos pensamentos da garota pouco a pouco, até deixar transparecer para os pais, para os amigos, e, enfim, para todos que a rodeavam. Nenhuma dessas pessoas entendia o sofrimento da menina, mas ela compreendia uma única coisa: todo o desespero provinha de algo maior, do medo de fracassar, como acontecera no cursinho há dois anos. Chegara a hora de sair de casa novamente e explorar Vassouras (RJ), a cidade onde se situava a Universidade. Carla caminhava pelos próprios pés, pisando em novos caminhos, procurando a felicidade e a vontade de se realizar profissionalmente. Em Lorena, ela deixou não apenas o abrigo seguro, mas uma parte da felicidade em construir uma nova vida que permanecia trancafiada na gaveta do seu quarto. No início das aulas e em todos os dias, semanas, meses e anos que se seguiram na vida de universitária, sempre haveria uma insegurança. Carla chegou ao local no horário combinado com as novas amigas, as cumprimentou como quem abraça não apenas uma pessoa, mas um mundo todo que se abria, um novo cheiro, um novo olhar, um novo carinho, um novo modo de agir, e ainda, era preciso encontrar novos meios de conquistar estas colegas. A classe era extensa, mas a estudante nem caminhou por todo o

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espaço, escolhendo a mesa situada na frente da sala, lugar propicio para se manter concentrada nas aulas, da mesma forma como fazia no ensino médio, no cursinho e, finalmente, na universidade. As novas amigas arrastaram suas cadeiras e mesas e se sentaram próximas a Carla. A competição do cursinho havia acabado, mas a disputa da “vida real” tomava forma, e aquilo apavorava a menina, que tentava se manter concentrada e não deslizar nos próprios medos. A primeira semana da vida de universitária se iniciava e com ela a fase de maior desespero tomava forma. Como uma neblina que não permitia que enxergasse os objetos e pessoas que se aproximavam, Carla não conseguia visualizar seu futuro. O sonho de ser médica e de salvar vidas desaparecia, o único pedido da menina era que aquela tristeza fosse embora, e isto só parecia possível retornando para a casa dos pais. Estava decretado: a garota enfrentava um novo quadro de depressão, mas, desta vez, calmantes não solucionariam o problema. Ela não queria viver a nova vida, ela queria voltar ao passado e se agarrar com toda força às colchas do seu quarto verde com cheirinho de lar e ali permanecer. As ligações que antes se antecediam de um choro que poderia ser tranquilizado, agora eram acompanhadas de afirmações: “Eu quero voltar para casa”. Todos os dias, ao acordar, Carla arrastava os dedos pelo celular, se mantinha em uma posição que deveria ser confortável, mas que o nervosismo travava a coluna, os braços, os ossos e músculos até que a jovem se mantivesse imóvel. Enquanto os olhos pequenos da garota, que se escondiam em suas bochechas grandes, eram preenchidos de lágrimas, a estudante pedia que os pais fizessem aquela dor passar. A dor não passava, a agonia parecia eterna. Aos finais de semana, a garota retornava à casa dos pais, assim como nos tempos de cursinho. Quando estes, preocupados, questionavam sobre a faculdade e o curso que a garota havia escolhido, Carla, prontamente respondia: “Eu não quero falar sobre isso”. Ela não queria falar sobre nada, sentir mais nada. Era como se, aos sábados e domingos, ela pudesse esquecer a vida que levava em Vassouras (RJ). Era como se, ainda, aqueles momentos fossem

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pesadelos, e que a realidade se impunha apenas aos finais de semana. — Em Vassouras foi pior que em São José dos Campos, mesmo que o cursinho tenha provocado o pânico da Carla de lugar novo, desta vez ela não enxergava mais nada, não percebia que estava abandonando um sonho. – conta Carlos, sobre a filha que não entendia que abrir mão da faculdade seria abdicar de uma luta de anos. Ao prosseguir com o tratamento médico e a terapia, o psiquiatra percebeu que os ansiolíticos não faziam mais efeito, era preciso buscar algo mais forte, que puxasse os braços de Carla e posicionasse suas pernas em uma posição segura para que ela continuasse a andar. Os medicamentos tranquilizantes foram substituídos por antidepressivos, o que assustou aos pais. Carlos queria que a filha pudesse ser feliz sem recorrer aos remédios de alta dosagem, Márcia rezava para que Carla pudesse surpreendê-la, ser mais forte que a mãe, e se reerguer, abandonando os medicamentos e levando uma vida saudável. — Os remédios eram essenciais para que eu me sentisse um pouco melhor – relembra Carla, sobre o que considera uma salvação para a doença que a consumia. O pai considerava o tratamento um absurdo, a mãe achava que necessário seria pouco para descrevê-lo. Em meio a estes conflitos, Carla buscava uma forma de tomar as rédeas da própria vida, os pais tiravam as forças deles para entregar à filha. A família toda sofria junto, os conselhos partiam de diversos membros familiares. Márcia compreendia cada lágrima da filha, Carlos buscava secá-las, para que estas não mais existissem. “Força de vontade é o que falta em Carla”, pensava o pai sobre a doença da filha. Ele não dizia, mas as sobrancelhas arcadas e o olhar baixo entregava Carlos, que possuía como uma certeza que a cura da depressão da filha dependia apenas dela. O psiquiatra, por meio de Márcia, chamou o pai ao consultório e explicou o transtorno da jovem: — Ela não tem culpa do que sente. Dizer a ela que isso passa, pedir para que ela se reerga não ajudará, já que ela não possui uma visão otimista

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a favor dela. – explicava o médico, pacientemente, sobre a doença para Carlos, que entendeu de que forma deveria apoiar a filha. Com a mãe, o pedido não foi de compreensão, mas que Carla fosse, por uma semana, a prioridade de Márcia. O pedido era, na realidade, uma imposição, dita de forma clara: a diretora de escola deveria abdicar por um momento do trabalho, e passar uma semana ao lado da filha. Márcia prontamente concorda. Na segunda-feira de retorno à Vassouras, mãe e filha arrumam as malas, as ajeitam no carro, ligando o automóvel e dirigindo por mais de duas horas em direção à cidade onde se situava a universidade. Carla prosseguia com as atividades corriqueiras com a segurança de que a mãe a aguardava em casa. A mãe ansiava a volta da filha, na esperança de que a menina apresentasse melhoras ao longo dos dias. A estudante parecia se animar e as atividades universitárias eram feitas com mais empolgação. Carla parecia, finalmente, estar vivendo. Mas, ao cair o sol, e na chegada das madrugadas, a menina, sem perceber, segurava nas mãos da mãe, e bastava que Márcia executasse um movimento involuntário, para que a estudante, com a força de uma mulher e a delicadeza de uma criança, apertasse os dedos da mão. Os pulsos recheados de pulseiras – a grande maioria presente dos amigos de infância – as mãos pequenas, mas “rechonchudas”, os dedos com covinhas como as de um bebê imploravam a presença permanente de Márcia. Mas permanecer não era possível, e, ao final do combinado, passada uma semana, a mãe explicou que precisava retornar a Lorena. A filha, como uma criança que se agarra à porta do carro para não entrar na escola pré-primária, chora para que Márcia fique. Era chegada a hora de partir e, ao ir embora, era preciso deixar alguns limites para que Carla pudesse aprender a crescer. A filha diz que iria embora junto com a mãe, mas esta, juntamente com o pai, explicaram que ela continuaria na faculdade, que a única saída para o retorno à casa dos pais seria que Carla tivesse uma nova alternativa, o que não fazia parte dos pensamentos da jovem. — Se eu voltasse para Lorena, eu não teria o que fazer, e percebi que eu teria que ficar. – lembra a estudante sobre o momento de decisão do futuro dela.

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Permanecendo em Vassouras e buscando a recuperação, Carla prosseguia com o tratamento psiquiátrico e os medicamentos a acalmavam. Com o apoio da família e a vontade de superar a própria situação, a menina foi buscando se reerguer. — Eu já estava convencida que não poderia voltar, portanto resolvi ficar. – explica Carla, sobre a surpreendente atitude que tomou de ficar um final de semana em Vassouras por conta própria. Ela percebia, então, que era capaz de encarar os próximos dias, meses e anos que estavam por vir. Não seria tarefa fácil, ela sabia, mas a força em tentar era maior. Poucas semanas passadas e Carla já podia pisar em chão firme. — Eu mudei muito, cresci muito com tudo que aconteceu. Ainda sinto muita falta de casa, tenho medo de voltar para minha cidade e as pessoas não estarem mais me esperando, mas eles estão, sempre estão. – desabafa Carla, sobre a vitória obtida. Hoje, Carla ainda sente aperto no coração ao entrar no ônibus a caminho para Vassouras e não contém a felicidade ao voltar para casa, porém, acima de tudo, a jovem amedrontada superou a própria depressão e se transformou em uma mulher forte e determinada. Na roda de colegas, ela ainda fala de um jeito tímido e nervoso, mesmo com os amigos que a conheçam há anos. Quando é o centro das atenções, ela abaixa o rosto e sorri como armadura para o próprio nervosismo ao expressar o que sente. As características da universitária fazem parte da personalidade de Carla, não a abandonam, mas a depressão a tornou determinada a encarar o próprio futuro, mesmo com a timidez, o nervosismo, a ansiedade e a carência que sente. Carla voltou ao tratamento com a psicóloga, que lhe disse uma frase que se tornaria marcante para a jovem: “Você entrou assustada e agora está completamente mudada”. As mãos da garota, enfim, podiam relaxar e os olhos podiam tomar um formato quase infantil. Ela tinha vencido. Carla era, enfim, uma vencedora.

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“E quando você pensa que não pode mais lidar com a dor, se enxerga seguindo em frente juntando os pedaços.” Bernardete Guedes

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em vilã, nem mocinha, a mídia tem o papel – entre tantas outras funções – de divulgar informações com seriedade, o que, infelizmente, não tem feito de maneira adequada sobre a realidade atual. Diversos veículos e espaços midiáticos têm servido como base para ostentar sonhos e metas inalcançáveis. Um transtorno mental divulgado de forma errônea ou um distúrbio alimentar valorizado são motivos de preocupação por parte de uma parcela da sociedade que, sem se manifestar, torna-se conivente com a situação. Em tempos de ossos simbolizando beleza, com modelos esbanjando magreza como uma meta a ser conquistada, as curvas femininas foram esquecidas e a busca atual é pelo corpo mais magro, exibido constantemente, de maneira a adquirir mais “curtidas” nas redes sociais. Nas passarelas da vida real, muitas mulheres e meninas atingem o tão estimado corpo por meio da desnutrição, com a ausência de alimentação e a presença de medicamentos e loucuras que prometem a magreza daquelas celebridades com fãs que almejam o mesmo tipo físico. Foi assim, que no mês de agosto de 2013, uma tuiteira conhecida, chegou ao ponto extremo da anorexia: a morte. A ‘webceleb’ Dai Dornelles, de apenas 21 anos, contraiu hepatite viral, desencadeada pelo transtorno alimentar e não resistiu. A “celebridade” era também usuária do aplicativo Instagram, onde postava fotos que mostravam suas costelas, pernas e todo o corpo extremamente magro. A jovem divulgava o fato de possuir o distúrbio e diversos seguidores a veneravam, elogiando-a pelas atitudes insanas cometidas ao longo da vida. Para muitos jovens, a doença parece ser vista como solução, e não o problema que realmente é. A busca pelos ossos aparentes é sinônimo de “curtidas” de seguidores, de fama e reconhecimento até mesmo como um modo de viver, como se houvesse vida em um desespero nada latente pelo corpo perfeito. Em busca de aumentar a autoestima, as mulheres, e também homens, divulgam fotos e fatos que são aplaudidos por dezenas, centenas e até milhares de usuários das redes sociais, motivando essas pessoas com problemas a continuarem a busca pela magreza tão estimada. -127-


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Além das redes sociais e seus usuários, o número de blogs “proana e promia” tem aumentado consideravelmente. Tais sites consistem em postagens de pessoas que são a favor da Anorexia e Bulimia, adotando-as como uma forma de viver. A cada dia, novas receitas para emagrecimento extremo são divulgadas, novos comentários desesperados de quem deseja o corpo magro a qualquer custo são mostrados. A cada linha, a cada foto, a cada vídeo, mais estímulos os anoréxicos e bulímicos recebem. É quase como uma religião, que se propaga entre gente dos quatro cantos do mundo. — De fato, a exaltação dos padrões de beleza, feita por meio da mídia e de redes sociais, contribui para o aumento dos distúrbios alimentares e, principalmente, para uma ideia daquilo que seria ou deveria ser o melhor ‘modelo’ ou a melhor ‘forma’ para o ser humano, gerando ou agravando, com isto a raiz deste problema: o dismorfismo corporal. Pacientes com Transtorno Dismórfico Corporal sofrem de ideias persistentes sobre o modo como percebem a própria aparência corporal – explica o psiquiatra Thales Pereira. A pessoa se vê muito mais gorda do que é de fato, não acredita nas pessoas que lhe dizem o contrário. Na Anorexia Nervosa, e quase sempre na Bulimia, há também uma deformação da imagem corporal. São casos graves, que necessitam de cuidados psiquiátricos, psicológicos e endocrinológicos. Apesar da severidade do quadro, do risco de mortalidade, a mídia, em geral, parece ignorar tal fato, seguindo persistente na busca do “corpo ideal”, possivelmente por puro interesse televisivo e econômico, em detrimento da saúde ideal. – complementa o especialista. Porém, alguma parte desse espaço midiático de divulgação parece adquirir lapsos de consciência a respeito do problema. No ano passado, o “Tumblr” baniu as tags que influenciavam e propagavam os distúrbios alimentares como algo positivo. Anamia, thisnpo, dentre outras hashtags foram retiradas do ar. Atualmente, elas podem ser encontradas novamente, mas vêm acompanhadas de avisos como “se alguém que você conhece está lidando com distúrbios alimentares, problemas de autoagressão e pensamentos suicidas, por favor, visite nossa página de Aconselhamento e Recursos de Prevenção”

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No Pinterest, as tags são ligadas a postagens que existem com o intuito de divulgar o problema como algo negativo que realmente é. O Instagram atualizou suas políticas de conteúdo na rede social no ano passado banindo totalmente a tag #thinspo e incentivando os usuários a denunciarem perfis que fazem propaganda do estilo de vida anoréxico. É claro que nenhuma dessas medidas pode ser vistas como a solução do problema. A liberdade de expressão ainda existe e as redes sociais nada podem fazer a respeito, mas tal deliberação deve ser trabalhada em busca da redução da divulgação de imagens e postagens que incentivem o padrão de beleza nada saudável. Valéria está prestes a completar 50 anos, e, recém-curada da anorexia, ela é autora do livro “Diário de uma Anoréxica” (Leia Sempre, 2010), que relata sua superação do transtorno, com o qual conviveu por cinco anos. Para explicar o que leva uma pessoa a se expor mostrando efeitos do transtorno, ela conta uma cena que presenciou, confirmando uma teoria própria de que muitas pessoas encaram a mídia como palco para um espetáculo em busca de público a qualquer custo, onde transtornos mentais são tratados de forma a adquirir alguma atenção. — Não existe um cuidado para tratar a anorexia na mídia. Eu me lembro de quando fui entregar meu livro para a editora, e a responsável me disse: “Podia morrer alguém importante de anorexia para gente lançar seu livro”. Fiquei chocada! Tal atitude demonstra que, por diversas vezes, os próprios profissionais da mídia são os responsáveis pelos erros cometidos e divulgados constantemente. Já a lorenense Cláudia, que completa quase 50 anos, é vítima do Transtorno Obsessivo-compulsivo e fala sobre como a ignorância, ao contrário do que dizem as más línguas, não é uma benção e afeta as vítimas do transtorno que ela enfrentou e que, até os dias de hoje, pouco conhecido. — As pessoas precisam parar com isso de que psiquiatra é médico de louco, porque isso é ignorância, e a ignorância é o grande mal do ser humano, a falta de informação é terrível. Ainda há quem pensa que TOC é coisa de gente louca. Até eu mesma pensava que estava louca, mas, quando

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descobri o que era, vi que precisava de ajuda médica. E buscar esse socorro não deve me tornar alguém anormal, como muitas pessoas rotulam. O preconceito ainda existente atualmente é, por muitas vezes, o principal obstáculo que as vítimas precisam enfrentar. Suelen, que se trata por conta da Síndrome do Pânico, relata a discriminação que sofreu no ambiente de trabalho. — Trabalhava há pouco tempo em uma instituição, da qual precisei me afastar por conta das crises de pânico constantes. Quando anunciei ao meu chefe, este, desinformado e com uma visão preconceituosa, respondeu: “Acho melhor você se afastar mesmo, porque, se não, como ficará a imagem daqui?”. Nesse momento, eu fiquei muito chateada, percebi que ele não entendia do que se tratava a minha doença, pensava ser um surto psicótico. Certo dia, após assistir a um quadro do Fantástico que mostrava uma pequena da parte da vida de uma vítima do transtorno, o meu chefe veio até mim se desculpar e dizer que entendia sobre a doença. A reportagem foi muito pequena e não mostrava toda dimensão da síndrome, e nem especificava de forma teórica, mesmo assim, ele entendeu o que eu sentia. Laura, que já foi internada diversas vezes, se queixa do tratamento da mídia ao divulgar notícias sobre transtorno bipolar, doença que ela encara diariamente. — A imprensa, muitas vezes, alega atitudes insanas e cruéis de pessoas associando-as à bipolaridade. Parece que transtorno bipolar está na moda, justifica pras pessoas que cometeram crimes como matar alguém. Por conta disso, uma parte da sociedade acha que, uma vítima do transtorno, se tornará assassina. — A mídia costuma dar ampla cobertura a casos de homicídios indiscriminados ou de serial killers devido à natureza selvagem dos crimes, bem como devido ao fracasso ou delonga da polícia em efetuar a captura do criminoso. Além disso, o frenesi mundial da mídia em torno dos crimes utiliza-se dos delinquentes como beneficiários de uma publicidade sem precedentes, tornando assim uma análise criminológica do caso predominantemente folclórica e mitológica. – argumenta o estudante de Psicologia, Pedro Paulo. -130-


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O universitário defende que a tipificação da violência como loucura costuma ser alvo de sensacionalismo midiático, que exalta não apenas o Ibope das emissoras e manchetes de jornais, mas, também, reforça preconceitos que representam um entrave na compreensão das noções jurídicas de justiça e responsabilidades individuais e sociais. — Utilizar-se da loucura como explicativa causal para atos criminosos, como forma de excluir a maldade ou perversidade humana, consiste em insistir na discriminação com os portadores de transtornos mentais (Psicofobia) e ir de encontro com a reforma psiquiátrica – afirma Pedro Paulo. Como se pode ver, o preconceito da sociedade é ainda evidente, embora tenda a reduzir ao passar do tempo e com a divulgação a respeito dos assuntos feita de forma correta. Ainda vigora a visão de que vítimas dos transtornos mentais são pessoas loucas e, portanto, devem ser abdicadas da liberdade e de conviver em sociedade. O repórter e apresentador Marcelo Hespaña da TV Vanguarda, emissora do Vale do Paraíba, contou que, como jornalista, trabalha com notícias que tratam de transtornos mentais. O profissional de comunicação explicou que a maior dificuldade ao abordar o tema é encontrar personagens – vítimas dos distúrbios – que aceitem ser protagonistas da história, principalmente para o meio televisivo. Quando encontradas, as fontes devem ter a imagem e voz censuradas, com o objetivo de evitar exposição. — As matérias devem ser divulgadas apenas se houver autorização dos familiares, assim como dos médicos, que devem esclarecer a doença aos telespectadores, leitores, e a qualquer público que acompanhe a reportagem. – explica Hespaña. O repórter acredita que o maior pecado que a imprensa tem cometido ao longo do tempo é a abordagem do assunto em questão sem causar uma reflexão maior. A utilidade pública é o melhor caminho no momento de escolha de uma pauta, com o intuito de orientar a população e não apenas se preocupar com o tema quando acontecerem fatos que gerem repercussão. — Fazemos cada matéria no sentido de explicar e dar -131-


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orientações, nunca mostrar “só por mostrar”. A maior falha é expor por expor, é preciso um cuidado maior em buscar trabalhar com os transtornos no jornalismo cotidiano. – completa o jornalista, que se lembra da abordagem com a qual se sentiu mais envolvido e desafiado. — Já cobri várias matérias sobre transtornos mentais, mas a que mexeu mais comigo foi sobre anorexia. Terrível a história. Mas fiz uma bela matéria de orientação, principalmente para os pais. – avalia Hespaña. Os diversos veículos midiáticos devem servir, portanto, como divulgadores de informações corretas e precisas a respeito de quaisquer assuntos abordados, mas, em especial, com temas delicados que afetam a vida de milhares de pessoas, como os transtornos mentais. Em 1997, um filme serviu como norteador do uma doença que, mesmo depois de mais de quinze anos, ainda é alvo de preconceito. Um personagem paradoxal um personagem incomum, que busca viver em universo particular, embora more em Manhattan, um dos locais mais povoados do mundo. Interpretado por Jack Nicholson, no filme ‘Melhor é Impossível’, o personagem Melvin Udall busca o isolamento por não se encaixar na sociedade. As pessoas, aos olhos do protagonista, parecem tão “normais”, vivendo rotinas usuais, sem mistérios e dramas, enquanto Melvin Udall possui manias como trancar a porta cinco vezes, apagar e acender as luzes cinco vezes, lavar a mão repetidamente – com sabonetes diferentes a cada lavagem – sentar sempre na mesma mesa da lanchonete, em que come com os próprios talheres, organizados de forma sistemática, e exige o atendimento pela mesma garçonete todos os dias (Carol), além de andar em calçadas sem pisar nas divisórias. Ao longo da trama, Melvin resolve seus problemas consigo e com as pessoas ao redor, com as quais parecia ser impossível possuir qualquer relacionamento afetivo. A história é uma ficção, mas é facilmente um espelho à realidade de pessoas de todo o mundo, vítimas de uma doença que invade os pensamentos, e as obrigam a repetir determinadas ações a fim de aliviar a ansiedade. O distúrbio, que chega a inibir a qualidade de vida de quem o sente, é o Transtorno obssessivo-compulsivo, mais conhecido como TOC.

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— O TOC não é uma simples superstição, mas de fato um transtorno que afeta a vida cotidiana da pessoa que sofre desta doença, causando-lhe grandes prejuízos existenciais, de ordem familiar, social, profissional, etc. – explica o psiquiatra Thales Pereira. O fato retratado no filme é o que atormenta diversas mulheres e homens, que vivem toda uma vida sem saber o que sentem e por que o sentem. Cláudia era uma dessas pessoas ameaçadas pela doença, e, ao deparar com um determinado artigo em uma revista, descobriu que não era a “única no mundo”, exemplo de informação bem sucedida. Na infância, em Lorena (SP), Cláudia seguia os amigos na brincadeira de andar pisando apenas nos ladrilhos escuros, enquanto outros pisavam apenas nos claros. Após a diversão, a menina voltava para casa, onde encontrava a mãe rígida e o pai alcoólatra. A filha, entretanto, se mantinha dócil, desobediência não era algo que passava em sua cabeça, e rebeldia estava longe de ser uma característica da garota. Tempos depois, as crianças se tornaram adolescentes, os pulos no chão não passaram de uma distração infantil, mas os atos da menina de 12 anos desenvolveram e se transformavam, pouco a pouco, em atitudes que estagnavam a vida da jovem. Para expressar manias, algumas pessoas batem três vezes na madeira para espantar maus pensamentos, outras colocam uma determinada roupa para evitar azar, mas com Cláudia era diferente, as manias eram obsessões e a imaginação tormentosa não dava folga àquela mente. Em momentos em que se deparava com problemas, que existiam apenas em sua cabeça, Cláudia lavava as mãos repetidas vezes, como se aqueles empecilhos imaginários fossem escorrer, junto com a água, para o ralo. — Como um exorcismo, bastava imaginar algo ruim, que eu enxaguava meus dedos. – relata Cláudia, cujo cérebro encontrou um mecanismo de sobrevivência: o Transtorno obssessivo-compulsivo. Com medo de se expor, Cláudia repetia atitudes recém-executadas ou usava da água para evitar um futuro não desejado. O fato de imaginar controlar o indesejado transmitia à jovem uma posição de

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poder, era possível administrar a própria vida, ao menos era o que imaginava. — Obsessões são pensamentos ou ideias, impulsos, imagens, cenas, enfim, são atitudes mentais que invadem a consciência de forma involuntária, repetitiva, persistente e normalmente absurdas. Essas ideias obsessivas são ou não seguidas de rituais destinados a neutralizá-los, estes rituais são chamados de compulsões. – explica o psiquiatra Thales Pereira, que completa: — Compulsões são comportamentos repetitivos ou atos mentais, destinadas a prevenir ou reduzir o desconforto gerado pela obsessão, ou prevenir alguma situação ou evento temidos. Para Cláudia, as atitudes se transformavam pouco a pouco em doença e transformavam seu cotidiano. Ela não queria aquilo que sentia, mas nem mesmo entendia o que sentia, como agia. Em cada momento de mania exacerbada, ela se acalmava, dizendo que aquilo não passava de infantilidade e que iria passar, bastava amadurecer para os pensamentos tormentosos irem embora e, com eles, os atos que eram prejudiciais à menina. — Era como se eu pudesse parar meus problemas. Aquelas atitudes eram minha salvação, mas mal eu sabia o quanto iriam me afetar. Cláudia imaginava, também, que a maneira como as pessoas a olhavam podia prejudicar todo o seu futuro, bastava um olhar negativo vindo de alguém para as pernas da jovem bambearem e a tristeza a consumir. Tristeza com mania exageradas geravam, aos 19 anos, o TOC, assim como uma profunda depressão. — Neste caso, fala-se sobre uma comorbidade, que é a presença simultânea de duas ou mais doenças – explica Maria Barreto, doutora em Psicologia. Um ano depois, sem buscar ajuda, pois desconhecia o que tinha, Cláudia tocou sua vida adiante e se tornou proprietária de uma casa lotérica. A preocupação com a responsabilidade de administrar o local, unida às dificuldades enfrentadas decorrentes dos transtornos que já a consumiam, fez nascer, após seis anos de um sofrimento tímido, a Síndrome do Pânico. Nesse tempo, a mulher possuía dificuldades em lidar com cada minuto do seu dia a dia, mesmo assim, ela buscava enfrentar a doença e prosseguir com uma vida há tempos prejudicada.

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Quando Cláudia completou 30 anos de vida, completava também 18 anos que sofria sem saber por quê. Ela conhecia as próprias ações, mas não imaginava se enquadrar em qualquer transtorno, não se imaginava vítima de um transtorno. Cláudia observava pessoas que encaravam o TOC, algumas conferiam a fechadura da porta inúmeras vezes, outras verificavam se o gás estava ligado, mas com ela era diferente, já que pensava mais que fazia, imaginava mais que agia. Em seus pensamentos, sua situação estava longe de se encaixar em um quadro clínico. “Não tem relação”, ela dizia para si, negando o transtorno que via nos outros, mas não em si mesma. Um dia, lendo uma revista, Cláudia se deparou com um artigo que parecia descrever a sua própria vida, ou grande parte dela. O texto contava sobre pessoas que possuíam manias que se transformavam em doenças, em pensamentos que pareciam escapes, em cotidianos tomados pelo o pensar e agir de forma nada usual. Era como se algo dissesse: “Ei, você não é louca, seu quadro tem saída, existe gente como você nesse mundo”. A cada linha lida, ela se identificava com as histórias e a doença. Sim, TOC eram três letrinhas, que simplificavam três palavras, que significavam tristeza e desespero. Naquele momento, Cláudia não sentia tristeza, alívio era o único sentimento que pulsava em seu coração. — Senti uma libertação em saber que aquilo existia, não entendia a cura, mas entender o transtorno era me entender e aquilo já era meio caminho andado. Antes, eu não podia combatê-lo sem saber que existia. O Transtorno Obsessivo-compulsivo (TOC) era considerado, há cerca de uns 15 anos, uma doença bastante rara, segundo a Revista Brasileira de Psiquiatria. Estudos da década de 1950 apontavam para uma prevalência de cinco pacientes para cada 10 mil pessoas (ou 0,05%). Não foi senão depois de um amplo estudo epidemiológico americano, o Epidemiological Catchment Area Study, que os psiquiatras e os meios de comunicação em geral passaram a dar maior importância ao TOC e às doenças relacionadas a essa condição. Este estudo encontrou uma taxa de prevalência de 2,5% para o tempo de vida fazendo do TOC

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o quarto transtorno psiquiátrico mais comum no mundo. — Transtorno Obsessivo-compulsivo (TOC) são obsessões ou compulsões recorrentes e suficientemente graves para consumirem tempo ou causar sofrimento acentuado à pessoa – explica o psiquiatra Thales Pereira. Começava então, para Cláudia, a maratona em busca de um especialista que detectasse a doença da mesma forma que a revista o fizera, e que pudesse orientá-la de como se salvar. Ela procurou psiquiatras, porém, alguns pareciam desinformados, outros apenas receitavam remédios, sem cuidar do lado comportamental da paciente. Cláudia buscava meios para escapar daquela doença que parecia impedi-la de prosseguir. Com os remédios receitados pelos médicos, aliados à vontade de se superar e obter uma vida sadia, a mulher buscou mecanismos que a encaminhassem para o “lado bom”, esquecendo, por alguns instantes dos pensamentos tormentosos. A situação era complicada, já que os especialistas não encontravam formas de “reprogramar” as atitudes da paciente, mas indicavam mecanismos clínicos de auxílio. — Os remédios eram importantes, mas o meu comportamento era o difícil de administrar. Quando o TOC é específico, são passados exercícios para aquele tipo específico, comigo isso não funcionava, pois eu não tinha um foco nas minhas atitudes, eram apenas pensamentos e mais pensamentos. Com algo generalizado, nas consultas eu não conseguia uma receita de como seguir. – conta Cláudia. Entretanto, o diagnóstico já era um conforto para ela, que buscava, com os próprios recursos, superar a doença. A cada dia, a empresária se entendia mais, e podia se superar mais. Além dos médicos, a ajuda de uma psicóloga era um meio de buscar a compreensão do problema que morava apenas em sua cabeça, sem interferir nos atos físicos provenientes dela. Segundo a Revista Brasileira de Psiquiatria, para serem considerados como um problema médico, os sintomas das obsessões e das compulsões devem ocupar pelo menos uma hora por dia do indivíduo, causar algum tipo de interferência no desempenho das atividades cotidianas ou provocar sofrimento. A maioria dos pacientes consegue perceber que as obsessões e compulsões são ilógicas.

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Naquele ponto da vida, após anos de luta, a Cláudia já estava casada com Antônio, com quem namorou por cinco anos, e que, mesmo após tanto tempo juntos, não notava os comportamentos da esposa, era como se não acreditasse naquela doença. Diversas barreiras já havia sido superadas, uma vez que Cláudia não se rendia ao transtorno, não o utilizava como desculpa para se afogar no próprio mundo, mas buscava seguir com sua rotina. Apesar de doente, ela precisava de um recurso financeiro para se sustentar, um companheiro para auxiliar nos momentos mais difíceis e sentia que faltava uma criança para correr pela casa e alegrar a vida que seguia apesar do transtorno. Nos momentos em que buscava racionalizar essa situação, ela se tornava ainda mais emocional e as crises de pânico a consumiam. Ela gostaria de engravidar, mas enfrentava barreiras para isso. — Eu pensava que teria uma crise no parto e que teria que cuidar do meu filho tendo crises de pânico, não sabia como lidar com aquilo. Eu sonhava em ter filho, mas imaginava que não conseguiria. Foi a psicóloga que cuidava dos comportamentos e das ações da vítima do TOC que iniciou o processo de terapia a fim de interromper a síndrome e evitar crises quando Cláudia engravidou. Após 9 meses de luta e de autocontrole, nasceu Juliana, a filha que Cláudia tanto queria e que desencadeou na mãe a percepção de que mais um passo tinha sido dado e, com isso, havia mais esperança de concretizar novos passos. Logo nos primeiros anos de vida da menina, a mãe observava se a criança não apresentava atitudes semelhantes aos atos das vítimas de TOC. Ao mesmo tempo em que buscava proporcionar uma criação sem receios da vida, com capacidade de enfrentamento de empecilhos que se empunham diariamente a qualquer pessoa, ela analisava cuidadosamente cada sorriso e cada olhar da filha, buscando evitar que as manias normais se transformassem em doença. — Eu cresci com muitos medos. Com Juliana, eu buscava ver se ela não tinha medo de muita coisa e tentei criá-la para ser independente, mas sabendo que poderia voltar sempre para casa. Eu mostrei para ela que

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ter crenças e superstições é normal, mas que era necessário se supervisionar para que aquilo não se tornasse exagerado. – ressalta Cláudia. Com uma filha e um marido compreensivos, Cláudia seguiu buscando a cada dia ser melhor para a família, para o trabalho e contra a doença. Após anos e anos buscando a ajuda ideal, procurando um especialista que fosse capaz de cuidar das manias e das receitas medicamentosas, ela encontrou na cidade vizinha a que morava uma clínica que mais parecia uma casa, um médico crente da espiritualidade e da ciência andando de mãos dadas. Foi esse psiquiatra que passou a cuidar do emocional e do físico da paciente, receitando os medicamentos ideais e ensinando a Cláudia um novo modo de superar a doença e um novo modo de viver a própria vida. A Síndrome do Pânico, a depressão e o TOC já eram diagnosticados, mas o tratamento para os três transtornos da forma como a paciente buscava parecia irreal, até encontrar o especialista que foi capaz de reverter o quadro, ou os quadros, da mulher. Já nas primeiras consultas, o psiquiatra cuidou da paciente de modo a confortá-la em relação ao problema, de maneira que pudesse aprender a encará-lo e a viver com o transtorno sem permitir que ele tomasse sua vida por completo. O especialista foi capaz de detectar e explicar a Cláudia o quanto ela era capaz daquilo, o quanto ela havia sido forte de não ter se deixado levar pelo TOC e pelas demais doenças, administrando trabalho e família e administrando os pensamentos tormentosos que ocupavam seu cérebro e coração. — Esse psiquiatra recebe os pacientes com compaixão e sem críticas, me ajuda a cuidar também do meu lado espiritual. – destaca a paciente. Com sessões de hipnose consciente e com o uso de antidepressivos, Cláudia conseguia, pouco a pouco, se superar ainda mais. As terapias eram também aliadas da paciente para controlar os comportamentos cotidianos, porém prejudiciais, e a empresária já conhecia os próprios defeitos e os encarava naturalmente. Com o tratamento, ela passou a olhar para as inúmeras qualidades nela escondidas, aumentando, conse-

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quentemente, sua autoestima, ou melhor, a criando e conseguindo se libertar por meio do autoconhecimento. Para uma mulher com medo de bens materiais e com falta de segurança com o próprio destino, as consultas eram a chave que abriam a porta da saída das doenças e, principalmente, do maior transtorno, o TOC. A Revista Brasileira de Psiquiatria indica que a Terapia Cognitivocomportamental (TCC) é o tratamento psicológico mais indicado para casos leves do distúrbio. Para os pacientes com sintomas moderados ou graves, o tratamento farmacológico ou combinado com a TCC é o apropriado. Com o passar do tempo, Cláudia melhorava a situação em que se encontrava há anos e anos. Até que um evento desagradável muda tudo, quando assaltantes descobrem que naquele sobrado azul moravam os donos da loteria mais movimentada de Lorena. Eram seis e meia da manhã, quando Juliana, a filha do casal, se aprontava para ir à escola e se lembrou que havia esquecido a blusa do uniforme no varal. No momento em foi apanhar a roupa, se deparou com dois homens agachados na garagem da residência, de costas para a jovem. Ela, imediatamente, saiu correndo e gritando, como forma de alertar os pais. Porém, o desespero foi tanto que as portas que davam acesso à parte interna ficaram abertas. Os homens entraram, renderam o marido, enquanto Juliana e Cláudia se escondiam no quarto. Os bandidos, do lado de fora, gritavam que matariam Antônio se elas permanecessem no cômodo. Os assaltantes, equivocados, insistam em ter acesso ao cofre da residência, mesmo que os proprietários afirmassem que o dinheiro do comércio não permanecia na casa. Com ameaças, os ladrões obrigaram Cláudia a se dirigir com um dos criminosos à lotérica, enquanto os outros dois bandidos, armados, rendiam a filha e o marido. Ela deixou o quarto onde se protegia e foi levada com uma arma apontada para sua cabeça. Enquanto isso se desenrolava, com todos os barulhos, uma familiar que morava no andar de cima do sobrado, percebeu que algo estranho acontecia e, por prevenção, chamou a polícia. No momento em que o bandido saiu com a proprietária da lotérica, os militares estavam do lado de fora prontos

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para prender o assaltante e algemar os outros dois meliantes. O assalto, apesar de ter tido um “final feliz”, resultou em tragédia no coração e nos pensamentos de Cláudia. Por dois anos seguidos, as crises de pânico a atormentavam, ela se lembrava, constantemente, das terríveis cenas que havia presenciado e tinha um medo diário de que alguma tragédia pudesse acontecer. Pânico frequente se iguala, no caso da mulher, ao TOC contínuo: a cada pensamento ruim, as mãos eram lavadas e o tempo “desperdiçado”. Apesar de tudo, Cláudia percebia que tinha uma família para cuidar, que também estava abalada com o trauma recente. Embora se lembrasse diariamente e nitidamente do assalto e da arma gélida encostada em sua cabeça, ela aprendeu a administrar o próprio problema e prosseguir tomando conta da própria vida e das vidas da filha e do marido. Com severos tratamento e persistência, Cláudia conseguiu batalhar a favor de si e contra a doença. Sete anos depois, um novo assalto aconteceu, dessa vez na própria lotérica da família. Esse evento, com reféns inocentes, crianças assustadas, tiros de uma metralhadora caseira e de um revólver, tiros dos policiais a fim de prender os assaltantes e de grande repercussão na mídia, transformaram-se em um terrível momento que Cláudia, ainda mais forte, conseguiu superar, sem maiores consequências emocionais. Hoje, ela possui consciência do que tem e do que é e, apesar e por causa de cada problema, ela anseia viver em paz e com a vida e a doença controladas. Em suas orações diárias, ela pede proteção divina ao dia a dia, proteção à família que se orgulha em ter construído e controle das manias para ter uma vida saudável. Com serenidade, ela encara o que for necessário, os bens materiais passaram a ser coadjuvantes em sua vida e não mais protagonistas de um filme de terror. A necessidade da repetição das atitudes como a lavagem excessiva das mãos se tornaram cada vez mais administradas, mesmo que sem facilidades. Os olhares maldosos ainda incomodam a rotina de Cláudia, mas ela aprende progressivamente a se proteger e a não permitir que pessoas com más intenções se tornem vilãs de sua vida. O TOC administrado e a depressão que se tornou quase nula -140-


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fazem com que a empresária deixe de ser vítima e se torne autora da própria história. A doença estagnou antes de atingir o ponto intratável, mas sem a persistência de Cláudia e o tratamento ideal que segue há quase dez anos, essa narração seria completamente diferente. — Hoje faço terapia apenas para melhorar como pessoa, não sou mais doente, já que sinto que está tudo controlado. – avalia Cláudia, que tem orgulho de si mesma, que sorri ao contar sobre a doença que empata toda uma vida e não permite progresso e que ela conseguiu reverter. A trajetória da vítima de TOC, depressão e Síndrome do Pânico simultâneos foi atravessada com passos lentos e cuidadosos, mas a cada dia progride um pouco mais e percorre o caminho em direção à vida hoje alcançada. O percurso tortuoso, porém superado, é motivo de orgulho também para a filha, que enxerga a mãe como uma mulher guerreira que conseguiu, não importa como ela conseguiu. — Minha mãe é com certeza uma pessoa muito forte, que passou por tudo isso, mas foi capaz de se levantar depois de tantas quedas. – conta Juliana, filha de Cláudia, que hoje construiu uma vida toda admirando a recuperação da mãe. — Ela teve recaídas sim, mas nunca deixou de levantar! Em uma história parecida, que ocorreu há 46 anos, uma menina incompreendida não obteve a mesma chance de recuperação de Cláudia, pois teve que abdicar forçosamente da própria liberdade. A história se tornou livro, filme e é, até hoje, um fato atual e que merece atenção. “As pessoas me perguntam: como você foi parar lá? O que querem saber, na verdade, é se existe alguma possibilidade de também acabarem lá. Não sei responder à verdadeira pergunta. Só que posso dizer: é fácil”. Susanna Kaysen era apenas uma menina que se transformava em mulher, uma eterna contestadora, que não dançava de acordo com a música tocada no mundo que a rodeava. Aos 18 anos ela tentou suicídio e, aos 18 anos, foi hospitalizada. O ano é 1967, o cenário é um hospício onde garotas consideradas doentes sem cura são trancafiadas e privadas da própria liberdade. O livro é ‘Garota Interrompida’ (Gente, 1993), uma autobiografia de Susana, que retrata um pedaço de sua vida, passado no -141-


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hospital psiquiátrico McLean, nos Estados Unidos. Contradição é a palavra que define os critérios utilizados pela clínica para convencer a família a despejá-la no local, uma vez que a lucidez e a percepção sobre a vida foram os fatores que obrigaram garota a encarar um novo mundo. Durante os dois anos nos quais ficou internada, Susana se deparou com um novo questionamento ainda mais profundo: a sanidade. Até que ponto a loucura existe e em que momento alguém deixa de ser considerado são para ser internado até receber o diagnóstico de “curado”. “Em um estranho sentido, éramos livres. Tínhamos chegado ao fim da linha. Não tínhamos mais nada a perder. Nossa privacidade, nossa liberdade, nossa dignidade: tudo isso tinha acabado”. A descrição nas páginas do livro demonstra quão delicada é a linha que separa aqueles que seguiam os padrões preestabelecidos pela sociedade e os que pisavam em falso, buscando respostas para perguntas feitas timidamente. Os professores, amigos e os próprios pais da garota não a compreendiam, e seguiam acomodados nos estereótipos impostos enquanto a aluna, amiga e filha enfrentava uma realidade brutal. A obra é um convite para a leitura de um diário, em que em cada linha os leitores se deparam com as reais angústias e dores vividas dentro de um manicômio. Foi esse registro diário que deu origem ao filme homônimo, sucesso de bilheteria, estrelado pela ganhadora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, Angelina Jolie, em 1999. No livro, há uma definição para o caso de Susana: “Transtorno de personalidade limítrofe: uma das características desse transtorno é um padrão invasivo de instabilidade da autoimagem, das relações interpessoais e do estado de espírito e que se manifesta no início da idade adulta e em diversos contextos.” A alienação da sociedade diante do real problema de Susana, a depressão e a dificuldade em lidar com a própria realidade e transformação para a vida adulta, a jogaram em um novo mundo. Embora os anos 60 sejam o cenário do livro, a ignorância atual sobre o tema possui traços idênticos à realidade da época. “— Será que você não percebe a diferença? [...] Se ele precisa ser amordaçado, é porque eles têm medo de que as pessoas acreditem no que ele diz.

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Olhamos para ele, ali na tela de TV, um homem pequenino, escuro e acorrentado, mas que tinha algo que sempre nos faltaria: credibilidade”. Sem credibilidade, Susanna se deparou, por dois anos, com uma nova face do seu “eu”: uma garota, interrompida. O que prevaleceu na história de Susanna é o preconceito fortemente posto em prática de forma a limpar a sociedade de pessoas indesejadas, como a menina triste, vista como louca. Essa é uma história de uma garota, em uma situação particular, que sobreviveu para contar o que viveu dentro das quatro paredes do hospício. Outras histórias, ainda mais cruéis, precisaram aguardar anos e anos para serem divulgadas por outra voz, inserida em outra realidade. Há muito tempo, em uma terra não tão distante, a realidade era ainda mais cruel, e só foi apresentada recentemente. O cotidiano do maior hospício do Brasil ganhou vida em relatos presentes na obra “Holocausto Brasileiro” (Geração, 2013), livro-reportagem de autoria da premiada jornalista Daniela Arbex, publicado recentemente em todo o país. A repórter conheceu o fato quando se deparou com fotos do interior do manicômio feitas em 1961, pelo fotógrafo Luiz Alfredo, para a revista “O Cruzeiro”. As imagens chocaram de tal maneira a jornalista, a ponto de esta buscar sobreviventes da tragédia capazes de contar o que se passava por dentro daquele “campo de concentração de loucos”. Este é, portanto, um sinal de que o Jornalismo deve ser norteado por sábios profissionais, capazes de enxergar a realidade e os seres humanos que nela existem: “Milhares de mulheres e homens sujos, de cabelos desgrenhados e corpos esquálidos cercaram os jornalistas. [...] Os homens vestiam uniformes esfarrapados, tinham as cabeças raspadas e pés descalços. Muitos, porém, estavam nus. Luiz Alfredo viu um deles se agachar e beber água do esgoto que jorrava sobre o pátio. Nas banheiras coletivas, havia fezes e urina no lugar de água. Ainda no pátio, ele presenciou o momento em que carnes eram cortadas no chão. O cheiro era detestável, assim como o ambiente, pois os urubus espreitavam a todo instante”. Esse é um dos relatos de um campo de concentração travestido de manicômio. As barbaridades aconteciam na cidade de Barbace-

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Aprisionada em Mim

na (MG), onde pelo menos 60 mil pessoas morreram no período entre 1903 e 1980. Na Colônia, 70% dos internos não sofriam de problemas mentais, mas eram prostitutas, rebeldes, gente que incomodava o poder, homossexuais, tímidos, filhas solteiras de fazendeiros que não eram mais virgens, gente que não possuía qualquer documento e todos aqueles que viviam à margem da sociedade e eram, cruelmente, depositados em um galpão de humilhações e torturas constantes. Côlonia era o nome do local onde internos sofriam lobotomia, e eram submetidos a choques elétricos tão fortes, que chegavam a afetar o abastecimento de luz do município mineiro, dentre diversos procedimentos aplicados aos inocentes que eram punidos por viverem a escória dos padrões da época. Homens e mulheres chegavam diariamente e lá passavam a não possuir nome, identidade e uma vida digna. Os corpos frágeis e sujos eram cobertos por finos pijamas para o frio de Minas Gerais, alguns outros andavam nus nos pátios do manicômio. Perdiam os cabelos, se alimentavam de comidas idênticas a lavagens de porco, viviam em um espaço dominado por fezes e urinas, onde ratos e baratas circulavam e, por vezes, se tornavam alimento dos pacientes dominados por fome e desespero. A bebida era, cotidianamente, a água do esgoto, ingerida por internos que vivam com os corpos rodeados de moscas. Não era possível opinar se as piores situações eram dos “pacientes” fracos, que morriam pouco a pouco, ou dos fortes sobreviventes que se tornavam escravos. “Não sei por que me prenderam. Depois que perdi meu emprego, tudo se descontrolou. Da cadeia, me mandaram para o hospital, onde eu ficava pelado, embora houvesse muita roupa na lavanderia. Se existe inferno, o Colônia era esse lugar”, relatou Antônio Gomes da Silva, 68 anos, sobre o que passou ao ser levado, aos 25 anos, ao hospício que só deixou em 2003. Pelo menos 30 bebês nascidos no Colônia foram doados sem o consentimento das mães. Algumas grávidas chegavam à atitude desesperada de jogar fezes nos próprios corpos para se protegerem dos ataques dos funcionários. A partir dos anos 80, o hospício foi sendo modificado e desativado, época em que os pacientes foram transferidos para locais

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A mania que se tornou doença

menores. Porém, 14 anos depois, celas ainda estavam lá. Atualmente, o local atende diversas especialidades médicas, além de abrigar mais de 160 pessoas remanescentes do antigo Colônia na área psiquiátrica. “Hoje nada acontece nas prisões que não passe pelo PCC (Primeiro Comando da Capital)”, diz a autora do livro. “[Os internos] eram indesejados sociais, e existe uma teoria de limpeza social que vigora até hoje”. Graças aos avanços da Medicina, aos estudos sobre o comportamento da sociedade e ao acesso à informação, atualmente, existem tratamentos para diversos males que atingem a população. Em 2013, A Associação Americana de Psiquiatria publicou uma nova versão do ‘Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais’. O livro, em sua quinta edição, é conhecido como a ‘Bíblia da Psiquiatria’ e definiu novos critérios para diagnóstico de todos os transtornos mentais classificados pela entidade. A primeira versão do documento – o DSM-I – foi publicada em 1952, e a mais recente, o DSM-IV, saiu pela primeira vez em 1994 e foi atualizada em 2000. O fato de ser elaborado por uma instituição americana não nacionaliza o manual, já que este reflete na Medicina de todo o mundo, uma vez que a Organização Mundial da Saúde (OMS) utiliza-o como base para categorizar os transtornos psiquiátricos presentes na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, o CID, adotado pela grande maioria dos países. Com a nova versão do documento, a psiquiatria ganha algumas novas doenças que não eram listadas anteriormente e também passa a conviver com mudanças importantes no que diz respeito ao diagnóstico e tratamento de condições como a depressão e o autismo. À medida que a Medicina se desenvolve e a mídia divulga a produção de conhecimento na área, a população fica a par dos sintomas mais comuns dos transtornos mentais, livrando-se da ignorância em relação às doenças da alma. Com isso, muitas vítimas dos distúrbios ganham lugar no mundo e podem, enfim, contar com a ajuda ideal para os reais problemas que as atingem diariamente.

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Considerações Finais Dizem que é absurdo afirmar que uma pancada na cabeça possa ser mais forte que um aperto no coração, dizem ainda que sorte não existe, que o caminho que a vida toma é o caminho que cabe a cada um escolher. Está certo que todos são autores das próprias histórias, e Vinicius de Moraes cansou de explicar que é “melhor ser alegre que ser triste”, mas a mente humana não segue regras, não existe rotina para um coração. Há ainda aqueles momentos, não tão raros, em que o que se passa na cabeça e o que se reflete fisicamente não se distinguem, como separar mente de corpo? É neste momento que muitas mulheres sofrem de transtornos mentais aparentemente incontroláveis, quando levantar da cama se torna a tarefa mais difícil do dia, e que qualquer escuridão é mais clara que a vida que elas levam, e a pergunta mais constante é: Onde está a falada luz no final do túnel? Há quem pense, mas não diga, que as vítimas de transtornos mentais se acostumam com o que encaram e sentem há anos. A verdade é que é impossível se acostumar com a dor. Com a dor que não se sabe de onde vem, que não se sabe como nasce, mas que consome a vida e a trava. Foi pensando nisso e apurando, durante todo um ano, que eu finalmente entendi que existem inúmeras histórias de inúmeras mulheres, com diferentes transtornos. As perguntas que fiz ao início do livro foram sanadas de uma forma diferente do esperado. Aquela menina que vi na sala de espera de um hospital e que me inspirou a escrever sobre isso era uma das milhares de pessoas que encaram, diariamente, os distúrbios mentais. Ao longo da apuração, as personagens relatavam a utilização de remédios similares que adotavam como tratamento. Muitas encaravam as mesmas doenças, percorriam os mesmos caminhos para se curarem, porém, cada uma delas possuía trajetórias diferentes de vida e, portanto, seria impossível descrever qual é a fórmula mágica para a cura que procuram encontrar. Em “Aprisionada em Mim”, os fatores biológicos e emocionais são explicados aos leitores, mas as histórias diferem completamente: mais do que pelo sofrimento que enfrentaram, mas pela luta que encararam. A batalha deve ser constante. A batalha interna não deve parar. Porque assim e só assim é possível encontrar felicidade após as doenças da alma. -147-


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Referências Publicações e Títulos: - ALVES, A. C. C.; MIRANDA, G. A. Incondicional: histórias de mulheres que amam demais. (Projeto Experimental de Jornalismo). Taubaté, SP: Universidade de Taubaté, 2012. - APPIGNANESI, L. Tristes, Loucas e Más: A história das mulheres e seus médicos desde 1800. Rio de Janeiro, Record, 2011. - ARBEX, D. Holocausto Brasileiro: Vida, Genocídio e 60 mil Mortes no Maior Hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial, 2013. - CODAZZI, J.; NOGAROTTO, M. Sinto muito: quando comer é um transtorno. (Projeto Experimental de Jornalismo). Taubaté, SP: Universidade de Taubaté, 2004, 115 p. - DOCKETT, L. Mulheres que Enfrentam a Depressão: 30 depoimentos de quem saiu do fundo do poço. Trad. Sob a direção de Kvieta Morais. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006. - GAROTA interrompida. Direção: James Mangold. Produção: Douglas Wickum. Columbia Pictures, EUA, 1999. 1 DVD. - JORGE, M. R. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-IV-TR – American Psychiatric Association - APA. Texto Revisado. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000. - KAYSEN, S. Garota, Interrompida. São Paulo, Gente, 2013. - MELHOR é impossível. Direção: James L. Brooks. Produção: Bridget Johnson, James L. Brooks, Kristi Zea. Columbia Pictures, EUA, 1997. 1 DVD. - SOARES, V. Diário de uma Anoréxica: um relato de luta, coragem e determinação. São Paulo: Leia sempre, 2010.

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Sites: - AMERICAN Psychiatric Association. (Banco de dados). Disponível em:<http://www.psych.org>. Acesso em: 26 ago.2103. - DEPARTAMENTO de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo. (Banco de dados). Disponível em: <http://www.psiquiatria.unifesp.br>. Acesso em: 30 jul.2013. - REVISTA Brasileira de Psiquiatria. (Banco de dados). Disponível em:<http://www.scielo.br>. Acesso em: 17 set.2013. - SAÚDE Mental. (Banco de dados). Disponível em: <http://saudemental.net>. Acesso em: 30 jul.2013. - SINTOMAS e Tratamentos da Síndrome do Pânico. (Banco de dados). Disponível em: <http://sindromedopanico.net/>. Acesso em: 06 set.2013. - SOCIEDADE Brasileira de Psiquiatra. (Banco de dados). Disponível em: <http://www.sbp.com.br/>. Acesso em: 26 ago.2103. - ASSOCIAÇÃO Brasileira de Psicologia Social. (Banco de dados). Disponível em: <http://www.abrapso.org.br/>. Acesso em: 23 ago.2013. - ASSOCIAÇÃO Brasileira de Transtorno Bipolar. (Banco de dados). Disponível em:<http://www.abtb.com.br>. Acesso em: 14 jul.2013.

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“O que você quer ser quando crescer?” Quando ouvi esta pergunta, na infância, respondi: “Quero escrever”. Em meio a tantas dúvidas, sempre tive a certeza de que rascunharia linhas e linhas a respeito da vida e de seus personagens. Eu cresci e, por acidente, encontrei o Jornalismo, e, por acidente, encontrei na profissão uma forma de colocar em prática aquela resposta à pergunta que fizeram quando ainda era uma menina. “Aprisionada em Mim” é a primeira chance que tenho de contar histórias de uma parcela do universo feminino, representada por mulheres que se mostraram capazes de ir além e vencer a intensa batalha interna que vivem.

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Estudos médicos revelam que as pessoas do sexo feminino têm algum problema mental, como depressão ou fobias, em uma taxa que é entre 20 e 40% maior do que a incidência no homem, independentemente da faixa etária. Como se vivessem imersas em um universo carregado de tristezas, milhares de mulheres, espalhadas por todo o mundo, observam suas vidas sendo, pouco a pouco, tomadas pelos transtornos mentais e sentindo-se algemadas por causa deles. Como ser feliz e reaprender a viver quando se tem depressão, síndrome do pânico, anorexia, transtorno bipolar ou transtorno obsessivo-compulsivo? As personagens de “Apriosionada em Mim”, após anos travando uma luta interna e atingindo a auto-superação, conseguiram diferentes respostas para tal pergunta. O dito sexo frágil precisa ser forte e enfrentar barreiras que nem a Medicina, em muitos casos, consegue desvendar.

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