Super interessante nº 203

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Março 2015 Mensal l Portugal € 3,50

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N.º 203

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Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento

Venenos De Cleópatra aos nossos dias

Universos PARALELOS Tecnologia Aplicações para deficientes

Paleontologia Erros e fraudes à volta dos fósseis

Há cópias de nós noutros mundos? Exclusivo Últimas notícias do multiverso Saúde Os parasitas que nos habitam


De Narmer a Cleópatra Os mais poderosos Edição especial 2011/2012 | Portugal € 3,50 (Continente)

Edição especial 2012 | Portugal € 3,50 (Continente) 0 0 0 0 2

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Os maus da história

Os cúmplices t A psicologia t O castigo 20 biografias: Hitler, Mao, Bin Laden, Estaline, Átila, Nero, Idi Amin, Pol Pot, Al Capone, Mengele, Bokassa...

FARAÓS

do Antigo Egito Profissão: deus t Rainhas de barba rija O vale dos Reis t O esplendor de Luxor O quotidiano do palácio t Educar um rei

Luzes e sombras do passado À

DA ES N VE IÇÕ

S D A E N AS APE U D R PO

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A vida em grego e cirílico

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propósito de universos paralelos, o tempo em que vivemos dá-nos boas lições de convergências, divergências e, tantas vezes, paralelismos lamentáveis, mas que não podem deixar de fazer pensar. Sem intenção de sugerir que haja alguma ligação palpável entre eles, seguem-se alguns exemplos lançados a esmo. Na Ucrânia, Putine brinca às guerras. Vindo de onde vem, provavelmente até está a esfregar as mãos de contente com a ideia de que Obama possa cair no engodo. Morre gente a torto e a direito, e, ao certo, por causa de quê? E à nossa porta, não é lá longe, numa Síria qualquer. Na Síria (e no Iraque, e no Afeganistão, e no Paquistão, e agora no Egito), morre gente às mãos cheias por causa de uns extremistas que se acham cruzados dos tempos modernos e anseiam por chegar mais cedo à sua quota de virgens no paraíso. Para fugir do inferno, milhares de gregos optaram pelo suicídio: a taxa aumentou mais de 36 por cento desde o início da crise. Muitos gregos não têm luz, porque não podem pagá-la. Saberão que há uma guerra na Ucrânia? Em São Paulo, no Brasil, uma das maiores urbes do planeta, falta água nas torneiras durante mais de metade da semana (não corre um pingo ao sábado e ao domingo), e a eletricidade vai pelo mesmo caminho. Quando falta a luz, desaparece o sinal de telemóvel, isto é, a maior aglomeração urbana da América do Sul regressa, durante longas horas, a padrões medievais de comunicação e salubridade. O Estado Islâmico deveria adorar a ausência de internet, TV e água para tomar banho e fazer a barba. Temos tendência para achar que a água e a luz são direitos inalienáveis, mas não é verdade. É como a paz. Achamos que estamos a salvo, mas, de um dia para o outro, podemos tornar-nos o alvo de algum maluco (vigoréxico mental). Tempos modernos? C.M.

TERRA

Paparazzi espaciais AMBIENTE

Mistérios cársicos AMBIENTE

Um mapa do plâncton SAÚDE

Os nossos inquilinos ESPAÇO

Mars One: missão inviável? ESPAÇO

Universos paralelos SPL

ESA

Março 2015

TECNOLOGIA

De olho na sucata espacial ASTRONOMIA

Uma rede cósmica HISTÓRIA

Pedro Nunes, personagem rara PALEONTOLOGIA O céu na cabeça Podemos estar a chegar ao momento em que se torna realidade o cenário do filme Gravidade. Vamos ter de reduzir rapidamente o lixo espacial, e começam a surgir ideias sobre como fazê-lo. Pág. 56

Feios, porcos e maus Dezenas de parasitas que se alojam no nosso organismo podem provocar doenças às quais costumamos prestar pouca atenção. Pág. 38

PALEONTOLOGIA

Meter a pata na poça TECNOLOGIA

Janelas biónicas

JORGE NUNES

A perder de vista As paisagens calcárias escondem segredos que vale a pena descobrir. Pág. 26

Assine com um clique! Saúde I Natureza

amento ia I Ambiente I Comport e I Ciência I Tecnolog I História I Sociedad N.º 203 00203

Lindos de morrer? A vigorexia é uma das obsessões mais vulgares no nosso tempo. As vítimas padecem de ilusões sobre a sua forma física. Pág. 82

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REUTERS

O enigmático homem da Ásia

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Venenos De Cleópatra aos nossos dias

Universos PARALELOS Tecnologia

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PSICOLOGIA

Manias de obsessivo HISTÓRIA

Figuras tóxicas ECONOMIA

A viagem do cacau

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SECÇÕES Observatório 4 O Lado Escuro do Universo 5 Motor 8 Super Portugueses 10 Histórias do Tejo 14 Caçadores de Estrelas 16 Flash 44 Marcas & Produtos 97 Foto do Mês 98


Observatório

O museu secreto

FOTOS: CIA

No final dos anos 50, início dos 60, os agentes usavam este kit para abrir buracos nas paredes e instalar microfones. Os acessórios adaptavam-se a diferentes materiais e microfones.

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o início dos anos 70, a Agência Central de Informações (CIA) norte-americana criou um peculiar museu nas suas instalações de Langley (Virgínia, nos arredores de Washington). Ali se foram acumulando objetos desclassificados que documentam as sete décadas de história da CIA. Os agentes e alguns amigos e familiares autorizados podem contemplar nas suas salas armas, equipamentos e curiosos artefactos criados para as missões contra os sucessivos inimigos do país, da velha União Soviética aos modernos integristas islâmicos. O público em geral não tem acesso físico ao local, mas pode admirar a parafernália nas páginas da CIA na internet. Uma das últimas peças incorporadas é a metralhadora AK-47 (Kalashnikov) com que dormia Osama bin Laden na casa do Paquistão onde foi morto. No entanto, o mais fascinante para os visitantes são os dispositivos usados pelos agentes. Infelizmente, não há sapatofones... F.J.

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SUPER

A CIA testou nos anos 70 uma forma de recolher informações sem despertar suspeitas: um veículo telecomandado com o tamanho e a aparência de uma libélula. Um minúsculo motor a gás movia as asas, mas o artefacto revelou-se incapaz de trabalhar em caso de vento.

Num maço de tabaco perfeitamente banal, podia ocultar-se uma máquina fotográfica Tessina de 35 milímetros, a mais apreciada pelos espiões, pela sua qualidade, mas sobretudo pelo seu funcionamento silencioso.


O Lado Escuro do Universo

GPS e massa escura

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Na Segunda Guerra Mundial, a OSS (agência precursora da CIA) conseguia tirar cartas dos sobrescritos sem os abrir: enfiava-se uma ferramenta pela parte superior (não selada) e rodava-se, até conseguir enrolar a carta e extraí-la. Depois, invertia-se o processo.

Este cachimbo aparentemente vulgar ocultava um recetor de rádio, através do qual se podia receber instruções: o som era transmitido por condução óssea, vibrações que vão diretamente da mandíbula ao canal auditivo.

Esta moeda do tempo de Eisenhower é tão falsa como um euro de madeira. Usava-se para ocultar filmes fotográficos ou mensagens que passavam despercebidos: quem iria suspeitar de uns trocos à solta num bolso?

sistema de posicionamento global dos Estados Unidos (GPS, na sigla inglesa), o Galileu (ainda na sua fase inicial), na Europa, e o GloNaSS, na Rússia, são exemplos de sistemas de navegação por satélite, usados com frequência diária por um cada vez maior número de pessoas e serviços. Já aqui discutimos que, para um perfeito funcionamento do GPS, é necessário incorporar os efeitos relativistas da dilatação temporal devido ao movimento dos satélites em órbita terrestre em relação às estações terrenas. Além disso, o GPS também incorpora os efeitos da dilatação temporal gravítica, que essencialmente corrige a passagem “mais lenta” do tempo perto de campos gravitacionais , o que foi testado pela Sonda Gravítica A, em 1976. Os relógios atómicos são a peça essencial, de extrema precisão, usada para calibrar a passagem do tempo em diferentes referenciais. Se o GPS não “soubesse” relatividade, os erros ao navegar nas estradas podiam chegar aos vários quilómetros por dia, em vez da habitual precisão de alguns metros a que estamos habituados. Mais recentemente, têm surgido outras ideias relacionadas com o uso do GPS para detetar a massa escura. Um especialista em telecomunicações e GPS da Universidade do Texas, ao calcular a massa da Terra com base em dados orbitais de navegação por satélite, encontrou um número superior, mas apenas na ordem dos 0,005 por cento em relação ao valor aceite. Para justificar a diferença, bastaria a existência de um vasto disco (com 70 mil quilómetros de extensão e cerca de 200 quilómetros de espessura) de massa escura situado sobre o equador terrestre. As críticas choveram de imediato, lembrando que a massa escura terá uma distribuição esférica na galáxia e que seria estranha a existência de um disco na Terra. Além disso, o conhecimento detalhado do geoide terrestre, feito por satélites como o GRACE, mostra também flutuações na gravidade ao longo do globo, que não terão sido tidas em conta pelo autor, entre outras lacunas. Mais séria é a ideia de que a massa escura não é feita de partículas ainda por descobrir, mas sim de defeitos topológicos, resultantes de campos escuros com génese no universo primitivo e que vão para lá do modelo padrão da física de partículas. Estas “imperfeições” do espaço-tempo podem ser monopolos, cordas (de dimensão 1) ou paredes (de dimensão 2) que podem alterar as constantes físicas

fundamentais, entre as quais a massa das partículas. Um defeito topológico escuro pode também funcionar como uma espécie de material dielétrico dispersivo, com um índice de refração que depende da frequência da radiação visível ou rádio de fontes humanas ou astrofísicas. Físicos da Universidade do Nevada e do Canadá defendem assim que a passagem da Terra por zonas de defeitos topológicos escuros pode ser medida através dos seus efeitos na dessincronização dos relógios atómicos dos sistemas de navegação por satélite. Uma vez que a rede destes satélites ocupa cerca de 50 mil quilómetros e considerando a velocidade do Sistema Solar em torno dos 200 a 300 quilómetros por segundo, procura-se assim um sinal anómalo que no máximo durará cerca de 170 segundos. Os detalhes do trabalho foram publicados na revista Nature, estando os autores já a vasculhar as bases de dados de sistemas como o GPS. Para além dos relógios atómicos em órbita, físicos australianos defendem a procura de defeitos topológicos escuros nos sinais de pulsares. Isto porque os pulsares emitem pulsos rádio muito rápidos (na casa dos milissegundos), com uma regularidade comparável à dos relógios atómicos. Se um defeito topológico escuro passar por um pulsar, pode alterar-lhe a sua massa, dimensões e outras propriedades. Esse evento pode resultar num “tremor” do pulsar, afetando a regularidade da sua emissão rádio ou, por outras palavras, a sua velocidade de rotação. Os “tremores” de pulsares já são, aliás, observados, não existindo explicações cabais para o efeito, que parece estar relacionado com erupções periódicas nestas estrelas de neutrões, cuja superfície se fratura durante os “tremores”. Andrei Derevianko, da Universidade do Nevada, entende que o alargamento da caça aos defeitos topológicos escuros usando pulsares aumenta imensamente o âmbito das redes de navegação por satélite, que de algum modo funcionariam já como o maior detetor escuro alguma vez construído pela humanidade. Com algum sentido de humor, graceja sobre o dia em que os utentes se ponham a queixar acerca de possíveis falhas do GPS por causa da maldita massa escura… PAULO AFONSO Astrofísico

N.R. – Paulo Afonso escreve segundo o novo acordo ortográfico, embora sob protesto. Interessante

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Observatório

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escoberto em 2004, na Universidade de Manchester (Reino Unido), o grafeno (uma substância formada por carbono puro) tornou-se o “material maravilhoso” da tecnologia vindoura. Mais resistente do que o aço, com a espessura de um único átomo, flexível e transparente, é o condutor de eletricidade mais fino que se conhece, e todos os dias surgem possíveis novas aplicações. Agora, investigadores da Universidade de Exeter (também do Reino Unido) dizem tê-lo melhorado com o desenvolvimento do GraphExeter, um “supergrafeno” que resistiria a temperaturas de 150 graus Celsius (até 620 ºC no vácuo) e uma humidade de cem por cento durante 25 dias. Para consegui-

Esta micrografia eletrónica colorida, vencedora do concurso de fotografia da Zeiss, mostra espuma de grafeno, obtida depositando camadas do material sobre uma armação metálica.

INDRAT ARIA

E agora... o supergrafeno

-lo, os cientistas colocaram moléculas de cloreto de ferro entre duas camadas do material. Este grafeno modificado poderia substituir o óxido de índio e estanho, o condutor transparente mais habitual nos dispositivos eletrónicos, e perfila-se como um componente para painéis solares (onde é crucial a resistência às condições climáticas), wearables (tecnologia de vestir) ou televisores destinados a ambientes muito húmidos (cozinhas...), já que aumentaria a duração dos ecrãs. Segundo um trabalho publicado na revista Nanoscale, construir com grafeno os pontos quânticos (semicondutores minúsculos, fluorescentes quando se projeta luz sobre eles)

quintuplicaria o seu brilho, o que teria aplicação no fabrico de lâmpadas LED e na marcação de células cancerígenas, por exemplo. Por outro lado, o grafeno também se associou a uma das tecnologias mais surpreendentes dos últimos anos: cientistas sul-coreanos imprimiram nanoestruturas tridimensionais feitas inteiramente desta substância, graças a um novo método de impressão 3D que funciona a partir do fabrico aditivo, ou seja, da sobreposição sucessiva de camadas micrométricas de material, até conseguir o objeto pretendido. A técnica poderá servir para produzir sensores, circuitos e chips de dimensões extremamente reduzidas.

de paisagens deslumbrantes sobre o rio Douro, uma terra com vários pontos turísticos visitados durante todo o ano, de festividades e romarias conhecidas por todo o norte do país, de boa gastronomia, de boa música e de bom vinho verde. Diga-se, esta terra é super-interessante. É pena que o autor não tenha feito essa descrição no seu artigo “científico”, ou não tenha efetuado as buscas necessárias para o efeito. Pode ser que um dia destes queira voltar e fazer outro artigo. Mónica Rocha (Castelo de Paiva) N.R. – O autor referia-se evidentemente e apenas ao couto mineiro abandonado, não ao concelho, nem às suas terras ou populações.

deitar-se junto da lareira acesa e desfrutar do calor. Quando a lareira está apagada, olha para o sítio onde costumam estar as labaredas, expectante. Acredito que guarda a memória da emoção ou da sensação sentidas. O outro tema que me fez pensar foi: “Viver a dois provoca stress?”. Vivo acompanhada com as duas gatas, mas sozinha em matéria de seres humanos. Suponho que não se possa dizer que é menos cansativo ou stressante: simplesmente, não há ninguém com quem partilhar ideias ou ajudar a tomar decisões, e, conforme os dias decorrem, até os pequenos acontecimentos deixam a sua marca para o melhor e para o pior. É viver acompanhada comigo mesma, e tanto posso ser satisfatória como incomodativa. Por último, e sendo fã da antiga série Ficheiros Secretos (X-Files), criada por Chris Carter, a revista deu-me a descobrir a origem do nome de uma das personagens de um dos livros da série: neste, foi utilizado o nome “Ogilvy”, um dos criativos de publicidade para televisão a partir dos anos 50. Por estas razões em especial e pela revista no seu conjunto, é de louvar o vosso empenho. Luísa Estêvão (Algarve)

A OPINIÃO DO LEITOR Castelo de Paiva Como leitora assídua da SUPER, qual não é o meu espanto, ao iniciar a leitura do artigo O Jardineiro de Pedra [SUPER 202], descobrir, após 30 anos, que, afinal, a minha terra, o sítio onde nasci, cresci e vivo, é um autêntico deserto. Ao ler esta parte inicial e alguns excertos pelo meio, parecia que estava a ver os filmes de cowboys de domingo à tarde, em que, após alguns dias de viagem em cima do seu cavalo, o forasteiro se depara com uma cidade fantasma no meio do faroeste, em que não se vê vivalma. Bem, esse texto “científico” faz uma descrição super-errada da minha terra. Apesar de ter visto um dos pontos emblemáticos do Couto Mineiro do Pejão ao abandono, por políticas de direita desastrosas de há 20 anos, não quer dizer que vivamos atualmente num deserto do Sahara em Portugal. Esta terra não gosta de ser conhecida pelas tragédias, não é um local abandonado e sem futuro. Esta superterra tem homens e mulheres com garra (tal como o sr. António Patrão), que souberam enfrentar as dificuldades de outrora. É uma terra de gente superlutadora, super-humilde e supertrabalhadora. É uma terra

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SUPER

Edições especiais Aprecio a edição mensal da SUPER, e ainda mais as edições especiais, que trazem informações e estudos interessantes. Na última edição de Perguntas & Respostas, houve três temas que, além dos demais, captaram a minha atenção. O primeiro concerne às emoções sentidas não só pelos humanos mas também pelos animais. Tenho duas gatas e uma delas revela claramente demonstrar alguma memória de emoção, ou, pelo menos, sensitiva. Sucede que gosta de

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SI 203


Motor

Raio X Lexus RC F 1

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O carro no pulso

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Continental é mais conhecida como um dos maiores produtores de pneus para automóveis e outros veículos, mas a verdade é que tem também um papel ativo noutros domínios, alguns complementares ao automóvel, como o da mobilidade. Alguns dos seus mais recentes desenvolvimentos estão relacionados com a conetividade entre os veículos e a cloud, na procura de progressos nos campos do controlo, entretenimento, informação e segurança. Um dos projetos mais curiosos é o que envolve a utilização de um smartwatch. Este relógio de pulso ligado à internet permite uma conexão à distância entre o condutor e o automóvel, numa nova interpretação, mais sofisticada e abrangente, da chamada “chave inteligente” que hoje algumas marcas de automóveis já propõem nos seus modelos. O sistema utiliza o protocolo Bluetooth para se ligar aos sistemas a bordo do automóvel, nomeadamente à nova chave virtual bidirecional, também conhecida como gateway key. Esta funciona como um

CARRO DO MÊS

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SUPER

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marca japonesa de veículos de luxo e desportivos lançou o seu novo RC F. Trata-se de um coupé de altas prestações e quatro lugares com dimensões que o colocam no segmento D, ou seja, em confronto direto com modelos como o novo BMW M4. Vejamos algumas das soluções técnicas usadas pelos engenheiros japoneses para o confronto com o desportivo feito pela marca de Munique. 1 – O motor é um V8 sem turbocompressor, capaz de desenvolver uma potência máxima de 477 cavalos às 7100 rotações por minuto e com um binário máximo de 530 Newton-metro, às 4800 rpm. Funciona com injeção direta e indireta e o seu variador de fase permite-lhe funcionar segundo o ciclo de Atkinson, em situações de carga parcial. Está acoplado a uma caixa

Audi A3 Sportback e-tron

Audi acaba de lançar a versão híbrida gasolina/elétrica do A3, na versão Sport­back de cinco portas. Em termos mecânicos, o motor 1.4 TSI com turbocompressor e 150 cavalos é ajudado por um motor elético ultrafino de 102 cv, colocado entre o motor a gasolina e a caixa de velocidades de dupla embraiagem e seis relações. A potência máxima combinada, anunciada pela Audi, é de 204 cv, o que permite uma velocidade máxima de 222 km/h e uma aceleração dos zero aos cem quilómetros por hora em 7,6 segundos. O motor elétrico é alimentado por uma bateria de 8,8 quilowatts-hora, que pesa 125 quilos e está alojada sob o banco traseiro. A bateria recebe energia regenerada pelo motor

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interface entre o veículo e o smartwatch, transferindo informação relativa ao veículo, dados de diagnóstico e perfil de utilizador para o veículo. Na verdade, o smartwatch acaba por ser usado como um terminal de computador. Através de uma aplicação, o condutor pode abrir ou fechar as portas do veículo ou trocar outro tipo de informação. Por exemplo, pode acionar o sistema de climatização, ajustar as regulações do banco elétrico a seu gosto ou simplesmente localizar o veículo num parque de estacionamento. Tudo isto é feito simplesmente através da utilização do monitor do smartwatch, com toques e movimentos dos dedos semelhantes aos permitidos num smart­ phone. A Continental afirma que esta tecnologia está pronta a entrar no mercado, não se sabendo contudo se o fará de forma independente ou associada a um ou mais construtores de automóveis, como equipamento opcional. Uma coisa é certa: a ideia é de uma utilidade tão óbvia que não deverá demorar muito a estar disponível para o consumidor final.

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elétrico durante travagens e desacelerações, altura em que se converte em gerador, mas também pode ser carregada através de um cabo numa tomada doméstica, a 10 amperes, demorando um máximo de 3h45, ou numa tomada industrial, a 16 A, demorando 2h15. Com a bateria carregada, consegue circular até 40 km em modo cem por cento elétrico, mas sem ultrapassar os 80 km/h. O condutor tem quatro modos de condução que pode ativar através de um botão: elétrico, Hybrid Auto, Hybrid Hold e Hybrid Charge. No arranque, é sempre usado o modo elétrico, extremamente suave, silencioso e com uma resposta ao acelerador muito rápida e continuada, com passagens de caixa ultrarrá-

pidas. Este modo não dura para cima dos 125 km/h, altura em que entra em ação o motor a gasolina, também com imensa suavidade e complementando muito bem a propulsão, que se torna então híbrida automática. Sempre que se reacelera, o motor elétrico dá um boost, para tornar a resposta mais rápida e suave, e os dois


Opinião

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O modelo alemão

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automática de oito velocidades, com possibilidade de comando em sequência. 2 – A tração é às rodas traseiras e estão disponíveis dois tipos de diferencial autoblocante: um Torsen mecânico ou um inovador diferencial de comando eletrónico, batizado TVD (Torque Vectoring Differential), que utiliza duas embraiagens comandadas por motores elétricos e tem três modos de funcionamento, à escolha do condutor. 3 – Os travões são de discos ventilados e ranhurados, com grande diâmetro (380 milímetros, à frente) e são fornecidos pelos especialistas da Brembo. A Lexus não achou necessário o recurso a discos em carbocerâmica. 4 – A aerodinâmica da carroçaria foi muito trabalhada, incluindo uma asa traseira ativa, que se ergue automaticamente aos 80 quilómetros por hora.

5 – Os bancos têm uma espuma patenteada pela Lexus, que permite uma menor deformação do banco, sob o peso do condutor e durante curvas ou travagens bruscas, em condução desportiva. 6 – A suspensão é de triângulos sobrepostos, à frente, e multibraço, atrás, com vários elementos em alumínio forjado, mas, curiosamente, os amortecedores não são reguláveis pelo condutor, como na maioria dos rivais. 7 – Como hoje é moda, também o Lexus RC F tem um botão que dá ao condutor acesso a vários modos de condução, em que são alterados parâmetros como a resposta do acelerador, o tempo de passagem da caixa, o desempenho do diferencial ativo e também a configuração do painel de instrumentos.

motores funcionam sempre em harmonia na procura da condução mais eficiente. Se assim o desejar, o condutor pode depois escolher os dois outros modos. No caso do Hybrid Hold, o motor elétrico está sempre em ação, para obter as melhores prestações máximas. No modo Hybrid Charge, o sistema recarrega a

bateria em andamento, funcionando o motor a gasolina como propulsor, mas também como gerador, quando não há uma tomada por perto ou não há tempo a perder. Em conclusão, o A3 Sportback e-tron proporciona uma condução muito suave mas rápida, apesar de o acréscimo de peso o tornar menos ágil em condução mais rápida por estradas sinuosas. Os consumos são muito bons, podendo variar entre os zero, em modo elétrico com a bateria carregada na rede, e os quase sete litros aos cem quilómetros, com a bateria nos níveis mínimos e circulando em cidade. O preço base desta versão é de 43 mil euros, com a vantagem de, para casos de empresas, o valor do IVA pago na aquisição e em todos os serviços ligados ao automóvel poder ser amortizado na totalidade.

eguindo a sua missão de propor modelos de prestígio capazes de fazer face aos produzidos pelas grandes marcas alemãs, a Lexus, que é a divisão de automóveis de luxo da Toyota, delineou uma estratégia de lançamento de novos produtos que merece ser analisada. Por um lado, fez uma aposta forte e sem compromissos nas motorizações híbridas, oferecendo várias opções deste tipo na sua crescente gama de modelos e declinando a possibilidade de oferecer os mais tradicionais motores Diesel. Uma manobra de risco mas com um futuro sólido, pelo menos a avaliar pelas perspetivas sombrias que cobrem o futuro do gasóleo, na Europa. As futuras normas antiemissões poluentes prometem uma guerra aberta aos Diesel, que poucas marcas vão ser capazes de suportar, em termos de custos de desenvolvimento e como modelo de negócio. Como a fama e o sucesso das marcas alemãs tem passado desde sempre também por modelos desportivos de exceção, a Lexus não podia ignorar este segmento de mercado. Não tanto pelo que ele pode representar em termos de negócio direto – muito provavelmente, os custos deste tipo de versões não são cobertos pelo preço de venda ao público –, mas sobretudo pela ferramenta de marketing que constituem. Ter um modelo de altas prestações e de grande eficácia dinâmica, que possa ser comparado com os melhores que se fazem na Alemanha, é motivo mais do que suficiente para a Lexus investir em modelos como o novo RC F. A mensagem a passar ao cliente é simples: se a Lexus é capaz de se bater com os melhores no segmento que é apercebido como o dos modelos mais complexos e sofisticados, certamente também o será nos modelos mais comuns, aqueles que a maioria dos consumidores pode comprar. É aquilo a que os ingleses chamam “efeito de aura”. Em termos de exercício técnico e tecnológico, o RC F já mostrou que está a par dos melhores. FRANCISCO MOTA Diretor técnico do Auto Hoje

Interessante

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SUPER Portugueses

A flor da charneca Há várias razões para incluir Florbela Espanca na lista dos superportugueses. Para além da sua poesia, contemos também o fogo e a coragem de todos os pioneiros.

E

xpliquemos melhor: como escritora, Florbela Es­p anca tem, pela quali­ da­d e dos seus poemas – também compôs prosa, mas foi na poesia que, verdadeira­men­te, atingiu a excelência –, um lugar de honra na literatura por­tuguesa e mesmo na litera­tu­ra europeia. Portanto, nes­ te do­mí­nio, ela já superou, em mui­to, a media­ nia e, sob es­ta pers­pe­tiva, não interessa que fosse mu­lher ou homem: é um gran­de no­me da nossa histó­ria. Todavia, há, como ficou dito, ou­tras razões para que se lhe atri­bua um lugar na nossa ga­le­ ria dos notáveis. Uma delas pren­de-se ainda com a sua poe­s ia: além da sua qualidade, já re­fe­rida, ela é, que saibamos, o pri­mei­ro caso de poesia eró­ti­ca fe­mi­nina, escrita numa época em que somente algumas – pou­cas! – mulheres portu­gue­sas da­vam tímidos passos no ca­mi­nho, não se dirá sequer da eman­ci­ pação, mas, antes de mais, da sua valorização perante a sociedade. Nesse tempo de ge­ral pudor e recato, surge, in­tem­pestivamente, vinda do na­da, uma pequenina mas peri­go­sa Florbela que borra toda es­ta pin­tura – que se casa três ve­zes e se divorcia duas, que se apaixona e não hesita em escrever ao mundo essas pai­xões. Há mais, ainda falando da sua poesia erótica. É que, justa­men­te em termos de erotismo, a poesia de Florbela Espanca atin­giu um nível raras vezes igua­lado (temos presente, por exemplo, o caso de Maria Teresa Horta, mas que é muito mais re­cente, pois, felizmente, essa es­tá viva e continua a escrever). Por­que, entendamo-nos: o ver­da­deiro erotismo é mais sugeri­do do que explícito, é o oposto da por­ no­grafia. É mais um perfume ou um murmúrio do que uma visualização, do que um gra­fis­mo. Enfim, Florbela está também na galeria

10 SUPER

dos notáveis pe­la sua loucura, pela sua cora­ gem pio­neira: não só por ser uma mu­lher que desafiou as con­v en­ç ões, mas porque essa mu­lher que ela foi veio de bai­xo; não era uma aristocrata nem uma grande burguesa. O pai co­meçou por ser sapateiro, co­mo o avô. Numa altura em que as mulheres quase não ti­nham acesso à educação, ela com­pletou o liceu, chegou ao en­si­no superior, frequentou a Fa­cul­dade de Direito. Ao longo da vida, sem­ pre reivindicou o direito aos seus sentimentos e reivindicou também o direito de os verter em poesia e em prosa. Destinada a publicação.

ESTRANHA FAMÍLIA

De certo modo, o seu caráter po­d e ter sido influenciado pela in­fância, pela estra­ nha família em cujo seio nasceu – uma es­tra­ nheza que se deveu ao pai, que lhe deu, além da mãe natural, duas madrastas, digamos… si­multâneas. Natural de Orada mas depois residente em Vila Vi­çosa, João Maria Espanca era um homem cheio de criatividade: de sapa­ teiro passou a anti­quá­rio, negociou em cabe­ dais, abriu uma casa de fotografia, mais tarde foi um pioneiro do animatógrafo; ajeitava-se tam­bém a desenhar e a pintar. Era, além disso, um boémio in­cor­rigível e um incorrigível con­ quistador de mulheres. Casou muito novo (21 anos) com uma loira Mariana do Carmo, que não podia ter filhos; então, lo­grou convencê-la a aceitar a se­guinte situação: ele iria fazer um filho fora do matrimónio, em mulher de con­ dição humilde; depois, o casal tomaria con­ta da criança. Claro que João Maria esco­lheu cuidadosa­ mente a tal mu­lher de condição humilde: na rua de Vila Viçosa onde ele mo­r a­v a, traba­ lhava uma lindíssima Antónia da Conceição Lobo, cria­da de servir. Conquistou-a, le­vou-a

para a casa onde ti­nham vivido os seus pais, e as­sim veio a nascer Florbela Es­pan­ca, levada, logo que nasceu, pa­ra casa do pai, onde a mãe só entrava para a amamentar. Acres­cente-se que, dois anos mais tarde, João Espanca vol­ tou à carga (se assim se pode dizer), por­que, agora, queria um filho va­rão. De novo, com o conheci­men­to da legítima esposa, foi dor­mir com Antónia. Passado o tempo regulamentar, veio ao mundo um rapaz, a quem o pai insis­ tiu em chamar Apeles. Es­se ficou com a mãe até aos qua­tro anos; depois, Antónia aba­lou com outro homem e a crian­ça foi viver com o pai, a ir­mã e a madrasta. Acrescente-se que nem assim se apaziguaram os ardores de João Espanca; não há, evidentemente, uma re­la­ção das suas infidelidades con­jugais, mas sabe-se que em 1906 começou uma secreta liga­ção amorosa com a criada da ca­sa, Henriqueta de Almeida. Vi­ria a casar com ela cerca de 15 anos depois, quando Mariana do Carmo lhe exigiu o divórcio. Curiosamente, Florbela Es­p an­c a, na sua infância, não pa­re­ceu ressentir-se emocional­ mente de toda esta “desordem”. Ela pró­pria escreveu, numa carta, ter crescido “despreo­ cupada e fe­liz”. Aliás, adorava o pai, como adorava o irmão. Já em rela­ção às mulheres – a sua mãe, An­tónia Lobo, e as madrastas, Ma­riana e Henriqueta – guar­dou quase sem­ pre alguma dis­tân­cia emocional. Fosse como fosse, desde mui­t o cedo se manifestou nela o es­tro, a imaginação criadora e um inevitável desequilíbrio. No fundo, criati­ vidade e cria­ção implicam, de uma forma ou de outra, desequilíbrio; a ques­tão, para o cria­ dor, está em ser ou não capaz de o gerir. Flor­ be­la nunca soube fazê-lo. De cer­to modo, já é premonitó­rio o título do seu primeiro poema conhecido: “A vida e a mor­t e”. Não é um


FLORBELA ESPANCA (1894–1930) O primeiro poema

E

is o poema que Florbela escreveu aos oi­to anos de idade. Reproduzi­ mo-lo com a ortografia atualizada. O que é a vida e a morte Aquela infernal inimiga A vida é o sorriso E a morte da vida a guarida A morte tem os desgostos A vida tem os felizes A cova tem a tristeza E a vida tem as raízes A vida e a morte são O sorriso lisonjeiro E o amor tem o navio E o navio o marinheiro

grande poema e o original apresenta erros de or­to­grafia, mas, enfim, a au­to­­ra tinha, então, oito anos de ida­de… Uma catraia com oito anos es­c re­v e um poema; não é normal. Embora os versos sejam ainda um pouco inábeis, embora denotem alguma in­ge­nuidade, estão muito, muito acima do que se poderia espe­r ar naquela idade. Isto para não falar do tema, vida e morte. Que, acrescente-se, há-de per­seguir Florbela Espanca du­ran­te toda a vida. O menos que se pode dizer é que começou ce­do. Quem sabe se não teria já, dentro da­que­les precoces oito anos, a doen­ça que parece ter herdado da mãe, a neurose, que, segundo o diag­nóstico oficial, matou An­tó­nia da Conceição Lobo aos 29 anos? Quanto a Florbela, dá no­tí­cia dos pri­ meiros sintomas nu­ma carta para o pai, datada de 1907, em que se queixa de fa­di­ga e dores de cabeça.

AMOR, POESIA E MÁGOA

Estranhamente, Florbela Es­pan­ca não dei­ xou uma só palavra escrita sobre a revolu­ ção de 1910, que derrubou a monarquia. No entanto, ela estava em Lisboa, com a família, insta­la­da no Hotel Francfort, que fi­cava em pleno Rossio. Tinha 16 anos, já escrevia, mas como que ignorou o acontecimento. O seu feminismo parece ser, aci­ma de tudo, pessoal, vivido, mas não doutrinado, pouco po­lí­tico. Essencialmente, ela foi sem­pre uma militante de si pró­pria, da sua própria vida. Toda essa vida – não muito lon­ga, é certo – esteve centrada na poesia e na demanda de um amor ideal, perfeito, que ela nun­ca encon­ trou. O seu primeiro namorado, aos 17 anos, em Évo­ra, foi um colega do li­ceu. Caso pouco conhecido, que Rui Guedes referiu na sua obra Acerca de Florbela. Esse na­­moro pouco

durou, porque lo­go em abril ela começava ou­tro, também com um colega, mas que Flor­ bela conhecia des­de a infância: Alberto Silva Mou­tinho, com quem ela viria a ca­sar dois anos mais tarde. En­tre o começo do namoro e o ca­sa­mento, Florbela teve, po­rém, uma violenta paixão por um jovem que conheceu na Fi­gueira da Foz e cujo nome es­teve oculto durante muito tem­po; sabe-se agora que se cha­mava João Mar­tins da Silva Mar­ques, um fu­tu­ro académico. A relação ter­mi­naria meses de­p ois e deixaria Florbela despe­d a­ç ada, a pon­to de, segundo as suas pró­prias palavras, nunca ter sa­ra­do a ferida que lhe ficou. Pa­re­ce ter sido quase por com­pen­sação que reatou o namo­ro com Alberto Moutinho e com ele casou, em 1913. Este casamento não iria durar. A vida con­ jugal terminou efe­tivamente em fins de 1918, quan­do Florbela, que residia com o marido no Algarve, voltou para Lisboa, onde o casal já tinha vivido, para retomar os estudos na Faculdade de Direi­to. No princípio de 1920, co­nhe­ceu um jovem alferes da GNR, António Guimarães… pai­xão quase instantânea; co­me­ çam a viver juntos, o que con­duz ao divórcio de Florbela, lo­go que o marido toma conheci­ men­to da situação. Depois, a 29 de junho de 1921, celebra-se o ma­trimónio (também civil) entre Florbela Espanca e António Gui­marães. Matrimónio que se de­g rada rapidamente, pois em 1923 já há acusações mútuas: a fa­mí­ lia da mulher diz que o marido lhe bate, a família do marido sustenta que não: é Flor­ bela que lhe bate para o acordar, quan­do ele adormece durante a leitura dos poemas da esposa. No final do ano, António Gui­marães inicia o processo de di­vórcio, quando ela já vive em ca­sa do Dr. Mário Lage, médi­co que tem vindo a tratá-la. Desta vez, a família acha

O dia 8 de dezembro

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a vida de Florbela Espanca, a da­ta de 8 de dezembro é um ver­ dadeiro Leitmotiv. É, como se sa­be, o dia consagrado pela Igreja Católica a Nossa Senhora da Con­ceição. Ora, Florbela nasceu a 8 de dezembro, casou-se pela pri­mei­ra vez a 8 de dezembro e mor­ reu a 8 de dezembro, pelas duas horas da manhã. É também ver­da­de que Vila Viçosa, onde ela nas­ceu, tem como padroeira Nos­sa Senhora da Concei­ ção; que foi batizada na Igreja de Nos­sa Se­nhora da Conceição, e que deu au­las no Colégio de Nos­sa Senho­ra da Con­ ceição, em Évora… Interessante

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SUPER Portugueses Imagem da infância: piquenique familiar. Florbela é a criança que está sentada no chão, à esquerda.

Irmã de um só irmão

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u fui na vida a irmã de um só Ir­mão/ E já não sou a irmã de nin­guém mais!” Assim ter­mi­na um soneto de Flor­ bela Es­panca de­di­cado à memória do ir­mão. Hou­ve quem con­si­de­ras­se que o seu amor por ele era mais do que fra­ter­ nal, mas nada o con­firma, nem os fac­tos nem os escritos. O que é ver­dade, sim, é a pro­fun­­da afeição que ela sen­tia. Apeles Demóstenes da Ro­cha Es­panca estudou em Évo­ra e Coim­bra, depois entrou na Es­co­­la Na­val e tornou-se oficial da Ma­ri­ nha. Era, ao mesmo tem­po, um pin­tor com mé­ritos, so­bre­tudo em óleos e agua­ relas. Par­ti­lha­va, assim, cer­tas qua­lidades ar­tís­ticas da ir­mã – e talvez um pou­co do seu de­se­qui­líbrio: quan­do a sua noi­va mor­reu, em fins de 1925, ele con­fes­sou a Florbe­la a vontade de se suicidar. No en­tan­to, nada prova que a sua mor­te fosse mais do que um aci­den­te. Florbela conseguiu a posse de dois fragmentos dos des­troços do hidroavião em que o irmão mor­reu. Por sua vontade ex­pressa, foi en­terrada com eles.

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que é demais e corta relações, durante dois anos; em 1925, Florbela ca­sa, pelo civil e pela Igreja, com Mário Lage. No entanto, ela tem uma ideia negativa sobre o casamento: “O casamento é bru­ tal”, escreve à sua amiga Jú­lia Alves. É uma “coisa revoltan­te”. Isto por uma razão: “Essa ra­zão é a posse, essa suprema e gran­de lei da natureza que, no en­tanto, revolta tudo quanto eu tenho de delicado e bom.” Como diz num seu poema, quer “amar, amar perdidamente”, mas revolta-a o preço a pagar. Ainda assim, casa pela ter­cei­ra vez; tem 31 anos, sofreu dois abortos involuntários, a sua saúde é frágil, a melancolia assalta-a, mas continua a es­crever. A produção literária de Flor­be­la Espanca encontra-se hoje aces­s ível, praticamente, na to­t a­li­d ade. Nela se destacam os so­n e­ tos, mas também muitos ou­tros poemas. A primeira obra pu­bli­cada é o Livro de Má­goas (1919). O segundo, o Li­vro de So­ror Saudade, sairá no princí­pio de 1923, mas ela já não ve­rá editada mais nenhu­ma das suas obras. Entre­ tanto, pu­bli­ca­rá poemas em várias re­vis­tas, no­meadamente Modas e Bor­dados, uma revista que, na épo­ca, apesar do título, se inte­res­sava também pela prosa e pela poesia femininas.

OS ÚLTIMOS ANOS

O período que vai de 1927 a 1930, ano do suicídio de Florbe­la, é particularmente som­ brio. Co­m eça com a morte prematura do irmão: Apeles Espanca era oficial da Marinha e decidi­ra fazer o curso de piloto-aviador para entrar na Aviação Naval; a 6 de junho, num voo de trei­no, o hidroavião que pilotava caiu no Tejo. O corpo não foi en­contrado. Este foi o choque mais violen­to que Florbela sofreu e do qual nun­ca se refez. Durante o ano se­guin­te, o seu casamento com Má­rio Lage começou a dar si­nais de desagregação e a sua

doen­ça nervosa agravou-se sen­si­vel­mente. No verão, apaixonou-se novamente, agora pelo mé­di­co e músico Luís Cabral, mas em agosto já tudo termina­ra e ela fez uma primeira tenta­ ti­va de suicídio. Em 1929, andou por Lisboa, Évora e Pedras Sal­ga­das. Consultava médicos e ten­tava, sem êxito, encontrar edi­tor para dois livros. Depois, em 1930, conheceu – pri­ meiro por carta e depois pessoalmente – um admirador italiano, Gui­do Battelli, de 62 anos, pro­fes­sor na Universidade de Coim­bra. Battelli (que viria a traduzi-la para italiano) mostra-se dispos­to a editar-lhe um livro de poe­mas, a Charneca em Flor. Em agos­to, Flor­ bela regressa a Ma­to­sinhos, onde reside com o ma­ri­do, Mário Lage. Os meses seguin­tes decorrem entre a ân­sia de ver publicado Charneca em Flor e o desânimo, a angús­tia, o desin­ teresse da vida: a neu­rose está a vencê-la. Em ou­tubro, uma nova paixão, por Ân­gelo César, um advogado. Não dura e pouco depois Flor­ bela tenta pela segunda vez sui­cidar-se. A terceira foi de vez. Na casa de Matosinhos abundavam os bar­bitúricos. Florbela só conseguia dormir à força de Veronal, e foi com Veronal que ela se ma­tou enfim, a 8 de dezembro de 1930. Só depois, em 1931, seria pu­bli­cado Charneca em Flor, e a se­guir os livros inéditos e as re­e­ diç­ões do Livro de Mágoas e do Livro de Soror Saudade. Só de­pois, graças à ação de vários no­mes da cultura (entre eles, há que o reco­ nhecer, António Ferro) se afirmou, lenta mas se­gu­ramente, o nome literário de Florbela Espanca. Até então, en­quanto foi viva, e ape­ sar de al­guns amigos fiéis, foi verdade o que ela escreveu um dia: “O mundo quer-me mal porque nin­guém/ tem asas como eu te­nho!” JOÃO AGUIAR Este artigo foi publicado originalmente na SUPER 113. João Aguiar faleceu em 2010.


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Histórias do Tejo

As calhandreiras Antes de haver saneamento básico, Lisboa era suja e malcheirosa. Para limpar o problema, instituíram‑se as calhandreiras, escravas africanas que iam a casa das pessoas recolher as imundícies e despejá‑las… no Tejo.

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uando imaginamos a cidade de Lisboa da era dos Descobrimen‑ tos, pensamos numa metrópole cheia de glamour, sumptuosa, ele‑ gante, rica, opulenta, eclética, com gentes e culturas dos cinco cantos do planeta a empres‑ tar‑lhe uma aura cosmopolita sem paralelo em nenhuma outra urbe no mundo. Só um pormenor conspurca esta imagem – naquele tempo, não havia rede de esgotos, nem na capital portuguesa nem em lado algum. As pessoas tinham, na mesma, de ir à casa de banho (por assim dizer, já que casas de banho propriamente ditas não existiam). O resultado não era bonito. No início do século xv, Lisboa estrebuchava com uma tal falta de higiene que a situação descambara para um grave problema de saúde pública. As pessoas viviam entre galinhas, patos, vacas, porcos e cabras, sem tomarem banho nem terem qualquer noção da impor‑ tância da higiene. Pior: despejavam os bacios onde calhava ou faziam as suas necessidades diretamente nas ruas. A crónica falta de água limpa de que a cidade padecia não ajudava. Só antes das procissões e outras festividades reli‑ giosas as autoridades municipais limpavam as vias públicas. Este, aliás, era o contributo soli‑ tário da Igreja para aliviar a situação – histo‑ ricamente, os líderes cristãos defendiam que o batismo era o único banho que um homem deveria tomar em toda a sua vida. A época de ouro dos Descobrimentos, no entanto, acrescentaria mais um prego: os marinheiros regressavam, demasiadas vezes, com doenças novas contraídas a milhares de quilómetros de distância, para as quais os lisboetas não tinham defesas. Por tudo isto, não admira que um odor nauseabundo grassasse pela cidade 24 horas por dia, com as doenças a espalharem‑se tão facilmente como o cheiro. Em 1437, a cidade foi assolada por mais uma peste, espoletada pela completa ausência de sanidade, e o rei

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D. Duarte mandou avançar com uma série de medidas sanitárias de emergência. Em 1486, D. João II ordenou que cada freguesia indi‑ casse gente para limpar a cidade, às custas dos moradores. O seu sucessor, D. Manuel I, reforçou a lei, definindo locais próprios para depositar as imundícies – quase sempre o rio. As indicações régias não passavam de provi‑ dências avulsas ou intenções que nunca saíam do papel. Em 1550, não havia mais do que quatro “homens que limpavam lamas” (eufe‑ mismo oficial), para uma população superior a cem mil habitantes. Só quando chegou D. Sebastião (de reinado tão curto quanto prolífico e energético) o problema de fundo deu os primeiros passos para ser resolvido. Um alvará régio instituiu os trabalhadores dos carretões: homens pagos ao mês pelos seus vizinhos recolhiam lixo e excrementos duas vezes por semana, em pequenas carroças, e levavam‑nos para fora da cidade. Onde as car‑ roças não coubessem, a sujidade seria trans‑ portada por burros e bois de carga. Isentos do pagamento (idêntico ao que hoje é a taxa municipal para recolha e tratamento dos resí‑ duos sólidos urbanos) ficavam os mais pobres, que vivessem da caridade das Misericórdias e outras que tais. Mesmo assim, só quem não tinha dinheiro para uma mula ou um cavalo se atrevia a caminhar pelas ruas pejadas de estrume – de origem animal e não só.

RECEITA LUCRATIVA

A solução chegaria com a mais lucrativa receita dos Descobrimentos: a escravatura. Os escravos recém‑chegados, a maioria da costa oeste de África, eram imediatamente empur‑ rados para os piores trabalhos, tal como acon‑ tece hoje com os imigrantes sem qualificações, um pouco por todo o mundo. Não faltavam vagas: muitos portugueses, principalmente camponeses que nunca tinham visto o mar, alistavam‑se como marinheiros para as rotas comerciais das especiarias, abertas por Vasco

da Gama, ou emigravam para o Brasil, dei‑ xando imensa terra para ser cultivada. Além da agricultura, também as minas e os portos do Tejo (que precisavam de mão de obra vigo‑ rosa para as cargas e descargas dos navios) se mostravam sedentos de escravos. Os empre‑ gos mais duros – ou mais sujos – caberiam às mulheres africanas. Quando o século XVI se aproximava do fim, as ruas de Lisboa começaram a ser percorri‑ das pelas “negras calhandreiras” – escravas que iam a casa das pessoas buscar os dejetos, badalando uma campainha que traziam com elas para anunciar a sua chegada. As mulheres andavam sempre com uns enormes cestos de vime com tampa (canastras) à cabeça e que serviam de esconderijo aos grandes potes para onde se esvaziavam os bacios. Esses reci‑ pientes tinham o nome de “calhandros”; daí o nome da profissão. Quando os potes estavam cheios, as calhan‑ dreiras despejavam‑nos no rio. Ao início, no local mais próximo; mais tarde, regulamen‑ tos reais definiram a zona dos atuais Cais do Sodré e Santos como sítios indicados para descarregar. A imagem de mulheres a verter o conteúdo dos calhandros torna‑se ainda mais abjeta quando nos lembramos de que as margens do Tejo não eram emparedadas, como hoje, mas constituídas por praias. Não é preciso muita imaginação para ver as pobres


O Terreiro do Paço por volta de 1650. Felizmente, a imagem não revela o cheiro nauseabundo que se desprenderia do rio.

Este artigo é uma adaptação de um dos capítulos do livro Histórias do Tejo, de Luís Ribeiro (A Esfera dos Livros, 2013) http://bit.ly/1hrY8Zc

obriga‑nos a relativizar as coisas: daqui a umas décadas, o que pensarão os portugueses do ato, ainda hoje bastante comum, de cuspir e, até, urinar na rua?

LEI CUMPRIDA... PARCIALMENTE

calhandreiras a entrarem na água, até à altura dos tornozelos, para vazarem o fétido resul‑ tado de digestões alheias, mesmo ao lado das imponentes e gloriosas naus das Índias que se preparavam para partir à aventura. As miseráveis mulheres eram obrigadas a aguentar o cheiro pestilento, que se lhes colava à roupa, à pele e ao cabelo, e a convi‑ ver com o asco da população, que fugia delas como da peste. Aliás, evitar as calhandreiras equivalia, de certa forma, a evitar a própria peste, que se propagava precisamente pela

falta de higiene. Havia mais razões para as pessoas se desviarem do caminho destas escravas: as precárias canastras caíam muitas vezes da cabeça, quando já estavam cheias… As calhandreiras não se limitavam a ir de casa em casa. Também apanhavam o lixo e os dejetos que encontravam na rua. Havia muito trabalho: Lisboa, como todas as cidades daquele tempo, era ainda mais imunda pelo facto de as pessoas defecarem onde calhasse. À luz da modernidade, claro que este hábito nos parece repugnante, mas olhar para trás

Comércio negro

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comércio de escravos africanos para Portugal começou em meados do século XV. Em 1550, viviam em Lisboa praticamente dez mil escravos da costa oeste africana – o que equivalia a dez por cento da população. Só cá ficava uma pequeníssima parte dos dez a 12 mil escravos negros que todos os anos eram raptados, comprados ou trocados em África (14 negros valiam o mesmo que um cavalo, no Continente Negro) e levados para Lisboa (então um entreposto comercial). Daí, seguiam para outros países, com predominância das Américas. A escra-

vatura em Portugal foi abolida perto do final do século XVIII, por um decreto do marquês de Pombal assinado a 16 de janeiro de 1773. Isto para os que fossem crianças ou nascessem a partir dessa data: os pais e os avós continuariam a ser escravos até morrerem. A lei faz do nosso país um dos primeiros a acabar com a escravatura, mas só na metrópole, porque nas colónias continuou durante muito mais tempo. Mesmo em Portugal Continental, a lei não foi imediatamente levada a sério. Só em 1876 a escravatura acabou de vez.

Idealmente, o corrupio de calhandreiras dava‑se sobretudo ao final do dia, quando o lusco‑fusco emprestava à atividade uma apreciada discrição, mas a regra era mais vezes quebrada do que cumprida. O autor italiano (anónimo) do livro Retrato e Reverso do Reino de Portugal, por exemplo, queixou‑se da ausência de fiscalização: “As pretas costu‑ mam levar, de dia, para o mar [sic], os bacios dos excrementos, que muitas vezes lhes caem pelas ruas e acerca do qual […] não souberam ainda ordenar que sejam levados à noite.” Também os locais originais de despejo deixa‑ ram de ser respeitados. Quem recolhia bacios em Alfama ou Santa Apolónia não se dava ao trabalho de atravessar a cidade até Santos, a jusante; logo, na prática, o Tejo banhava toda a cidade já bem emporcalhado. Segundo as crónicas da época, no início do século XVII, a capital portuguesa tinha mil calhandreiras ao seu serviço. Cada uma rece‑ bia 30 réis diários, o que estabelecia a pro‑ fissão como a mais mal paga de todas. Não que isso lhes fizesse diferença: uma vez que se tratava de escravas, o dinheiro ia parar ao bolso dos seus proprietários. As verbas desti‑ nadas ao serviço não vinham diretamente dos moradores, como dantes – o financiamento fazia‑se com um imposto especial sobre a carne. Com o tempo, o repelente cargo extin‑ guiu‑se, sem deixar saudades às infelizes calhandreiras, mas o nome não desapareceu, evoluindo apenas no significado: intriguista, bisbilhoteira, naturalmente porque estas mulheres conheciam como ninguém a vida das pessoas a quem iam recolher o conteúdo dos penicos. Até o Tejo ficou a ganhar com o fim da profissão. Ainda que, quando Lisboa ganhou um sistema de esgotos, as águas residuais tenham continuado durante muito tempo a ir lá parar sem serem tratadas, mas, ao menos, iam por baixo da terra. Interessante

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Eclipse parcial do Sol de 23 de outubro do ano passado, ao fim do dia, no Minnesota. Será aproximadamente assim que poderemos vê-lo em Portugal no próximo dia 20 (embora um pouco mais coberto pela Lua, na fase de ocultação máxima), mas ao início da manhã.

Caçadores de Estrelas

Eclipse do Sol em Portugal

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os quatro eclipses que ocorrerão este ano, dois deles serão observáveis a partir de Portugal: o parcial do Sol em 20 de março, e o outro, total da Lua, em 28 de setembro. Na verdade, o eclipse solar de março será total para observadores colocados numa faixa do nosso planeta que se situa quase toda no Atlântico norte, com poucas exceções, como as ilhas Faroé e de Svalbard. Fora da faixa de totalidade – para norte ou para sul –, os observadores verão o disco lunar “deslocado” para sul ou para norte sobre o disco solar, o que lhes proporcionará a visão de um eclipse parcial de uma percentagem (porção do Sol eclipsada) tanto menor quanto mais afastados se encontrarem da “linha de centralidade”. Em Portugal, ver-se-á o Sol “tapado” em cerca de sessenta por cento (com ligeiras diferenças entre o norte e o sul do país), o que, mesmo assim, constituirá motivo de muito interesse para os cidadãos em geral, que perceberão um início de manhã muito menos luminoso do que habitualmente. Com início pelas oito horas (mais de uma hora após o nascimento do Sol), o eclipse começa com a interposição progressiva da Lua entre a Terra e o Sol, a ponto

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de, uma hora depois, ser possível ver a grande porção do disco escuro correspondente ao lado da Lua voltado para a Terra, como que agarrado a uma porção bem mais pequena, luminosa, a parte do Sol que não veremos tapada. Indispensavelmente, repetem-se, por estas ocasiões, os conselhos para que não se olhe o Sol diretamente, pois, mesmo sem binóculos ou telescópios, resultam sempre prejuízos para os olhos. Mais grave ainda será a utilização de instrumentos com espelhos ou lentes, que, fazendo a luz solar concentrar-se no ponto onde se colocam os olhos, produzirá cegueira ou, pelo menos, queimaduras irreparáveis na retina. Embora seja conhecido que, no passado, era comum a utilização de recursos vários, como vidros fumados ou películas de radiografias, sabe-se hoje que tais métodos prejudicam a visão, recomendando-se a projeção da imagem do Sol numa folha de papel, numa parede ou noutra superfície de cor clara ou o uso de óculos especiais para observação do Sol. Em todo o caso, e para maior segurança, a observação não deverá prolongar-se por muitos segundos, embora possa ser repetida de vez em quando, ao longo das duas horas que dura o fenómeno. Atualmente, a maior segurança é obtida com

telescópios (e mesmo binóculos) protegidos com filtros especiais, que, colocados à frente, reduzem a intensidade da luz e filtram algumas radiações que afetam os tecidos oculares. A pessoas pouco familiarizadas com cuidados a ter na observação do Sol, sugere-se o acompanhamento do fenómeno em locais onde existam equipamentos e operadores experimentados, o que permitirá – para além da apreciação da beleza visual – ouvir informações sobre as razões dos eclipses ou detalhes sobre a sua evolução. No entanto, há pormenores que podem ser apreciados sem qualquer apoio, como ver múltiplas imagens do Sol projetadas no solo sob certas árvores de folha miúda ou no chão sob as mãos cruzadas de modo a que os dedos formem uma espécie de quadriculado, ou ainda registar a evolução das temperaturas ambientes, lidas num termómetro, ao longo do período em que decorre o eclipse. O Centro Ciência Viva de Constância abrirá as portas ao público, a partir das sete e trinta, e fornecerá informações solicitadas através de correio eletrónico para info@constancia. cienciaviva.pt. MÁXIMO FERREIRA Diretor do Centro Ciência Viva de Constância


O céu de março

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raticamente em finais do inverno, o céu apresenta-se consideravelmente diferente do que se avistava – ao princípio das noites – no início da estação do ano que está prestes a terminar. Por exemplo, a constelação de Orionte, que então se encontrava muito baixo, a este, é visível agora já à direita da direção de sul, enquanto o Leão não era ainda observável e, nesta época, já se encontra completamente acima do horizonte. No lado norte, a Ursa Maior mostra-se bem elevada, no quadrante de nordeste, tendo já terminado o período de um pouco mais de três meses em que era de difícil observação por se encontrar muito perto do horizonte, em direções próximas de norte. Em posição diametralmente oposta – no outro lado da Estrela Polar –, as estrelas que constituem a Cassiopeia mantêm-se à vista durante a primeira metade das noites. Como sempre, as maiores curiosidades do céu envolvem os “astros errantes”, aqueles (Lua e planetas) que vão alterando as suas posições relativamente às estrelas que, por se encontrarem extraordinariamente distantes, nos parecem fixas. Logo nos primeiros dias do mês de março (deste ano), Vénus brilha intensamente ao lado de um outro ponto brilhante mas muito menos intenso e de cor avermelhada. Trata-se de Marte, que, por se deslocar muito mais lentamente do que Vénus, parece ficar “preso” às estrelas da constelação dos Peixes, vendo-se cada vez mais separado do ponto mais brilhante do céu, que vai mudando de posição – para este –, a ponto de, no dia 22, se situar na constelação do Carneiro, ligeiramente “abaixo” das suas duas estrelas de maior brilho, Pólux e Castor. Nessa data, receberá a visita da Lua, que, apresentando-se como um fino crescente, proporcionará uma conjunção notável ao princípio da noite. Passados mais cinco dias, será Quarto Crescente, fase que a Lua alcançará quando se projetar na direção de estrelas da constelação dos Gémeos. No início das noites de 29 e 30, com o aspeto designado por “primeira giba”, a Lua passará a sul de Júpiter, o segundo ponto de brilho mais intenso de todo o céu, logo a seguir a Vénus. Com o passar das horas, Marte e Vénus escondem-se no horizonte, a oeste, e todo o céu vai rodando, fazendo “mergulhar” estrelas e constelações a oeste, enquanto outras surgem a este. A curiosidade de ver os restantes dois planetas observáveis à vista desarmada (Saturno e Mercúrio), obrigaria a esperar pelas duas da madrugada para avistar o “planeta dos anéis”, ao passo que a observação de Mercúrio obrigará a uma vigília até às seis da manhã.

Hemisfério norte de Saturno, fotografado pela missão Cassini-Huygens.

Esta imagem de Mercúrio, um mosaico de fotografias obtidas pela sonda Messenger, foi colorida para fazer ressaltar as características visíveis à superfície O planeta é castanho.

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Mapa do Céu Como usar

Vire-se para sul e coloque a revista sobre a cabeça, de modo que a seta fique apon­ta­da para norte. Se se voltar em qual­quer das outras direções (norte, este, oeste), pode ro­dar a revista, de modo a facilitar a leitura, desde que mantenha a seta apontada para norte. Os planetas e a Lua estarão sempre perto da eclíptica. O céu representado no mapa (no que se refere às estrelas) corresponde às 19 horas do dia 5. A alteração que se verifica ao longo do mês, à mesma hora, não é muito importante. No entanto, com o decorrer da noite, as estrelas mais a oeste irão mergulhando no horizonte, enquanto do lado este vão surgindo outras, inicialmente não visíveis.

As fases da Lua

Lua Cheia Quarto Minguante Lua Nova Quarto Crescente

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Dia 5 às 18h05 Dia 13 às 17h48 Dia 20 às 09h36 Dia 27 às 07h43


NORTE

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Terra As melhores fotos do planeta

Paparazzi ESPACIAIS Os satélites da Agência Espacial Europeia (ESA) retratam a Terra palmo a palmo em missões que ajudam no seu estudo e na sua conservação. Trata-se, por vezes, de imagens de grande beleza.

Geografia hostil. As formações rochosas e as dunas do sueste da Argélia, no coração do Sahara, tomam uma aparência púrpura aos olhos do satélite ALOS. A dureza dos ambientes desérticos torna a observação orbital uma ferramenta para monitorizar tempestades de areia.

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Gelo em retirada. O glaciar Quelccaya, na cordilheira oriental dos Andes peruanos, é o mais extenso dos trópicos, embora o aquecimento global tenha reduzido a sua superfície em 20 por cento desde os anos 70. Poderá desaparecer dentro de umas décadas, deixando sem água milhões de habitantes da região.

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Nos confins da Europa. Os fiordes penetram como línguas coloridas na grisácea terra da península de Vestfirðir, a região mais ocidental da Islândia. Durante as glaciações, o gelo e os rios escavam vales. Quando o clima aqueceu, o gelo foi substituído pela água do mar que agora os preenche.

As imagens são coloridas para destacar pormenores Sinal vermelho. O satélite Kompsat-2 documenta a deflorestação da Amazónia, no norte do Brasil. As imagens são coloridas para mostrar a água em azul marinho ou verde, e a vegetação em vermelho, mais pálido onde houver corte de árvores.

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Tapete humano. Diversas imagens compõem esta colorida visão de terras de cultivo no sudoeste do Irão. Os diferentes tons indicam alterações nas parcelas (de até um quilómetro de comprimento), como o momento da colheita ou da sementeira. O rio Karun serpenteia pelo vale e permite a existência de explorações de aquicultura, para carpas e outro peixes (em baixo, à direita). Fragilidade natural. Esta foto do Landsat-8 cobre (em altura) 350 quilómetros da província canadiana de Alberta. A norte, vê-se um mundo de lagos, rios e riachos; a sul, estendem-se as areias betuminosas de Athabasca. O betume pode ser transformado em petróleo, através de processos destrutivos para a floresta.

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Árvore da vida. Os braços do rio Kumbunbur Creek, no norte da Austrália, coloridos a verde, bifurcam-se como ramos de uma árvore. Os tons vermelhos que os flanqueiam representam a vegetação que cresce nas margens do rio.

O primeiro satélite, de 1957, foi o russo Sputnik

Cresce como puderes Do espaço, entende-se parte do desenvolvimento histórico das grandes cidades. Barcelona, por exemplo, teve de se estender pelo espaço entre o mar (o seu porto é um dos dez maiores da Europa) e o maciço de Garraf.

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Em erupção. Três fotografias diferentes do Envisat deram origem a esta imagem das montanhas Virunga, uma cadeia de vulcões que se estende pela República Democrática do Congo, pelo Uganda e pela parte norte do Ruanda.

Água e asilo. O Kompsat-2 revela (em cima, à esquerda) o campo de refugiados de Kalma (Sudão), que alberga dezenas de milhares de deslocados pelo conflito do Darfur, e o rio Nyala. Os satélites ajudam a identificar recursos hídricos e lugares para as vítimas da guerra.

Perigo branco. As nuvens não ocultam ao Landsat-8 os fiordes do sul da Gronelândia. Na parte inferior da imagem, veem-se uns pequenos pontos brancos: são icebergues, alguns de grande dimensão, que ameaçam o tráfego marítimo no Atlântico Norte.

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Ambiente Excursão ao reino do calcário

O Maciço Calcário Estremenho é o melhor exemplo português de um cenário cársico, com panoramas de perder a respiração e espécies faunísticas e florísticas únicas. O biólogo Jorge Nunes revela-lhe os segredos desta estranha paisagem que, apesar de estar numa zona de elevada pluviosidade, se apresenta árida, descarnada e branca. Sob ela, subsistem insuspeitos mundos ocultos, esculpidos pela água.

O

solo descarnado e o panorama de aspeto ruiniforme estendem-se a perder de vista. Onde quer que o olhar se detenha, só se veem calhaus alvos e grisalhos, de todas as formas e feitios, dando a sensação de estarmos perante um estranho quadro pintado a verde e branco. As pinceladas verdes, que rasgam a monotonia do calcário branco-sujo, seguem, sobretudo, o traçado de fendas e fraturas naturais. As restantes cores brotam também dos ferimentos das rochas, mas fazem-no, principalmente, na primavera, quando as flores emprestam ao cenário toda a sua beleza e enchem a atmosfera com os seus aromas. O mais estranho não é a paisagem ser pedregosa e áspera, mas apresentar-se árida e inóspita. Como é possível que numa zona quase à beira-mar, onde a humidade é elevada (na estação das chuvas, a queda pluviométrica pode chegar aos 1600 milímetros, e os valores médios anuais oscilam entre 900 e 1300 mm), não se vejam rios, ribeiros, riachos ou córregos de água, que saciem a sede às ervas e aos bichos? Serão estes e outros mistérios que nos propomos desvendar nos próximos parágrafos, em que visitaremos alguns recantos encantados do

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Maciço Calcário Estremenho, localizado na região central de Portugal, entre Alcobaça, Leiria, Ourém, Rio Maior e Torres Novas. De acordo com o Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), o Maciço Calcário Estremenho (MCE) corresponde a uma unidade morfoestrutural do território português que se individualiza das regiões envolventes pelas suas peculiaridades geológicas e geomorfológicas. Grosso modo, corresponde a um grande bloco de calcários jurássicos, com cerca de 800 quilómetros quadrados e aproximadamente 145 a 175 milhões de anos, que se ergue a altitudes superiores a 200 metros. Numa perspetiva aérea, facilmente se percebe que o maciço se encontra dividido em quatro regiões elevadas: a serra dos Candeeiros (que atinge os 613 metros de altitude), a oeste, o planalto de Santo António (cujo ponto mais alto é Covão Alto, a 569 m), ao centro e sul, o planalto de São Mamede (que atinge a altitude máxima em Vale Sobreiro, a 523 m), a norte, e a serra de Aire (que chega aos 577 m), a leste. A separá-las, encontram-se os dois grandes sulcos tectónicos de Porto de Mós a Rio Maior e de Porto de Mós a Moitas Vendas, ao longo dos quais se formaram as depressões de Mendiga,

FOTOS: JORGE NUNES

Mistérios CÁRSICOS

no primeiro, e de Alvados e de Minde, no segundo. Distingue-se ainda um alinhamento diapírico alongado entre a Batalha e Rio Maior.

ABERTURA DO ATLÂNTICO

O MCE começou a formar-se há cerca de 200 M.a. e é, essencialmente, constituído por sedimentos marinhos. Integra a Bacia Lusitaniana, situada no bordo oeste da microplaca ibérica, que teve a sua origem associada aos episódios distensivos que levaram à abertura do oceano Atlântico, durante o Mesozoico. Como é sabido, a formação do Atlântico resultou da fraturação e dispersão da Pangeia, o supercontinente que reunia todas as massas continentais há cerca de 250 M.a. Os cientistas acreditam que essa dispersão terá começado pela parte setentrional, há aproximadamente 200 M.a., quando começaram a afastar-se os blocos que iriam originar os continentes norte-americano e europeu. O Atlântico Sul parece ter-se formado mais tarde, por volta de 135 M.a., quando a América do Sul começou a distanciar-se de África.


Dois tons. O solo descarnado estende-se a perder de vista, dando a sensação de estar perante um quadro a verde e branco.

As rochas que representam melhor os primeiros estádios do oceano Atlântico, no território português, são exatamente as que se encontram ao longo do alinhamento diapírico Batalha–Porto de Mós–Rio Maior. Isso acontece porque, como explica José António Crispim, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, nessa zona é possível ter acesso a formações geológicas que atestam a génese do Atlântico e apresentam um registo nítido das transgressões e regressões (leia-se “avanços” e “recuos do mar”) durante largos períodos da era Mesozoica. Há cerca de 195–190 M.a., o clima era semi­ árido, pelo que, nas zonas em abatimento devido às forças distensivas, depositaram-se argilas vermelhas e rochas evaporíticas (gesso, halite e sal-gema), típicas de ambientes lagunares. Segundo Crispim, especialista em carsologia e hidrogeologia cársica, o sal-gema, explorado na fonte da Bica (Rio Maior), bem como os leitos de calcários dolomíticos, que coroam as argilas vermelhas em alguns relevos da área

de Porto de Mós, são os primeiros indícios da investida do mar, que se acentuou nos tempos geológicos seguintes (190–185 M.a.). Durante cerca de 20 M.a., o oceano aprofundou-se, originando a sedimentação de margas, calcários margosos e calcários, onde ficaram conservados interessantes vestígios faunísticos, designadamente de amonites. Por volta de 168–170 M.a., assistiu-se ao fim da primeira grande transgressão do mar e ao início de uma regressão lenta. Nesta altura, a profundidade do oceano diminuiu e formaram-se rochas diferentes: calcários dolomíticos e calcários oolíticos, que conferem ao maciço estremenho, atualmente, o seu caráter mais agreste. Conclusão: todas as rochas carbonatadas do Jurássico, vulgarmente designadas por “calcários”, que hoje constituem a maior parte da superfície do maciço, formaram-se no fundo do mar, por deposição de carbonatos. No entanto, nem todas se originaram nas mesmas condições. Por exemplo, a oeste da serra dos Candeeiros, ocorrem calcários de mares pouco

profundos; no Serro Ventoso, observam-se calcários com amonites, ou seja, de mares profundos; na vertente noroeste da serra de Aire, há rochas que resultaram da sedimentação em ambientes salobros ou em águas doces. É caso para afirmar: diz-me que rochas vês e dir-te-ei que profundidade tinha o mar que as originou. Se os calcários se formaram no fundo do oceano, como chegaram à superfície e constituem, na atualidade, um relevo tão alteroso? Além da regressão do mar, que as deixou expostas, tem-se verificado um período compressivo, que decorre desde o final do Cretácico, há aproximadamente 65 M.a., até à atualidade, devido à colisão da microplaca ibérica com as placas africana e euroasiática. Estes movimentos tectónicos, que são responsáveis pelas fraturas e pelos enrugamentos da crusta terrestre, levaram a que aquilo que começou por ser uma depressão tectónica (a Bacia Lusitaniana), orientada segundo o eixo NNE–SSW, sofresse uma inversão, tendo-se soerguido relativamente às áreas circundantes. Assim, Interessante

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Pingo a pingo. Ao pingar do teto de uma gruta, cada gota abandona atrás de si uma fina película de carbonato de cálcio, que, por acumulação sucessiva, ao longo de milhares de anos, forma diversas estruturas. Na foto, estalactites.

As rochas calcárias são vítimas de destruição química pela chuva encontra-se hoje limitada pelas depressões de Ourém, a norte, e de Rio Maior, a sul, pelas bacias do Alviela e do Asseca, a leste, e pelos terrenos quase planos de Alcobaça, a oeste.

MODELADO CÁRSICO

Já sabemos de onde vieram os calcários do maciço estremenho, mas continuamos sem desvendar o enigma: porque não há rios, ribeiros, riachos? Curiosamente, o segredo para que nenhum curso de água autóctone ou exótico atravesse, à luz do sol, a extensa área do MCE está precisamente nas rochas calcárias, que conferem características específicas à região. Uma dessas características é exatamente promoverem a rápida infiltração das águas de escorrência, que passam a circular no subsolo, longe da nossa vista. Esta circunstância cria um fenómeno paradoxal: apesar de o MCE ter uma aridez acentuada e os recursos hídricos superficiais serem quase inexistentes, constitui um dos maiores, senão o maior, reservatório de água doce subterrânea do país, estendendo-se entre Leiria e Rio Maior. Poucos lisboetas saberão que, cada vez que abrem a torneira, estão a consumir água extraída no distante MCE: a nascente de Olhos de Água do Alviela fornece água à capital desde 1880.

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Na verdade, as rochas calcárias são vítimas daquilo que os especialistas denominam genericamente por “meteorização química”, cujo processo mais importante é a carbonatação: alteração e destruição dos calcários por ação da chuva. Tudo começa quando as moléculas de dióxido de carbono (CO2) se combinam com a água da chuva (H2O), formando ácido carbónico (H2CO3). Este ácido reage com a calcite (principal mineral constituinte dos calcários), insolúvel e rica em carbonato de cálcio (CaCO3), produzindo iões cálcio (Ca2+) e hidrogenocarbonato (HCO3–), produtos solúveis, que são transportados pelas águas correntes. Deste modo, o calcário vai sendo solubilizado e removido ao longo do tempo, deixando atrás de si fendas e cavidades. Por vezes, essas depressões surgem com depósitos avermelhados (devido à presença de óxidos de ferro), designados “terra rossa”, constituídos por argila vermelha e sílica, substâncias insolúveis que se misturam com o calcário. Estas reações químicas, a que se juntam processos físicos, como a ação mecânica da água e do vento, provocam o alargamento das fissuras, nas quais a água se infiltra e circula, criando paisagens peculiares, denominadas “cársicas”. Entre as formas mais características da car-

sificação de superfície encontra-se um rendilhado de sulcos e cavidades, com as mais variadas configurações, conhecido por “lapiás”. Este assume aspetos magníficos em Penedos Belos, Covas, Chainça, Covão Alto, etc. Há também as dolinas, que correspondem a depressões de contorno circular ou oval e dimensões variáveis (de alguns metros a mais de 200 m), cujo fundo se encontra preenchido por sedimentos calcários e resíduos argilosos insolúveis. Duas das mais interessantes são o Covão do Feto e o local do santuário de Fátima. Quando ocorre a coalescência de duas ou mais dolinas, as estruturas resultantes passam a designar-se “uvalas”. A depressão de Chão de Pias é um bom exemplo deste fenómeno. Há ainda os canhões cársicos, que correspondem a gargantas profundas talhadas na rocha por cursos de água cuja origem é, geralmente, externa ao carso, como acontece com a ribeira dos Amiais, e reculées, que constituem gigantescos anfiteatros naturais, como a Fórnea. Uma das formações cársicas de maior extensão é a polje, uma depressão de fundo plano e vertentes abruptas, cujas dimensões podem atingir vários quilómetros de comprimento. O seu fundo costuma estar preenchido por argilas que resultaram da corrosão dos calcários. Porém, o que melhor a caracteriza é o seu funcionamento hidrológico, pois exibe cursos de água temporários, que têm origem em nascentes (exsurgências) periféricas e terminam em sumidouros, dentro da mesma depressão.


Beldades do Maciço

N

as regiões cársicas, surgem inúmeras plantas floridas e perfumadas, mas nenhuma se compara, em beleza e extravagância, às orquídeas, consideradas por muitos como “as aristocratas do reino vegetal”. Embora as tropicais, muito apreciadas como flores ornamentais, sejam as mais conhecidas do público em geral, existem em Portugal 63 espécies que crescem espontaneamente na natureza, das quais 25 podem encontrar-se nos calcários do maciço estremenho. É verdade que as espécies nativas não apresentam a exuberância daquelas que se cultivam em estufas, se veem nas floristas e se oferecem em ramalhetes envoltos em celofane transparente, mas nem por isso deixam de impressionar com as suas inúmeras originalidades biológicas e flores de formas e cores extravagantes. De um modo geral, são plantas herbáceas, terrestres e vivazes (isto é, conseguem viver durante vários anos e florir anualmente, caso as condições do meio o permitam). O seu ciclo de vida é sobretudo subterrâneo, visto que as partes aéreas (folhas e flores) despontam unicamente durante curtos períodos de tempo, com o propósito de produzirem e acumularem reservas nutritivas e de realizarem a reprodução sexuada. As folhas surgem, geralmente, dispostas em roseta basilar, junto ao solo, do centro da qual se ergue a haste floral, com flores enigmáticas e pouco ortodoxas. Estas apresentam, amiúde, as sépalas e as pétalas com a mesma cor, designando-se “tépalas”, e têm, invariavelmente, a tépala de baixo mais desenvolvida, denominada “labelo” (uma vez que faz lembrar, ainda que grosseiramente, um lábio). Olhando para a evolução dos vegetais, verifica-se que as orquídeas são um dos grupos mais recentes: segundo o registo fóssil, terão surgido há apenas quinze milhões de anos. Porém, isso não as impede de serem consideradas as plantas mais evoluídas do planeta. Para esta nomeação, contribuíram, entre outras razões, o facto de terem desenvolvido uma complexa organização floral e de apresentarem uma relação singular de interdependência com os seus polinizadores. Isto acontece porque o pólen das orquídeas encontra-se, habitualmente, agrupado em sacos, denominados “polinídias”, que não podem ser espalhados pelo vento, mas exigem que a sua dispersão se faça através de animais. As flores estão desenhadas para atrair visual e olfativamente os seus polinizadores específicos e para encaminhá-los ardilosamente aos nectários, ou melhor, em direção às polinídias e ao estigma (parte feminina onde é depositado o pólen). Por incrível que pareça, esta atração não se

A inventividade da natureza é ilimitada: veja-se o caso das flores que imitam fêmeas de insetos para atraírem os machos e assim garantirem o transporte gratuito do pólen até uma congénere, ou as que têm aspeto antropomórfico, em que o labelo reproduz silhuetas humanas. Nas fotos, uma erva-abelha e uma erva-do-homem-enforcado.

faz unicamente através de cores e odores apelativos, como acontece com as restantes plantas floridas. Em algumas orquídeas, o processo é bastante refinado: o labelo imita na perfeição a aparência das fêmeas do inseto polinizador (que costuma ser exclusivo de cada espécie), tornando-se assim um chamariz irresistível para os machos, que pousam sobre elas e tentam copulá-las. Como se não bastasse, a floração coincide com o período em que os insetos estão em fase de reprodução, e as flores chegam mesmo a exalar substâncias químicas idênticas às feromonas femininas (hormonas libertadas pelas fêmeas sexualmente recetivas). Contudo, tal semelhança das flores com insetos não é mera coincidência, nem se deve a imperscrutáveis caprichos da mãe natureza. Existe uma razão objetiva e muito importante para isso, que tem a ver com uma apurada estratégia que as orquídeas desenvolveram para garantir o transporte do seu precioso pólen (lembre-se que a polinização cruzada exige que ocorra a passagem do pólen de uma flor para o estigma de outra). A cópula entre as pequenas flores e os insetos machos é, evidentemente, impossível; porém, cumpre-se, com sucesso, a missão reprodutiva desta bizarra relação. Enquanto o macho se debate infrutiferamente com o frenesim da

excitação sexual, as polinídias colam-se sobre o seu abdómen, e assim, sem o saber, ele transportá-las-á consigo para a próxima orquídea em que pousar. No entanto, esta não é uma história de amor, nem um romance. Constitui, ao invés, um truque astuto. Embora em nada beneficie os insetos, contribui para a polinização cruzada das orquídeas, e constitui um caso singular no reino vegetal: neste caso, o pólen torna-se uma mercadoria transacionada em troca de sexo, em vez de ser recompensada com néctar, como acontece com todas as restantes flores. Nem todas as orquídeas imitam insetos. Por incrível que pareça, algumas apresentam flores com aspeto antropomórfico, ou seja, em que o labelo reproduz silhuetas humanas, dando a impressão de serem pequenos homens suspensos no ar, como é o caso da flor-dos-macaquinhos-dependurados (Orchis italica) e da rapazinhos ou erva-do-homem-enforcado (Aceras antropophorum). Como seria de esperar, toda esta panóplia de formas e cores, bem como muitas outras singularidades biológicas (por exemplo, a aparência dos seus tubérculos, que parecem imitar testículos humanos), serviram de inspiração para variadas crenças populares. Interessante

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Água efémera. polje éeuma depressão A meias. AntónioAPatrão Liliana de fundoformam plano euma vertentes abruptas. Uma das Ferreira simbiose mais famosas é a de Minde-Mira, perfeita entre sabedoria popular que atinge 4 de comprimento e 1800 m de largura. e km conhecimento científico.

Má fama. O lobo continua a despertar a animosidade das populações. Na realidade, não haverá em Portugal mais de 300 exemplares, distribuídos por 65 alcateias.

Nos invernos mais rigorosos, a polje de Minde-Mira forma um lago Estas curiosas cavidades apresentam uma atividade emissiva e absorvente, consoante a estação do ano e a pluviosidade. Uma das mais famosas é a polje de Minde-Mira, que atinge 4 km de comprimento e 1,8 km de largura máxima, e costuma formar um extenso lago nos invernos mais rigorosos.

MUNDOS OCULTOS

As formas cársicas mais deslumbrantes costumam ser as que resultam da carsificação profunda, e incluem os algares e as intricadas redes de galerias e cavidades subterrâneas. Os algares são as portas de acesso para os estranhos mundos ocultos do interior do maciço calcário, uma vez que consistem em poços (aberturas naturais verticais), que ligam a superfície ao subsolo, podendo atingir várias dezenas de metros de profundidade. Lá em baixo, surgem as famosas grutas, com as suas magníficas estalactites, estalagmites e colunas, formações sedimentares resultantes da precipitação da calcite. Como já vimos, a água que circula no interior do maciço transporta enorme quantidade de hidrogenocarbonato de cálcio dissolvido. Assim, ao gotejar do teto de uma gruta, cada gota abandona atrás de si uma fina película de carbonato de cálcio, que, por acumulação sucessiva, ao longo de milhares de anos, vai for-

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mando estruturas pendentes, as estalactites. Ao caírem no chão, essas gotas também provocam acumulação sucessiva de películas de carbonato de cálcio, originando uma rocha denominada “travertino”. Dessa acumulação resultam, por vezes, estruturas ascendentes, que crescem de baixo para cima, as estalagmites, as quais, em determinadas circunstâncias, se podem unir às estalactites, originando colunas. Dada a beleza e as formas caprichosas da maio­ria destas estruturas, as grutas são, geralmente, mundos encantadores. Apesar de existirem mais de 1500 grutas inventariadas no MCE, a esmagadora maioria não está acessível ao público, mas apenas ao alcance dos olhos dos homens-toupeira, os espeleólogos. Assim, os interessados em conhecer este fantástico património espeleológico deverão visitar os centros de interpretação subterrâneos do Algar do Pena ou da Gruta da Nascente do Almonda. Em alternativa, dispõem de uma vasta oferta de grutas exploradas comercialmente, como as de Mira de Aire (as maiores de Portugal), da Moeda, de Alvados e de Santo António, por exemplo. As inúmeras grutas e cavidades espalhadas pelo MCE albergam animais e plantas muito importantes, com destaque para os morcegos, que chegam a formar colónias de vários milhares de indivíduos.

PATRIMÓNIO PROTEGIDO

Com o objetivo de preservar o mais importante repositório de formações calcárias existente em Portugal, bem como o coberto vegetal específico que lhe está associado, a rede de cursos de água subterrâneos, os recursos faunísticos, nomeadamente os cavernícolas, como os morcegos, e a singularidade dos usos e costumes da população, criou-se, em maio de 1979, o Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros (PNSAC). A área protegida, num total de 38 400 hectares, abrange os concelhos de Alcobaça e Porto de Mós (no distrito de Leiria) e Alcanena, Ourém, Rio Maior, Santarém e Torres Novas (distrito de Santarém). Embora as paisagens calcárias do PNSAC pareçam inóspitas e monótonas a um olhar pouco atento, possuem elevado valor para a conservação da vegetação e da flora, uma vez que as características peculiares da morfologia cársica conduziram ao desenvolvimento de uma vegetação xerofítica, rica em elementos calcícolas raros e endémicos. Além disso, encontram-se na região diversos habitats naturais, nomeadamente rochosos e grutas, florestas, matos esclerófilos, formações herbáceas e de água doce: na zona do PNSAC, existem algumas lagoas, como a Pequena e a Grande do Arrimal, a do Casal de Vale de Ventos, a de Alvados e a dos Candeeiros. A acumulação de água fica a dever-se ao facto de os fundos estarem impermeabilizados com argilas e outros sedimentos, e escusado será dizer que constituem pequenos oásis neste reino da pedra. De entre os habitats prioritários, com maior


Papa-insetos

É

impossível falarmos de zonas calcárias, grutas e cavernas e não referirmos os morcegos, sobretudo os cavernícolas, que, apesar de viverem escondidos, nem por isso estão mais protegidos. A génese do problema está, de acordo com os conservacionistas, no facto de estes serem animais quase desconhecidos do cidadão comum. Tal como acontece com tudo aquilo que não conhecemos, também os morcegos acabaram por ser vítimas de inverdades, mitos e crenças infundadas, que se perpetuaram ao longo dos séculos e foram amplificados pela ficção (o nome Drácula diz-lhe alguma coisa?). É verdade que aquilo que costumamos ver deles são apenas esquivas sombras fantasmagóricas, que rodopiam freneticamente em torno dos lampiões e cruzam os céus noturnos em voos aparentemente aleatórios. Além de gostarem da noite, sabemos que têm hábitos de vida estranhos, como dormir de pernas para o ar e viver em locais escuros e recônditos. Há ainda quem acrescente que a sua aparência é bizarra (leia-se: “são feios”). Como gostos não se discutem, uma coisa é certa: embora as restantes informações sejam verdadeiras, isso não nos permite extrapolar outras inverdades, que, amiúde, são erradamente veiculadas a respeito dos morcegos. O seu aspeto e a sua maneira de viver não fazem deles “perigosos” (quem disse que se agarram aos cabelos e transmitem doenças?), nem “criaturas demoníacas” (porque se representa o diabo com asas de morcego, enquanto os anjos ostentam asas de aves?). Muito menos “vampiros sanguinários” (todas as espécies europeias são insetívoras!) ou seres com “poderes sobrenaturais” (que justifiquem a sua inclusão em poções mágicas e feitiços), como nos fizeram crer as histórias que nos contaram desde a mais tenra idade. Aqui chegados, segue-se a pergunta inevitável: não são “feios, porcos e maus” nem “prejudiciais”, mas servem para quê? Na verdade, são autênticos inseticidas naturais, que contribuem para o controlo dos insetos responsáveis por pragas agrícolas e pela transmissão de doenças. Sabia que cada morcego pode comer, numa só noite, o equivalente ao seu peso em insetos? Se considerarmos todas as espécies (existem 27 em Portugal, algumas com milhares de indivíduos), estamos a falar de uma significativa importância económica, devido às dezenas de toneladas de insetos prejudiciais que são exterminados diariamente. Agora que já conseguimos olhar para estes incríveis bichos com outros olhos, é chegada a altura de conhecermos um pouco melhor a sua biologia. Afinal, são os únicos

Além de gostarem da noite, sabemos que os morcegos têm hábitos de vida estranhos, como dormir de pernas para o ar e viver em locais escuros e recônditos.

mamíferos verdadeiramente voadores, uma vez que transformaram braços e pernas em asas. Além disso, desenvolveram um sentido especial que lhes permite voar na mais absoluta escuridão. As asas dos morcegos são rígidas, leves e impermeáveis, e correspondem a uma expansão cutânea, conhecida como “membrana alar” ou “patágio”. Esta é suportada pelos quatro dedos longos da mão (o primeiro dedo corresponde a um polegar curto que se distingue dos restantes por possuir uma garra), que funcionam como as varetas de um guarda-chuva, estendendo-se até às patas traseiras e à coluna vertebral. Localizada entre os membros posteriores (prendendo geralmente a cauda), e funcionando como leme durante o voo, existe ainda a membrana caudal ou uropatágio. Estas estruturas, aparentemente tão simples e ao mesmo tempo tão complexas, conferiram a este grupo de animais a aptidão única de se locomoverem no ar, enquanto os restantes mamíferos se viram condenados a uma vida terrena ou aquática. Ao contrário do que muita gente pensa, os morcegos têm olhos e possuem uma visão bem desenvolvida (com uma retina repleta de bastonetes, células sensíveis à baixa intensidade luminosa, que torna descabida a expressão popular “cego como um morcego”). Porém, isso de pouco lhes vale na escuridão da noite e dos abrigos subterrâneos, onde muitas vezes se escondem. Assim, através de adaptações morfológicas e sensoriais, que foram sendo po-

sitivamente valorizadas pela seleção natural, desenvolveram um apurado instrumento de voo, denominado “ecolocalização”. A ecolocalização consiste na emissão de sons de alta frequência e na análise dos ecos recebidos do meio. Com as cordas vocais, emitem estalidos através das narinas ou da boca (que podem ser afinados através dos adornos nasais carnudos ostentados por diversas espécies), e com ouvidos altamente sensíveis, que possuem pelos especializados na receção dos ultrassons, captam os ecos. Os sons emitidos são refletidos, na forma de eco, por todos os obstáculos (vegetação, rochedos e construções) e pelas potenciais presas (insetos), permitindo aos morcegos em voo saber a distância a que estão dos objetos e se eles estão parados ou em movimento. Mediante a receção e a análise do eco dos ultrassons que eles próprios emitem, formam “imagens auditivas”, uma espécie de “sexto sentido” que leva os investigadores a dizerem que os morcegos veem com os ouvidos! Já reparou que o símbolo do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros é um morcego? Não podia ter sido mais bem escolhido: além de existirem, nesta área protegida, 18 das 27 espécies nacionais, abriga-se aqui a única colónia portuguesa de criação de morcego-lanudo (Myotis emarginatus), bem como importantes colónias de hibernação de várias outras espécies. Interessante

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Bichos pré-históricos

A

pesar da secura superficial, o Maciço Calcário Estremenho alberga uma enorme diversidade faunística: só no Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros estão inventariadas mais de 200 espécies de vertebrados. Contudo, este não é apenas um território de bichos vivos: acolhe igualmente animais que desapareceram da Terra há muitos milhões de anos. Falamos, evidentemente, do vasto património paleontológico, que inclui seres tão diversos como amonites, equinodermes, gastrópodes, lamelibrânquios, corais, cefalópodes, troncos de árvores, folhas e pegadas de dinossauros, entre outros. Todo este vasto registo fóssil tem grande valor científico, uma vez que o seu estudo permite conhecer os seres vivos do passado, os ambientes em que viveram e a sua evolução. Através dos fósseis, obtêm-se informações preciosas sobre as características dos organismos (que nunca foram observados vivos por nenhum ser humano, dado que se extinguiram muito antes de o homem ter surgido na Terra), permitindo fazer deduções acerca do seu modo de vida. Além disso, alguns tipos de fósseis, chamados “fósseis de fácies”, como os corais, fornecem aos paleontólogos informações relevantes sobre os paleoambientes, ou seja, acerca do meio em que esses seres viveram. Outros, denominados “fósseis de idade”, como as amonites, permitem datar as rochas e os eventos geológicos. De certo modo, é como se as rochas fossem livros petrificados, cujos estratos correspondem a páginas e os fósseis aí existentes a palavras, que vale a pena ler para conhecer e reconstituir a história do nosso planeta. Embora os somatofósseis (do grego soma, “corpo”) sejam, geralmente, os mais impressionantes, uma vez que são restos que faziam parte dos próprios organismos, como ossos, dentes, carapaças ou folhas, são igualmente fascinantes os icnofósseis (do grego icnós, “vestígio, porção”), que correspondem a indícios da sua atividade vital, como, por exemplo, pistas de locomoção, coprólitos (fezes fossilizadas) e ninhos com ovos. Quando se fala de icnofósseis de dinossauros, é impossível não referir, imediatamente, o monumento natural das Pegadas de Dinossauros da Serra de Aire, mais conhecido como Pedreira do Galinha (Torres Novas e Ourém). Afinal, é aqui que se localiza o maior trilho de saurópodes (quadrúpedes herbívoros, de cabeça pequena e cauda e pescoço compridos) da Europa, com 147 metros de comprimento, e um dos mais bem conservados do mundo. A Pedreira do Galinha foi descoberta em 1994 e classificada em 1996, como o

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A Pedreira do Galinha possui o maior trilho de saurópodes (quadrúpedes herbívoros, de cabeça pequena e cauda e pescoço compridos) da Europa, com 147 metros de comprimento, e um dos mais bem conservados do mundo. Foi descoberta em 1994.

primeiro monumento natural de pegadas de dinossauro do país, e abriu ao público em 1997. Tal como o nome deixa antever, o lugar corresponde a uma antiga exploração de calcário, que parou a sua laboração devido ao enorme valor científico das pistas de locomoção aí preservadas (quando foram achadas, constituíam o mais longo trilho de saurópode alguma vez visto!). Há aproximadamente 168 milhões de anos, este local era o fundo de uma laguna litoral de profundidade muito reduzida, cuja lama foi calcada por vários dinossauros. Atualmente, é uma enorme laje de calcário, com cerca de 40 mil metros quadrados, onde se conservam, pelo menos, vinte pistas formadas por dezenas de pegadas, bem como restos de bivalves, gastrópodes e outros invertebrados. O estudo da profundidade e da configuração das pegadas possibilita, entre outras coisas, estimar as dimensões e o peso dos bichos que as originaram. Assim, por exemplo, a análise das marcas dos pés (que são ovais e apresentam quatro a cinco marcas triangulares de garras), com 95 centímetros de comprimento por cerca de 70 de largura, permitiram deduzir que o

animal que as produziu devia ter cerca de 3,8 metros desde o solo à anca, e que se deslocava a cerca de 4 a 5 km/h. Ainda em Ourém, existe uma outra jazida (Pedreira – Amoreira), muito menos conhecida: possui apenas dois rastos e uma pegada isolada. Porém, apesar de haver pouco para ver, estes vestígios pertencem a dinossauros bem diferentes dos anteriores: eram terópodes, ou seja, bípedes carnívoros, que deixavam pegadas tridáctilas, porque, geralmente, apenas os três dedos centrais dos pés tocavam o solo. Em todo o caso, a Pedreira do Galinha é, sem dúvida, uma das mais importantes jazidas de dinossauros do país. De resto, também é aquela que está mais bem preparada para receber visitantes, pois possui um centro de interpretação que é visitado por cerca de 50 mil pessoas por ano. Isto significa que, embora se tenham extinguido há 65 milhões de anos, os grandes lagartos continuam a fascinar-nos, bem como muitos outros bichos pré-históricos que preenchem o nosso imaginário.


Vistas barrancosas. A Fórnea é um gigantesco anfiteatro natural de ribanceiras e barrancos íngremes, onde se pode apreciar uma paisagem cársica de tirar o fôlego. Com 500 metros de diâmetro e 250 de altura, corresponde à cabeceira de um ribeiro sazonal

A pedra e a água condicionam toda a vida do Maciço Estremenho interesse conservacionista, destacam-se os charcos temporários mediterrânicos, os louriçais (Laurus nobilis), com presença frequente de medronheiro (Arbutus unedo) e ocasional de folhado-comum (Viburnum tinus), prados rupícolas com comunidades de plantas suculentas, como o arroz-dos-telhados (Sedum album) e a erva-pinheira (S. sediforme), arrelvados xerófilos dominados por gramíneas anuais e/ou perenes, lajes calcárias, formando plataformas horizontais e pouco inclinadas, com um reticulado de fendas colonizadas por diferentes tipos de vegetação. Merecem ainda destaque as grutas e os algares, que proporcionam peculiares condições e refúgio a um interessante elenco florístico, os arrelvados vivazes, frequentemente ricos em orquídeas, os matagais altos e os matos baixos calcícolas, como os carrascais, e os carvalhais de carvalho-cerquinho (Quercus faginea broteroi), localizados, sobretudo, no fundo dos vales, entre outros. O carvalho-cerquinho é um curioso endemismo ibero-norte-africano, que assinala a transição dos bosques caducifólios da Europa Atlântica para os bosques perenifólios do Mediterrâneo (o MCE situa-se exatamente na zona de transição entre as condições climáticas atlânticas e mediterrânicas). Os botânicos identificaram cerca de 600 espécies vegetais, ou seja, cerca de um quinto das plantas inventariadas em Portugal continental, distribuídas por aromáticas, medicinais, condimentares, ornamentais, forrageiras e florestais. A importância científica da flora

desta área revela-se na ocorrência de diversos endemismos lusitanos, ibéricos e ibero-norte-africanos, de populações numerosas de plantas raras, únicas no país, e ainda na existência de plantas que testemunham as evoluções paleoclimáticas, ou seja, as mudanças que o clima sofreu ao longo do tempo geológico, uma escala temporal a que o efémero da nossa existência dificulta a compreensão. Um importante testemunho paleoclimático é, por exemplo, o carvalho negral (Quercus pyrenaica), que só aparece na zona do Arrimal. Em virtude da variedade de biótopos, só no interior do PNSAC estão inventariadas mais de 200 espécies de vertebrados: 136 de aves, 42 de mamíferos, 18 de répteis e 13 de anfíbios. Nas aves, destaca-se a gralha-de-bico-vermelho (Pyrrhocorax pyrrhocorax): como sabem os ornitólogos, são já muito poucos os bandos portugueses desta peculiar ave vestida de negro, que se distingue facilmente pelo bico (longo, fino e encurvado para baixo) e pelas patas pintadas de encarnado. Curiosamente, este é o único local do país onde se abriga e nidifica em algares. Nas zonas escarpadas, merecem ainda atenção o bufo-real (Bubo bubo), o peneireiro-de-dorso-malhado (Falco tinnunculus), o andorinhão-preto (Apus apus), o rabirruivo-preto (Phoenicurus ochuros), o corvo (Corvus corax) e o melro-azul (Monticola solitarius), entre outros bichos alados e emplumados. Nos mamíferos, o destaque vai para os morcegos, tanto cavernícolas como arborícolas, uma vez que estão inventariadas na

região 18 espécies. No entanto, encontram-se outros galactífagos curiosos, como os musaranhos (de-dentes-vermelhos, Sorex granarius, de-dentes-brancos, Crocidura russula, e anão-de-dentes-brancos, Suncus etruscus), os ratos (cego, Microtus lusitanicus, cego-mediterrânico, M. duodecimcostatus, e do-campo, Apodemus sylvaticus, entre outros) e os carnívoros (doninha, Mustela nivalis, toirão, M. putorius, fuinha, Martes foina, texugo, Meles meles, sacarrabos, Herpestes ichneumon, gato-bravo, Felis silvestris, gineta, Genetta genetta e raposa, Vulpes vulpes, por exemplo). No património humanizado, verifica-se uma forma peculiar de ocupação e exploração do território, consoante a localização das povoações. Assim, destacam-se os escassos e pobres terrenos dos relevos mais elevados e das encostas, que foram conquistados através de arroteio e despedrega. Estes encontram-se, atualmente, compartimentados por muros de pedra solta, sem argamassa, denominados “cerrados” ou “chousos”, e salpicados por maroiços (aglomerados de pedras retiradas dos terrenos para permitir o maneio agrícola) e construções arcaicas também feitas de pedra seca. Existem ainda curiosas cisternas (a água sempre foi um dos principais problemas das populações serranas, uma vez que é totalmente inútil abrir poços no calcário) e cavidades naturais aproveitadas para bebedouros do gado, que retêm e conservam a preciosa água da chuva. Enfim, não foram apenas as plantas e os animais a ter de se adaptar ao estranho reino de calcário, mas também o próprio homem: a pedra e a água condicionam toda a vida no Maciço Calcário Estremenho, uma região única e misteriosa que vale a pena descobrir. J.N.

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RICHARD KIRBY

Ambiente Produz metade do oxigénio, mas não o conhecemos

Um mapa do PLÂNCTON

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O biólogo marinho Richard Kirby está por detrás do projeto Secchi App, uma aplicação para telemóvel que pretende seguir de perto os movimentos do plâncton oceânico, fundamental para a vida na Terra.

Criaturas errantes. No seu livro Ocean Drifters, de 2011, Richard Kirby descreve a variedade infinita de criaturas que formam a fauna e a flora dos mares.

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O “cheiro a mar” deve-se aos cadáveres das microalgas

SEMELHANTE À SAVANA

Porque é tão importante distinguir se as águas em determinado ponto do oceano são mais límpidas ou mais turvas? “Muito poucos sabem o que é o plâncton”, diz-nos Kirby, que dedicou a sua carreira a estudá-lo: “A maior parte das pessoas, quando olha para o mar, vê um imenso espaço azul, belo, hipnotizador, mas vazio. Contudo, na realidade, fervilha de vida. Há milhões de diminutas criaturas a flutuar na água, sem as quais gigantes como as baleias deixariam de existir.” Todavia, o plâncton, que inclui tanto seres vegetais como animais, é mais do que uma coleção de organismos, muito mais do que a soma de todos os seus indivíduos. De facto, poderíamos falar de um ser próprio, que flutua à mercê das correntes marinhas, sem capacidade para navegar de forma autónoma, e que abunda em águas superficiais. Não é uma ideia descabida, afirma o biólogo marinho britânico, atualmente na Universidade de

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RICAHRD KIRBY

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ichard Kirby lançou um plano singularmente audaz para que todos os marinheiros ou adeptos de navegar pelos oceanos possam, se o desejarem, transformar-se em sentinelas mundiais do plâncton. Para isso, basta fabricarem, com um mínimo de habilidade, um equipamento básico: trata-se simplesmente de recortar um disco de plástico com cerca de 30 centímetros de diâmetro, conhecido por “disco de Secchi”, colocar na parte inferior um peso de aproximadamente 200 gramas, para que mergulhe na água, e atá-lo a um cabo com cerca de 50 metros de comprimento. Com o artefacto pronto, pode fazer-se ao mar em qualquer porto do mundo. A fim de obter dados com a máxima precisão, é importante que o Sol se encontre por detrás (as melhores horas vão das dez da manhã às duas da tarde). Depois, trata-se de lançar suavemente o disco preso à corda para ele mergulhar na água, e tomar nota da profundidade a partir da qual deixa de ser visível. A outra ferramenta essencial do projeto é uma aplicação gratuita denominada Secchi App, que é preciso ativar no telemóvel para introduzir os dados. O programa localiza por GPS a posição exata da sentinela, e também permite registar a profundidade a que se deixou de ver o disco; a informação é enviada para o arquivo geral do projeto de Kirby. Se, nessa altura, não houver rede, os dados podem ser guardados na aplicação para serem enviados mais tarde.

Seres fascinantes. O plâncton compreende plantas (fitoplâncton) e animais (zooplâncton). Na maior parte dos casos, trata-se de pequenos organismos, muitos deles microscópicos, que flutuam nas águas a pouca profundidade (não mais de 200 metros) e que não podem nadar. Entre eles, contam-se os destas fotos obtidas por Kirby: de cima para baixo e da esquerda para a direita, medusas e larvas de espécies como estrelas do mar, caranguejos e lagostas.

Plymouth (Reino Unido): “Numa floresta tropical, as árvores, as aves e os insetos dependem uns dos outros. Muitas plantas, por exemplo, não podem prescindir dos seus polinizadores. Aqui, falamos também de um mundo complexo em que todos interagem.” Kirby sugere uma rota que começa pelo plâncton microscópico, as microalgas: “Recolhem a luz solar e utilizam-na para transformar a água e o dióxido de carbono em açúcares usados para a construção de outros corpos.” As microalgas são a primeira (e mais básica) estrutura viva desse ecossistema, o início da cadeia: “Servem de sustento aos animais diminutos que formam o zooplâncton. É como os antílopes que se alimentam de erva nas savanas africanas. Aqui, também há herbívoros que comem plantas, as algas microscópicas”,

explica Kirby. Depois, há outro setor de zooplâncton que é carnívoro.

METADE DA FOTOSSÍNTESE

É uma verdadeira sopa viva, feita de bactérias, algas e animais, larvas de caranguejos cujos corpos parecem feitos de plasticina transparente, crias de vermes com enormes olhos negros que flutuam na obscuridade, equinodermes que lembram fantásticos tubos de gelatina azul, diminutas alforrecas, animais minúsculos de tentáculos e mandíbulas monstruosas que parecem invasores alienígenas. Kirby dedica-se a fotografar pacientemente todos esses seres cuja importância considera fundamental: “Sem eles, simplesmente não existiríamos.” Para começar, tornam possível a vida no mar, afirma. Uma existência à mercê


Pescar informações. Richard Kirby com uma das redes que emprega para recolher amostras biológicas por todo o planeta.

tempo. “Uma parte do carbono é incorporada nos sedimentos. À medida que se vão afundando cada vez mais, o elemento aquece e comprime-se; ao fim de centenas de milhares ou milhões de anos, transforma-se nas reservas de petróleo e gás”, explica o biólogo. De cada vez que se liga um aquecedor ou se põe a trabalhar o motor do carro, está-se a queimar o carbono acumulado pelas microscópicas criaturas marinhas do passado. Foi o plâncton que tornou multimilionários John Rockefeller e outros magnatas da indústria petrolífera, e poderíamos dizer que continua a ser o motor fundamental do capitalismo moderno. Porém, há outras considerações: o carbono dos sedimentos marinhos esteve um dia na atmosfera, e foi a vida marinha que o retirou. “Quando queimamos combustível e libertamos novamente dióxido de carbono na atmosfera, estamos a fazer exatamente o oposto do ciclo natural e, além disso, a um ritmo muito mais rápido do que o da própria natureza.” Assim, estamos a alterar a composição da biosfera e o clima da Terra.

RICAHRD KIRBY

MODELAR A PAISAGEM

das correntes marinhas, que, segundo um estudo recente, podem ser perturbadas por essas massas vivas. Foi aqui que as formas de vida evoluíram, e os efeitos físicos que exercem sobre o planeta continuam a ser fenomenais: “Quando se pergunta a uma pessoa onde ocorre a maior parte da fotossíntese na Terra, dirá seguramente que é na floresta tropical, mas a verdade é que as plantas terrestres contabilizam apenas metade do processo. O resto produz-se na superfície do oceano, e é realizado pelas criaturas do plâncton.” Assim, sem o plâncton (em especial, o fitoplâncton), disporíamos de metade do oxigénio para respirar. É esse pulmão essencial que confere ao mar o tom esverdeado ou tingido de turquesa que surge, por vezes, entre o azul das águas.

MULTIMILIONÁRIOS DO CARBONO

Contudo, o plâncton não se limita a tornar possível um mundo com oxigénio; além disso, age como regulador e verdadeiro motor de um dos elementos presentes em todos os seres vivos: o carbono. Afeta também o modo como este circula e se recicla ao longo do tempo. Kirby explica a forma como o fitoplâncton, com toda a sua variedade de microalgas e bactérias, absorve o dióxido de carbono atmosférico enquanto realiza a fotossíntese, e incorpora o carbono nas suas estruturas. Quando os diminutos seres morrem, o carbono que continham vai parar ao fundo dos oceanos, onde se acumula durante eras. Assim, o fitoplâncton é como uma bomba que filtra o carbono a nível planetário, que transforma o oceano profundo num escoadouro que vai crescendo ao longo do

Algumas das microalgas do plâncton contêm compostos de enxofre que libertam no mar ao morrer. A luz do Sol divide-os e cria partículas de sulfureto que agem, na atmosfera, como ímanes para condensar o vapor de água: “São um dos principais responsáveis pelas nuvens”, diz Kirby. Poder-se-ia dizer que o plâncton modela a paisagem de nuvens que observamos no céu sobre o mar. O cheio a enxofre é bastante característico e reconhecemo-lo mal nos aproximamos da costa; ainda sem ver o oceano, já o pressentimos: cheira a mar! “Desde tempos vitorianos que se considera que o ar marinho tem propriedades revigorantes”, lembra Kirby. O investigador começou a sua carreira como biólogo molecular e dedicou-se, inicialmente, a estudar o ADN. Daí, passou para o plâncton: “É um mundo alienígena. Não sabemos quase nada sobre ele. Muitas das suas criaturas são tão pequenas que parecem semelhantes. Desconhecemos a biodiversidade que existe no plâncton.” Trata-se de um grande desafio, pois inclui “tudo o que não pode nadar contra a corrente”. Kirby acredita que, tal como desconhecemos muitas das criaturas que povoam as florestas tropicais, a biodiversidade marinha continua a constituir um mistério. Se o plâncton nos ensina algo, é que fazemos parte inequívoca da vida da Terra. As decisões que tomarmos dependerão do nosso grau de informação. Quanto mais dados possuirmos, melhor. Não se trata de algo trivial: “Tudo o que fazemos tem um efeito sobre o planeta e afetará as nossas vidas.” L.M.A.

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Saúde SPL

Vermes que nos parasitam

Os nossos INQUILINOS Um quarto da humanidade aloja no corpo um verme parasita como os que surgem neste artigo. A sua presença pode desencadear doenças graves.

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ignas protagonistas de um filme de terror, as criaturas de que falamos neste artigo são bastante repugnantes. No entanto, enquanto o leitor passeia os olhos por estas linhas, é possível que alguma espécie de verme esteja a movimentar-se no seu intestino, onde vive e se alimenta, à imagem e semelhança do que os seus antepassados faziam há milhões de anos. Atualmente, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), perto de 24 por cento da população mundial está infetada por helmintos (como se designam esses invasores, no âmbito da parasitologia), uma taxa que rivaliza com a da sida e mesmo com a da malária, a doença parasitária mais difundida no mundo. Vários programas, no esforço para controlar as chamadas “doenças tropicais negligenciadas” (NTD, na sigla em inglês), têm por principal objetivo prevenir e tratar as verminoses ou helmintíases. Na opinião de Peter Hotez, um especialista norte-americano, as NTD são, em grande medida, responsáveis pelas situações de pobreza extrema em muitos países. Tal como explicou no Huffington Post, Hotez acredita que os mil milhões de pessoas que vivem com menos de um euro por dia estão condenadas a permanecer na miséria por culpa das infestações que sofrem: “Impedem-nas de trabalhar, limitam a produtividade agrícola e afetam as crianças em etapas importantes do seu desenvolvimento”, sublinha.

DIARREIAS, CANSAÇO, DORES

Os efeitos nocivos dependem da gravidade da doença, avaliada consoante o número de para-

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sitas alojados no corpo do paciente. Em casos ligeiros, não produz sintomas e passa despercebida durante anos. Porém, quando os vermes causam danos nos tecidos por onde circulam (quase sempre os do sistema digestivo ou cir­cu­latório), provocam dores abdominais, diar­reias, problemas respiratórios e cansaço extremo. Embora afetem maioritariamente países em vias de desenvolvimento, estas doenças estão a expandir-se por todo o mundo, à boleia do turismo e da imigração. Conscientes do problema, diversas organizações e grandes grupos farmacêuticos comprometeram-se a desenvolver medidas que permitam controlar (já que a erradicação ainda parece demasiado ambiciosa) a expansão dos helmintos até ao ano 2020, ao abrigo do projeto London Declaration on Neglected Tropical Diseases. Uma tarefa difícil, se considerarmos o complexo ciclo de vida dos indesejáveis intrusos. A maior parte possui mais de um hospedeiro e utiliza como vetores (os animais que os transmitem) pequenos invertebrados, como mosquitos e caracóis. Além disso, algumas etapas do seu desenvolvimento decorrem no solo ou em pequenas massas de água. “O processo assegura uma vasta distribuição numa grande variedade de ambientes, o que dificulta o controlo e a erradicação eficazes dos surtos”, adverte Hotez. O principal meio de contágio é a ingestão de ovos do verme, que se podem encontrar em verduras ou frutos mal lavados, água por desinfetar ou carne e peixe crus. Por acréscimo, algumas larvas conseguem penetrar a nossa pele, o que facilita a transmissão em zonas onde

À abordagem! As ténias (na imagem, a Taenia pisiformis) aderem à parede intestinal das suas vítimas através de ventosas e ganchos que possuem na cabeça.


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Afetam principalmente os países em desenvolvimento não existe uma higiene adequada e onde as fezes humanas são utilizadas para fertilizar os campos ou as pessoas andam descalças. Com este panorama e sem ferramentas de diagnóstico e prevenção eficazes, a única arma disponível até hoje é a administração maciça de fármacos anti-helmínticos de vasto espectro a todos os indivíduos das populações afetadas. Num artigo publicado no ano passado, especialistas em medicina tropical da Universidade Baylor, no Texas, consideram que tais medidas, a par da aplicação de outras para melhorar a higiene e o fornecimento de água potável, se reve­lam eficazes para manter sob controlo os para­sitas. Contudo, é provável que não sejam sufi­cientes e que tenhamos necessidade de desen­volver novos fármacos ou mesmo vacinas. Várias organizações uniram esforços para desenhar as chamadas “vacinas antipobreza”. Já estão a ser desenvolvidos ensaios clínicos e já se sintetizam moléculas que possam combater várias NTD em simultâneo. O objetivo desta iniciativa, reconhece Peter Hotez, é ambicioso: salvar as pessoas da miséria através de melhor saúde.

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Analisamos, em seguida, a vida e a obra daqueles que talvez sejam os dez vermes mais disseminados e perigosos para o homem.

O ADEPTO DAS FEZES

Comum em zonas do mundo onde as fezes humanas são utilizadas para fertilizar os campos, o Trichuris trichiura infeta o ser humano através dos seus ovos, que contaminam a água e os alimentos. A doença passa muitas vezes despercebida, mas afeta quase oitocentos milhões de pessoas, segundo um artigo publicado recentemente na revista Public Health. De forma semelhante às outras helmintíases ou infestações causadas por parasitas, os sintomas da tricuríase só se manifestam quando a quantidade de exemplares no intestino é considerável. Quando isso acontece, os doentes podem sofrer dores abdominais, diarreia e cansaço extremo, sintomas que se complicam no caso das crianças. Além disso, pensa-se que o Trichuris trichiura possui um comportamento oportunista e que se especializa em parasitar pessoas com o sistema imunitário debilitado. Segundo a OMS, é frequente surgir em doen-

tes com sida e em conjunto com outras helmintíases, o que agrava o estado do paciente ao ponto de poder provocar a morte. A prevenção da doença passa por melhorar as condições de saneamento e higiene, cozinhar adequadamente os alimentos e lavar as mãos com frequência. A presença de Trichuris trichiura pode ser detetada através de uma análise parasitológica das fezes, e o tratamento é simples: basta tomar anti-helmínticos durante três dias para eliminar por completo os invasores, embora a medicação deva ser repetida anualmente, devido às elevadas taxas de recaída.

UM INQUILINO QUE PODE CEGAR

A filariose cutânea constitui a segunda causa de cegueira a nível mundial. O primeiro sintoma da parasitose, transmitida ao ser humano quando é picado pela mosca negra (do género Simulium), é constituído por uma intensa inflamação em várias zonas do corpo, provocada pelo movimento das larvas de Onchocerca volvulus através dos tecidos subcutâneos. A reação causa um prurido tão intenso que a pessoa afetada costuma coçar-se até provocar uma ferida. Nos olhos, as lesões infligidas pelas microfilárias (exemplares imaturos) causam problemas que conduzem, frequentemente, a uma perda total da visão. Sem vacina nem métodos de prevenção efi-

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Superficial. A larva do Ancylostoma duedenale perfura a pele e provoca estragos na epiderme das pessoas infetadas, antes de se instalar em diversos órgãos.


Multiplicação. Um Echinococcus granulosus com os seus ovos.

cazes, a OMS está a desenvolver, desde meados dos anos 70, um programa de controlo da oncocercose (como se denomina este tipo de filariose) na América Latina e em África, onde vivem 99% dos doentes. Procura eliminar o parasita através da distribuição em massa de ivermectina, um antiparasitário potente mas seguro, entre as populações de risco. A medida é complementada com a utilização de inseticidas para controlar o vetor da doença. A estratégia funciona: a transmissão do verme cessou na Colômbia e no Equador, em 2007 e 2009, respetivamente. O México juntou-se aos países livres de Onchocerca volvulus em 2011. Em meados do ano passado, o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, confirmou que o país fora o primeiro a erradicar definitivamente a doença.

Mediterrâneo, e o Necator americanus, o seu parente mais comum, parasitam 740 milhões de pessoas. O contágio ocorre em zonas contaminadas com excrementos humanos onde abundam as larvas, que podem perfurar a pele de quem andar descalço. Os exemplares imaturos migram depois pelo corpo, causando danos no sistema circulatório e nos pulmões. Quando crescem o suficiente, colonizam o intestino delgado. Uma vez alojadas no seu habitat preferido, as duas espécies alimentam-se de sangue, o que provoca uma rutura nos glóbulos vermelhos e a deterioração da hemoglobina. Embora os sintomas possam incluir náuseas, dores abdominais ou anemia, a doença passa geralmente despercebida, mesmo quando causa hemorragias intestinais.

nadas. Os ovos do parasita aderem aos excrementos humanos. Em contacto com a água, as larvas eclodem e infestam o pé musculoso ventral dos caracóis. No interior dos gasterópodes, transformam-se em indivíduos mais desenvolvidos (as cercárias), que abandonam o hospedeiro e esperam que um ser humano se aproxime da água. Penetram pela pele e alcançam os vasos sanguíneos, onde podem permanecer durante anos e libertar os seus ovos. A bilharziose pode chegar a incapacitar o doente, devido à febre elevada que provoca. Os problemas mais graves (e, por vezes, letais) surgem quando o sistema imunitário cria um revestimento fibroso para isolar os ovos. Tais granulomas podem provocar hipertensão pulmonar, embolias ou mesmo cancro.

VAMPIROS QUE ENTRAM PELOS PÉS

OS ASSASSINOS DO CHARCO

Mais de 120 milhões de pessoas sofrem de filariose linfática. Embora os sintomas possam ser ligeiros ou mesmo inexistentes, os responsáveis, ou seja, os nemátodes Wuchereria bancrofti, atacam o sistema imunitário, os vasos linfáticos e os rins. Se não for tratada, dá origem à elefantíase, que desfigura os membros inferiores e outras partes do corpo. Nas fases mais avançadas da doença, é frequente surgirem diversos problemas urogenitais, no caso do homem; pelo menos 25

Conhecidos dos antigos egípcios e identificados por Avicena, no século XI, como causa de morte, os ancilostomídeos são vermes que parasitam o intestino delgado e se alimentam de sangue. A sua voracidade dá origem a uma doença silenciosa mas frequentemente fatal. Embora não se conheça exatamente a distribuição global destes parasitas, um estudo publicado na revista PLOS Medicine estima que o Ancylostoma duodenale, presente na zona do

Cinco espécies de vermes do género Schistosoma causam a bilharziose, também conhecida por “febre do caracol” ou “esquitossomose”. Dos 160 milhões de afetados, 90% vivem na África subsahariana, e cerca de 200 mil pessoas morrem anualmente devido a complicações provocadas pela doença. A bilharziose ataca, geralmente, comunidades agrícolas e pesqueiras em contacto com rios, charcos e outras zonas de águas contami-

INCHAÇO TESTICULAR

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Praga. Primeiro plano da cabeça da Ascaris lumbricoides, o parasita mais abundante no ser hunmano.

Muitos permanecem em nós sem dar quaisquer sinais mihões sofrem de uma inflamação do escroto provocada pelo parasita, o que comporta um estigma social. Dado que a proteção da picada do inseto que o dissemina é a única medida de prevenção, a OMS promoveu campanhas de medicação na maior parte dos países afetados. Conseguiu, assim, reduzir em 43% a transmissão. O desenvolvimento de uma nova análise que permite localizar os antigenes com apenas uma gota de sangue promete uma deteção precoce. Até agora, um dos maiores problemas no combate à filariose era, precisamente, o diagnóstico, que dependia do recurso ao microscópio. Uma tarefa difícil se considerarmos que a W. bancrofti só dá a cara no sistema circulatório periférico de noite: durante o dia, esconde-se em zonas mais recônditas.

UM MAL ENQUISTADO

Quatro espécies de ténias do género Echinococcus provocam igual número de doenças no ser humano, agrupadas sob o nome geral de equinococoses. A hidatidose, ou cisto hidático, é a forma mais comum, e o contágio ocorre através do contacto com cães ou outros animais domésticos infestados pela espécie Echinococcus granulosus.

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O parasita pode permanecer anos no organismo sem revelar a sua presença. Contudo, os cistos que desenvolve acabam, inevitavelmente, por fazer soar o alarme: por exemplo, quando se alojam no fígado ou nos pulmões. Nestes casos, os sintomas dependem da localização das larvas (as hidátides), e da pressão que exerçam nos tecidos circundantes. Podem provocar náuseas, vómitos, tosse crónica ou dores no peito. Para a E. granulosus, ir parar a um ser humano é um penoso acidente, pois não pode culminar o seu ciclo de vida no nosso organismo. Para conseguir chegar a um hospedeiro definitivo (normalmente, um lobo ou uma raposa), esses carnívoros têm de consumir as vísceras de animais parasitados (ovelhas, por exemplo), onde se encontram os cistos cheios de larvas. A equinococose humana, seja qual for a sua forma, é dificil de tratar, e exige complexas intervenções cirúrgicas e uma medicamentação prolongada. Muitos dos doentes sofrem sintomas agudos e veem a sua qualidade de vida diminuída mesmo após o tratamento. A transmissão humana produz-se através do contacto com fezes dos carnívoros infetados. É por isso que se torna tão importante proceder à desparasitação dos cães, a cada 45 dias.

O BERBICACHO DOS ARROZAIS

Frequente na América Latina, no sueste asiático, na Índia e em África, onde se estima que parasite cem milhões de pessoas, o nemátode Strongyloides stercoralis também faz das suas em diversos países europeus. Comum em climas amenos e zonas húmidas, a S. stercoralis acampa, sem qualquer problema, em terrenos pantanosos e arrozais, onde se introduz nos trabalhadores agrícolas através da pele, geralmente dos pés. Mesmo nos casos crónicos, a estrongiloidíase que provoca é geralmente assintomática, ou surge associada a queixas provisórias e sem gravidade, como tosse ou diarreia, pelo que é quase impossível detetar a sua existência. Uma característica única da espécie é a sua capacidade para se reproduzir no interior do corpo humano, o que lhe permite manter uma autoinfeção endógena durante anos. Se a imunidade do indivíduo for normal, o parasita não costuma dar luta. Contudo, os doentes com sida, por exemplo, podem desenvolver uma síndrome de hiperinfeção ou estrongiloidíase disseminada. Nesse caso, a mortalidade ronda os 80%.

2000 MILHÕES DE VÍTIMAS

É o número de pessoas infetadas pela lombriga intestinal Ascaris lumbricoides. Além disso, como provam os ovos encontrados em fezes fossilizadas (algumas das quais com 24 mil anos


SAM SHERE / THE LIFE PICTURE COLLECTION / GETTY

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Intermináveis. A Fascicoa hepatica (em cima) infesta a vesícula e os canais biliares de herbívoros domésticos como cabras, vacas e ovelhas. À direita, numa imagem de 1946, um investigador estende no solo uma Taenia solium, que pode chegar aos 4 m de comprimento.

de antiguidade), não é uma praga recente. A infestação produz-se quando o ser humano ingere ovos fertilizados. Por outro lado, embora o lar do verme seja o intestino, onde absorve nutrientes dos alimentos parcialmente digeridos, o seu ciclo de vida abrange vários órgãos. É a sua passagem por estes que desencadeia diversas patologias. A larva perfura as paredes do duodeno, entra na corrente sanguínea e viaja até aos alvéolos pulmonares. Ali, cresce durante três semanas, altura em que um inoportuno ataque de tosse a conduz até à traqueia. Depois, regressa ao intestino, onde alcança o estado adulto e começa a reproduzir-se. Uma fêmea chega a pôr 20 mil ovos por dia. Estes são muito resistentes e acabam por ser expulsos com as fezes. Depois de passarem duas semanas no solo, estão prontos para voltar a abordar um novo hospedeiro. A natureza da infestação, quase sempre assintomática, dificulta o diagnóstico, feito através da observação dos excrementos. Todavia, em 15% dos casos, o número de parasitas é tão abundante que os sinais da sua presença acabam por denunciá-los. Podem provocar dores abdominais, diarreias, pancreatite e, na fase larvar, infeções pulmonares. Segundo um estudo publicado na revista Lancet, foram registadas, em 2010, 2700 mortes por ascaridíase. A maior parte das vítimas eram crianças com obstrução intestinal.

MALDADES DA SOLITÁRIA

A Taenia solium pode viver, se não a incomodarem, 25 anos ancorada na parede do intestino humano. Estamos a falar de uma estranha criatura, cujo corpo se encontra dividido em segmentos (as proglótides) que funcionam como unidades de autofecundação, pois são hermafroditas. Quando os ovos eclodem, a solitária liberta a prole e desfaz-se progressivamente dos últimos fragmentos do seu corpo, eliminados nas fezes do hospedeiro. Embora se acreditasse que tinha sido erradicada no princípio do século passado, a cisticercose (a doença causada pelo parasita) afeta, atualmente, muitas populações de zonas rurais com gado de subsistência e condições higiénicas deficientes. Desde 2010, é considerada uma doença tropical negligenciada e a OMS trabalha, atualmente, no desenvolvimento de métodos de atuação para controlá-la. A parasitação produz, geralmente, sintomas de índole gastrointestinal, embora, à semelhança de muitas outras alterações causadas por vermes, a doença possa passar despercebida durante anos. Habitualmente, não põe em risco a vida nem acarreta problemas de saúde graves, exceto no caso de alguma das larvas migrar até ao sistema nervoso; nesse caso, encontramo-nos perante um quadro de neurocisticercose, a principal causa evitável de epilepsia no mundo. Um estudo da Universidade do Oklahoma afirma que, em países onde a

T. solium é endémica, um terço dos epiléticos manifestam sintomas de neurocisticercose.

NO FÍGADO COM AJUDA DO CARACOL

O maior de todos os parasitas que atacam o fígado é, também, o único que se transmite ao ser humano através do consumo de vegetais. Para chegar até nós, o parasita Fasciola hepatica precisa que animais infestados vão defecar perto de um meio aquático, pois reproduz-se no interior do caracol de água doce. Depois, as larvas formam cistos que se colam às folhas e talos de diversas espécies de plantas comestíveis, como o agrião ou a hortelã. Os hospedeiros mais comuns deste platelminto são as ovelhas, as cabras e o gado vacum. Devido a tal preferência por animais com importância económica, a fasciolose é, atualmente, uma das doenças parasitárias mais bem conhecidas. Seja como for, não foi muito estudada no ser humano durante décadas, pois era considerada uma infeção de pouca monta em comparação com outras: afeta apenas 2,4 milhões de pessoas em mais de setenta países. Na fase crónica, quando o parasita se aloja nos canais biliares, provoca dores abdominais, fibrose hepática, pancreatite e infeções bacterianas graves. É considerada um mal endémico em várias zonas da Europa, com elevada incidência em Portugal, Espanha e França, com um grande número de casos por diagnosticar. J.B.

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Flash

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Peixe chato A solha-das-pedras (Platichthys flesus) é um peixe migrador: os estuários como creches, locais de desenvolvimento larvar e juvenil, migrando posteriormente para o mar, onde se reproduz. Porém, no estuário do Minho (onde esta imagem foi captada), este padrão de migração parece não ocorrer: estudos recentes e inovadores, recorrendo à concentração de estrôncio nos otólitos (concreções de carbonato de cálcio presentes no ouvido interno, cujos anéis de crescimento permitem a determinação da idade), indicam que, afinal, a maioria das solhas capturadas na zona costeira nasceram e medraram apenas no ecossistema fluvial, com salinidade reduzida. A maior curiosidade destes peixes é apresentarem o corpo achatado e fortemente comprimido, de modo a adaptarem-se à vida bentónica. Durante a fase juvenil, assiste-se à migração de um olho para o outro lado do crânio, ficando com os dois olhos na mesma face, a que está virada para cima. Assim, perdem a simetria bilateral típica dos peixes no estado adulto. Foto: Jorge Nunes.

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MARS ONE / BRYAN VERSTEEG

Espaço Levar vida a outros mundos

Missão INVIÁVEL?

O projeto Mars One pretende enviar, em 2024, quatro humanos até Marte, para fundar uma colónia. O problema? Parece prometer bem mais do que aquilo que conseguirá cumprir. Apesar de tudo, um grupo de universitários portugueses aproveitou o desafio: querem ser os primeiros a germinar plantas no Planeta Vermelho. 46 SUPER

F

azemos estas coisas não por serem fáceis, mas porque são difíceis”, disse o presidente norte-americano John Kennedy em 1962, num discurso emotivo em que anunciou ao mundo o desejo de levar um homem à Lua e trazê-lo de volta à Terra, são e salvo, antes do final da década. De facto, após os Estados Unidos terem gasto cerca de 145 mil milhões de euros (valor ajustado aos dias de hoje) com o programa Apollo da NASA, Neil Armstrong tornou-se, sete anos depois, o primeiro ser humano a colocar um


Utopia. Fundar uma colónia em Marte, eis o grande objetivo da Mars One. O primeiro passo, promete a organização, é enviar uma missão não tripulada em 2018. Seis anos depois, seguirão os primeiros quatro humanos para o planeta.

pé em solo extraterrestre. As palavras de Kennedy bem poderiam ser o moto do projeto Mars One, que pretende enviar, já em 2024, quatro pessoas para Marte, para aí formarem um colónia humana permanente. Antes disso, em 2018, pretendem lançar até ao Planeta Vermelho uma missão espacial não tripulada. Comparado com isto, a corrida para chegar à Lua parece uma brincadeira de crianças. Há quem diga que a Mars One, uma organização sem fins lucrativos, é irrealista nos seus propósitos, pois colocar humanos em Marte,

em menos de uma década, é quase impossível. Juntem-se os desafios técnicos de uma tão longa viagem, os enormes riscos que podem surgir para a saúde dos tripulantes e os mil e um problemas com que os novos habitantes de Marte terão de lidar diariamente. Outros afirmam que os líderes do projeto, o empresário Bas Lansdorp e o físico Arno Wielders, ambos holandeses, não passam de charlatães, aproveitando-se da boa vontade de quem quer ver a exploração espacial sair das águas paradas em que ficou, após o fim da Guerra Fria. Por fim,

temos os que veem na ideia uma oportunidade a que não se pode virar as costas. Um dos problemas é que as propostas ainda nem saíram do papel, com os responsáveis da Mars One a estimar que, para deixar quatro humanos no planeta, 5,3 mil milhões de euros serão suficientes, pelo menos para a parte logística. O senão é que este valor apenas tem em conta a viagem de ida: não há bilhete de regresso. Depois de 2024, seguir-se-iam, de dois em dois anos, mais viagens, para fazer crescer a colónia marciana. De onde viria o Interessante

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NASA

Uma temperatura média de 60 graus negativos, uma atmosfera irrespirável e uma gravidade que é somente um terço da da Terra. É este ambiente que se pretende dominar, para fazer germinar sementes.

É

possível levar vida da Terra para Marte, na forma de plantas? Conseguirão elas germinar e sobreviver? Este foi um dos desafios que a Mars One lançou, no âmbito de uma competição universitária, e que teve como vencedora uma equipa portuguesa composta por oito estudantes, quase todos das universidades do Porto e do Minho. Das 35 candidaturas em competição, o projeto Seed foi o escolhido, numa votação pública feita através da internet. “A nossa ideia consiste em germinar as primeiras sementes em Marte num ambiente controlado, tanto ao nível da temperatura, como da pressão e da atmosfera, simulando o que existe na Terra. Por isso, a única variável em estudo será a gravidade, que é cerca de um terço da que se regista na Terra”, resume Teresa Araújo, estudante de bioengenharia da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Para levar a ideia por diante, a equipa propôs uma estrutura composta por um contentor exterior, que manteria as condições experimentais necessárias. O invólucro também teria de servir como proteção contra a vibração que ocorrerá durante a descolagem e a aterragem, a variação da temperatura e a radiação, sendo que no seu interior “estará um conjunto de cassettes, dentro das quais germinarão as sementes”, explica. A experiência, segundo a organização da Mars One, será levada para o Planeta Vermelho em 2018, numa missão não tripulada. O intuito é preparar, no planeta, as condições necessárias para que uma colónia humana aí se possa fixar, a partir de 2024. Além do projeto português, também se pretende enviar outras experiências e diversos materiais, úteis para um futuro acampamento. Durante o período de viagem, as sementes portuguesas estarão congeladas, mas, uma vez aterrada a sonda, os seus painéis solares aquecerão as cargas experimentais e criarão a temperatura ambiente ideal, capaz de as fazer germinar. Em teoria, é o que está projetado, mas, na prática, persistem grandes dúvidas de que a primeira missão da Mars One consiga levantar voo daqui a três anos,

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dado ainda nem se ter passado da fase de conceptualização. Excesso de confiança? Teresa Araújo responde: “Será um grande desafio, com certeza. No entanto, acreditamos que é possível!” De momento, o maior obstáculo que a equipa enfrenta relaciona-se com notas de euro: “O desenvolvimento de tecnologias deste tipo é muito dispendioso: esperamos que, entre logística, materiais, eletrónica, testes e serviços externos, entre outros gastos, o custo total da operação ronde um milhão de euros”, confessa Guilherme Aresta, também ele estudante de bioengenharia na Universidade do Porto. “Nesta fase, ainda estamos à procura de apoio financeiro.” Pese embora o otimismo da equipa portuguesa, há algumas sombras a pairar sobre a ideia, e não têm necessariamente a ver com a exequibilidade do projeto da Mars One. “Questiono-me como é que se pode lançar uma missão com sementes para Marte, quando o controlo para evitar a contaminação planetária é tão apertado”, diz Ricardo Patrício, cofundador da empresa Active Space Technologies, especializada na construção de tecnologias para o setor aeroespacial. “A nossa empresa, por exemplo, está a desenvolver vários sistemas que vão para Marte, na área da eletrónica, e o que nos é pedido é tão exigente, em termos de descontaminação e limpeza, para prevenir que qualquer tipo de organismos, como bactérias, chegue ao planeta, que não percebo como é que pode haver este tipo de missões. Como é que se pode permitir um lançamento destes com contaminantes orgânicos a bordo?” Guilherme Aresta assegura que o projeto Seed teve isso em conta desde o início. “O que nos distinguiu das outras propostas foi a simplicidade, pois exige-se que qualquer missão a Marte garanta proteção ambiental. Ou seja, é imperativo não contaminar o Planeta Vermelho com matéria orgânica (e até mesmo inorgânica) provenientes de outro planeta. Por isso, quanto mais simples for a experiência, melhor.”

NASA

Sementes portuguesas para Marte

Para financiar a missão, pretende-se emular os Jogos Olímpicos dinheiro para tudo isto? Essencialmente, através do patrocínio de empresas e de investidores privados, a que se juntaria a transmissão televisiva (um reality show) do que iria acontecendo no interior da nave e, mais tarde, na futura colónia. Segundo Lansdorp, pretende-se emular o que os Jogos Olímpicos já fazem, arrecadando milhares de milhões de euros graças à publicidade e à venda dos direitos de transmissão para os quatro cantos do globo: seria, sem dúvida, o maior evento mediático do mundo. As datas (2018 e 2024) foram escolhidas com base nas posições astronómicas da Terra e de Marte, de forma a ter a melhor rota (mais curta e menos dispendiosa) para a viagem, mas, se ainda está tudo na fase de conceção, como se pode aspirar a enviar uma nave daqui a pouco menos de quatro anos? Pese embora a dúvida, a Mars One garante que, após reuniões com os seus “potenciais fornecedores”, todos eles “garantiram que podem construir os componentes necessários dentro do período estipulado”. Assim que os primeiros patrocinadores e investidores avançarem com o dinheiro, espera-se que seja criado um efeito bola de neve, capaz de atrair ainda mais interessados e reunir a quantia necessária.


Casulo. A nave espacial Orion, da NASA, é a grande esperança para levar seres humanos até Marte, em meados da década de 2030. Já está em testes, mas a primeira abordagem deverá ficar-se pela órbita do planeta.

O PROBLEMA DOS RAIOS CÓSMICOS

“A radiação é o ponto mais crítico numa missão com humanos. Como é que se vai isolar os astronautas e garantir o seu bem-estar durante a viagem?” Eis uma das questões levantadas por Ricardo Patrício, da empresa portuguesa Active Space Technologies. Habituada a produzir alta tecnologia para o setor aeroespacial, e com uma carteira de clientes que inclui as agências espaciais europeia (ESA) e japonesa (JAXA), a empresa sediada em Coimbra tem noção das dificuldades e dos constrangimentos subjacentes a um projeto espacial: “Há uma série de desafios tecnológicos que não são de fácil resolução, e as datas que a Mars One estipulou parecem-me demasiado ambiciosas”, acrescenta o cofundador da Active Space Technologies. “Dentro da indústria em que operamos, estamos habituados a trabalhar com satélites [com especificações muito mais simples], e demoramos entre cinco e dez anos só a desenvolvê-los...” Passando ao lado das questões técnicas, o jornalista e escritor Stuart Clark, num texto para o jornal britânico The Guardian, foi corrosivo quanto baste ao afirmar que “está na altura de acabar com o idealismo em torno das missões a Marte”, pois “ir até lá, com a atual tecnologia, implicaria um risco significativo por causa da perigosa exposição à radiação”. A declaração não foi feita à toa ou por preconceito para com a Mars One. Um dos instrumentos a bordo do rover Curiosity revelou que um astronauta em Marte apanharia, num só dia, uma dose de radiação equivalente àquela a que um norte-americano está exposto ao longo de um ano. O pior, porventura, está nos sete meses de viagem previstos a bordo da nave que fará a ligação entre os planetas. Neste caso, há dois tipos de radiação a ter em conta: a que provém

das erupções solares e, principalmente, os raios cósmicos que se encontram por todo o espaço, compostos por partículas de elevada energia que viajam a uma velocidade próxima da da luz. Para impedir que estas últimas causem danos ao corpo humano, seria necessário um escudo muito espesso, algo impossível nas naves atuais, pois torná-las-ia demasiado pesadas para serem lançadas da Terra. Alguns novos tipos de escudo e de propulsores estão a ser estudados, mas somente pela NASA, sendo que estamos a falar de tecnologia que ainda demorará anos a ficar pronta.

FECHADOS E ISOLADOS

Devido a uma gravidade que é dois terços inferior à da Terra, viver na superfície marciana implicaria a perda de massa óssea e muscular, assim como a diminuição da força muscular e da circulação sanguínea. Como é que os possíveis colonos lidariam com a situação? Uma coisa é ficar seis meses na Estação Espacial Internacional, onde se tenta compensar a falta de gravidade com muito exercício físico (mesmo assim, não é suficiente); outra, bem diferente, é ficar lá o resto da vida. Os nossos ossos desempenham um papel crucial enquanto estrutura que suporta o corpo, ao mesmo tempo que atuam como reservatórios de cálcio, mas este é apenas um problema entre tantos outros. Um corpo saudável de nada serve se entrarmos em colapso psicológico. O isolamento social é uma preocupação, não bastando a troca de mensagens virtuais com quem está na Terra para resolver o problema, tal como afiança a Mars One. O preocupante reside na necessidade de os colonos ficarem confinados a habitats que ofereceriam, a cada pessoa, cerca de 50 metros quadrados de espaço. Com uma temperatura média de 60 graus negativos e uma atmosfera

irrespirável, não se preveem grande passeios lá fora, estimando-se que os colonos tivessem de passar 80 por cento do seu tempo dentro das unidades que montassem. Para lidar com tudo isto, os organizadores da missão apenas referem que os pormenores exatos ainda estão a ser ultimados, embora garantam que vão selecionar somente aqueles que sejam resilientes a este tipo de ambientes adversos. Em 2013, a organização sediada nos Países Baixos voltou às bocas do mundo quando abriu quatro vagas de astronauta para o Planeta Vermelho. Ao todo, inscreveram-se mais de 200 mil pessoas, incluindo alguns portugueses. Depois de algumas fases de seleção, o grupo está neste momento reduzido a pouco mais de 700 candidatos. De acordo com o que está delineado, os homens e as mulheres que passarem as próximas rondas começarão já este ano o seu treino para viver fora da Terra.

A NASA PASSA AO ATAQUE

Enquanto a missão holandesa segue, aparentemente, o seu caminho, do outro lado do Atlântico a agência espacial norte-americana está a pavimentar a via que levará os seus tripulantes até Marte. Quando partirão? As baterias estão apontadas para meados da década de 2030. Em dezembro passado, a NASA lançou para o espaço, num teste que custou 330 milhões de euros, a cápsula espacial Orion: deu duas voltas em torno da Terra. Desde o surgimento dos vaivéns espaciais na década de 1980 (foram descontinuados em 2011), foi a primeira vez que os Estados Unidos mostraram ao mundo uma nova nave espacial, sobre a qual recai a maior esperança de, pelo menos, levar alguém até à órbita de Marte. Ao contrário das cápsulas espaciais desenvolvidas nos últimos anos por empresas privadas, a Orion está a ser preparada para viajar bem mais longe e durante vários meses. Mais: terá a capacidade para levar e trazer os humanos que transporta dentro de si. Claro que, para isto, a nave, constituída pelos módulos de comando (a cápsula) e de serviço (com o equipamento de apoio), terá de ser suficientemente robusta, cabendo aos seus propulsores lidar com o peso extra. O que se segue? Em 2021, a NASA quer usar a Orion para uma missão tripulada em redor da Lua. Na década seguinte, pretende enviar astronautas até às órbitas de um asteroide e de Marte. No entanto, a primeira viagem ao Planeta Vermelho deverá durar entre 18 e 24 meses, além de que, provavelmente, ninguém pousará no planeta: a nave limitar-se-á a girar à sua volta e regressar. Segurança acima de tudo, dizem os yankees... J.P.L.

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Espaço Será a realidade esquizofrénica?

Universos PARALELOS Para além do que podemos distinguir através dos telescópios, poderá haver muitos outros universos. Alguns, semelhantes ao nosso, talvez sejam habitados por infinitas versões de nós próprios. Noutros, governados por diferentes leis físicas, a vida talvez seja impossível. Eis o que sabemos, até agora, sobre a natureza do multiverso.

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zonas do universo que acabam por estar desligadas da nossa simplesmente por não podermos vislumbrá-las: como o cosmos nasceu de uma grande explosão, há cerca de 14 mil milhões de anos, e a luz viaja a uma velocidade finita e conhecida, o universo observável, tudo o que podemos ver e tudo o que nos pode afetar, possui um raio de cerca de 46 a 47 mil milhões de anos-luz. Tudo o que exista para além disso seria outro cosmos dentro do nosso próprio espaço-tempo.

A TODA A VELOCIDADE

Para mergulharmos no mundo da especulação teórica sobre a existência do multiverso, temos de partir de um conceito postulado pelo cosmólogo Alan Guth, em dezembro de 1979: a inflação. Defende que, passados 10–32 segundos do seu nascimento (cem milésimos de bilionésimo de bilionésimo de segundo), o universo duplicou de tamanho quase um milhar de vezes. A transformação atinge tal magnitude que, se o mesmo acontecesse com o vírus da gripe, passaria a ser maior do que o atual cosmos visível num simples piscar de olhos. Guth conseguiu explicar, deste modo, por que razão o universo é tão uniforme, um dos mistérios que dava dores de cabeça aos cosmólogos: esse processo de expansão super-acelerada eliminaria praticamente todas as in-homogeneidades que pudessem ter surgido

AQUILE

N

o dia 8 de outubro de 2014, um seleto grupo de físicos teóricos reuniu-se em Madrid para debater dois dos temas em voga no abstruso mundo da teoria de cordas: o fenómeno da paisagem e o princípio antrópico. O primeiro refere que as equações da teoria permitem a existência de um número colossal de possíveis universos. O segundo procura explicar por que razão as constantes fundamentais da física têm o valor que têm, de modo a tornarem possível a existência de vida. Como não podia deixar de ser, falou-se de uma das soluções para a profusão de perguntas sem resposta que surgem neste contexto: os universos paralelos, ou multiverso, um termo que significa, no entanto, coisas diferentes consoante o cientista com quem se conversa. Os físicos Andrei Linde e Alan Guth, dois dos maiores especialistas neste campo, defendem que, embora haja outros universos, encontram-se em regiões do espaço muito distantes da nossa, com as quais nunca entraremos em contacto. Os seus colegas Paul J. Steinhardt e Neil Turok afirmam que eles se situam em diferentes momentos temporais. Para Max Tegmark e o falecido Dennis Sciama, os outros cosmos são totalmente alheios ao nosso espaço-tempo. Por outro lado, alguns cosmólogos defendem que o que acontece, na realidade, é que há

Desligados. Diferentes big bangs poderiam ter dado origem a realidades diversas. Porém, os físicos assinalam que não seria possível viajar entre elas.


Interessante

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RICK FRIEDMAN

Inflação espacial. Foi o cosmólogo Alan Guth (na foto, nas instalações do MIT) que concebeu a teoria segundo a qual o universo aumentou enormemente de tamanho nos instantes a seguir ao Big Bang.

A radiação de fundo poderia ter vestígios de outros universos com a deflagração inicial. Partindo dessa ideia, outros físicos teóricos, como o russo Andrei Linde, exploraram novas possibilidades. Por exemplo: por que teria de haver apenas uma época inflacionária que afetasse todo o cosmos? Foi assim que nasceu a chamada “inflação eterna” ou caótica. Para explicar o conceito, Linde sugere a seguinte analogia: imaginemos que o universo real é uma vulgar bola de futebol, com os seus hexágonos e pentágonos de cores diferentes. O processo de inflação afetaria o conjunto, mas de forma distinta nas diferentes zonas, que seriam os polígonos da bola. Cada um cresceria em tamanho de forma exponencial e não manteria uma ligação causal com qualquer outra figura geométrica. Assim, quem vivesse num pentágono castanho acreditaria que o universo é castanho; os que habitassem um hexágono amarelo pensariam que era daquela cor. Apli-

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cado à cosmologia, cada polígono/universo estaria dentro da bola/multiverso. A cor seriam as leis físicas que o governam: alguns universos seriam muito simples, ao ponto de talvez não se poderem formar estrelas ou galáxias; noutros, poderia não ser possível o aparecimento de vida; talvez muitos outros, como o nosso, fossem verdadeiramente prolíficos. Tudo dependeria das leis que se tivessem criado. Seja como for, o multiverso surgido da inflação caótica atraiu a atenção de um grupo de físicos, convencidos de que tudo, das partículas às forças da natureza, pode ser explicado pela teoria de cordas. Esta considera que o universo é feito de um único tipo de ingrediente: filamentos de energia inimaginavelmente pequenos, as cordas. À semelhança das cordas de um violino, proporcionam uma surpreendente variedade de notas: a cada partícula subatómica corresponde um modo de vibração de um único

tipo de corda. Partindo desse pressuposto, é possível conjugar as duas grandes teorias da física do século XX: a mecânica quântica, que descreve o mundo do muito pequeno, e a relatividade geral de Einstein, que explica o que é a gravidade.

COLOSSAL ERRO DE ESTIMATIVA

Os físicos da teoria de cordas foram confrontados com um enorme problema, em 1997, quando se descobriu que o universo se está a expandir aceleradamente por causa de uma misteriosa energia escura. Quando os astrónomos calcularam a quantidade de energia escura necessária para o cosmos poder carregar no acelerador como está a acontecer (nem de forma mais rápida, o que impediria que a matéria se organizasse para formar galáxias, nem de modo mais lento), depararam com um número tão diminuto (138 com dezenas e dezenas de zeros à esquerda) que ninguém conseguia explicá-lo. O mais surpreendente é que qualquer teoria atual prevê que o seu valor deveria ser muito maior do que o observado: na realidade, 1060 vezes maior. Trata-se, sem dúvida, do prognós­


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Viajar no tempo... sem riscos

A

hipótese dos mundos paralelos também resolve um sério problema das viagens no tempo, o paradoxo do matricídio. O que aconteceria se recuasse no tempo (por exemplo, numa máquina como a que surge no filme O Tempo nas Suas Mãos, de 1960, na foto) e matasse a sua mãe antes de ela conhecer o seu pai? O que poderia fazer então? Para físicos como Stephen Hawking, o facto de essa rutura da causalidade poder ocorrer é motivo suficiente para existir no universo uma espécie de censura cósmica que impeça viagens desse tipo. Porém, se recorrermos ao conceito do multicosmos, existe uma solução possível: após o matricídio, viajaria para outra parte do universo onde a sua mãe não existe.

tico mais desastroso da ciência, e um dos pro­ blemas fundamentais da física do século XXI. Pode dizer-se que foi este erro colossal na tentativa de explicar a densidade da energia escura que estabeleceu as bases do multiverso. Até então, estava tudo medianamente delimitado. O cosmos era algo mais ou menos definido, e os físicos pensavam que as equações da teoria de cordas nos proporcionariam uma solução única e experimentalmente comprovável através das observações efetuadas. A energia escura veio complicar tudo, e deu origem ao fenómeno da paisagem que referimos no início: uma superabundância de possíveis universos compatíveis com o atual. Se juntarmos a teoria da inflação à das cordas, encontramos algo muito interessante. Por um lado, a inflação faz o espaço expandir-se até à eternidade. Os efeitos quânticos criariam novos universos; seria como se uma criança soprasse por um orifício para formar bolhas. Simultaneamente, a teoria de cordas assegura que tais bolhas não têm de ser semelhantes entre si, mas que cada uma poderia possuir diferentes tipos de partículas, forças e leis físicas.

Por outras palavras, o fenómeno da paisagem da teoria das cordas implica que haja 10500 possíveis soluções (ou universos) para as suas equações; a inflação leva a que todos esses possíveis universos se tornem reais, que existam dentro de um multiverso inimaginavelmente grande. Não é de estranhar que, perante tal perspetiva, muitos físicos tenham rejeitado a teoria de cordas. Todavia, outros não estão assim tão certos, pois ela põe ponto final à polémica questão que referimos anteriormente: por que é que as constantes físicas têm o valor que têm?

ÚNICO UNIVERSO COM VIDA?

Se a carga do eletrão ou a velocidade da luz não tivessem o valor que possuem, a vida no universo seria provavelmente impossível, um facto que dá muitas dores de cabeça aos especialistas. A existência de múltiplos universos resolve a questão: há muitos, cada qual com propriedades físicas definidas, e nós habitamos um em que as constantes possuem a magnitude necessária para a existência de vida. Caso contrário, obviamente, não estaríamos aqui.

Contudo, será que não estamos a utilizar um canhão para matar moscas? Será verdadeiramente necessário invocar a existência de um número gigantesco de universos para explicar os pormenores do nosso? Uma maneira de entender o ceticismo em relação ao multiverso é proporcionada pelo seguinte exemplo. Em 1766, o astrónomo Johann Titius descobriu uma fórmula empírica simples para prever a posição dos planetas do Sistema Solar, atribuindo um número a cada um: a Mercúrio, o 0; a Vénus, o 3; à Terra, o 6; a Marte, o 12... Isto é: a partir de Vénus, o número seguinte da série é o dobro do anterior. Calcula-se a distância em unidades astronómicas somando quatro ao valor correspondente ao planeta e, depois, dividindo por dez. A Terra encontra-se a uma UA da nossa estrela: 6+4=10; 10/10= 1. Porque será que a distância dos planetas ao Sol obedece a uma regra tão simples? Não há uma explicação teórica para a fórmula em questão, que funciona na perfeição até Neptuno, exceto a proporcionada pelo multiverso: dos 10500 que existem, vivemos num mundo em que se verifica essa estranha lei. A Interessante

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VOLANTE.SE

Quatro tipos de multiverso

A

s ideias pouco ortodoxas de Max Tegmark (na foto) valeram-lhe a alcunha de Mad Max. Segundo este físico do MIT, há quatro tipos de multiverso. O primeiro estaria integrado por um espaço infinito que conteria o universo observável e um número ilimitado de outros, situados para além do nosso horizonte cósmico, se bem que de natureza semelhante. No de tipo II, os universos emanariam de diferentes big bangs e poderiam apresentar propriedades físicas diferentes. O multiverso de tipo III implica que cada variação quântica produz uma divisão de todo o cosmos, pelo que haveria infinitas versões de tudo. A culminar o processo, teríamos o de tipo IV, cuja existência, proposta pelo próprio Tegmark, estaria para além do espaço e do tempo; nele, a matemática existiria como realidade física.

A realidade seria formada por bolhas alheias entre si hipótese dos universos múltiplos permite explicar tudo. Segundo os céticos, algo que oferece soluções para praticamente todas as questões, no fundo, não explica nada. Existe alguma maneira de comprovar a existência desses outros mundos paralelos para além dos cálculos no quadro negro dos gabinetes dos físicos? Alguns pensam que poderia haver vestígios ocultos na radiação de fundo, ou que esta talvez contenha informação sobre outros universos que existiram antes do nosso; outros procuram determinar a topologia do cosmos. Por exemplo, se este exibisse uma forma semelhante à de um donut, teria um tamanho finito, o que eliminaria a maior parte das versões da inflação e, em particular, a hipótese do multiverso com base na inflação caótica. Neste ponto, a única coisa que parece clara é que o multiverso constitui, sobretudo, um conceito, e não uma teoria bem definida. Quase todas as propostas sobre o tema não passam, geralmente, de uma colagem de ideias. Assim, mesmo que o mecanismo da inflação

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caótica estivesse certo, não determinaria, por si só, que a física fosse diferente noutro universo. Para isso acontecer, é preciso que seja acompanhado pela teoria de cordas, que é ainda mais especulativa.

CÓPIAS DE NÓS PRÓPRIOS

Ora bem: e se a existência dos universos paralelos estivesse vinculada a algo muito mais profundo e tão comprovado como a mecânica quântica? Nesse caso, poderíamos estar a conviver com diferentes universos no nosso próprio espaço-tempo. Muitos deles seriam mesmo praticamente iguais ao nosso, e seriam habitados por diferentes versões de nós próprios. É o que defende a chamada “interpretação dos muitos mundos” da teoria quântica, formulada por Hugh Everett III em 1957 e posteriormente aperfeiçoada por Neil Graham e Bryce DeWitt, em 1970. Em 1982, Hugh Everett III, de 51 anos, foi encontrado morto na cama pelo filho adolescente. Uma paragem cardíaca tinha levado

deste mundo o pai dos universos paralelos, um físico que gostava de comer, fumar e beber, e que receava a medicina convencional. Deixara escrito que, depois de morrer, as suas cinzas deveriam ser lançadas no lixo, desejo que a mulher levou vários anos a cumprir. O seu trabalho sobre os muitos mundos (um nome que desagrada aos físicos que apoiam a interpretação, como Stephen Hawking e Murray Gell-Mann, os quais preferem designá-la por “muitas histórias”) é, fundamentalmente, uma solução para o problema da medida na mecânica quântica. Todo o sistema subatómico é definido com precisão por um ente matemático, a sua função de onda. Permite-nos prever, sem margem para erro, como irá evoluir o sistema. Porém, contém nas suas entranhas uma indeterminação básica insolúvel: a função de onda não nos diz que valores serão adquiridos pelas propriedades físicas do sistema, mas quais os resultados possíveis que podemos obter de uma medida e as correspondentes probabilidades: por exemplo, que haja 50% de possibilidades de o spin de um protão ter um valor de 1/2. Só quando efetuamos a prova experimental poderemos saber que valor adquire: o fenómeno é conhecido por “colapso da função de onda”.


SPL

É permitido roçar

E

m outubro de 2014, a interpretação dos muitos mundos conheceu uma nova variante, publicada na revista Physical Review X por Michael J.W. Hall, do Centro de Dinâmica Quântica da Universidade Griffith, na Austrália, e pelos seus colaboradores. Nela, não só se propõe que os universos paralelos são reais como, também, que podem colidir. A hipótese teria quatro premissas básicas. A primeira é que não existe um aumento contínuo de universos, mas um número fixo (embora gigantesco) de mundos. Segunda: não há cisões devido à incerteza quântica, pois cada mundo é especificado pela posição exata e pela velocidade de cada partícula. Terceira: estes mundos interagem entre si através de um tipo de força repulsiva muito particular, a qual impede que dois mundos próximos acabem por ter a mesma configuração, e fá-los divergir uns dos outros; contudo, a interação entre universos próximos daria origem aos estranhos fenómenos que presidem à mecânica quântica. Finalmente, a quarta: cada um dos mundos é igualmente provável. A probabilidade só entra em jogo porque um observador não sabe ao certo em que mundo está; apenas sabe que se encontra num conjunto de mundos. Com base nestes quatro pilares, os físicos elaboraram uma interpretação dos muitos mundos em interação, através da qual dão conta de todas as características da mecânica quântica. É uma nova versão de um cosmos cheio de universos paralelos que convivem uns com os outros no mesmo tecido do espaço-tempo: trata-se de universos fantasma que partilham o mesmo espaço, mas vivem em diferentes funções de onda.

Esta indeterminação (não sabemos, a priori, o valor que vamos medir, apenas a probabilidade do resultado) tem sido debatida pelos físicos desde que surgiu a teoria quântica, na década de 1920; na nossa cabeça, é inconcebível que um sistema não tenha propriedades bem definidas. Foram sugeridas diferentes formas de encarar o facto: a primeira (e mais aceite, geralmente) é a interpretação de Copenhaga. Afirma que é necessário assimilar o mundo tal como é, pois nenhum sistema possui propriedades definidas até alguém ou algo as determinar. Dito de forma poética, a Lua não existe até alguém a olhar. Outra é a proposta radical de Everett, a qual assegura que, quando se obtém uma medida, como a do spin do protão, o universo inteiro divide-se em dois: num, o sistema adquire o valor de 1/2; no outro, o de –1/2. Desse modo, teríamos dois universos absolutamente idênticos no seu conteúdo, tirando essa diferença insignificante nas propriedades de um único protão. Todavia, é o que ocorre de cada vez que se obtém alguma medida no mundo sub­ atómico, em qualquer lugar do universo. Sendo assim, vivemos num cosmos com uma infinidade de universos paralelos. Curiosamente, se a interpretação dos muitos mundos

estiver correta, então somos imortais. Para compreender esse aspeto, devemos tomar em consideração um estranho paradoxo: o suicídio quântico.

SEMPRE VIVOS

Imaginemos que um professor de física, cansado de dar voltas à cabeça para decidir que teoria poderá explicar melhor a autêntica natureza do multiverso, decide pôr fim à vida de uma maneira muito estranha. Fabrica um aparelho que segura um revólver apontado à sua cabeça. Há um dispositivo, ligado ao gatilho, que determina o spin de um protão de dez em dez segundos. Se obtém o valor 1/2, a arma dispara e mata o físico. Se sai –1/2, apenas se ouve um clique. Nesse caso, o aparelho vai buscar um novo protão e o processo recomeça, até perfazer dez vezes. Que diriam disto a interpretação de Copenhaga e a dos muitos mundos? Segundo a primeira hipótese, o físico tem uma probabilidade de 50% de sobreviver aos primeiros dez segundos; de 25% aos vinte segundos, e apenas uma probabilidade de 0,1 % de continuar vivo passados os cem segundos. A situação é muito diferente no caso da segunda hipótese. Como o universo se divide em dois em cada dez segundos, enquanto o físico morre numa das

partes que surgem da divisão, na outra, sobreviveria. Ao fim dos cem segundos, o nosso suicida teria morrido em todos os universos, exceto num. “Nesse pressuposto, o experimentador descobrirá que é imortal”, afirma o físico Max Tegmark. Se a proposta defendida por Everett estiver correta, ele saberá com absoluta certeza que tem 100% de probabilidades de ultrapassar a prova, pois haverá um universo em que não morrerá. Por outro lado, nesse mundo, não seria outra pessoa diferente, mas uma cópia fiel de si próprio: a única diferença em relação às outras versões é que não teria uma bala alojada na cabeça. Evidentemente, ninguém tem consciência de que se produz tal multiplicação de universos, entre os quais também não pode haver qualquer contacto possível. A ideia de existirem inúmeras cópias do nosso corpo e do nosso eu pode chocar, mas a verdade é que a teoria sobre a qual se apoia está provada. O físico Bryce DeWitt, já falecido, explicava as coisas assim: “Cada transição quântica que ocorre em cada estrela, em cada recanto remoto do universo, divide o nosso mundo em miríades de versões de si próprio. É pura esquizofrenia!” M.A.S.

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ESA

Tecnologia Como eliminar o lixo espacial?

De olho na SUCATA Televisão, comunicações, GPS... A nossa forma de vida depende das redes de satélites, crescentemente ameaçadas pelo aumento persistente da sucata orbital.

O

filme Gravity, vencedor de sete Oscars em 2014, começa com os russos a fazerem explodir um dos seus velhos satélites inutilizados. Um vaivém espacial é destruído pelos fragmentos, que se mantêm em órbita e vão destruindo mais engenhos, o que produz cada vez mais resíduos e devastação. Pura ficção científica? Donald Kessler, antigo responsável da NASA pela investigação relacionada com a sucata orbital, vaticinou nos anos 70 que se produziriam colisões em cascata se fosse ultrapassada uma densidade crítica de lixo espacial. Um choque entre tais nuvens de resíduos produziria milhões de fragmentos que, a uma velocidade aproximada de cerca de sete quilómetros por segundo (dez vezes superior à de uma bala), poderiam estilhaçar tudo o que encontrassem pelo caminho como se fosse vidro. Os impactos tornar-se-iam tão frequentes que impossibilitariam o sistema de satélites terrestres. Apesar de não existir consenso científico sobre quando isso poderá ocorrer (anos ou décadas), ninguém duvida de que a síndrome de Kessler, como se designou tal cenário, se produzirá, dado que já foi ultrapassada a quantidade máxima de entulho espacial considerada segura. A primeira pedra do aterro espacial foi colocada em 1957, quando a União Soviética lançou o Sputnik 1, o primeiro satélite artificial da humanidade. Hoje, o Programa para os Resíduos Orbitais da NASA estima que foram lançados mais de 6000, dos quais apenas cerca de 800 se mantêm ativos. Não se conhece o seu número

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exato, pois nenhuma potência revela quantos “espiões” voam sobre as nossas cabeças. Seja como for, ao terminarem as suas missões, na maior parte dos casos, os satélites são abandonados e permanecem à deriva. As colisões entre objetos e consequentes explosões, assim como as ferramentas que os astronautas deixaram escapar acidentalmente, criaram uma ameaçadora nuvem de sucata. Já foram localizados mais de 21 mil objetos com mais de dez centímetros, segundo Emmet Fletcher, perito em detritos orbitais da Agência Espacial Europeia (ESA): “Isso constitui 99 por cento da massa em órbita; o resto é composto por cerca de 600 mil objetos de 1 a 10 cm, e por uns 35 milhões com 2 mm a 1 cm. Prevê-se que ocorra uma colisão a cada três anos, pelo que, mesmo que não seja lançado mais um satélite, o lixo continuará a aumentar. A prioridade tem de ser apanhar os objetos grandes, os mais perigosos, pois gerariam, se colidissem, uma quantidade de lixo impressionante.”

ARPÕES, REDES E RAIOS LASER

A ESA irá enviar para o espaço, em 2021, a missão e.DeOrbit, que se destina a capturar com uma espécie de arpão tecnológico os cadáveres dos foguetes que colocam os satélites em órbita e que são, em muitos casos, abandonados à sua sorte. “Essas peças pesam entre duas e oito toneladas e têm o tamanho de um autocarro. Retirá-las enquanto estão intactas reduz o risco para todos”, diz o especialista. O arpão da ESA não é o único engenho inspirado na arte da pesca destinado a recolher

Céu aberto. Fragmentos de foguetes, satélites abandonados, restos de explosões, ferramentas, pedaços de tinta... A órbita terrestre parece cada vez mais uma lixeira.


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Em 1996, o satélite francês Cerise ficou muito danificado por um pedaço de sucata a sucata espacial. A Agência Japonesa para a Exploração Aeroespacial (JAXA) aposta numa rede, uma estrutura de 30 cm de largura e 300 metros de comprimento, que seria colocada em órbita. Não se limitaria a reter os fragmentos como se fosse um enorme coador, mas as fibras milimétricas de metal criariam um campo magnético que não deixaria fugir os detritos nas proximidades. Pouco a pouco, todo o conjunto seria atraído pela gravidade terrestre e acabaria por se precipitar e desintegrar na atmosfera. Segundo Javier Roa, do LeoSweep, “muito desse lixo cria o problema acrescido de girar sobre si mesmo a grande velocidade, o que torna qualquer aproximação difícil e perigosa”. O LeoSweep é um projeto europeu que se propõe controlar a sucata a partir de uma distância de dez metros. O fator essencial da operação recai no Ion-Beam Shepherd (IBS), um satélite que projetaria iões sobre o objeto à deriva de modo a empurrá-lo e dirigi-lo até ao ponto em que a ação da gravidade o faria precipitar. “São como uma espécie de bolinhas que, disparadas continuamente durante anos, conseguem detê-lo e fazê-lo descer para uma órbita mais baixa”, explica Roa.

TEMPESTADE DE IDEIAS

Os resíduos espaciais já causaram vários sustos. Em 1994, por exemplo, um fragmento da pintura do vaivém espacial Endeavour desprendeu-se e esteve prestes a quebrar uma janela da nave. Um parafuso à deriva poderia colidir contra uma nave com uma força equivalente à explosão de uma granada de mão. Perante o risco crescente de que isso possa ocorrer, os satélites têm de integrar escudos que os protegem durante o lançamento, os quais aumentam o peso, o que por sua vez aumenta a quantidade de combustível necessário e encarece as missões. “O impacto de um detrito de cerca de 2 cm pode tornar uma nave inoperacional. São fragmentos difíceis de evitar, pois as suas órbitas são muito mais complexas de prever do que as dos maiores”, afirma Francesc Díaz, do Clean­ Space, projeto europeu baseado num raio laser que seria disparado da Terra contra resíduos espaciais de até 20 cm. O laser impeliria os

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objetos para órbitas mais baixas, fazendo-os reentrar na atmosfera e desaparecer de forma controlada. CleanSpace é também o nome da nave desenvolvida pelo Centro Espacial Suíço, que prevê lançá-la já em 2017, com o objetivo de remover resíduos orbitais do tamanho de um telemóvel grande. Poderá recolher os objetos com um braço articulado e navegar com eles até se introduzir na atmosfera, onde se calcinará com a carga. O primeiro satélite suíço, o SwissCube, um cubo com um quilo de peso e dez centímetros de lado que se desloca a 28 mil quilómetros por hora, deverá cair nas garras deste varredor espacial inspirado, segundo Volker Gass, diretor do centro, no princípio do poluidor responsável: se cada um varresse a área diante da sua porta, o espaço estaria limpo. Segundo os seus impulsionadores, a missão do CleanSpace One será a primeira de uma longa série. Este tipo de iniciativas demonstra que existe uma consciência internacional da necessidade de manter a órbita terrestre transitável e segura. Assim, o projeto alemão DEOS está a trabalhar num satélite que possa apreender e

reparar a sucata. Por sua vez, a França optou por desenvolver naves rebocadoras.

SÓ HÁ DUAS SOLUÇÕES

O Envisat, o maior satélite fabricado na Europa até agora, permaneceu operacional durante uma década, reunindo dados sobre o aquecimento global, a poluição atmosférica e os riscos de desastres naturais. Desde abril de 2012, quando se perderam as comunicações com o satélite, vagueia à deriva, um ameaçador icebergue de 8,2 toneladas que viaja a uma velocidade de vários quilómetros por segundo. Por que motivo não foram previstos mecanismos para fazê-lo desaparecer antes de terminar a sua vida útil? Resposta: o custo que implica varrê-lo do espaço. Como qualquer outro objeto que orbite em redor da Terra, as formas de removê-lo são duas: desorbitá-lo (baixá-lo de altura para que se desintegre ao reentrar na atmosfera terrestre), ou elevá-lo para órbitas cemitério, onde deixa de constituir uma ameaça. Em ambos os casos, a nave precisa de combustível para poder exceutar essa manobra final, o que encarece a missão.


Olho de águia. O Centro de Controlo do Space Fence (vedação espacial), da Lockheed Martin, já em testes e para ficar operacional em 2017, rastreará, segundo os seus responsáveis, um quarto de todos os resíduos orbitais do planeta.

mento situados a 37 000 km da Terra”, explica Alonso, acrescentando: “São 5000 vezes mais pequenos do que o olho humano consegue observar.” Para poder encontrá-los, o luar não pode ser muito forte, o que limita os dias de observação a metade do ano. O telescópio fixa um ponto do céu e surgem as imagens típicas de estrelas a deixar uma esteira na direção da rotação da Terra. Se surgirem outros pontos de luz que permanecem imóveis ou deixam um rasto noutra direção, é porque está ali um pedaço de sucata.

LOCKHEED MARTIN

INVENTÁRIO DA SUCATA

A preços atuais, cada quilo suplementar colocado em órbita representa cerca de dez mil euros. Por isso, procura-se agora encontrar alternativas mais leves (menos dez a quinze quilos de peso) aos motores de propulsão ou às velas espaciais, como a amarra eletrodinâmica. Trata-se de uma faixa de alumínio com alguns quilómetros de comprimento, vários centímetros de largura mas apenas milésimos de milímetro de espessura, que seria lançada ao terminar a missão do satélite a remover. A tira iria travando o objeto, agindo como um paraquedas, até fazê-lo regressar à atmosfera terrestre. Utilizaria, para isso, a frição eletrodinâmica, em vez de aproveitar a quase inexistente resistência aerodinâmica, cuja ausência é o principal fator que retira eficácia às velas espaciais. Trata-se de uma tecnologia que não exige grande potência final, e sem mecanismos complexos que possam falhar à última hora.

TELESCÓPIOS ATENTOS

Apesar de não existir um tratado internacional que obrigue os países a eliminar o lixo espacial que produzem, há recomendações e diretrizes de organismos oficiais que procuram

mitigar o problema, como a que aconselha que as missões sejam concebidas para a reentrada atmosférica ocorrer (de forma natural ou através de algum sistema) no prazo máximo de 25 anos. No entanto, enquanto se espera que estas práticas entrem em vigor, é preciso lidar com a realidade. Segundo o astrónomo Ángel Alonso, gestor da Estação Ótica Terrestre (OGS) do Instituto Astrofísico das Canárias, “colocar atualmente um satélite em órbita é como entrar num campo de batalha sob fogo cruzado”. Um satélite custa, em média, uns mil milhões de euros; o seu lançamento custará cerca de 300 milhões. Isso explica a necessidade de saber onde estão os objetos que poderão pô-lo em perigo, assim como as suas trajetórias. O OGS, do Observatório de Teide (Tenerife), a par de radares situados em Espanha, no Reino Unido, na Alemanha, em França e na Suíça, formam a rede de vigilância do lixo espacial que a ESA possui desde 2008. Em conjunto com a NASA, a JAXA e outras agências espaciais, esquadrinha sistematicamente o firmamento em busca de detritos. “O OGS deteta objetos de 10 cm de compri-

“Depois”, explica Alonso, “segue-se a sua trajetória durante vários dias. Se se demonstrar que é um novo fragmento, é incorporado numa base de dados partilhada por todas as agências espaciais.” O registo é de consulta obrigatória para todos os que se preparam para lançar uma missão ou para os que vigiam as suas naves para não colidirem com objetos. Todavia, nem toda a informação pormenorizada se encontra disponível, e abundam os pedidos entre organismos, cujas respostas podem demorar. Em situações em que o fator tempo é crucial, como no caso da perda repentina de contacto com uma missão, isso pode ser um problema. No caso da ESA, os cinco satélites que controla efetuam entre quatro e seis manobras por ano para evitar fragmentos de sucata, mas o número tem vindo a aumentar. Por isso, em outubro passado, a agência assinou um acordo com o Comando Estratégico do Departamento de Defesa dos Estados Unidos a fim de trocar informação sobre trajetórias de objetos de forma mais fluida e rápida. Em busca de oportunidades de negócio, as empresas privadas começaram também a criar mapas pormenorizados do lixo em órbita. A Lockheed Martin, um gigante da indústria aeroespacial, e a empresa australiana Electro Optic Systems (EOS) estão a construir, na Austrália Ocidental, uma instalação para pesquisa de resíduos extraterrestres. Segundo a multinacional, “a estação ficará operacional em 2016 e proporcionará uma capacidade de acompanhamento equivalente a 25% da que é oferecida, atualmente, por toda a indústria espacial mundial, além de uma precisão melhorada”. Emmet Fletcher acredita que, “no futuro, será muito difícil operar no espaço”. Não sabe que técnicas se revelarão mais eficazes contra o problema, mas, atualmente, quando ainda não se começou sequer a recolher o lixo espacial, a única coisa clara para o especialista é que “está tudo por fazer”. E.P.

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Astronomia As estruturas do universo

Recuar seis mil milhões de anos, para ver que tipos de estruturas existiam no universo e o seu impacto na evolução das galáxias. Eis o que fez um grupo internacional de astrónomos, no qual se inclui David Sobral. O que descobriram? Enxames galácticos ligados em rede e muitas estrelas a nascer onde menos se esperava.

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á 13,8 mil milhões de anos, se houvesse galáxias, a distância entre elas seria igual a zero. Para sermos mais corretos, todo o universo estava concentrado num ponto incrivelmente pequeno, muito quente e denso: não havia espaço, nem tempo, nem nada do que hoje em dia vemos. No início, foi o Big Bang, a que se seguiu uma súbita fase de crescimento, a inflação cósmica, que esticou o espaço de forma brutal e multiplicou por números loucos o seu tamanho. No entanto, o universo que daqui resultou não é perfeitamente uniforme, pois houve pequenas flutuações quânticas, à escala atómica, que foram ampliadas com a inflação, criando a estrutura em grande escala do cosmos. É assim que temos as galáxias e os grandes enxames por elas formados, mas há mais para contar. O investigador David Sobral, do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço, fez parte de uma equipa internacional que analisou a estrutura em larga escala do universo, quando este tinha quase metade da sua idade atual. Mais especificamente, estudou-se a chamada “rede cósmica”, de modo a perceber que papel teve na evolução das galáxias: “A rede cósmica é formada por nódulos de grande densidade onde se formam os enxames galácticos, mas, pelo meio, existem zonas de baixa densidade, com menos galáxias, cabendo depois aos

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filamentos (zonas de densidade intermédia) fazer a ligação entre os nódulos”, explica o astrónomo português. Que novidades encontraram? “Olhámos para uma zona do espaço e recuámos seis mil milhões de anos, em busca de filamentos, ou seja, da rede cósmica, para ver de que forma ela influencia a evolução das galáxias que aí residem. Chegámos à conclusão de que as galáxias aí situadas têm uma maior probabilidade de estar ativas e a produzir estrelas.”

CIDADE VS CAMPO

Esta revelação tem o seu impacto, pois atualmente o que existe (o que se vê) no universo é uma espécie de dicotomia entre as zonas de “cidade” e de “campo”. O que são as zonas de “cidade”? São os grandes enxames galácticos, neste caso formados por galáxias moribundas. Apesar de ser aí que existem mais estrelas, elas foram formadas há muito tempo, sendo raro o nascimento de novos astros. Isto sucede, julga-se, porque a sua produção em massa, no passado, “não só gastou rapidamente o gás que lhes servia de combustível, como levou a fenómenos que fazem parar a formação estelar”, diz David Sobral. Por oposição, é nas zonas de “campo”, bem menos densas, que há mais probabilidades de se formarem novas estrelas. A crer no resultado da investigação, publicada na revista Astrophysi-

VOGELSBERGER ET AL. / MIT / HARVARD-SMITHSONIAN CENTER FOR ASTROPHYSICS

Uma rede CÓSMICA Esqueleto. A “rede cósmica”, uma estrutura em larga escala composta por galáxias e enxames galácticos, teve um papel importante, no universo distante, na evolução e formação dos grande sistemas que albergava. Na imagem, baseada em simulações, é possível ter uma ideia dos nódulos existentes (os enxames galácticos) e dos filamentos (compostos por galáxias) que os ligavam.

cal Journal (http://ow.ly/Is8xE), em novembro passado, nem sempre foi assim. Ao que tudo aponta, foi encontrada uma prova de que, antigamente, os filamentos eram importantes para estimular a formação de galáxias e a sua evolução. Foi uma surpresa! “Cabe a eles ligar as galáxias aos enxames e, se elas forem pré-processadas nesses filamentos, então, à medida que forem caindo para dentro do enxame, é possível que, quando lá cheguem, já tenham gasto a maior parte do seu gás”, resume o investigador. Uma vez no interior do enxame, e devido ao denso ambiente aí existente, acabam por morrer. Segundo Bahram Mobasher, coautor da investigação, os resultados obtidos também mostram que, “provavelmente, os filamentos aumentam as hipóteses de existirem in­ter­ações gravitacionais entre as galáxias, o


que, por sua vez, resulta neste aumento de formação de estrelas”, refere no website da Universidade da Califórnia em Riverside. Mais: “Existem evidências, no nosso universo local, de que este processo em filamentos também ocorre nos dias de hoje.”

O UNIVERSO EM FATIAS

Importante para chegar a estas conclusões foram os dados obtidos por quatro dos melhores telescópios do mundo: o Hubble, que se encontra no espaço, o Very Large Telescope (no Chile), o UKIRT e o Subaru (ambos no Hawai). A eles juntou-se a informação de dois levantamentos cosmológicos: o COSMOS e o HiZELS. O HiZELS foi, precisamente, o projeto para o qual David Sobral ganhou, em 2012, um financiamento no valor de 250 mil euros, tendo liderado a maior parte dos estudos publicados

com base nesta pesquisa. Basicamente, o que o astrónomo português e os seus colegas estrangeiros fizeram, com a ajuda de telescópios, foi registar o nível de formação estelar das galáxias ao longo do tempo, para determinadas secções do céu. Deste modo, foi possível obter imagens, para um mesmo local do universo, tal como ele era há dois, seis ou doze mil milhões de anos, o que possibilitou, por exemplo, analisar a evolução da formação estelar nas galáxias encontradas. “Numa dessas fatias do universo longínquo, detetámos, por acaso, estruturas gigantes e muito lineares que evidenciavam a presença de filamentos”, indica. Por coincidência, Benham Darvish, investigador na mesma universidade californiana, estava na altura a desenvolver um método computacional capaz de identificar e quantificar tais estruturas. Bastou, portanto, usar esta nova

ferramenta para analisar melhor aquilo que a equipa de David Sobral tinha encontrado. Foi assim, através desta união de esforços, que se conseguiu identificar os filamentos e, por sua vez, analisar a importância da rede cósmica. O que se segue? Antes de mais, é preciso mencionar que há muitas outras equipas nesta nova área de investigação. Todavia, aponta o português, “fomos os primeiros a mostrar que é possível fazer estes estudos recuando muito mais no tempo”, sem ficar cingido ao universo local. Entretanto, a equipa pretende ir mais longe nas suas pesquisas. De momento, estão a tentar fazer o mesmo tipo de análise para várias épocas do universo, desde a atualidade até há 12 mil milhões de anos, uma máquina do tempo que nos poderá dizer como evoluíram as galáxias desde as eras primitivas. J.P.L.

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História O maior cientista português

O investigador e historiador Henrique Leitão, vencedor do Prémio Pessoa 2014, dá-nos a conhecer uma das figuras mais geniais que Portugal viu nascer. Falamos de Pedro Nunes, um matemático do século XVI que nunca colocou os pés num barco, mas cujos cálculos ajudaram os navegadores a conquistar os oceanos.

E

sta é a obra mais importante da história da ciência em Portugal”, diz Henrique Leitão sem papas na língua, apontando para uma longa fila de livros dentro de um enorme caixote de cartão. Não é de somenos, pois trata-se dos textos completos, comentados e explicados de forma crítica, do matemático Pedro Nunes (1502–1578), o maior cientista português de todos os tempos. A façanha de reunir e organizar o trabalho científico de um dos grandes vultos da ciência europeia do século XVI começou em 2002, com as primeiras edições a verem a luz do dia em 2008. Ainda há muito por fazer. O investigador do Centro Interuniversitário de História das Ciências e Tecnologia de Lisboa esteve à frente dessa missão, como coordenador científico de uma equipa composta por meia dúzia de especialistas de diferentes áreas, desde tradutores a petitos em ótica (para melhor visualizar o que foi escrito), passando por matemáticos. Os textos de Pedro Nunes assim o exigem: os manuscritos, com centenas de páginas, “são quase impenetráveis”, devido à sua tecnicidade matemática. Está explicado porque é que só muito recentemente se arregaçaram as mangas para tentar conhecer a fundo o contributo desta figura histórica. Em finais de 2014, Henrique Leitão foi apanhado de surpresa quando o avisaram de que ganhara o Prémio Pessoa. A razão para a dis-

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tinção? Foi graças a ele e aos seus colegas que a história das ciências em Portugal, especialmente o nome de Pedro Nunes, começou a ser falada e estudada no estrangeiro. De facto, o que se descobriu foi que o matemático seiscentista não é um mito histórico construído pelos portugueses, pois os grandes astrónomos e matemáticos europeus da época referiam-no como sendo o melhor entre eles, criador de uma nova forma de abordar a navegação que permitiu aos descobridores embrenharem-se pelos oceanos. Mais: ficou-se a saber que ele não surgiu no meio de um deserto de ideias, como se costuma pensar, tendo existido outras figuras proeminentes da ciência portuguesa antes de Pedro Nunes, que até há pouco tempo eram quase desconhecidas. Ainda só estamos a ver a ponta do icebergue, esperando-se que muitos livros tenham de ser reescritos, dá a entender o historiador. O interesse de Pedro Nunes passou pela matemática e pela astronomia, pese embora tivesse estudado, inicialmente, medicina. Devido às obras que produziu, podemos considerá-lo o pai de toda uma nova ciência relacionada com a navegação astronómica, assente na matemática e com uma grande utilidade prática? Pedro Nunes foi a primeira pessoa, na Europa, a perceber que, por detrás da navegação em longa distância (nos oceanos e não junto às costas), está uma matemática muito complexa.

JOÃO PEDRO LOBATO

Personagem RARA O mito e a realidade. Henrique Leitão deixou para trás uma carreira como físico e dedicou-se à historia das ciências. Em 2002, tornou-se o coordenador científico da equipa responsável por reunir e organizar o trabalho do matemático Pedro Nunes. Um dos resultados foi um crescente interesse, lá fora, pela ciência portuguesa no período dos Descobrimentos. Criador da navegação matemática, Pedro Nunes é uma das personagens que figuram no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa (com a esfera armilar nas mãos).

Foi o primeiro a inspirar-se nos problemas náuticos e a transformá-los em problemas matemáticos, estudando-os. Isto deu origem a uma disciplina que é a navegação matemática. Atualmente, se abrirmos um manual de navegação, na primeira página estão explicitados os conceitos que foram inventados por Pedro Nunes: a linha de rumo (a curva loxodrómica, que representa uma rota em espiral) e outros, que são básicos para qualquer pessoa que perceba de navegação a longa distância ou que pilote aviões. Embora não passasse de um matemático, consta que o alcance do seu trabalho, em pleno século XVI, ajudou a mudar a maneira como muitos olhavam para os fenómenos da natureza. Curiosamente, Pedro Nunes nunca entrou num barco. Ele era um matemático puro. O que lhe interessava eram os problemas abs-


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Pedro Nunes interveio no momento em que nascia a ciência tratos, tendo sido a partir deles que surgiram muitas coisas novas que influenciaram, e bastante, a matemática. Isto teve um impacto na Europa, por diversas razões, nos séculos XVI e XVII. É um período histórico em que se está a demonstrar que a matemática permite explicar as coisas de uma forma bem melhor. Trata-se do grande facto científico da época: a aplicação da matemática no estudo dos fenómenos da natureza. Pedro Nunes fez precisamente isso, mas para a náutica, e, de repente, ficou bastante claro que essa área pode ser estudada através de questões matemáticas muito complexas, sofisticadas e interessantes. Este é o grande contributo de Pedro Nunes. Ele foi uma das figuras mais proeminentes de um movimento europeu que mostrou existirem imensas outras áreas em que a aplicação da matemática é extremamente útil. O instrumento mais conhecido que criou foi o nónio, capaz de obter uma maior precisão na leitura dos ângulos. O astrónomo dinamarquês Tycho Brahe fez referência ao nónio em algumas publicações suas e, mais tarde, o alemão Johannes Kepler representou-o no frontispício de um dos seus livros. Estamos a falar de um instrumento muito importante? O nónio foi, somente, uma das imensas coisas que ele fez. Em Portugal, o instrumento tornou-se muito célebre, mas eu digo sempre isto: o Pedro Nunes não seria famoso só por causa do nónio. O Tycho Brahe construiu cerca de quatro exemplares e depois discutiu a sua precisão. O que ele conclui, tal como toda a gente, é que se trata de uma ideia muito boa mas de complicada execução. É um instrumento interessante, mas não muito prático. Contudo, a sua ideia será posteriormente desenvolvida por outros. Pedro Nunes foi citado por muitos autores de renome nos séculos XVI e XVII, o que atesta a marca que deixou além-fronteiras. Contudo, foi o astrónomo alemão Christophorus Clavius quem mais o referenciou, tendo ajudado a espalhar o nome e as ideias de Pedro Nunes pelo Velho Continente. Houve alguma razão em especial? As referências feitas por Brahe e Kepler, por exemplo, são pequenas indicações de como, na Europa, tudo o que Pedro Nunes escrevia era imediatamente lido e estudado. As pessoas sabiam que dele vinham boas ideias. Clavius, que estudou na Universidade de Coimbra, na segunda metade do século XVI, cita-o muitas vezes. Ele foi muito importante na divulgação do trabalho do português. Fez parte da geração

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que veio a seguir à de Pedro Nunes e, apesar de não o ter conhecido ou estudado com ele, deve ter ouvido falar dele em Coimbra. Porque foi Clavius importante? Porque tinha um papel de autoridade junto dos matemáticos jesuítas, que tinham muitos colégios espalhados pela Europa. Por via de Clavius, as obras de Pedro Nunes foram aí recomendadas, para leitura e estudo. Ao que tudo indica, ele era um judeu convertido ao cristianismo, um cristão-novo. Aparentemente! Os historiadores ainda discutem isso. Sabe-se que os seus netos foram perseguidos pela Inquisição, sendo consensual que veio de uma família de cristãos-novos, pelo menos, mas nada se sabe sobre as suas origens e as da sua família. Nasceu em 1502, mas a primeira documentação fidedigna que temos dele é quando está a estudar em Salamanca, na década de 1520. Quando aparece no radar dos historiadores, é enquanto aluno universitário. Sabemos que é de Alcácer do Sal porque, como era habitual na época, assina sempre dizendo “Pedro Nunes de Alcácer do Sal”. Porque nunca foi ele perseguido em Portugal, tal como aconteceu com outros judeus convertidos ou filhos de judeus? Em 1529 [com 27 anos], já está a trabalhar na corte portuguesa, e isso é surpreendente. Nesse ano, ele ainda não tinha dado provas do que fosse, mas já era tutor para os assuntos científicos junto dos irmãos mais novos do rei D. João III. Não sabemos porquê, mas podemos especular que a família dele tivesse algumas ligações à casa real ou a famílias a ela ligadas.

Ele tem o percurso de uma família abastada: vai estudar para fora, apesar de não ser membro de uma ordem religiosa, o que coloca o problema de como é que arranjava o dinheiro. Depois, regressa a Portugal e mantém-se, durante toda a sua vida, muito próximo da corte: é amigo pessoal de D. João III e, sobretudo, dos irmãos do monarca, em particular D. Luís, mas também se mantém próximo do cardeal D. Henrique. Ou seja, sempre teve uma imensa proteção por parte da casa real. A sua carreira não se compreende sem a proteção que teve do rei: foi um seu protegido.

NEM OITO, NEM OITENTA!

Houve um contexto científico, em Portugal, que permitisse a uma figura como Pedro Nunes desabrochar e desenvolver as suas ideias? Uma ideia muito comum é que ele foi um caso que fugiu à norma e que a nossa ciência não estava muito desenvolvida à época. Durante muito tempo, pensou-se que Pedro Nunes era uma exceção isolada. De facto, não temos ninguém ao seu nível, mas, nas últimas duas décadas, fez-se um trabalho mais atento e começou-se a descobrir muitas outras figuras. Uma delas, que só muito recentemente foi estudada, por mim e por um colega meu, é um matemático interessantíssimo da geração anterior a Pedro Nunes: o Francisco de Melo. Na geração anterior a ele, temos outro nome interessante, que é o de Álvaro Tomás... Se recuarmos mais uma geração, temos ainda o Rolando de Lisboa. De repente, começou-se a


Sucesso internacional. O dinamarquês Tycho Brahe e o alemão Christophorus Clavius foram dois dos admiradores de Pedro Nunes.

perceber que existe um contexto. Ou seja, há uma regularidade, dentro dos estudos matemáticos, com pessoas de muito bom nível. Este tipo de circunstâncias permite, de vez em quando, que surja uma exceção como Pedro Nunes. Não estamos a falar, portanto, de alguém que surgiu no meio do deserto. Só para dar um exemplo, o Álvaro Tomás é uma das principais fontes do inglês Thomas Harriot. Harriot [matemático e astrónomo] era muito famoso no século XVI, citando continuamente o nome do português nos seus manuscritos, mas nada disto foi ainda escrito na historiografia portuguesa. Há tantos outros exemplos... A ciência, como dizia Isaac Newton, é sempre feita sobre os ombros de alguém. No caso de Portugal, e ao contrário do que durante muito tempo se pensou, aconteceu o mesmo? Exato! A ciência em Portugal, nesse período, foi muito mais contínua do que as descrições que temos hoje em dia. Esse é talvez o problema da história das ciências em Portugal. Essas descrições são muito descontínuas, porque foram feitas olhando para as figuras mais proeminentes. É preciso fazer uma reconstituição muito mais cuidadosa. Temos matemáticos que escreveram manuscritos de 600 ou mais páginas e que nem sequer estão referenciados. A ideia de que não existia nada e, de repente, apareceu um homem incomum, não está correta. Com isto não se diminui a excecionalidade do Pedro Nunes, mas percebemos que já havia algo antes. Que tipo de repercussões terá esta nova

perceção da história da ciência portuguesa? Implicará a necessidade de reescrever. Reescrever o quê? A história cultural de Portugal, que não é tão pobre como às vezes se conta. Tivemos cientistas e navegadores na vanguarda, com estes últimos a serem os precursores da ciência moderna? É sabido que foi graças a eles que a Europa passou a conhecer novos lugares, novas gentes e novas espécies, animais e vegetais, com os nossos navegadores a deixarem abundantes relatos do que encontraram... Sim! A dificuldade está em conseguir enunciar isso da maneira mais correta e de uma forma que não seja exagerada. Os portugueses desempenharam um papel interessante, mas não foram os únicos. Não eram especiais, mas foram dos primeiros europeus a confrontar-se com estas novidades. Sobre eles, colocaram-se imensos problemas técnicos, tendo sido os primeiros a ter de os resolver. Logo a seguir, vieram os espanhóis, os italianos, os holandeses e os ingleses. Contudo, parece que andamos a balancear entre um discurso que diz que não houve e não fizemos nada e um outro que diz que fomos os melhores do mundo. Podemos dizer que isto ou aquilo foi interessante, devido a razões concretas e fundamentadas, mas não foi a pobreza que por vezes se conta. Nem oito, nem oitenta!

DECIFRAR UM GÉNIO

Foi muito difícil “navegar” pelas fontes históricas e reconstruir a personagem de Pedro Nunes e o papel científico que teve?

A maior dificuldade com o Pedro Nunes está na tecnicidade do que escreveu. Ele escrevia para os especialistas e é com eles que tenta dialogar. Foi precisamente por causa disso que só recentemente se fez esta edição das obras de Pedro Nunes: passaram-se dois séculos sobre a primeira ideia de o fazer. Por causa disso, o meu trabalho acabou por ser muito técnico. São textos que, à primeira vista, se apresentam completamente impenetráveis para uma pessoa normal, e que implicam muitas horas por dia, muitos meses e até anos de trabalho para analisar. É preciso saber e dominar, na perfeição, o estado da matemática no século em que foram produzidos. É preciso perceber, com exatidão, quais os problemas que então se colocavam e de que forma se pensava neles, quais as técnicas que na altura se conheciam e os autores a que então se recorria. Só quando se sabe tudo isto é possível perceber se o que foi escrito nesses textos é novo, criativo e original. Uma das razões para ter recebido o Prémio Pessoa 2014 está no grande impacto que teve no estrangeiro a sua tarefa de reunir e organizar o trabalho de Pedro Nunes. Como é que conseguimos “medir” isso? Posso apresentar, por exemplo, uma lista de tudo o que se publicou sobre Pedro Nunes nos últimos dez anos. Nela vai encontrar imensos trabalhos de autores estrangeiros, feitos fora de Portugal. De 2002 para cá, conseguiu-se suscitar um maior interesse, lá fora, pela ciência portuguesa. Isso pode ser medido pelo número de artigos publicados, pelo número de conferências internacionais e pela quantidade de investigadores estrangeiros que se debruçam sobre o tema. Passados 13 anos, e olhando para trás, o que mais o surpreendeu naquilo que descobriu sobre o matemático? Quando comecei este trabalho, tinha a mesma ideia de muita gente: achava que a fama de Pedro Nunes era mais uma coisa que nós dizíamos, não era real. No fim, o que mais me surpreendeu foi verificar a imensa fama internacional que teve em vida. Os melhores matemáticos da época achavam-no o melhor. Pedro Nunes, e isso ficou bem claro, foi uma das grandes figuras de meados do século XVI. O problema é que a fama em ciência é uma coisa muito passageira. As suas investigações foram importantes para a segunda metade do século XVI, mas a partir do século XVII a ciência vai transformar-se tanto que os trabalhos dele acabam por ficar incorporados no grande fluxo em que a ciência depois se transforma. Porém, não há dúvida de que era um matemático original. Olhava para os problemas e descobria sempre um ângulo novo para os abordar. Não era um matemático rotineiro. Trata-se de um criativo, e isso, tanto na matemática como dentro da própria ciência, é algo muito raro. J.P.L.

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Paleontologia Dentes da gruta de Xujiayao espantam os peritos

O anúncio da descoberta de restos de um tipo desconhecido de hominídeo, em Xujiayao (China), surpreendeu os paleoantropólogos. Enquanto alguns pensam que poderá tratar-se de uma nova espécie, outros, como José María Bermúdez de Castro, que o estudou, duvidam dessa hipótese.

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á dois anos, José María Bermúdez de Castro, coordenador do Programa de Paleobiologia de Hominídeos do Centro Nacional espanhol de Investigação sobre a Evolução Humana (CENIEH), e a sua colega María Martinón-Torres, responsável pelo Grupo de Investigação de Antropologia Dentária da mesma instituição, observaram, perplexos, um cientista chinês a retirar de um caixote uma remessa de fósseis humanos. Tinham sido desenterrados numa caverna de Xujiayao, no norte da China. Os especialistas espanhóis visitavam pela terceira vez o Laboratório do Instituto de Paleontologia e Paleoantropologia de Pequim, instituição fundamental para compreender a evolução dos hominídeos na Ásia, cujas descobertas começavam a ser conhecidas no Ocidente. Foi o seu apurado instinto que alertou Bermúdez de Castro. A viagem era fruto da colaboração com os colegas chineses Song Xing, Xiujie Wu e Wu Liu. Entre os fósseis, destacava-se uma série de nove dentes de aspeto tosco e primitivo, que os dois paleoantropólogos espanhóis estudaram minuciosamente. “Muito poucos ocidentais tiveram a oportunidade de os examinar”, diz Bermúdez de Castro. A ciência ocidental nem sempre tem acesso aos achados chineses, mas o artigo que os dois especialistas publicaram no American Journal of Physical Anthropology era acompanhado de tomografias que mostravam a morfologia das peças dentais em todo o seu esplendor tri-

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dimensional. Um dos revisores da revista comentou que faziam lembrar a dentadura dos denisovanos. Recorde-se que o hominídeo de Denisova se tornou conhecido em 2010, quando uma análise genética do fragmento ósseo de um dedo, encontrado numa gruta da Sibéria e datado em cerca de 50 mil anos, revelou sequências de ADN que não se conjugavam com as dos neandertais ou com as dos seres humanos modernos. Embora não houvesse provas de que se tratava de uma nova espécie, pois não havia fósseis suficientes para permitir descrevê-la, uma hábil campanha de marketing científico apresentou o homem de Denisova como pertecente a uma nova espécie humana.

CAIXOTES OBSCUROS

Neste contexto, o comentário sobre os denisovanos chamou a atenção de Bermúdez de Castro: “Temos ADN dos Homo sapiens, dos denisovanos e dos neandertais, mas não se pode definir uma espécie com base apenas no material genético. São precisos ossos.” Nesse caso, o que nos revelam os fósseis dos estranhos dentes chineses, com 90 a 100 mil anos de antiguidade? A quem teriam pertencido? Há mais de meio século, surgiu uma hipótese para explicar a homogeneidade observada na espécie humana. O Homo sapiens ter-se-ia desenvolvido gradualmente a partir de uma evolução multirregional, através de múltiplos cruzamentos ao longo de centenas de milhares de anos entre populações de Homo erectus

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O enigmático HOMEM DA ÁSIA Estudo comparativo. Os dentes achados em Xujiayao são diferentes dos dos humanos atuais e apresentam semelhanças com os dos neandertais e dos homínideos asiáticos do Pleistoceno. A sua taxonomia é incerta.

de diversas partes do mundo, como África e a Eurásia. A teoria, generalizadamente aceite na China, contrasta com a mais divulgada no Ocidente: os nossos antepassados surgiram primeiro em África, e foi dali que partiram para colonizar o mundo (sem pôr de parte eventuais cruzamentos com outras populações). Os dentes de Xujiayao, de aspeto primitivo, mas cuja datação revelava não serem muito antigos, contradiziam o esquema mental admitido por um europeu. O mesmo não acontecia com Song Xing. Se a dentadura não é de Homo erectus nem de Homo sapiens, a quem pertenceu? Ao conjunto de fósseis junta-se um maxilar que Bermúdez de Castro atribui a um rosto mais primitivo do que o do Homo antecessor, a criatura de Atapuerca que se sugeriu pertencer a uma nova espécie, com um aspeto menos rude e mais semelhante ao nosso, apesar dos 900 mil anos de antiguidade. Estariam os investigadores espanhóis perante uma nova espécie de hominídeo que viveu na China há apenas cem mil anos? De facto, a informação publicada na


SPL

Quem és tu? Um punhado de fósseis encontrados na China faz pensar que o grande continente asiático pode ter sido habitado por uma espécie de hominídeo desconhecida, ainda por catalogar.

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Grande equipa. José María Bermúdez de Castro e María Martinón-Torres com os paleoantropólogos chineses com quem estudaram a descoberta de Xujiayao.

Cozinhar os alimentos não explica os nossos dentes mais pequenos revista científica daria origem ao seguinte título na imprensa generalista: “Encontrada uma nova espécie humana”. Trata-se, porém, de uma interpretação muito precipitada, segundo Bermúdez de Castro. Para começar, falta fazer uma análise ao ADN dos dentes. Por enquanto, estamos numa fase misteriosa e extremamante interessante da investigação. Por vezes, tais descobertas permitem, posteriormente, escrever novos capítulos no livro da paleontologia humana. Os grandes achados não acontecem sob as luzes dos focos, no local da escavação. Não é raro os fósseis que mudam a história surgirem da escuridão e da poeira das caves de museus, de caixotes onde permaneceram ignorados durante décadas. Prova disso é o que se passa na China, uma verdadeira caixinha de surpresas, com muitas jazidas e descobertas desconhecidas a nível internacional, pois a maior parte das publicações surge apenas em chinês. Neste caso, estamos a falar de um hominídeo enigmático, cujas características não permitem que seja inserido nos padrões conhecidos. A maior parte dos dentes (incisivos, pré-molares, caninos e molares) pertence a um indivíduo jovem. O público fica deslumbrado com os crânios

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e os esqueletos de hominídeos, mas desenterrar um inteiro e tão antigo como o de Lucy (a fêmea de australopiteco encontrada por Donald Johanson nos anos 80) é um acontecimento excecional. Na ausência de semelhante material, as peças dentais transformam-se em janelas para o passado. São elas que permitem a Bermúdez de Castro imaginar uma população de hominídeos que teria vivido há cem mil anos e que conservava vestígios arcaicos.

VER OS DENTES POR DENTRO

“Observa-se um dente e é como se estivéssemos a ver o BI da espécie”, afirma o paleoantropólogo. Estuda-se a sua morfologia e compara-se com a de outros hominídeos a fim de situar a descoberta num contexto. Aqui, surge uma questão fascinante e pouco conhecida. Nos anos 70, pensava-se que os australopitecos tinham um desenvolvimento dentário semelhante ao do ser humano moderno, isto é, que a maior parte dos dentes definitivos se forma até aos 18 anos, embora os do siso possam surgir, em alguns casos, até aos 25. Todavia, tratava-se de uma noção errada. Nos anos 80, percebeu-se que o desenvolvimento da dentadura dos australopitecos e dos

Homo habilis constituía um processo mais rápido do que o nosso, à semelhança do que acontece com chimpanzés e gorilas: os seus molares crescem depressa, um a seguir ao outro, e os incisivos, o pré-molar e o primeiro molar nascem em simultâneo. No ser humano, o desenvolvimento demora mais, de acordo com o processo de maturação do resto do corpo, que se tornou mais lento ao longo de milhões de anos: enquanto um chimpanzé de onze anos já é um adulto, o equivalente humano ainda é uma criança. Os fósseis chineses revelam um hominídeo jovem cujo desenvolvimento dental era mais veloz do que o nosso. Os traços eram primitivos, mas não tanto como os do homem de Pequim (Homo erectus pekinensis). Assim, a morfologia dentária ajuda-nos a situar o desconhecido. Os australopitecos nunca saíram de África, e alguns dos seus representantes, como os Paranthropus, possuíam enormes molares. Os Homo erectus chegaram à China há, talvez, 1,8 milhões de anos, e os seus dentes eram muito resistentes, com raízes grossas e fortes. Os do Homo sapiens são mais delicados, com menos cúspides, mais curtos e de raízes menores. No caso deste hominídeo asiático, a tomografia computorizada das peças revelou a sua estrutura interior. Segundo o especialista, “conseguimos saber como são por dentro sem necessidade de parti-los”. María Martinón-Tor-


res diz que os dentes “são como a caixa negra de uma espécie, pela quantidade de informação que proporcionam”. O facto de os seres humanos modernos terem dentes mais pequenos foi inicialmente atribuído à alimentação, uma explicação evolutiva que conduziria a uma morfologia mais delicada. Pensava-se que o recurso ao fogo e a preparação de alimentos cozinhados seriam responsáveis por tal redução. Todavia, em meados dos anos 90, Bermúdez de Castro publicou um estudo que deitava por terra esta hipótese, ao demonstrar que as peças dentárias dos hominídeos que viveram na Gruta dos Ossos, em Atapuerca, há cerca de 430 mil anos, “eram do mesmo tamanho dos da população atual, embora com uma morfologia diferente”. A ideia de uma redução do tamanho dos dentes por causa de cozinhar os alimentos ficaria feita em cacos com a demonstração da existência de hominídeos possuidores de dentes pequenos e aptos para rasgar a carne crua. Nesse caso, porque será a dentadura humana mais reduzida? Que vantagens evolutivas teria isso? Bermúdez de Castro admite tratar-se de um mistério. Poder-se-ia pensar que a seleção natural teria agido contra os dentes grandes, mas isso é difícil de demonstrar. No caso dos indivíduos de Atapuerca, ter dentes pequenos não representou qualquer desvantagem. Já no caso de hominídeos muito mais primitivos, como os Paranthropus, a lógica

estabelece que os seus enormes molares eram indispensáveis para a sobrevivência, pois serviam para triturar os alimentos vegetais, tubérculos e raízes.

TAMANHOS RELATIVOS

Contudo, nada disso se coaduna com a posterior evolução. Não faz sentido, afirma o especialista, que algumas populações do norte de África durante o Mesolítico (há dez mil anos) tivessem dentes descomunais, maiores do que os dos habitantes de Atapuerca. O que parece importante é analisar o tamanho dental em termos relativos. Os Paranthropus tinham incisivos e caninos muito pequenos em comparação com enormes molares. Nos hominídeos da Gruta dos Ossos e entre os neandertais, acontece precisamente o oposto: as peças anteriores são maiores do que as posteriores. No nosso caso, têm todas praticamente o mesmo tamanho. Os dentes da caverna de Xujiayao ficam a meio caminho entre os erectus e os sapiens. O trabalho dos paleoantropólogos espanhóis e dos seus colegas chineses evoca um mundo muito diferente do atual. Hoje, a humanidade é homogénea: uma única espécie colonizou o planeta. Há uma globalização biológica. Por isso, muitos pensam erradamente que o Homo sapiens é fruto de uma evolução em que indivíduos toscos e primitivos se ergueram do chão para adquirir um aspeto mais humano e

XING SONG

J.M. BERMÚDEZ DE CASTRO

A mandíbula. Além das peças dentais, na gruta chinesa apareceu este maxilar que os especialistas atribuem a um indivíduo jovem de aspeto mais primitivo do que o Homo antecessor.

transformar-se no que hoje somos. Se pudéssemos recuar cem mil anos, depararíamos com o que Bermúdez de Castro designa por “mundos perdidos”: populações de espécies humanas distintas que conviveram, das quais algumas se mantiveram isoladas ou se extinguiram. No passado, nunca houve apenas um único tipo de ser humano. O paleoantropólogo descreve-o assim: “Era um mundo diversificado, com populações díspares, nas quais a genética pode ter facilitado os cruzamentos entre algumas. Na Europa, teríamos os neandertais, que resistiam ao avanço do Homo sapiens. Os seres humanos modernos já estavam no sul da China há 60 ou 70 mil anos, enquanto, no norte, ainda persistiria o Homo erectus, e talvez outras espécies ou subespécies, como as populações de hominídeos às quais estes dentes pertenceriam. Na Sibéria, tinhamos os denisovanos. Em África, havia seres humanos modernos, mas talvez ainda existissem populações de Homo ergaster em alguns lugares.” Nesse planeta, uma mistura de muitos grupos perdidos e distintos, bastava percorrer uma distância de 400 quilómetros para encontrar seres humanos de aspeto muito diferente. Trata-se de uma ideia fascinante e ousada, um capítulo original da nossa história que será, seguramente, colmatado por novas descobertas. L.M.A.

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Paleontologia Fraudes e enganos colossais

Meter a pata na POÇA Acertos e erros caracterizam todos os campos da ciência. A paleontologia é uma das disciplinas mais expostas a equívocos, pois trabalha com fósseis de organismos desaparecidos e, por vezes, desconhecidos para elaborar as suas teses.

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lgumas das paleogafes mais conhecidas foram registadas há séculos, quando o conhecimento era limitado e havia falta de metodologia. Contudo, também surgiram, recentemente, falsificações e logros. Os atuais especialistas não lhes são imunes, mas, hoje, há mais meios para detetá-los. Mostramos-lhe, em seguida, onze casos que fizeram história no apaixonante mundo dos fósseis.

PEGADAS POLÉMICAS

Durante décadas, grupos de criacionistas norte-americanos afirmaram ter descoberto pegadas humanas junto de vestígios de patas de dinossauros, na jazida do rio Paluxy, no Texas. Chegaram a realizar um documentário, em 1973, intitulado Footprints in Stone (“Pegadas em pedra”), para demonstrar a sua teoria. Os defensores da descabida teoria enfrentavam uma contradição: as pegadas têm cerca de cem milhões de anos, e a maioria das marcas são demasiado grandes para terem sido produzidas por seres humanos, pois muitas ultrapassam o meio metro de comprimento. Contudo, na década de 1970, este era um dos argumentos preferidos dos criacionistas para semear dúvidas sobre a teoria da evolução e o valor da escala de tempo geológico. A proposta é disparatada para os especialistas em vestígios fósseis, mas pode fazer vacilar pessoas sem formação em paleontologia ou geologia. Num esforço notável para dissipar qualquer dúvida, o biólogo Glen J. Kuban demonstrou, na

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sequência de um meticuloso trabalho de análise, que os vestígios tinham sido produzidos por dinossauros. Mostrou mesmo que alguns tinham, nitidamente, três dedos. Assim, as supostas pegadas humanas não eram mais do que formas alongadas de pisadas de dinossauros carnívoros sujeitas à erosão. Esses exemplares deixaram uma acentuada marca metatársica, ou seja, da zona central da pata. De facto, este tipo de vestígios é extremamente interessante do ponto de vista científico, pois indica que os dinossauros não se deslocavam unicamente sobre os dedos, mas também usavam a planta do pé. Dada a abundância de provas, John D. Morris, do Instituto para a Investigação da Criação e um dos mais firmes defensores da tese, admitiu que as suas conjeturas não tinham razão de ser, e que seria incorreto os criacionistas utilizarem os vestígios do rio Paluxy como prova contra a evolução.

EM VEZ DE OURO, UM CRÂNIO

Em 1866, James Matteson procurava ouro em Bald Hill (condado de Calaveras, na Califórnia), mas o que encontrou foi um crânio parcialmente conservado, numa saibreira. Depois de passar algum tempo na posse de um comerciante chamado Scribner, o fóssil acabou por ir parar às mãos de um professor de geologia, Josiah Dwight Whitney, o qual proclamou que o crânio de Calaveras pertencia ao Plioceno (há dois a cinco milhões de anos). Tornava-se, assim, um dos fósseis humanos mais antigos e, para Whitney, a prova de que o Novo Mundo

Que grandes pés! As pegadas petrificadas de dinossauro fascinam as crianças que se banham no rio Paluxy, no Texas. O biólogo Glen J. Kuban (em cima) desmontou as teorias dos criacionistas, que pretendiam ter descoberto ali vestígios humanos do tempo dos dinossauros.

possuía uma história evolutiva humana tão antiga como a europeia. Houve cientistas que discordaram, como o antropólogo William Henry Holmes. O crânio era muito semelhante ao de um homem atual, e continha sedimentos nos quais se descobriu uma concha de molusco de aspeto moderno e uma conta de colar idêntica às dos nativos americanos. A verdade tornou-se conhecida em 1911, após a morte do convicto Whitney. Era tudo falso. Fora o lojista Scribner que colocara o crânio no fundo da mina, na esperança de que Matteson o encontrasse, como viria a acontecer. O chamado “homem de Calaveras” chegou a aparecer em muitas primeiras páginas de jornais, mas nunca existiu. Curiosamente, cala­ veras significa precisamente, em espanhol, “caveiras”.

RECONSTITUIÇÃO ROMÂNTICA

Em 1633, alguns operários que trabalhavam numa pedreira perto de Quedlinburg, na Alemanha, encontraram diversos fósseis de mamíferos. Os ossos foram transferidos para um mosteiro da vizinhança, onde seriam examinados por eruditos da zona, incluindo Otto von Guericke, que divulgou a notícia da descoberta do esqueleto de um unicórnio. A fantástica notí-


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cia teria passado despercebida se não tivesse chamado a atenção do filósofo, matemático e lógico Gottfried Wilhelm Leibniz, um dos maiores génios da história. Leibniz incluiu uma reconstituição do unicórnio que obteve de Von Guericke na sua obra Protogaea, que só viria a ser publicada 33 anos depois da sua morte, em 1716. A figura mostra a estranha montagem de um esqueleto sem membros posteriores, de cujo crânio emerge um chifre comprido e direito. Segundo Leibniz, teria mais de dois metros de extensão e era tão grosso na base como a coxa de um homem. Assim, dois cientistas fundamentais do século XVII estavam convencidos de ter encontrado os ossos de um unicórnio, e exibiam-nos no que era a primeira reconstituição paleontológica de um vertebrado extinto. Estavam completamente enganados, mas a descoberta surgia rodeada de um halo de mágico romantismo. No fim de contas, navegadores portugueses acreditaram ter visto unicórnios na Abissínia (Etiópia), e a sua existência era aceite desde o tempo dos gregos.

UMA BRINCADEIRA EM PEDRA

No início do século XVIII, Johannes Beringer, naturalista e professor de medicina na Universidade de Wurzburg (Alemanha), vivia fascinado pelos fósseis. Seriam verdadeiros vestígios de animais e plantas do passado, prova da grande antiguidade da Terra? Um rasto de plasticidade impresso nas rochas? Parte da criação divina? Na altura, a perspetiva religiosa ainda dominava o pensamento científico e não se compreendia a natureza dos fósseis. Em 1725, Beringer, um déspota pomposo e muito convencido, começou a descobrir, nas ladeiras do monte por onde passeava, o Eibel­ stadt, fragmentos de calcário com estranhas formas tridimensionais: aves a caminhar e a voar; lagartos com olhos perfeitamente conservados; abelhas nos seus favos, e mesmo formas petrificadas que reproduziam o Sol, a Lua, as estrelas e os cometas. Tinham sido talhadas e colocadas ali por dois colegas que o desprezavam: Johann Georg von Eckhart, historiógrafo e bibliotecário da universidade, e J. Ignatz Roderick, professor de geografia e álgebra. Beringer acreditou em tudo, e os autores da brincadeira, encorajados pelo êxito, criaram inscrições em sírio, hebraico e babilónio da palavra “Jeová”. Foi o suficiente para convencer o crédulo Beringer de que as pedras esculpi-

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ALBUM

Proliferam na internet vendedores de falsos fósseis

Homem diluviano. Johann Jakob Scheuchzer (1672–1733) acreditou que o fóssil à direita pertencia a uma raça de homens extintos pelo dilúvio universal.

das eram de origem divina. Quando anunciou a intenção de publicar as descobertas, Roderick e Eckhart difundiram rumores sobre a autenticidade dos fósseis, acrescentando que alguns exibiam marcas de terem sido talhados. Beringer concordava, mas pensou que era obra da mão de Deus. A brincadeira cruel terminou quando Beringer descobriu uma inscrição com o seu próprio nome.

QUEM ANDA NO DILÚVIO MOLHA-SE

Johann Jakob Scheuchzer, naturalista suíço, encontrou um estranho fóssil, em 1726, perto da localidade bávara de Ohningen, nas margens do lago Constança. Scheuchzer acreditava que todos os fósseis eram de vítimas do bíblico dilúvio universal que não se tinham salvo na arca de Noé. Encontrara fósseis de numerosos peixes e de outros vertebrados, mas a sua maior ambição era descobrir um vestígio humano. Convenceu-se de que o exemplar de Ohningen era um esqueleto, bastante completo, da raça humana que desaparecera por ocasião da grande inundação. Assim, denominou o espécime Homo diluvii testis, isto é, “homem testemunha do dilúvio”. Contemplá-lo deveria inspirar nos pecadores um profundo arrependimento.

O tamanho desmesurado do crânio e a estranha forma das vértebras não lhe produziram grandes suspeitas, apesar de Sheuchzer ser também médico de profissão. Contudo, alguns dos seus contemporâneos não partilhavam a piedosa opinião, e sugeriram que se poderia tratar de alguma espécie de peixe ou lagarto. Em 1811, o naturalista francês George Cuvier examinou-o e comprovou que se tratava do esqueleto de uma salamandra gigante do Terciário. Atualmente, o exemplar é conhecido por Andrias scheuchzeri (“o homem de Scheuch­zer”), em honra da errada convicção do suíço.

O HOMEM QUEBRA-CABEÇAS

Há um século, o advogado e arqueólogo amador Charles Dawson descobriu fragmentos de um crânio numa saibreira de Piltdown (Inglaterra). Dada a potencial importância do achado, Dawson seguiu as escavações, acompanhado pelos paleontólogos Arthur Smith Woodward e Pierre Teilhard de Chardin. A equipa encontrou mais peças cranianas, a par de parte de metade de uma mandíbula de cor acastanhada e aspeto simiesco, com dois molares muito desgastados. O mais interessante é que os restos crania-


CORDON

do Museu de História Natural de Londres começaram a ter suspeitas. Observaram que os ossos tinham sido tingidos para adquirir um aspeto antigo. A mandíbula provinha de um orangotango; fora partida nas zonas mais fáceis de identificar e os dentes tinham sido limados para impedir um reconhecimento correto. No outono de 1953, a fraude foi denunciada. Quem fora o responsável? Em 1975, trabalhos de limpeza no Museu de História Natural permitiram recuperar um cofre com as iniciais de Martin A.C. Hinton, antigo conservador da secção de zoologia. Dez anos depois, o investigador Andrew Currant inspecionou-o e encontrou uma pequena quantidade de ossos tingidos como os de Piltdown. As análises efetuadas demonstram que os produtos utilizados para tingir os ossos do baú eram os mesmos dos exemplares de Piltdown. Porém, é possível que Hinton não tivesse agido sozinho: quase todas as descobertas de Dawson, o arqueólogo amador, eram falsas.

SE PARECE UM PORCO, É PORQUE É...

O experiente paleontólogo Harold J. Cook procurava, habitualmente, fauna fossilizada nos depósitos arenosos da formação Snake Creek, no Nebraska. Em 1917, encontrou um

AGE

nos tinham um aspeto moderno e indicavam que o seu possuidor tivera um grande cérebro, embora a mandíbula fosse muito primitiva. Além disso, os fósseis de fauna igualmente encontrados sugeriam que a jazida tinha cerca de 400 mil anos de antiguidade, o que enchia de satisfação os antropólogos britânicos. A morfologia da cabeça encaixava muito melhor na linhagem humana do que todos aqueles fósseis neandertais, de testa estreita e arcaica, descobertos na época na Alemanha e em França. Assim, o homem de Piltdown parecia ser muito antigo e poderia muito bem ser o antepassado (oportunamente, inglês) da atual humanidade. A reconstituição do crânio foi divulgada em dezembro de 1912, suscitando grande interesse entre a imprensa e o público. Artistas recorreram à imaginação para reproduzi-lo em revistas, e estátuas com o seu presumível aspeto enfeitaram os museus. Até nos Estados Unidos surgiu, na imprensa dominical, uma banda desenhada intitulada Peter Piltdown, um cavernícola precursor dos Flintstones. Durante trinta anos, o homem de Piltdown foi um enigma, pois nenhum hominídeo encontrado na Europa, na Ásia ou em África partilhava o crânio moderno e a face simiesca. Por fim, peritos

Ossos pintados. Reconstruções e análises do homem de Piltdown fizeram a capa de numerosas revistas. A pintura de cima mostra um grupo de investigadores britânicos examinando o crânio do exemplar que poderia ser o elo perdido entre o homem e os outros primatas.

Interessante

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Alguns episódios bíblicos deram origem a mitos paleontológicos molar desgastado que se parecia muito com um dente humano. Em 1922, enviou o exemplar a Henry Fairfield Osborn, diretor do Museu de História Natural norte-americano. Ali, os melhores especialistas concluíram que a peça dentária pertencera a um fóssil de antropoide. Osborn considerou a descoberta de enorme importância, pois indicava a presença de primatas superiores (incluindo hominídeos) na América do Norte, há cinco a dez milhões de anos. Denominou o novo exemplar Hesperopithecus haroldcookii (“símio do mundo ocidental de Harold Cook”). Osborn sublinhou a importância de se encontrar mais material antes de proclamar as afinidades do Hesperopithecus, mas a imprensa não tardou a falar do “homem do Nebraska”, como foi batizado. O antropólogo britânico Grafton Elliot Smith, e o artista Amédée Forestier colaboraram numa ilustração para a revista Illustrated London News, na qual se viam um macho e uma fêmea de Hesperopithecus numa paisagem pré-histórica: dois hominídeos musculosos e de testa estreita que não convenceram Osborn, pela falta de rigor. Era preciso encontrar mais fósseis para se poder determinar o seu aspeto. Uma equipa de paleontólogos regressou à jazida em 1927, recuperou novas peças dentárias e demonstrou que o dente não fora bem identificado. A misteriosa criatura não era um hominídeo, mas um tipo de pecari (porco-do-mato) extinto denominado Prosthennops, da família de suínos do Novo Mundo. Os investigadores retrataram-se, nesse mesmo ano, na revista Science.

FALSAS PENAS DE ARCHAEOPTERYX

Em 1985, o astrónomo Fred Hoyle e o matemático Chandra Wickramasinghe denunciaram que os vestígios de penas do Archaeopteryx, a primeira ave do registo fóssil (cerca de 147 milhões de anos), eram falsas, pelo que o exemplar do Museu de História Natural de Londres não passava de uma montagem. O truque teria consistido em criar impressões de penas de frango numa fina camada de cimento artificial, à volta de um pequeno esqueleto de réptil. Porém, os vestígios de penas do exemplar de Londres não se parecem com as de um frango, e o Archaeopteryx é um género fóssil emblemático. O objeto tinha sido descoberto, em 1861, na

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Alemanha, e vendido ao museu londrino. Passados dois anos, o anatomista Richard Owen, diretor do museu, descreveu-o pormenorizadamente, e Charles Darwin fez uma referência ao Archaeopteryx na quarta edição de A Ori­ gem das Espécies. Segundo a equipa de Hoyle, foi o próprio Owen quem teria orquestrado a fraude para desacreditar a teoria evolutiva darwiniana, o que não faz sentido, pois a primeira pessoa que a ação iria prejudicar seria o próprio Owen. Os conservadores do Museu de História Natural de Londres responderam, em 1986, na revista Science. Demonstraram a presença de pequenas fraturas que atravessam tanto as partes ósseas como as penas. Além disso, essas fendas contêm pequenos cristais de minerais que se desenvolveram antes da descoberta do fóssil e da posterior limpeza e preparação, o que provava a impossibilidade de as penas terem sido sobrepostas sobre a pedra original. No entanto, Hoyle e Wickramasinghe insistiram, pois pensavam que o mecanismo da transformação evolutiva provinha de vírus ou bactérias que chegavam à Terra em cometas e meteoritos. Desse modo, contaminariam o material genético dos seres vivos, o que daria subitamente origem a novas formas. Não era a seleção natural que modificava, de forma

gradual, os organismos, mas esse mecanismo alienígena. O Archaeopteryx constitui um exemplo de uma ave com características primitivas de dinossauro, o que demonstra um processo de transformação gradual. A sua existência constituía um entrave para a teoria de Hoyle e Wickramasinghe, pelo que estes decidiram que não passava de uma montagem.

ARCHAEORAPTOR, UMA QUIMERA

Proveniente do tráfico ilegal de fósseis chineses, chegou aos Estados Unidos, em 1999, um exemplar único. Parecia uma ave primitiva, com dentes e cauda característicos de um pequeno dinossauro carnívoro do grupo dos dromeossauros. Foi vendido a um museu do Utah, dirigido por Stephen A. Czerkas e pela sua mulher, Sylvia, um casal de artistas que gostava de dinossauros. Estudaram o espécime com a ajuda de um especialista canadiano, Philip J. Currie. Os testes indicaram que o fóssil podia ser constituído por vários espécimes, mas os Czerkas e Currie consideraram que as irregularidades se deviam apenas a uma incorreta reconstituição dos restos. A revista National Geographic decidiu publicar uma reportagem sobre o fóssil, que devia ser repatriado para a China. A revista descreveu-o


Reconstituição artística. Stephen Czerkas com um Cryptovolans, que viveu há 125 milhões de anos, modelado por ele mesmo.

altura do episódio. Quem se apercebeu do erro, efetivamente, foi o paleontólogo Joseph Leidy, que expôs o problema numa publicação de 1870. Independentemente de Marsh se ter, ou não, apropriado do discernimento de Leidy para se aperceber da asneira, o certo é que a inimizade entre Cope e Marsh desencadeou uma frutífera guerra de ossos.

LUCAS OLENIUK

LEVEDURAS NA GRONELÂNDIA?

como sendo um elo perdido que ajudaria a compreender a relação entre dinossauros e aves, e propôs que se chamasse Archaeoraptor liao­ ningensis, embora os nomes científicos devam ser atribuídos por investigadores profissionais em publicações especializadas, de acordo com um determinado protocolo. Os estudos demonstraram que o Archeorap­ tor era uma fraude. A cabeça e a parte superior pertenciam a uma ave primitiva fossilizada, o Yanornis; a cauda, a um pequeno dromeossauro, o Microraptor. O logro teve um aspeto positivo: travou o tráfico ilegal de fósseis chineses e demonstrou que qualquer grande descoberta deve passar pelo escrutínio de uma publicação científica.

O ERRO DESCOMUNAL DE COPE

As maiores coleções de fósseis de vertebrados norte-americanos foram reunidas por dois paleontólogos que se detestavam. Edward Drinker Cope, da Academia de Ciências Naturais de Filadélfia, e Othniel Charles Marsh, do Museu Peabody de Yale, mantinham uma feroz rivalidade e tentavam acumular o maior número possível de exemplares, pelo que não hesitavam em subornar, roubar ou destruir ossos para obter o controlo das ricas jazidas do Oeste norte-americano. A animosidade era de tal

ordem que Marsh ridicularizou o rival, chamando-lhe Anisconchus cophater (“destestável Cope de boca desdentada”), pois ele não tinha vários dentes. O mais extraordinário é que toda essa animosidade pode ter surgido devido a um erro. Cope e Marsh foram bons amigos, apesar dos seus feitios díspares. O incidente que abalou a sua relação produziu-se quando um explorador amador se ofereceu para vender alguns fósseis valiosos a Cope. Este prometeu comprá-los, mas esqueceu-se de os pagar, e Marsh aproveitou para enviar um falso telegrama em seu nome a cancelar o negócio, após o que adquiriu ele próprio os exemplares. Segundo o historiador da ciência Adrian Desmond, o confronto definitivo surgiu em 1870. Cope mostrou a Marsh a enorme reconstituição do Elasmosaurus, um plesiossauro do Kansas que descrevera alguns anos antes e cujo esqueleto acabava de montar em Filadélfia. Ao examinar o réptil marinho, Marsh percebeu que o seu distinto colega colocara a cabeça na cauda. Cope era um cientista brilhante mas irascível, e nunca perdoou a Marsh ter assinalado o erro. Alguns pensam que esta história foi inventada por Marsh, vinte anos depois, para desacreditar Cope, pois parece que o próprio Marsh não sabia muito de plesiossauros na

Em 1978, o cientista Hans-Dieter Pflug afirmou ter descoberto microfósseis com forma de levedura e cerca de 3700 a 3800 milhões de anos em rochas metamórficas da localidade gronelandesa de Isua. Descreveu mais de cem exemplares de estruturas diminutas, em forma esférica e elíptica, das quais algumas com aspeto de levedura. Chamou-lhes Isuasphaera isua. Na sua opinião, eram de origem orgânica. Por outras palavras, em algumas das rochas mais antigas da Terra, havia microfósseis de organismos complexos. Pflug indicou que encontrara aminoácidos conservados nas pedras, o que sugeria a existência de atividade orgânica, pois os aminoácidos constituem as proteínas. Contudo, havia um obstáculo. As leveduras são organismos eucariotas, ou seja, têm núcleo celular, e eram também muito avançadas para se poderem encontrar em rochas com 3800 milhões de anos, quando tinham passado apenas 700 milhões desde a formação da Terra. Assim, a evolução da vida teria sido muito rápida, com o aparecimento de organismos muito sofisticados em tempo record, em termos geológicos. A fim de resolver o enigma, Pflug sugeriu que os microfósseis de Isua não tinham núcleo e que o aspeto tão semelhante ao das atuais leveduras era apenas exterior. E se não fossem leveduras? O geoquímico Edwin Roedder adiantou que se poderia tratar de cavidades preenchidas com óxidos de ferro. William Schop, especialista na origem das primeiras formas de vida, não sabia o que dizer. A Isuasphaera passou, assim, a fazer parte dos dubiomicrofósseis, objetos microscópicos com aparência de fósseis mas de origem mineral. Finalmente, Peter W.U. Appel, do Serviço Geológico da Dinamarca e da Gronelândia, pôs fim à polémica. Appel era o geólogo que recolhera as amostras que continham os diminutos corpos ovoides. Acompanhado dos seus colaboradores, regressou ao local e comprovou que as rochas da zona tinham sofrido uma deformação extrema e que não era possível qualquer tipo de corpo esférico ter-se preservado durante o processo. Portanto, a Isua­ sphaera – independentemente de se tratar de um fóssil ou de uma forma inorgânica – teve de se formar posteriormente, por processos de erosão recente das rochas, em algum momento anterior ao Quaternário. M.G.B.

Interessante

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Tecnologia Aplicações contra a deficiência

Janelas BIÓNICAS Óculos especiais, aplicações milagrosas, vozes que substituem textos: os mais recentes artefactos tecnológicos abrem infinitos horizontes aos deficientes de todo o mundo. Portugal acompanha a carruagem.

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s óculos que Salvador usa quando está sentado ao computador nada têm de especial: parecem iguais aos que qualquer pessoa usa no seu dia a dia. No entanto, de facto, não são. Os óculos de Salvador são especiais, assim como o próprio Salvador: ele, Salvador Gomes de Almeida, é tetraplégico, desde que, em agosto de 1998, foi vítima de um trágico acidente, no Algarve. Salvador fundou a associação com o seu nome (http://www.associacaosalvador.com), com o intuito de “promover a integração das pessoas com deficiência motora na sociedade e melhorar a sua qualidade de vida”. Hoje, a Fundação Salvador é uma referência nacional como instituição de apoio aos deficientes. Os óculos de Salvador permitem-lhe ultrapassar a sua deficiência e escrever no computador, apenas movimentando a cabeça, graças ao contacto estabelecido entre os óculos e um sensor no computador: depois, teclado aberto, é só escrever e navegar na internet. “Hoje em dia, com todas as novas aplicações, uma pessoa que tenha um grau de incapacidade bastante elevado, se tiver um bom acompanhamento, consegue ter aparelhos que a tornam mais autónoma e realizada”, assegura Salvador, que, no seu escritório da Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, reuniu condições para levar por diante o seu projeto. “Há 16 anos, se precisava de escrever no computador, tinha de pôr umas talas nos dedos, tinha de prender as mãos com umas luvas...

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Hoje em dia, faço-o através dos óculos, com movimentos mais subtis e com menos esforço. Outra coisa que eu não podia fazer era mexer num telemóvel: tinha dificuldade, porque não havia ecrãs táteis. Agora, a pessoa toca e é mais fácil. Claro que isto varia de caso para caso, de condição para condição. O que sinto é que é preciso muita persistência. Quando encontramos um equipamento, à partida ele não está adaptado, nós é que temos de ir criando familiaridade, encontrar soluções...”

BARREIRAS ARQUITETÓNICAS

Há cerca de dez anos que Salvador dispõe dos seus óculos especiais para usar o computador. Atualmente, o artefacto está disseminado no país, abrindo horizontes em diversos tipos de deficiência, embora tenha um preço elevado. No seu dia a dia, Salvador usa também uma aplicação que transforma em palavras escritas aquilo que a pessoa diz, o que lhe permite enviar mensagens com mais facilidade. É recorrendo a estas ajudas tecnológicas que Salvador faz o seu trabalho na área da integração de deficientes: atividades de desporto adaptado, eventos de convívio, bolsas de apoio e o projeto mais recente, denominado “Preencha esta vida”, em que, através de crowdfunding, são angariadas verbas para ajudar pessoas que necessitam de diversos equipamentos. “As novas tecnologias vieram ajudar os deficientes a ganhar autonomia, mas, obviamente, ainda falta muita coisa... Os obstáculos físicos

Controladores. Os óculos de Salvador parecem iguais aos outros, mas não são: graças a eles, consegue controlar o computador, usar correio eletrónico, etc.


Interessante

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Um cidadão surdo não pode usar o telefone em caso de emergência e as barreiras arquitetónicas continuam a ser uma das grandes dificuldades”, sublinha Salvador, alertando para o problema do confronto com o mundo exterior. Este ano, e entre outras atividades, Salvador voltará a ser embaixador da Wings for Life World Run (Porto, 3 de maio, 12 horas), um evento organizado pela Fundação Wings for Life, que trabalha na pesquisa de curas para as lesões vertebro-medulares. Os artefactos que usa Salvador numa função tão importante como a sua são um bom exemplo de como a evolução tecnológica registada nos últimos anos está a contribuir para a melhor integração e qualidade de vida das pessoas com deficiência. Em todos os tipos de deficiência.

APLICAÇÃO DE EMERGÊNCIA

Portugal, apesar de todos os condicionalis-

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Solução visual. A App112, concebida por João Gomes, permite aos surdos comunicar por vídeo com os serviços de emergência, colmatando uma falha.

mos financeiros, tenta acompanhar a onda. Em 2012, um empreendedor surdo decidiu criar uma empresa nesta área. João Gomes fundou a Earthwnd, que em 2014 lançou no mercado o seu primeiro produto: a App112, uma aplicação de emergência para telemóveis e outros dispositivos portáteis, que pode ser utilizada por surdos, surdos-cegos e pessoas idosas, com ou sem deficiência. É mais um exemplo de

um deficiente que procura, ele próprio, abrir uma estrada. As novas tecnologias parecem capazes de criar novos horizontes para a deficiência. Aos 44 anos, João Gomes está perante o maior desafio da sua vida. Surdo desde os três anos, fez um percurso educativo normal para alguém com deficiência auditiva, tirando o 12.º ano, sem, depois, conseguir aceder a uma formação superior. Percebeu, ao longo dos anos, que um


Falar com as mãos. O Aiko Chihara é um robô que fala língua gestual. A Toshiba espera lançá-lo no mercado em 2020. O Uni (em baixo) é um aparelho que traduz língua gestual em texto e áudio.

Lares artilhados

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evido às suas limitações, a maior parte dos deficientes passa muito tempo em casa, o que torna este espaço importantíssimo do ponto de vista tecnológico. Nesta área, o caso da inglesa Habinteg Housing Association é paradigmático e inspirador. A Habinteg especializou-se de tal forma em casas com artefactos tecnológicos que lidera agora um programa, a nível europeu, para a criação de novos instrumentos e sistemas que permitam uma maior autonomia ao deficiente, a partir do seu lar, o projeto I-stay@home. Entre os projetos a testar constam, por exemplo, um robô aspirador, um detetor de quedas, câmaras sem fio que identificam visitantes no exterior, aplicações online para compras e depósitos financeiros, tudo controlado a partir de um aparelho móvel. Estão envolvidos no projeto nove associações de habitação, duas universidades e quatro empresas de tecnologia, de diversos países: Alemanha, Bélgica, França, Países Baixos e Reino Unido. Há fundos europeus, e não só, implicados, e 2015 é o ano de todas as conclusões. O projeto está muito virado para a população idosa, a faixa demográfica que mais cresce na Europa, mas também para as diversas deficiências,

que deverão ser apoiadas em questões como o isolamento, a segurança, a a saúde, a condição financeira e a autonomia no dia a dia. Em Inglaterra, estuda-se também o lançamento de uns óculos especiais para pessoas com dificuldades de visão (não cegos totais). Estes óculos, com câmara de vídeo, ajudarão os utilizadores a entenderem melhor o local onde se movem, evitando obstáculos e outros problemas. Nos Estados Unidos, uma empresa de São Francisco criou o Uni, uma aplicação que permite traduzir a linguagem gestual para áudio e o som para texto escrito. Ainda em versão experimental, o sistema, criado pela MotionSavvy, funcio-

na com duas câmaras e projeta imagens dos gestos da pessoa surda num espaço virtual 3D; a linguagem gestual é então traduzida para um discurso áudio e, graças a outro programa, o áudio pode passar a texto. No Japão, as pessoas com necessidade de cuidados especiais poderão ter em casa um Aiko Chihara, um robô desenvolvido pela Toshiba, capaz de mover os braços e falar língua gestual. É ainda um protótipo, que a marca pretende introduzir no mercado lá para 2020. O público-alvo não serão apenas os deficientes, mas também pessoas idosas e com necessidade de companhia. Interessante

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Stephen Hawking foi a estrela da abertura dos Jogos Paralímpicos de 2012, em Londres. Aqui, num dos ecrãs gigantes do estádio.

O extraordinário Stephen Hawking

C

aso paradigmático de uma vida extraordinária muito baseada nos apoios tecnológicos é o do astrofísico Stephen Hawking. Sofrendo de esclerose lateral amiotrófica (os primeiros sintomas foram detetados aos 21 anos), Hawking tinha uma esperança de vida de dois ou três anos. O cientista não só ultrapassou todos esses limites (tem atualmente 72 anos), como as suas limitações não o impediram de se tornar num dos principais físicos do século XX, com uma série de investigações e trabalhos extraordinários. Hawking é um lutador exemplar: cedo ficou em cadeira de rodas e, em 1985, uma pneumonia deixou-o à beira da morte, sendo necessária uma traqueotomia que o deixou mudo. Há quase três décadas que o físico britânico comunica através de um computador integrado na sua cadeira de rodas, montando as suas frases com um programa especial que lhe permite formar palavras letra a letra, e através de um sintetizador de voz. Quando, no início da década passada, perdeu a mobi-

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lidade da mão direita, passou a recorrer aos movimentos faciais, através de novo recurso tecnológico: um detetor que sai da parte superior dos seus óculos regista os movimentos da bochecha, a única parte do corpo (para além dos olhos) que ainda controla. Hawking comunica muito lentamente, a cerca de uma palavra por minuto, mas comunica. Numa entrevista publicada em fevereiro de 2014, no jornal Folha de São Paulo, o físico argentino José Edelstein mostrava-se impressionado com a persistência de Hawking em querer comunicar desta forma, utilizando um lento programa de computador. Certo é que o cientista se tornou um símbolo para a comunidade de deficientes, exemplificando as suas necessidades de integração. Por essa razão, aceitou participar na cerimónia de abertura dos Jogos Paralímpicos de Londres, em 2012: “Creio que a ciência deve fazer tudo o que for possível para prevenir ou curar as deficiências”, disse então, através do seu sintetizador de voz.

A Fundação PT disponibiliza soluções para várias necessidades deficiente pode ser vítima de muitos equívocos, por dificuldades de comunicação, evidentes no caso dos surdos; o dia a dia não é fácil, nomeadamente para ter acesso aos direitos básicos de qualquer cidadão, como chamar os bombeiros ou a polícia, ir a um médico ou tratar de um problema nas Finanças. “Senti, em diversas situações da vida, muitas dificuldades para me fazer entender. Era sempre um problema arranjar intérpretes, a própria autoridade não me entendia... Nós, cidadãos surdos, temos direito a ter uma vida normal.” Por essa razão, começou a pensar em criar, ele próprio, soluções. Avaliou os instrumentos existentes, investigou na internet e, adepto das novas tecnologias, decidiu investir o seu próprio dinheiro, criando a Earthwnd – World Intelligence Telecommunications, uma empresa única no género em Portugal. Apostando em serviços de emergência 112, criou a App112. A


Livro multiformato

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Ao meu alcance O sistema Jaws (Job Access With Speech), em cima, digitaliza para voz os textos que surgem no monitor do computador. A sua adaptação para português é uma das aplicações que podem ser obtidas através da Fundação PT. À esquerda, o PTMagicContact, para pessoas com dificuldades motoras.

aplicação, ainda um protótipo, baseia-se essencialmente em três botões de emergência, para os bombeiros, para a polícia e para uma ambulância, e um botão de videochamada. O deficiente (ou idoso) apenas tem de pressionar um dos botões para ficar ligado a uma comunidade de ajuda rápida, que pode ser constituída por familiares, amigos, vizinhos, profissionais do ramo ou entidades públicas. É também detetada a sua localização, facilitando uma assistência rápida. Em dezembro, um furacão nas Filipinas levou João Gomes a mostrar, em poucas palavras, no Facebook, como a App112 poderia ser útil numa situação destas. Ainda à procura de apoios e investidores (Gomes lamenta a falta de interesse dos organismos públicos já contactados, incluindo a própria Associação Portuguesa de Surdos), a App112 foi apresentada no 24.º Congresso das Comunicações, no Centro Cultural de Belém,

na Feira do Empreendedor, na Alfândega do Porto, e na feira Portugal Maior, na FIL, em Lisboa, integrada no stand da Federação Mundial das Línguas Gestuais, da qual João Gomes é presidente.

GANHAR BATALHAS

O que encontrámos para a deficiência motora, e para a surdez, pode também ser encontrado para outras deficiências. As novas tecnologias chegam a todo o lado, permitindo maior autonomia a pessoas com diferentes níveis de incapacidade. Talvez o melhor exemplo da variedade de artefactos atualmente disponível seja oferecido pelo catálogo da Fundação PT, que disponibiliza no seu site soluções especiais para diversas áreas: Visual, Fala/Comunicação, Cognitiva, Auditiva/Surdez, Neuromotora, Cidadãos Idosos em Risco e Cidadãos Com Doenças Severas. Nesta lista

utro exemplo da capacidade inventiva do ser humano é a criação do primeiro livro multiformato em português, apresentado em dezembro: trata-se de uma aplicação para o livro O Pequeno Trevo, de Ana Cristina Luz e Margarida Oliveira, uma história infantil a que poderão ter acesso todas as crianças, seja qual for a sua deficiência. A aplicação está adaptada a diferentes necessidades, como audiolivro, videolivro com língua gestual, SPC (símbolos pictográficos para a comunicação), ilustração tátil com áudio-descrição, sistema braille e livro digital. A aplicação é propriedade da Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral de Leiria, e pode ser descarregada em http://opequenotrevo. bonsexemplos.com.

estão disponíveis várias soluções, desde o PTJaws, para invisuais (o texto no computador é convertido para voz), até ao PTGrid 2 (para vários tipos de handicaps, é um sistema de teclados no ecrã que funciona com qualquer dispositivo apontador), passando pelo PT PC Eye Go (para problemas neuromotores, permite usar o computador apenas com o olhar). Nesta área, destaca-se ainda, em Portugal, desde 1991, uma empresa especializada, a Anditec, que comercializa tecnologias de reabilitação e apoio para pessoas com problemas neuromotores. Outro dos bons exemplos desta nova era tecnológica aplicada às deficiências foi apresentado em outubro do ano passado, quando o Mosteiro da Batalha estreou guias em braille e língua gestual. Mostrando preocupação pela inclusão, a instituição tentou encontrar soluções para pessoas com necessidades especiais: com baixa mobilidade (mobiliário ergonómico), baixa visão (experiências táteis, audioguia com descrição), cegas (sinalética em braille), surdas (videoguia em língua gestual e textual) e com deficiência intelectual (textos com apoio pictográfico, experiências táteis). A maior parte destas aplicações móveis pode ser descarregada no site do monumento. É caso para dizer: eis como se ganha uma... Batalha. J.S.

Interessante

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Psicologia

Dama pink. Kitten Kay Sera, uma atriz californiana de 51 anos, decidiu levar ao extremo o seu amor ao cor-de-rosa: tudo na sua vida, da roupa aos m贸veis e ao pelo do seu cachorro, 茅 dessa cor.

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GETTY

Descubra onde está o limite

Manias de OBSESSIVO Maníacos da limpeza, viciados em videojogos, fanáticos pelo futebol, dependentes do trabalho... Por vezes, um único interesse invade a nossa mente, embora uma dose de obsessão seja imprescindível para alcançar determinadas metas. Interessante

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As terapias com hipnose tentam desviar as ideias fixas

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ir-se-ia que vivemos numa época de pessoas absorvidas por assuntos que, aos olhos dos outros, parecem banais. Um exemplo: aproximadamente 60 milhões de utilizadores de telemóveis e tablets dedicam uns minutos por dia ao Candy Crush. Quando não podem jogar, alguns manifestam sintomas semelhantes aos da síndrome de abstinência: sentem ansiedade, arranjam tempo para se dedicar ao vício à custa do trabalho ou da vida privada, e têm ataques de fúria quando perdem. O mesmo acontece com outros jogos. Por exemplo, estima-se que os milhões de adeptos do World of Warcraft lhe consagram mais de seis horas diárias sempre que surge uma nova versão. Depois, a dedicação passa para apenas duas horas por dia… O futebol, o desporto que maior paixão suscita entre os adeptos, é outro exemplo de fixação em algo a priori sem qualquer transcendência. Um vídeo gravado há poucos anos sobre um fã da equipa argentina do River Plate mostrava a que extremos pode chegar um

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adepto zangado com o seu clube: insultos brutais a jogadores que falham um golo, pancadas nos móveis da casa, ataques violentos de fúria... Um caso singular? Talvez, mas, ao vermos as imagens, todos recordamos cenas semelhantes. Fãs de artistas pop adolescentes (Justin Bieber, Miley Cyrus, One Direction, Violetta…), atletas amadores que se sentem mal se não correrem pelas ruas todos os dias e colecionadores de diversos objetos são outros expoentes de um comportamento que eleva o simples passatempo ou diversão à escala do total ofuscamento. Parece que os seres humanos têm facilidade em transformar o “gosto disso” em “tenho necessidade”. O que têm em comum todas estas paixões? Por um lado, respeitam as regras básicas da chamada “modelação”, ou seja, o processo através do qual se criam novos e persistentes comportamentos e que foi definido por especialistas como Burrhus Frederic Skinner (1904–1990). Primeiro, conseguem aliciar-nos com reforços imediatos e muito fáceis de alcan-

çar. É a sensação inicial de êxito proporcionada pelo jogo Angry Birds: a pessoa acerta sempre, seja qual for o lugar para onde envia o pássaro. Os programadores sabem que, para captar uma grande quantidade de utilizadores, é necessário reduzir ao mínimo o esforço inicial. Contudo, depois, é muito importante que a pessoa seja submetida ao que Skinner denominava “reforço diferencial”. Não basta saber fazer algo: são as recompensas por fazê-lo bem que nos conduzem a sucessivas tentativas.

IMPULSIVOS E REFLETIDOS

Por isso, as atividades que produzem sempre resultados positivos raras vezes desencadeiam um comportamento compulsivo. O reforço tem de ser cada vez mais difícil de obter, uma regra aplicável tanto aos colecionadores como aos que vivem para se estafar no ginásio: os primeiros progressos conseguem-se de forma quase imediata, enquanto as peças raras seguintes ou os exercícios de musculação exigem um considerável investimento em horas e dedicação. Como nos recordam os psicólogos comportamentais, abandonamos imediatamente aquilo que nos proporciona resultados persistentes mas não produz gratificação. O segredo dos vendedores de obsessões


Vidrados no ecrã

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s jogos são das diversões mais suscetíveis de sequestrar a nossa mente. À esquerda, um exemplo disso: um utilizador do Minecraft (uma espécie de Lego virtual) recriou, com todos os pormenores, a cidade King’s Landing (“Desembarque do Rei”), da série e dos livros de A Guerra dos Tronos. Outro fenómeno global é o Candy Crush (em

consiste em conseguir que fiquemos agarrados a algo que nos proporciona alegrias de forma intermitente e apenas de longe em longe. É assim que funcionam as máquinas de jogos dos casinos (slot-machines), com as suas luzes e sons apoteóticos: alertam todo o casino para as pessoas saberem que alguém ganhou uma boa maquia, levando-as a esquecer o dinheiro previamente gasto. É também assim que funciona a forma como se forjam muitos comportamentos sociais. Além das estratégias de compensação, a fórmula do êxito inclui outros fatores. Em primeiro lugar, já se começou a estudar as correlações bioquímicas dos fenómenos de dependência. Um estudo recente da Universidade de Washington chegou à conclusão de que jogar futebol aumenta em 30 por cento a produção de testosterona. Trata-se de um dado interessante, especialmente se considerarmos que a experiência foi realizada com tsimanes, uma etnia da Amazónia, que nunca tinham visto nem praticado o jogo e que apresentam, normalmente, níveis muito baixos da hormona masculina. Há, pois, razões fisiológicas para explicar a generalizada paixão pela bola, desporto que conta com mais de dois mil milhões de adeptos, um terço da população mundial?

Além disso, não basta a atividade ou o objeto de desejo possuírem uma fórmula vencedora: o dependente tem de ser alguém com tendência para ficar viciado. Todos conhecemos pessoas imunes a modas que outros consideram irresistíveis, e indivíduos que convertem, pelo contrário, todas as suas paixões em necessidades ardentes. Em quase todas as classificações dos psicólogos, surgem dois grandes grupos: o das pessoas com muita energia, espontâneas, que agem entusiasticamente e sem refletir demasiado, os impulsivos, e o dos indivíduos com menos reflexos, mais sossegados e tranquilos, que hesitam antes de agir e procuram ver todas as facetas de uma decisão, os refletidos. Trata-se de uma característica da personalidade com uma evidente base neurobiológica: os estudos associam ambas as índoles à quantidade de ligações entre a amígdala (encarregada do autodomínio) e o córtex cerebral (de onde provém a tomada de decisões). O resultado é que os primeiros correriam maior risco de ficar obcecados com algo. Se esse algo lhes produz um reforço imediato (recorde-se que todos os fenómenos referidos funcionam com uma primeira abordagem de recompensa fácil), terão tendência para ignorar as possíveis consequências a médio

cima), que consiste basicamente em alinhar rebuçados. Segundo os especialistas, este tipo de jogos vicia porque passar de nível produz uma pequena libertação de dopamina, neurotransmissor associado ao prazer e à dependência, Além disso, o acaso (associado à surpresa) torna-os mais irresistíveis: conseguiremos fazer melhor da próxima vez?

prazo. Iniciado o comportamento, tendem a repeti-lo de forma incontrolável.

SINTOMA DE PENSAMENTO ÚNICO

Outros investigadores consideram que a predisposição para ficar obcecado já constitui, por si só, um traço de caráter que não necessita da predisposição para se deixar levar pelo primeiro impulso. Em vez disso, os afetados procuram a ordem: são meticulosos e perseverantes nos seus objetivos, embora estes sejam considerados questões pouco importantes pelos outros. Duvidam, frequentemente, de terem conseguido acertar, e verificam sistematicamente os seus atos, o que os leva a ser parcimoniosos, isto é, a desenvolver determinadas tarefas com uma calma que pode chegar a exasperar aqueles que os rodeiam. Existem condicionantes fisiológicas que nos situam nessa categoria de indivíduos. Segundo um estudo publicado por uma equipa de investigadores japoneses em 2011, a rede frontoparietal (a zona cerebral relacionada com a atenção) é ativada com maior intensidade nas pessoas obsessivas quando reagem a um estímulo. Além disso, também apresentam uma maior ligação entre aquela zona e a região motora, o que explicaria a necessidade premente de agir. Interessante

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ALAMY

Preocupar-se demasiado com a limpeza é um dos comportamentos obsessivos mais comuns.

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e pretende descobrir se tem tendência para deixar que determinadas tarefas lhe absorvam todo o seu tempo e esforços, analise as frases que se seguem, atribuindo-lhes uma pontuação consoante se identifique mais ou menos com o enunciado: 1 significa que não se aplica a si em absoluto; 2, que apenas se verifica em raras ocasiões; 3, que se aplica quase sempre; 4, que está totalmente de acordo com a frase. 1 – Custa-me imenso desligar do trabalho se não tiver um passatempo que ocupe a minha mente por completo. 2 – Vêm-me à cabeça pensamentos ou imagens desagradáveis que só desaparecem quando me dedico a determinada atividade. 3 – Perco tempo em tarefas que não são muito importantes, mas que tento executar na perfeição. 4 – Tenho necessidade de manter certos objetos de uso diário na ordem que estabeleci previamente. 5 – A ansiedade toma conta de mim quando deixo de fazer certas atividades que executo diariamente. 6 – Inquieta-me a possibilidade de acontecerem coisas horríveis por minha culpa. 7 – Quando me entusiasmo com certo desafio, os outros objetivos da minha vida desaparecem. 8 – Senti-me forçado a realizar determinados atos (comprovar se algo está mesmo fechado, tocar em objetos, contar peças de roupa...) repetidamente, e custou-me parar de fazê-lo. 9 – Dediquei mais de duas horas por dia a atividades que considerava a priori um simples hobby. 10 – Vivo angustiado pelo que possa acontecer no futuro. 11 – Quando meto uma coisa na cabeça,

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prefiro isolar-me dos outros durante dias inteiros. 12 – Fujo de certas atividades e ambientes porque sei que acabaria por ficar viciado. 13 – Pratico diariamente rituais compulsivos. 14 – Sinto-me vazio quando abandono uma atividade a que me dedico há algum tempo. 15 – A minha vida social reduz-se às pessoas que partilham comigo determinada paixão. RESULTADOS Some os pontos atribuídos e veja onde se situa a sua queda para a dependência. Até 32 pontos – Tem poucas probabilidades de arranjar uma obsessão. A razão para o risco reduzido de ficar viciado em algo reside na sua capacidade de distanciamento e no baixo nível de ansiedade. Contudo, também existe uma desvantagem: será difícil entusiasmar-se. Procure diversificar os seus interesses, pois não encontrará, provavelmente, uma atividade única que desperte a sua paixão e lhe sirva de motivação. Entre 33 e 42 pontos – Encontra-se no invejável meio termo: é capaz de ficar fascinado por certos assuntos e dedicar-lhes uma grande quantidade de energia, mas poucas vezes se transformam em ideias fixas. Canalize de forma inteligente essa aptidão para reservar as suas forças para aquilo que realmente merece a pena. Mais de 42 pontos – É potencialmente obsessivo. Esse traço de caráter possui as suas vantagens: permite-lhe lutar por objetivos que podem parecer quase intangíveis aos outros, e fará tudo o humanamente possível por alcançá-los. Porém, também deverá esforçar-se por não descuidar as restantes facetas da sua vida quando se envolve em algo. Prepare-se para uma deceção perante um possível resultado negativo, depois de ter investido todas as suas energias.

REUTERS

Tem tendência para ficar obcecado?

Por último, observou-se nesses indivíduos uma fraca interligação na denominada “rede por defeito”, os neurónios que trabalham quando não estamos a pensar em coisas concretas. O último fator é significativo: quando se procura tratar pessoas com uma obsessão, o trabalho mais árduo consiste em ajudá-las a desligar, a deixar de pensar continuamente no mesmo. O próprio esforço de autocontrolo para alcançar um estado de repouso psíquico provoca, paradoxalmente, stress cognitivo. Por isso, diversas técnicas terapêuticas procuram reconduzir a mente para outra via, em vez de interromper abruptamente o pensamento circular. Um exemplo simples é induzir (através da hipnose, por hipótese) o paciente a imaginar um rio pelo qual navega a certa velocidade enquanto observa como a corrente leva todas as folhas que caem das árvores nas margens. Depois, pede-se que faça o mesmo com a sua obsessão: que a transforme numa esfera que cai ao rio e é arrastada pela corrente até se perder, pouco a pouco, no horizonte. Trata-se de perceber a sensação de alívio que sentimos quando os problemas fluem a uma velocidade adequada. O psicólogo Mihály Csikszentmihalyi, da Universidade de Claremont (Califórnia), propôs uma teoria para explicar por que motivo é tão importante conseguir esse tipo de paz. Segundo Csikszentmihalyi, conseguimos, por vezes, alcançar o que denominou o “estado flow”.


Vigorexia, uma obsessão atual

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influência cultural nas nossas obsessões é inegável. As manias presentes em determinada época ou lugar são incompreensíveis noutra. Na sua História Íntima da Humanidade, o historiador britânico Theodore Zeldin surpreende-nos com uma reflexão paradoxal. Segundo o autor, no México dos astecas, a maior parte dos escravos oferecia-se voluntariamente para sê-lo. A causa é que não tinham conseguido gerir a sua obsessão pelo patoli, o jogo de gamão nacional. Naquela época, todos aprendiam a jogar desde a infância e a apostar os seus bens. Quando chegavam à maturidade, perante a quantidade de dívidas acumuladas, preferiam oferecer-se como servos aos grandes senhores de que ser condenados à morte.Atualmente, a compulsão mais incompreensível para quem não está afetado é, talvez, a vigorexia, distúrbio psicológico que, embora ainda

A obsessão torna-se problema quando afeta o quotidiano Nessa altura, encontramo-nos completamente absortos numa atividade, mas de forma descontraída e sem tensão. É necessário que se verifiquem determinadas condições: a sensação de equilíbrio entre o desafio intelectual que implica e as nossas capacidades; uma diminuição da autoconsciência (a observação de nós próprios); a perceção de que vamos deixando para trás cada passo até chegar ao final, etc. Quando nos sentimos assim, o tempo passa sem nos apercebermos disso. Pois bem, os obsessivos resistem ao estado flow. Regra geral, todas as tarefas lhes parecem difíceis, permanecem em contínua vigilância de si próprios e são excessivamente perfecionistas. Em que momento deve um profissional intervir? Não há um limite claro: quando o paciente manifestar sofrimento e estiver limitado pelas suas compulsões. Como qualquer traço da personalidade, a tendência para ficar obcecado tem as suas vantagens e desvantagens. Exemplo das primeiras: muitos cientistas insignes foram famosos pela sua meticulosidade e pela mania da ordem. Efetivamente, alguns estudos chegam à conclusão de que esse ofício é dos que mais podem chegar a absorver o pensamento. Em 2012, investigadores chineses analisaram

o tráfego em determinadas páginas da internet com conteúdos científicos (visitas e descargas de documentos), e comprovaram que os utilizadores praticamente não descansavam fora do horário laboral. Verdadeiros workaholics, procuram informação sobre os temas que estão a estudar a altas horas da noite ou durante os fins de semana, sem fazerem pausas nem para comer.

TAREFAS BANAIS

Contudo, o excesso de zelo pode ultrapassar o âmbito laboral. Muitas pesonalidades destacadas em diversos campos (o realizador Woody Allen, o futebolista David Beckham ou o cantor Michael Jackson…) também se tornaram famosos por comportamentos que roçam, ou mesmo se integram por completo, no distúrbio obsessivo-compulsivo (DOC). Este problema psicológico seria uma versão extrema da personalidade obsessiva. Os afetados acabam por sentir o tempo a escorrer por entre os seus dedos enquanto se consagram a tarefas banais, mas não conseguem resistir: lavam as mãos dezenas de vezes por dia, verificam reiteradamente se fecharam o gás ou não deixaram a chave na porta...

não tenha sido definido nos manuais convencionais de saúde mental, ameaça tornar-se um dos principais problemas psiquiátricos do futuro. Os vigoréxicos possuem uma imagem distorcida de si próprios que os leva a considerar sempre que não estão em forma. As expectativas irreais acabam, em muitos casos, num corpo desproporcionado, pois adquirem uma fisionomia que não corresponde à sua estatura e constituição física. Associam beleza ao aumento da massa muscular, e dedicam a maior parte do dia ao ginásio e a uma alimentação rica em proteínas. O quadro agrava-se quando recorrem ao consumo de anabolizantes ou esteroides para acelerar o processo. Além do isolamento social que pode acarretar, alguns estudos mostram que a vigorexia aumenta o risco de sofrer lesões hepáticas e cardíacas, disfunção erétil, problemas de fertilidade e cancro da próstata.

Estes rituais contribuem, inicialmente, para dominar o mal-estar produzido por certas imagens de caráter sinistro (ver a família morta por terem sido descuidados), por ideias (“não vou ter sorte se não levar a minha camisa azul”), ou por impulsos (“tenho vontade de atropelar aquele peão!”), que surgem de forma imprevista e intrusiva. O problema das pessoas com DOC é que acabam por viver como escravas do medo de não terem executado os atos repetitivos e, pouco a pouco, esse receio afeta as suas relações pessoais e dificulta a vida laboral. Qual é, então, a diferença entre uma pessoa ofuscada pela nova versão de um jogo e os hikikomori, adolescentes japoneses que se fecham no quarto e não saem de lá durante anos? Entre um investigador que dedica horas e horas, durante várias semanas, a concretizar uma descoberta, e o típico “cientista louco” da banda desenhada? Entre quem não se aproxima dos seus semelhantes com medo dos micróbios e o indivíduo que acabou de ler um texto sobre os riscos de contágio de determinada doença e está muito preocupado? A diferença reside, precisamente, no grau de sofrimento e na quantidade de experiências de vida que a obsessão faz o indivíduo perder. Tal como acontece com qualquer estratégia vital, convém recordar aqui o lema do médico e alquimista suíço Paracelso: “Tudo é veneno. Depende da dose.” L.M.

Interessante

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História De Cleópatra ao Dr. Veneno

Figuras TÓXICAS Os assassinos mais frios e sofisticados recorreram a substâncias muito diferentes cuja administração se revelou fatal. Eis as suas histórias.

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lém da estricnina, são conhecidos mais de 5000 alcaloides, que podem ser encontrados, na sua maioria, no mundo vegetal. Alguns são tão populares como a cafeína, a nicotina ou os derivados do ópio. A sua localização na planta varia. Na pimenta negra ou na cicuta, concentra-se no fruto; na árvore da quina, na casca que cobre o tronco; na semente da noz-vómica, encontramos a estricnina. O poder medicinal das sementes de noz-vómica (Strychnos nux-vomica), uma árvore originária da Índia, já era conhecido dos médicos da antiguidade. Foi com elas que confecionaram tinturas com alegadas propriedades estimulantes e potenciadoras das capacidades visual e auditiva. Foram também utilizadas pelo médico pessoal de Hitler, Theodore Morell, uma estranha personagem fascinada por medicamentos pouco convencionais, descrito pelo historiador Hugh Trevor-Roper como “um homem gordo, velho, de gestos rasteiros, linguagem pouco articulada e os hábitos higiénicos de um porco”. O clínico costumava receitar ao ditador comprimidos de estricnina e beladona para aliviar a dor. Proibida na Europa desde 1994, a estricnina foi utilizada a torto e a direito, na época vitoriana, pelo médico e jogador William Palmer, que a servia dissolvida em brandy, para dissimular o sabor. Graças ao alcaloide, viu-se livre de agiotas, corretores de apostas e credores, além da mulher, do irmão, da sogra e de quatro dos seus filhos quando tinham poucas semanas de vida. Não é de estranhar que Charles Dickens lhe tenha chamado “o maior vilão que jamais pisou Old Bailey”, o Tribunal Central Criminal de Londres. Contudo, o veneno preferido dos séculos XV a XVII foi o arsénico. Os Bórgia, os Médici

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e os Sforza eram fiéis adeptos da cantarela ou acquetta di Perugia, cidade em que o arsénico era misturado com vísceras secas de suíno. O veneno provocava a morte em 24 horas, depois de um sofrimento terrível das vítimas. Outra poção letal era a água-tofana, ou acquetta di Napoli, uma combinação de arsénico com cantárida ou mosca-espanhola (Lytta vesicatoria), um coleóptero com aplicações medicinais. Tanto a origem como a composição exata da beberagem são incertas, mas crê-se que bastava deitar quatro a seis gotas em água ou vinho para causar a morte. Muitos historiadores afirmam que foi concebida por Giulia Toffana, uma atraente química que aprendeu o ofício nos laboratórios de diferentes farmacêuticos. Tornou-se famosa por vender venenos às mulheres, sobretudo as de baixa condição social com maridos problemáticos. Detida pela Polícia Pontifícia, confessou, sob tortura, ser responsável pela morte de mais de 600 homens, em Roma, entre 1633 e 1651. Foi executada, juntamente com a irmã e três cúmplices, na praça Campo de’ Fiori, em julho de 1659.

CEIAS DE ALTO RISCO

Não há dúvida de que o Renascimento italiano foi a época dourada dos envenenadores. Brilharam, nesse campo, os Bórgia, naturais de Borja (Saragoça), que se estabeleceram em Játiva e Gandia (Valência) antes de Alfons de Borja i Cavanilles ter sido nomeado papa, em 1455. Toda a família dominava a arte de envenenar, e qualquer pessoa que fosse convidada para um banquete oferecido pelos Bórgia corria o risco de começar a sentir-se gravemente doente passadas algumas horas. Todavia, não eliminavam apenas quem representava um

problema ou um obstáculo para o clã. Por vezes, os comensais eram simples cobaias que serviam para testarem novas misturas. A forma de administrar o agente tóxico era através dos alimentos, muito condimentados para disfarçar eventuais sabores estranhos. Catarina de Médici (1519–1589) foi também versada nesses mesteres. Casada com Henrique de Orleães, levou para França o seu cortejo de ajudantes, entre os quais se encontravam astrólogos e parfumeurs, dois ofícios que, por vezes, serviam para ocultar a sua verda-


Mais um pouco? Sentar-se à mesa da família Bórgia, perita em poções fatais, não devia ser muito tranquilizador, como mostra o quadro Um Copo de Vinho Com César Bórgia (1893), de John Collier.

deira ocupação de criadores de venenos. Mal Catarina chegou à sua nova residência, diversas pessoas começaram a morrer sem explicação, talvez graças ao brilhante uso de uma das suas substâncias preferidas, o arsénico. A sua fama entre os franceses foi de tal ordem que em breve a palavra italien se transformou em sinónimo de empoisonneur. O envenenador preferido de Catarina era René, o Florentino, assim designado em honra da cidade onde aprendera o ofício. Chegou a dizer-se que teria sido o responsável pela morte

Três supertóxicos

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rovêm da natureza (raiz de mandioca, noz-vómica e rícino, respetivamente) e os seus efeitos são assustadores. Nem tudo o que é natural faz bem à saúde... Cianeto – Vegetal ou sintético, é hoje utilizado como inseticida. Age por ingestão ou inalação, e a dose letal é de 5 miligramas por quilo. O seu antídoto é o nitrato de sódio.

Estricnina – Produz contrações e espasmos nos músculos torácicos, até causar asfixia. A dose mortal é de 2,3 mg/kg. Não tem antídoto. Rícino – É o veneno vegetal mais potente. Doze microgramas por quilo são suficientes para matar uma pessoa. Produz hemorragia intestinal. Não tem antídoto. Interessante

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Foi no século XIX que surgiu a toxicologia científica de Joana III de Navarra, através do envio de um par de luvas perfumadas, impregnadas de um líquido letal. O rumor, que hoje se sabe ser falso, inspirou Alexandre Dumas (pai) a escrever o romance A Rainha Margot.

A MARQUESA PARRICIDA

Já nos primeiros anos do século XVII, a fama coube a Antonio Exili, cujo verdadeiro nome talvez fosse Nicolo Egidi (ou Eggidio). Só chegaram aos nossos dias alguns fragmentos da sua vida. Iniciou a carreira como alquimista, mas, a partir de certa altura, deixou de procurar o elixir da eterna juventude e acabou a criar poções letais. Requisitado por uns e temido por outros, percorreu diferentes cortes europeias, do Vaticano ao Báltico, a vender os seus serviços. Pensa-se que foi o envenenador contratado por Olimpia Maidalchini, cunhada do papa Inocêncio X e cuja influência nos assuntos vaticanos era tal que chegou a ser conhecida como “a papisa”. Quando Exili partiu para França, em 1663, o governo ordenou a sua detenção e foi encarcerado na Bastilha. Ali, crê-se que se tornou amigo de Godin de Sainte-Croix, o amante da marquesa de Brinvilliers, preso pelo poderoso pai da dama após descobrir que mantinham um affaire. Godin aprendeu com Exili a fórmula da água tofana, que a marquesa utilizaria depois para se desfazer do pai e dos dois irmãos, entre outros. Após três meses na prisão, Exili foi solto graças às influentes amizades que tinha na corte e viajou para Inglaterra. Foi o processo contra a marquesa de Brinvil­ liers, em 1675, que desencadeou o chamado “assunto dos venenos”, um grande escândalo que atingiu desde a alta sociedade aos círculos mais próximos do rei Luís XIV e que conduziria a 36 execuções, entre 1677 e 1682. A da marquesa foi a primeira e especialmente cruel. Foi-lhe aplicada a tortura da água (obrigaram-na a beber mais de sete litros), cortaram-lhe a cabeça e o corpo foi queimado, amarrado a uma estaca.

LEITE PARA PREVENIR

O alcance do escândalo está bem patente no número de alquimistas e adivinhos julgados na época: mais de meia centena apenas em Paris. Entre eles, destaca-se Catherine Deshayes, conhecida como la Voisin, que lia cartas e, além de poções de amor, preparava venenos. Foi condenada à fogueira por bruxaria. O pânico de se poder morrer intoxicado estendeu-se como uma praga pelas ruas de Paris, onde quase qualquer óbito era considerado suspeito. Claro que nem todos os que sabiam alguma

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coisa de química alinhavam pelo lado negro. Christophe Glaser foi um químico suíço conhecido por criar antídotos para os venenos. A sua especialidade era a teriaga, um composto que incluía uma mistura de ópio e de outras drogas; de facto, o preparado podia conter até setenta ingredientes, incluindo carne de víbora. O leite era outros dos antídotos que aconselhava; daí que se bebesse em grandes quantidades na corte, com medo de que a comida escondesse alguma surpresa desagradável. Curiosamente, Glaser foi acusado de ter vendido arsénico à marquesa de Brinvilliers. Felizmente, após passar algum tempo na Bastilha, os juízes comprovaram a sua inocência e libertaram-no. Não é de estranhar que quase todo o conhecimento sobre o tema, acumulado durante séculos de intrigas palacianas, se tenha perdido nas brumas do segredo. Contudo, é possível indicar a data do início do seu estudo científico, quando o farmacêutico alemão Friedrich Wilhelm Adam Sertürner conseguiu isolar a morfina do ópio, em 1804. A moderna toxicologia nasceria pouco tempo depois, em 1818, por ocasião da publicação do Traité des Poisons, de Mateu Orfila, um espanhol da ilha de Menorca naturalizado francês. O principal problema que a justiça enfrentava era ser preciso encontrar algum vestígio na vítima para saber se tinha sido envenenada. Dado que o agente tóxico mais comum na época era o arsénico, o químico escocês James Marsh concebeu, em 1836, uma técnica que podia detetar a sua presença no organismo. Denominado “teste de Marsh”, foi utilizado num julgamento passado três anos, durante o célebre processo contra Marie-Fortunée

Lafarge pelo assassínio do marido. Graças ao depoimento de um criado, que vira a senhora da casa deitar um pó branco na bebida deste, ela pôde ser acusada. Uma busca à casa acabou por encontrar arsénico, mas Marie alegou que era veneno para os ratos. Foi Orfila que demonstrou que havia também vestígios do composto letal no corpo do pobre Charles Lafarge, que adoecera de forma misteriosa e cujos sintomas se foram agravando até morrer. Declarada culpada, Marie seria a primeira pessoa a ser condenada graças à ciência toxicológica.

MÉDICO NA FORCA

Outra das substâncias estudadas a fundo naqueles tempos foi a aconitina, um alcaloide extraído do acónito, planta da família das ranunculáceas, que já era usada nas antigas guerras da Europa e da Ásia para envenenar as reservas de água do inimigo. Durante a Idade Média, foi associada à bruxaria, e os curandeiros utilizavam-na para tratar a dor de forma tópica. No entanto, havia um risco. Se excedessem a dose, podiam provocar uma paragem cardíaca no doente, o que convertia a substância em algo muito perigoso. Em dezembro de 1881, um médico norte-americano residente em Inglaterra, George Henry Lamson, ajudado pela irmã, preparou uma tarte de frutas com o veneno destinada ao cunhado, Percy John, para poder ficar com uma herança. O curioso é que Percy, hemiplégico, sentiu uma forte dor de cabeça antes de provar o doce. Não devia confiar muito no cunhado, pois recusou os comprimidos que este lhe ofereceu. Percy morreu e Lamson já se imaginava com


Sequelas da dioxina

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ANATOLIY MEDZYK / GETTY

m 2004, o líder da oposição ucraniana, Viktor Yushchenko, foi envenenado com dioxina, um composto que produz desde danos na pele a lesões na tiroide. Embora tenha acumulado uma concentração dez mil vezes superior à tolerada, sobreviveu. Pele – Em poucas semanas, torna-se mais oleosa e surgem borbulhas, pontos negros, calosidades e quistos sebáceos. Olhos – Diversos problemas, como inflamação da conjuntiva e infeções. Pigmentação – Alteração da cor da pele, que escurece. Queratina – A acumulação excessiva desta proteína causa hiperqueratose: a epiderme torna-se mais áspera e adquire um tom amarelado.

os bolsos cheios de dinheiro, mas cometeu um erro que o levaria à forca. Pensou que a aconitina não podia ser detetada, pois era o que ouvira dizer a um professor de medicina nos tempos de estudante. O assassino não imaginava que a ciência o pudesse apanhar, nem que a toxicologia tivesse avançado o suficiente para o denunciar quando matou o cunhado.

UM CARACOL NO MUNDO DO CRIME

Com a chegada do século XX, o desenvolvimento das substâncias sintéticas colocou em apuros os toxicólogos, que tinham relativamente sob controlo as análises para deteção dos clássicos arsénico, estricnina e cianeto. Contudo, encontrar vestígios de veneno nem sempre era suficiente para condenar alguém. Um exemplo extraordinário foi o de Marie Besnard, acusada de envenenar treze familiares para ficar com a sua fortuna. Acusada em três ocasiões, não se conseguiu provar a sua culpa. Morreu em 1980, aos 86 anos. Se foi responsável pelas mortes, levou o segredo para o túmulo. Atualmente, há uma enorme variedade de compostos tóxicos. Podem ser extraídos de plantas, como acontecia antigamente, mas também de moluscos como o caracol marinho Conus geographus. Em 1935, na ilha Hayman, perto da costa australiana, um jovem que se entretinha a tentar introduzir uma faca num destes animais foi picado na palma da mão. De imediato, a picada provocou entumescimento, lábios inchados e visão enevoada. Em trinta minutos, as pernas ficaram paralisadas e, passado uma hora, perdeu a consciência e mergulhou num estado de coma fatal. É possível encontrar, nas prateleiras das far-

mácias, muitas outras substâncias letais, como os sedativos comerciais e os barbitúricos, que foram também o método preferido dos suicidas até meados do século XX. Nos Estados Unidos, o número de mortes provocadas por barbitúricos foi multiplicada por doze em menos de vinte anos. O recurso ao veneno para acabar com adversários políticos também não desapareceu na era moderna. Em 1978, o dissidente búlgaro Georgi Ivanov Markov morreu quando lhe injetaram na perna uma microesfera com semente de rícino (Ricinus communis). Esta possui uma albumina, a ricina, que pode provocar um episódio de gastroenterite com desidratação e graves lesões no fígado e nos rins. O óleo de rícino também é extraído das referidas sementes, mas elas são prensadas e aquecidas antes, para destruir a ricina.

ASCENSÃO E QUEDA DO DR. VENENO

Outro caso foi o do político Viktor Yuschenko, presidente da Ucrânia entre 2005 e 2010, envenenado, em 2004, com 2,3,7,8-tetracloro­ dibenzodioxina (composto orgânico presente no agente laranja usado na guerra do Vietname), administrada, seguramente, por agentes pró-russos que se opunham à sua vitória eleitoral. Yuschenko confiava tão pouco nos hospitais do seu país que viajou para a Áustria para ser examinado. Embora não tenha morrido, a intoxicação aumentou as probabilidades de vir a sofrer um ataque cardíaco, cancro ou diabetes. O presidente chegou a apresentar a segunda maior concentração de dioxina encontrada numa pessoa viva. Milénios antes, Cleópatra fizera experiências

com escravos e prisioneiros para encontrar a substância perfeita no caso de querer suicidar-se. Testou o meimendro, rico em hiosciamina, e a beladona, mas pô-los de lado porque, apesar da rapidez de ação, produziam muitas dores. Eliminou a estricnina de imediato, tanto pelas convulsões como pelo esgar horrível que provoca geralmente no rosto da vítima, o que iria “estragar” o seu bonito cadáver. Embora se conte que Cleópatra optou por ser mordida por uma cobra egípcia, é possível que não seja inteiramente verdade, pois não se trata de uma morte pouco dolorosa. Em 2010, o historiador alemão Christoph Schaefer adiantou a hipótese de a última rainha do antigo Egito ter ingerido uma mistura de cicuta, acónito e ópio. Talvez Cleópatra tenha servido de inspiração ao bioquímico soviético Grigori Moissevitch Mairanovski, conhecido como “Dr. Veneno”. Durante o regime de Estaline, desenvolveu experiências com presos políticos e prisioneiros alemães e japoneses em cativeiro na Segunda Guerra Mundial. Objetivo? Encontrar um veneno incolor que matasse instantaneamente e não pudesse ser detetado em qualquer análise toxicológica ao sangue do cadáver. Testou derivados de gás mostarda, digoxina, tálio, ricina, colchicina, etc., e diferentes formas de administração: pela pele, nos alimentos, em injeções, na água potável... Cruel como poucos, se os voluntários se mantinham vivos passados quinze dias da ingestão do produto tóxico, mandava executá-los. Caiu em desgraça em 1951, foi detido e acusado de ser um espião a soldo dos japoneses, um nacionalista judeu e um ladrão de venenos, entre outras coisas. Quando foi libertado, em 1961, proibiram-no de se estabelecer em qualquer cidade soviética importante. Seja como for, morreu três anos depois, em circunstâncias misteriosas, talvez eliminado por ordem de Khrushchev, no esforço para apagar qualquer vestígio do estalinismo. M.A.S.

Interessante

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Economia

Coração vegetal. Dois camponeses da Costa do Marfim, o maior produtor mundial, extraem o conteúdo do interior dos frutos recém-colhidos de um cacaueiro, Theobroma cacao. A polpa branca e as sementes são ricas em açúcares, sais, pectina, ácidos orgânicos e proteínas.

Uma indústria que move milhões

A viagem do CACAU Das árvores da Costa do Marfim onde cresce a planta, passando pela colheita, pela fermentação, pela secagem e pelo transporte para a Europa, percorremos o ciclo completo da indústria. 92 SUPER


FOTOS: KADIR VAN LOHUIZEN

No ponto. A cor amarelada dos frutos indica que é o momento adequado para serem colhidos. Normalmente, há duas colheitas de cacau por ano, coincidindo com as épocas húmidas. Os agricultores, como Emile Ouedraogo (em primeiro plano) usam machetes para cortar os frutos.

Fim da jornada. Após mais um duro dia de trabalho, Emile regressa a casa, na aldeia de Kragui, com as suas duas mulheres e parte dos onze filhos, que o ajudam nas tarefas do campo. Nascido em 1956, no Burkina Faso, Emile emigrou em 1981 para o sudoeste da Costa do Marfim, onde possui e explora uma plantação com três hectares.

Interessante

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Ao sol. Ao longo da rua principal de Kragui, os apanhadores de cacau põem-no a fermentar e a secar. Após a fermentação, as sementes, inicialmente brancas, adquirem uma cor violácea, púrpura ou acastanhada (como na imagem), devido à presença de antocianinas. A cafeína é outra substância que aparece durante o processo.

O clima tropical húmido é fundamental para o cacaueiro

Último dia em África. Em São Pedro, segundo maior porto da Costa do Marfim, encontram-se as instalações da multinacional alimentícia Cargill. Ali se descarrega o cacau, que tem de passar um controlo de qualidade, antes de embarcar em direção à Europa.

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Setor em mudança. Um camião transporta sacos de cacau por uma estrada de terra batida. A pressão do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional obrigaram o país a empreender reformas na indústria, para regular as suas atividades e eliminar intermediários. Faina dura. Trabalhadores da cooperativa Ecamon carregam sacos de cacau seco, cada um com cerca de 60 quilos, para os camiões. Os camponeses da Costa do Marfim exigiram há dois anos ao estado um preço mínimo de 1,4 dólares por quilo para este produto cultivado por 900 mil agricultores do país, de que dependem 3,5 dos seus 22 milhões de habitantes.

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chocolate move uma indústria global de milhares de milhões de euros e é um dos produtos comestíveis mais desejados, devido ao seu sabor peculiar e às suas propriedades saudáveis. No entanto, tem um lado tão obscuro como a sua cor: a matéria-prima a partir da qual se obtém é um bem escasso para as necessidades das fábricas chocolateiras do primeiro mundo, e com cuja plantação e colheita sobrevivem milhões de camponeses de países pobres que cumprem duras jornadas de trabalho com salários miseráveis. De facto, esta árvore, a Theobroma cacao, apenas cresce e se cultiva nuns quantos países de África, da América Central e do Sul e da Ásia. Os maiores produtores mundiais são a Costa do Marfim (38 por cento), o Gana (19%), a Indonésia (13%), a Nigéria (5%), o Brasil (5%), os Camarões (5%), o Equador (4%) e a Malásia (1%). Estes oito países asseguram 90% da produção mundial, e são também os principais exportadores, exceto o Brasil e a Malásia, onde o consumo interno absorve a maioria da produção. A indústria emprega milhões de pessoas, dos agricultores aos intermediários que compram o cacau nos países de origem e o transportam Velho mundo. Armazéns da Cargill Cocoa & Chocolate em Amesterdão. Os Países Baixos são um dos principais fabricantes mundiais de chocolate, juntamente com a Bélgica, a Suíça, a Alemanha, França e os Estados Unidos.

até aos fabricantes de chocolate, situados quase todos na Europa. Kadir van Lohuizen (nascido nos Países Baixos, em 1963), autor das fotos deste artigo e repórter especializado em conflitos bélicos, viajou até à Costa do Marfim para conhecer em primeira mão o mundo do cacau. Conviveu com dois agricultores da aldeia de Kragui e viu as semelhanças entre as suas vidas (muitos filhos, casas modestas), apesar das diferenças no rendimento laboral: um deles colhe três vezes mais cacau do que o vizinho. “Isso deve-se à formação recebida para melhorar a produtividade, mas nem assim consegue uma economia decente. É um pouco menos pobre do que o outro, só isso”, diz o fotógrafo.

RISCO GLOBAL

Segundo os relatórios da FAO, a agência das Nações Unidas para a agricultura e a alimentação, a produção de cacau atravessa uma situação de risco global. Se não forem introduzidas mudanças na cadeia de produção, os cultivadores não conseguirão satisfazer a crescente procura de matéria-prima. Hans Perk, diretor do programa para o cacau da organização não governamental Solidaridad (http://www.cocoa-solidaridad.org), explica: “É preciso investimento. Muitos agricultores aceleram o processo de fermentação e secagem, fundamental para obter mais e melhor chocolate, e assim vender mais cedo a colheita.” A realidade é que, apesar de a Costa Interessante

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Pó raro. Do porto de Amesterdão, o cacau em pó é levado em barcos para as fábricas de processamento, nas margens do rio Zaar. Ali será convertido em massa de cacau, uma pasta que conserva as suas gorduras naturais e que, misturada com outros ingredientes, como açúcares, leite ou frutos secos, servirá para fazer os chocolates.

Em série. A fábrica da Mars em Veghel, na região holandesa do Brabante, foi fundada em 1963, quando a marca, originária dos Estados Unidos, quis expandir-se à Europa. Hoje, é uma das maiores do mundo, produzindo milhões de produtos a todas as horas do dia e da noite.

O aumento do consumo tornou insuficiente a produção mundial do Marfim ter estabelecido um preço mínimo para o quilo do produto, o rendimento dos camponeses continua a ser exíguo. Desde a sua descoberta, pelos maias, o chocolate foi universalmente apreciado. Antioxidante, antidepressivo, considerado afrodisíaco en algumas culturas, é hoje um complemento básico da dieta e até se aplica em tratamentos de beleza, o que fez disparar a procura. Além disso, mudaram os gostos dos consumidores, que se inclinam agora mais para o chocolate negro, mais puro. A produção mundial de cacau ultrapassou em 2013 os quatro milhões de toneladas, um terço a mais do que se produzia apenas dez anos antes! Mesmo assim, não chega. Segundo o Departamento de Economia e Estatística da Organização Internacional do Cacau (ICCO), a entrada no mercado de consumo de países como a Índia fará subir ainda mais os preços. Talvez em breve o chocolate se torne também um ouro negro, e que parte dessa riqueza chegue a quem o apanha. L.O.

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Artesãos. O chocolateiro Robert van Velze e a sua mulher, Deborah Kilroy, elaboram e vendem bombons artesanais na sua loja de Amesterdão, a Van Velze’s. No seu caso, usam cacau proveniente de uma quinta da Costa Rica que pratica agricultura sustentável.


Marcas & Produtos

Caixa automática

O

novo Smart Fortwo já se encontra disponível para encomenda com a caixa automática de dupla embraiagem e seis velocidades, estando previstas as primeiras entregas no em março. A caixa automática estará disponível como equipamento opcional em combinação com as linhas de equipamento Passion, Prime e Proxy, por mil euros. A caixa de dupla embraiagem, única no segmento dos microcarros, oferece uma mudança de velocidades particularmente suave, sem qualquer interrupção na potência de tração. O Smart Fortwo equipado com caixa automática acelera dos 0 aos 100 km/h em 15,1 segundos e atinge uma velocidade máxima de 151 km/h. O consumo de combustível combinado é de 4,1 litros aos 100 km, o que corresponde a um valor de CO2 de 94 gramas por quilómetro.

Visual ciclista CINQUENTA

Grands crus descafeinados

NOITES DE LUXO & SPA

O

s grands crus Nespresso são já sinónimo de uma das melhores experiências de café. Por que razão os momentos descafeinados haveriam de ser diferentes? Os coffee experts da Nespresso debruçaram-se sobre três dos grands crus mais populares (um Intenso, um Espresso e um Lungo) e criaram os seus equivalentes, em versão descafeinada. Cada Grand Cru Volluto Decaffeinato, Arpeggio Decaffeinato e Vivalto Lungo Decaffeinato foi especialmente concebido para oferecer uma experiência semelhante, em gosto e aroma, à dos seus grands crus originais alter-ego. Isto significa que os amantes de café podem agora desfrutar do seu momento Nespresso, na companhia dos seus aromas preferidos, sem restrições, a qualquer hora do dia ou da noite. Como é possível manter a qualidade excecional dos grands crus Nespresso descafeinados? As ricas notas aromáticas do café verde são cuidadosamente preservadas durante o processo de descafeinação, respeitando assim a natureza do grão de café, que mantém o seu perfil e a sua riqueza aromática. Por outro lado, e como cada grand cru Nespresso possui um perfil sensorial próprio que compreende a intensidade, o amargor, a torrefação, a acidez e o aroma, o grande desafio para os coffee experts Nespresso foi manter os perfis sensoriais inalterados, quer se trate de descafeinados ou não.

A REALIDADE SUPERA A FICÇÃO

Compra um produto

ou

e até 12 de Março habilita-te a ganhar uma das

50 NOITES DE LUXO & SPA. Participa em facebook.com/durexportugal ou facebook.com/veetportugal Os preservativos Durex são dispositivos médicos para fins contracetivos. Durex Play Lubrificantes e Durex Play Geles de Massagem são dispositivos médicos que suavizam a secura vaginal e os incómodos íntimos e são compatíveis com preservativos, no entanto não são contracetivos e não contêm espermicida. Leia atentamente a rotulagem e as instruções de utilização. Se sentir irritação ou desconforto interrompa o seu uso. Em caso de persistência dos sintomas, consulte o seu médico. Em caso de sensibilidade ao látex consulte o seu médico antes de utilizar os preservativos. Evite o contacto com os olhos. Se necessitar de lubrificação adicional com excessiva frequência, consulte o seu médico. Os preservativos Durex Placer Prolongado e Durex Mutual Clímax não devem ser utilizados quando qualquer dos parceiros sofrer de problemas respiratórios. Os produtos Veet são produtos cosméticos e de higiene corporal.

50 noites de luxo

A

s marcas Durex e Veet acabam de lançar uma campanha promocional: na compra de um produto Durex ou Veet, poderá habilitar-se a ganhar uma das 50 noites de luxo & spa que as marcas têm para oferecer. Para celebrar o Dia dos Namorados, decorrerá até dia 12 de março um passatempo nas páginas da Durex e da Veet no Facebook, onde poderá candidatar-se a vários prémios. Para se habilitarem a ganhar, os participantes devem comprar um produto Durex ou Veet (durante a campanha), entrar na área específica da página da marca no Facebook, escolher uma dica no calendário 50 Ways to Play e partilhá-la no seu mural. Ao fazê-lo, saberá automaticamente se foi um dos premiados. As duas marcas vão oferecer 50 noites em alojamento duplo com pequeno-almoço e tratamentos de spa.

N

esta temporada, a coleção Napapijri Authentic, dividida em dois temas, inspira-se no mundo do ciclismo e transforma-se no guarda-roupa ideal para um estilo de vida ativo. O primeiro tema apresenta pormenores do mundo do ciclismo, com calças de comprimento pelo joelho, inserções refletoras, fechos funcionais e estampagens de borracha em tecidos de alta performance. O icónico casaco Rainforest é reinventado com um bolso de trás reflexivo, enquanto nas peças de nylon são introduzidos os forros com acabamentos em jersey, oferecendo o máximo de conforto para qualquer atividade. O segundo tema reflete um estilo de vida mais descontraído, projetado especificamente para momentos de lazer. Tem como inspiração o histórico da marca, as cores e a bandeira norueguesa, focando-se sobretudo em estilos casuais de casacos de capuz, ideais para relaxar e apreciar as coisas boas da vida. Interessante

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YSABEL M. VICTORIANO

Foto do Mês

Compensação florestal

Edições, Publicidade e Distribuição, Lda.

Para mitigar o impacto ambiental originado por uma nova pedreira, os habitantes das aldeias vizinhas da barragem de Wawa, nas Filipinas, decidiram plantar uma floresta de árvores de mogno. Os arredores da barragem são um ponto de atração da população da capital, Manila, que ali encontram condições mais amenas, durante os meses de calor intenso.

Conselho de Gerência Marta Ariño, Rolf Heinz, Carlos Franco Perez, João Ferreira Editor Executivo João Ferreira

Diretor Carlos Madeira (cmadeira@motorpress.pt) Coordenador Filipe Moreira (fmoreira@motorpress.pt) ­ fonso Colaboraram nesta edição Francisco Mota, Máximo Ferreira e Paulo A (colunistas), Alfredo Redinha, Elvira del Pozo, Francisco Jódar, I­sabel Joyce, Joana Branco, João Pedro Lobato, Joaquim Semeano, Jorge Nunes, Luis M ­ iguel Ariza, Luis Muiño, Luis Otero, Mario García Bartual e Miguel Ángel Sabadell. Assinaturas e edições atrasadas http://www.assinerevistas.com Sara Tomás (assinaturas@motorpress.pt) Tel.: 21 415 45 50 – Fax: 21 415 45 01

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Rua Policarpo Anjos, 4 1495-742 Cruz Quebrada-Dafundo

Redação: tel.: 21 415 97 12, fax: 21 415 45 01 Comercial: tel.: 21 130 90 67, fax: 21 415 45 01

Diretora de Publicidade Joana Pimenta Araújo (jaraujo@gjportugal.pt) Gestoras de contas Paula Duarte (mduarte@gjportugal.pt) e Susana Mariano (smariano@gjportugal.pt) Assistente Comercial Elisabete Anacleto (eanacleto@gjportugal.pt)

Impressão Sogapal – Rua Mário Castelhano Queluz de Baixo – 2730-120 Barcarena Distribuição Urbanos Press – Rua 1.º de Maio Centro Empresarial da Granja – 2525-572 Vialonga

Edição, Redação e Administração G+J Portugal – Edições, Publicidade e Distribuição, Lda. Rua Policarpo Anjos, 4 – 1495-742 Cruz Quebrada-Dafundo Capital social: 133.318,02 euros. Contribuinte n.º 506.480.909 Registada no Registo Comercial de Lisboa com o n.º 11.754 Publicação registada na Entidade Reguladora para a Comunicação Social com o n.º 118.348 Depósito legal n.º 122.152/98 Propriedade do título e licença de publicação Gruner + Jahr Ag & Co./G+J España Ediciones, SL Calle Albasanz, 15 – 28037 Madrid – NIPC D-28481877

Todos os direitos reservados Em virtude do disposto no artigo 68º n.º 2, i) e j), artigo 75.º n.º 2, m) do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos artigos 10.º e 10.º Bis da Convenção de Berna, são expressamente proibidas a reprodução, a distribuição, a comunicação pública ou colocação à disposição, da totalidade ou de parte dos conteúdos desta publicação, com fins comerciais diretos ou indiretos, em qualquer suporte e por quaisquer meios técnicos, sem a autorização da G+J Portugal - Edições, Publicidade e Distribuição, Lda., da Gruner+Jahr Ag & Co., da GyJ España Ediciones, S.L.S en C. ou da VISAPRESS, Gestão de Conteúdos dos Média, CRL. Edição escrita ao abrigo do novo acordo ortográfico


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