Ultimo Dia do Lobo em Salvaterra + Conto 1935/27

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Autor José Amaro (José Amaro D`Almeida)

Texto Recuperado - Jornal Vida Ribatejana * Nºs 2738, 2739 e 2740 Dezembro 1971


O Último Dia do Lobo em Salvaterra

Acontecimento verdadeiro, ocorrido entre 1935 e 1937 O Autor limitou-se a dar-lhe forma de Conto. Publicado no Jornal «Vida Ribatejana», nºs 2738-2739 e 2740 – Dezº. 1971 ******** Publicado pelo Autor Livro “Contos do Ribatejo” Com organização literária Distribuidor geral: EDITORIAL ORGANIZAÇÕES Largo Trindade Coelho, 9, 2º - Lisboa 2 1972



O ÚLTIMO DIA DO LOBO EM SALVATERRA

Á memória do meu tio/avô Manuel Amaro. Humilde serralheiro de ofício, Inteligente e bom.


A VISITA DE JOSÉ AMARO

No ano de 1973, em Maio, estava um dia bonito de Primavera, ao cair da tarde, na minha porta de casa, ouve-se bater três vezes na porta. Um senhor, de idade avançada e bem posto de vestuário, apresentou-se-me: Era o escritor, José Amaro (José Amaro D`Almeida), Entabulado um pequeno diálogo acompanhado de um apertar de mãos, lá me diz; “vivendo à longos anos em Lisboa, onde teve consultório. Quando criança, depois da idade escolar, veio até Salvaterra, aprender o oficio com seu tio/avô; Mestre Manuel Amaro, que tinha oficina de ferreiro, em Trás-Monturos, mesmo ali à curva para a capela real. O motivo da visita, Sabendo do meus interesse em “coisas” da história de Salvaterra e publicá-las nos jornais oferecia-me o livro “Contos do Ribatejo”, sua última edição. José Amaro, dizem uns, nasceu em Lisboa, na Mouraria, no dia 9 de Agosto de 1916, e faleceu naquela cidade a 28 de Agosto de 1976, sendo filho do beirão, António Almeida, e de Evangelina Nunes Amaro, ribatejana, de Almeirim, e bem cedo veio para a terra da mãe, para casa dos avós maternos. Depois de muito traquejar na vida, sempre estudando e já maduro de idade, licenciou-se e até foi professor no Instituto de Hidrologia, a par de estabelecido na capital, com um consultório, onde até fazia umas análises à urina, e aí detetava doentes com a


Diabetes. Outros, como o nosso conterrâneo José Sabino d`Assis, estabelecido em Salvaterra, ali junto à torre da Igreja, e que na sua meninice, foi aprendiz de ferreiro, na oficina ali ao pé da capela real, me disse um dia José Amaro, nasceu em Almeirim e tinha a viver em Salvaterra o tio – o mestre ferreiro; Manuel Amaro. José Amaro, vivendo a narrativa na primeira pessoa, descrevea como um conto, e publica-o em três artigos publicados no Jornal Vida Ribatejana, acabando por lhe dar forma literária em “ O Último Dia do Lobo em Salvaterra”, publicado no livro “Contos do Ribatejo – 1972. O livro esteve muitos anos na minha estante (divulgava periodicamente algumas das suas passagens, incluídas nos meus textos nos jornais e revistas em que colaborava), muito solicitado o seu empréstimo teve mau uso – ficando danificado. Para não se perder tão importante e única, documento cheia de uma originalidade de linguagem que o povo usava naquela época de 1935/37, nesta vila. O autor guardou-a bem depois de lhe dar forma literária, Assim. fascinado com os diálogos do texto “ O Último Dia do Lobo em Salvaterra”, acabei de tomar a decisão de aqui os transcrever para que não se perca. José Gameiro



Tim… Tim… Tim… - Atira mais p´ra baixo… canhoto, nã tás a ver o fito? - Lá vai mais uma! - Eh repá … ia sendo mêmo no tòtiço! - Eh jogada valente … tamos aqui tamos a apanhar os gajos. - O tento é deles mas quem bateu foi a gente. Tim… Tim… Tim… Horas seguidas jogava-se o chinquilho no quintal da taberna da Anunciada que ficava na Azinhaga Estreitinha, à banda do Arneiro. A parceirada. Gente do campo e dos ofícios, nas noites de verão à luz do gasómetro, ali batia a malha até ao último copo que dava para a sossega. - Eh repá, queres ir comigo sozinho à desforra? – lança o Zé Tasqueiro o desafio ao Mestre Manuel Amaro, habilidoso na arte de serralheiro e de mão feita a tombar as marcas e a ganhar partidas. - Cá Zé… inda queres ficar c`ô capote maior? – Paga mas é a celitrada e vai aprender!


Ninguém nace insinado, ateima coma mim… ateima até saberes. - Ninguém nace insinado… não é bem, ó Mestre Amaro interrompeu o Faneca, fiscal do selo que lhe dava para a intelectualidade quando já estava atravessado com a pinguinha –quem é que insinou o toiro a marrar? - Isso é qu`é conversa, o mêmo qu`insinou a gente a fazer filhos. O Faneca abriu mais os olhinhos piscos com um sorriso de satisfação de quem vais ter conversa com o famoso serralheiro tão bem abater o ferro como a conversar, só pelo discernimento e pouco saber de escola. Sentando-se à mesa redonda de pedra, defronte dele prosseguiu: - Os animais como nã têm com`à gente inteligência p`ra aprender, a natureza já lhes deu o saber todo naçario. Quando nacem já vêm a saber tudo o que é preciso sem aprender mai nada. O toiro vem logo a saber marrar, vem a saber cobrir a vaca e a pastar no campo sem comer ervas ruins. Não tem inteligência, vem logo preparado p`rà vida. - Ná!... És tanso… o qu`ele sabe não aprendeu, já sabia cando foi parido. Como o home tem inteligência mais c`os bichos é que tem que ser insinado e aprende a saber mais coisas.


A malta do chinquilho juntou-se à volta a saborear a copada e a discussão que para o meio, e em mesa redonda, já estava a atingir um alto nível. - Intão Mestre Amaro, quer dezer c`o toiro cando marra nã sabe marrar? - Cá Faneca… nã tejas torcido, sabe por que já sabia, nã foi à escola aprender a marrar. Isso não é saber. Faz de conta, pr`izemplo, nã viste os cães que tiveram aí no outro ano? Intão eles nã bailavam e saltavam por dentro de arcos? Se não os insinassem como é qu`eles haveram de fazer aquilo? - Tralmente – interrompeu o Luís Sorna que mais atentamente seguia a discussão. - Você não é pr`àqui chamado, esta conversa é só c`os dois – disparou o Faneca azedado por que não admitia mais intelectualidades metidas na conversa. - Ouve repá, - continuava o serralheiro – só os animais inteligentes é c`aprendem coisas c`â gente l`insina… vá lá alguém querer cum coelho ò um porco bailem e saltem, como os cães do circo!... - Ò Mestre, intão quem é qu`insinou o primêro home a ler, antes de haver escolas? - É melhor prècurares quem é qu`insinou antes o primêro home a lalar. Ó julgas que no principio do mundo os homes se intendiam uns c`os outros tão bem com`agente? - Nem agora a gente s`intende, canto mais nesse tempo… enveredou pelo jocoso o Faneca na falta


da melhor argumentação - Eu e o Mestre Amaro ainda não nos entendemos… - Se tás a renar vai mas é p`ra casa cozer o bagaço! A malta levantou ferro mas na Fonte do Arneiro ainda ficaram os últimos teimosos pela noite adiante, enquanto o serralheiro já dormia em casa a sono solto. - Olha lá, s`os homes no principio do mundo nã sabiam falar porqu`é que aprenderam e os animais nunca chigaram a aprender? - Sabes la s`os homes vieram primêro ò mundo c`os outros bichos e por isso é que já sabem falar e mais tarde, daqui a muitos anos, acabam os bichos por falar com`às pessoas. ~Ê tenho lá im casa um gato que só lhe falta falar. - Intão s`os papagaios já falam é por que vieram à mundo logo a seguir òs homes e os outros hão-se aprender também daqui a muito tempo.

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No fim de uma tarde de Novembro o Manel Amaro regressou da caça. - Eh Mélia! Melhéri! Toma lá que temos aqui perdizes pr`à semana toda! Enquanto se desarreava ia tirando para cima da mesa as peças mortas e a mulher, contente, admirava-as, e ia-as pendurando nos pregos da lareira. - Dez perdizes…. São boas e bonitas …. Olha esta…. Este coelhito que nã presta p`ra nada mas meteuse à frente do cano da espingarda por descuido dele… este já é maior… olha este!... Mas a surpresa estava no bornal que trazia a tiracolo. Enquanto passava cuidadosamente a correi pela cabeça, continua a conversa: - Agora esta caça inda vem viva… já que nã tens que fazer trago-te aqui esta cria p`ra t`ìntreteres. A mulher olha espantada para a nesga do saco donde espreitavam dois olhinhos vivos como duas missangas. - Trazes um cachorrito deste tamanho Manel? - Cá cachorro… além no Pinhal dos Mouros começaram os perdigueiros a farejar e a ladrar


p`ra um buraco, ê cá nã sabia o que era, meti a mão e saiu-me isto. Põe em cima da mesa um lobito de palmo amedrontado que ml se segurava nas pernitas. - Dêxá-lo lá era mau, fazia-se um lobo grande, matá-lo tive pena, é tão pecanino… vamos criá-lo e fazemos dele um cão. - Ah home… qu`indéa… s`é uma loba, im crescendo dá cabo da gente todos…. - Lá tás tu, trata bem o bicho e vai ser o nosso cão. Todos os cuidados da Amélia Rita e do marido eram poucos para o lobinho. Bebia leite, comia restos de carne que pacientemente lhe desfazian em pedacitos. O bicho sorri e pulava, era o melhor entretém do serralheiro quando voltava `a noite da oficina. - Anda cá Galeão, tu és o Galeão e vais dar p`lo nome… ê sou o tê dono e tu vais guardar a casa, vais tomar conta de tudo… vais aprender a serralhêro qu`inda hades saber mais c`ò Pedro qu`ê lá tenho de aprendiz que nã presta p`ra nada. O lobinho era os encantos do Manuel Amaro e a curiosidade de toda a gente. De casa para a oficina de Trás-dos-Monturos, ao pé da Capela Real, passava o serralheiro com o Galeão ao lado a acompanhar-lhe os passos Ao fechar da noite voltavam para casa os dois companheiros, à hora da ceia.


- Eh Galeão… vamos à manduca que já são horas… O lobinho sacudia o rabo de contente sempre que percebia que o dono falava com ele.

Foto de 1985 - Porta de entrada da antiga Taberna da Anunciada – Trav. da Azinhaga


Se batiam à porta o Galeão não gostava. Empinava as orelhas e faiscava olhares pelas frinchas a rosnar desconfiado. - Tá calado qu`é gente de paz!... Com esta ordem logo se acomodava e procurava o degrau do lar ficando atento às conversas como quem faz parte da família. A docilidade do bicho deu sempre a maior tranquilidade ao dono. O Manel Amaro e o Galeão eram dois corpos e uma pessoa só. O lobo ganhou uma coleira com o seu nome gravado em letras garrafais, briosamente fabricada com as melhores artes do Mestre. Agora na Taberna da Anunciada apareciam sempre os dois companheiros. A parceirada do chinquilho a princípio desconfiava da mansidão do bicho. - Ó Mestre, Vossemecê tem a certeza qu`ele um dia nã pega mêmo a fazer mal? Olhe que sempre é uma fera… - Fera são os homes. Este tem a barriga cheia e tá insinado com`òs cães. O pior é c`o os homes quanto mais têm a barriga cheia mais feras são. O animal bravo ataca p`ra viver. O home manso ataca só por que é ruim. Anda Galeão, deixa lá estas feras que daqui a bocado, em estando c`os copos, matam-se uns aos outros por um pataco.


- Ó Mestre Amaro, se levar o lobo à caça e ele vir outro lobo ataca o outro lobo ò vira-se contra si? - Não sei. – respondeu o serralheiro – Como tu quando tinhas dezoito anos bateste na tua mãe, se o Galeão se virasse contra mim não era mais fera que tu que julgas que és home. - Ó Mestre Amaro, - implicava outro – im Vossemecê morrendo deixa a oficina im testamento ò Galeão? - Antes a ele c`â ti. – Respondeu pronto o serralheiro – Tu nã deste cabo do c`o tê pai te dêxou só p`ra t`embebedares? Ò menos o lobo não é bêbado. Vem-te embora Galeão, que qu`isto não é gente de paz… s`os esfarrapasses todos à dentada fazias melhor obra c`o Santiago c`os mouros. O lobo fez-se um bicho grande e lindo, pelo lustroso, olhos vivos e inteligentes, curiosidade de todos que passavam por Trás-de-Monturos de propósito só para o verem, agarrado com a corrente a uma charrua velha à porta de oficina, enquanto o dono lá dentro assoprava a forja e malhava o ferro.

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Foto de 1985 – Casa onde viveu Manuel Amaro – frente à torre da Igreja Matriz

Certo dia ouviu-se bater nos vidros da janela da casa de rés-do-chão, alguém que chamava. Era o


administrador que queria falar com o Mestre Amaro. Entre, Senhor Inácio, vá de volta, ò Vossemecê quer entrar p`la janela? - Não senhor… Mestre… não entro mas ê qu`ria falar consigo uma coisa… -Entre…home…à janela falam os namorados, ò Vossemecê vem-me pedir im casamento? - Não…Mestre… - titubiava indeciso o chefe do concelho - era para falar consigo mas depois o Mestre passa pela Câmara. - Era o que faltava, tenho alguma coisa qu`ir à administração… hadem julgar que fiz mal a alguém… tenho casa…se quer falar comigo é entrar! E, decidido fechou-lhe a janela, dirigindo-se à porta para o receber. O Inácio Andrade, pregado ao chão, investigava cauteloso, com o olhar, o interior da casa. - Entre, home! As traves são velhas mas nã lhe caem em cima. O Administrador quase decidido pela insistência do dono da casa, acaba por mostrar o seu receio: - Ah… Vossemecê também tem medo do lobo… rais parta tal gente. - Não é isso… Mestre… é qu`ê venho cá falar-lhe… Bom… já agora entro.


O Administrador sentou-se com ar grave e o dono da casa pôs-se-lhe defronte muito calmo disposto a ouvi-lo. Senhor Amaro sempre fomos amigos e por isso me custa muito vir ter esta conversa. Custa-me muito mesmo, mas… são ossos do oficio e ê tou num lugar que só me dá inimizades e aborrecimentos. Vamos, é o caso…sim… sim… por qu`ê sei que sendo a gente amigos, não é verdade, esta conversa pode aborrecê-lo e… - Vamos, desembuche, mêmo sim cá tar o lobo parece que está gago! - Bom… é isso… é isso não, nã tou com medo do lobo mas é por causa das pessoas que têm medo do lobo. - Porquê, ele já comeu muita gente» - Não, Mestre, é qu`ê venho exactamente por causa dessas pessoas… - Que têm medo do lobo como o Senhor tem, tanto c`até queria qu`ê o atendesse à janela. - Ná… não era por isso, era só para não o incomodar, pois Vossemecê sabe que sempre fomos amigos… - Bom, ò o Senhor Administrador diz o que quer ò vamos jogar à bisca, ò vá-se imbora qu`ê cá nã sirvo pâ conversas sim jeito. - Vê… Mestre Amaro, ê já sabia que se exaltava e que vinha aborrecê-lo com esta conversa…


- Mas qual conversa? Até agora o Senhor ainda nã disse nada. - Tá bem… tá bem… intão ê tenho que dizer e o Senhor nã me leva a mal. O Administrador compôs-se de novo na cadeira e o serralheiro voltou a ter um ar calmo à espera de ouvir. - É que de há tempos para cá têm-me chigado à administração muitas quêxas relativas ao bicho, às quais ê tenho feito orelhas moucas. Mas parece que agora já tou também como medo que possa suceder alguma coisa é que tanto nós, na qualidade de administrador, como o Mestre Amaro, dono do bicho, sejamos incomodados com algum aborrecimento maior. - Ê cá por mim nã m`importo de arcar com responsabilidades, o Senhor Inácio é que parece que nã tá p`ra isso. - É verdade, p`ra que lhe hei-de mentir… ando preocupado e queria que me ajudasse, é isso que lhe venho pedir. - Bom, intão continue lá. - Quêxam-se de c`o lobo ataca as galinhas e c`âs pessoas da vizinhança nã podem dêxar andar os bicos à solta por que ele já tem dado cabo de muita criação.


Foto de 1985 - Casa da família Inácio Rebello Andrade Rua Cândido dos Reis (Antiga Rua de S. António/ ou Rua de

- Isso é verdade mas as galinhas c`o bicho matou ê paguei-as, castiguei-o, e ele agora é incapaz de fazer o mesmo. - Será, Mestre Amaro, tá bem que o animal lhe tenha respeito mas as outras pessoas é que não acreditam muito na mansidão dele e agora protestam por que querem criar as galinhas têm medo… as donas das galinhas têm medo…


- Sim, ê compreende, o Senhor tem medo, as galinhas têm medo… as donas das galinhas têm medo… - Bom… Mestre Amaro… realmente é uma fera mas, dêxe-me continuar. O pior que o sê lobo onte caçou um rapazito p`los calções e o que lhe valeu foi ele estar preso e o garoto fugir… senão podia ser uma grande desgraça, p`ra si e p`ra mim. - Nesse caso para o garoto… - Sim para o garoto. - Dá-me licença. Senhor Inácio, o caso do cachopo presenciei-o eu por que estava na oficina. Os rapazes andavam a brincar c`uma bola no terreiro. Um corre p`ra um lado, outro corre pr`ò outro. O lobo tem manhas de cão, como o cão tem manhas de lobo. Lá ia rosnando òs cachopos conforme eles iam gritando, e correndo e quando caçou um a jeito arracou-lhe os fundilhos. O qu`ele fez, fazia qualquer cão. - Cão bravo! – Ripostou o administrador. - Os mansos também mordem, por lei, devem ter açaime… - Não me diga que esta conversa toda é p`ra me obrigar a pôr açaime ò lobo… - Pois, Mestre, é isso mesmo… ficamos descansados e livres de responsabilidades. - Pois, para já, fica sabendo que isso não faço. Um cão não é digno sum açaime e um lobo muito menos!


- Essa agora!... protestou meio estupefato. - Essa agora é assim mesmo! Dêxa-me que lhe faça algumas perguntas, Senhor Administrador? - Com certeza, Mestre. - Não tem tido muitas vezes quêxas de roubo na administração? - Muitas! - Com qu`é c`os homes roubam? - Com que roubam? Que pergunta, é c`âs mãos! - Nã tem tido quêxas de agressão e morte? - Com certeza! - Com qu`é c`os homes agridem e matam? - Com que há-de ser… c`âs mãos! - Não mandou prender o mês passado aquele que imitou a assinatura do patrão p`ra ficar c`uns poucos de contos de réis? - Com que é qu`ele fez a assinatura falsa? - Foi c`â a mão. - Como é que o ano passado o Toino Luís agarrou aquela moça na vinha p`ra zombar dela, nã foi c`âs mãos? - Mas que perguntas… com certeza! - Então Vossemecê como administrador do concelho, já mandou por algemas às feras humanas p`ra elas nã morderem c`âs mãos? - Bem… isso não pode ser. - Pois não… inté Vossemecê tinha que andar de algemas por que ou já fez ou pode vir a fazer


alguma coisa ruim c`âs mãos. Porque é nã pode ser p`ra si e pode ser pr`ò animal? - O Mestre tá-se a exaltar e até a exceder-se no que diz. - Pudera… se calhar também me quer pôr um açaime a mim! - Ó Mestre… seja compreensivo… ê tenho responsabilidade do lugar que ocupo e é por isso que acho razoável esta conversa. - Pois então ê também razoável para que possa defender o lugar que ocupa e que aliás aceitou por que quís, embora só se lastime p`lo ter aceitado… - Desculpe, Senhor Inácio, mas é assim mesmo. Contudo ê vou ser razoável, como já disse. Nâ ponho açaime ò lobo mas ele nã sai comigo senão amarrado à corrente. De dia na oficina ponho-o numa jaula grande de ferro qu`ê lhe vou fazer. Afinal uma jaula não é tã má com`ò açaime. Numa jaula vivemos todos, só é maior e nã tem grandes.

- Todos? - Todos, sim! O medo que Vossemecê tem em perder o lugar de administrador…é uma jaula. O medo que Vossemecê tem que a sua mulher saiba que anda metido lá c`â sua pécora… é uma jaula. Vossemecê


nã poder arredar pé do concelho por ser administrador, é uma jaula. Vossemecê ter só o primeiro grau, como eu, e vir pr`àqui discutir comigo como administrador, é uma jaula!... - Basta, Mestre… está em sua casa e ê retiro-me. - Retira-se e já leva mais c`ò que trouxe. Já ficou sabendo c`os homes mordem c`às mãos e que vivem em jaulas… O administrador levantou-se, fez uma vénia e saiu sem olhar para trás. - Toma lá cagão de merda que levas pr`à cêa. Só é pena nã ter cá o Galeão pâ te ferrar uma ò de leve im chêo – comentava o Manel Amaro ao fechar a porta.

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Muitos dias iguais se foram seguindo. O lobo de dia triste na jaula, enquanto o dono trabalhava. À tardinha passeavam os dois companheiros pela vila. O Mestre serralheiro impava de orgulho com


o lobo à trela enquanto as pessoas receosas se afastavam para eles passarem. À noite o Galeão ficava solto, fechado dentro da oficina como um cão de guarda. O Mestre Amaro deixou de ir ao chinquilho, não estava dar troco à corja dos beberrolas. Quanto o Galeão esperava impaciente na jaula pela hora da liberdade tinha como sentinela uma cadelita rabicha, levada de amores por ele, que dormia a sesta e latia meiga como que a dar-lhe coragem do lado de fora, encostada às grades.

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Um dia veio trabalhar para a oficina o Zé Amaro, sobrinho do Mestre, para aprender o ofício. Como não era da terra nem tinha grandes recursos o tio


quis logo dar-lhe todas as facilidades. - Durante um ano nã tens ordenado, estragas e atrasas mais o serviço c`aquilo que prestas. Foi o mêmo qu`ê fiz ò Pedro que agora já se vai ajêtando e ajuda calquer coisa. Mas a ti dou-te comida e, para pâ dormir, como nã tens casa, à noite ficas aqui na oficina, qu`ê arranjo-te uma estêra e duas mantas. Vai lá pedi-las à tia Amélia. - O quê, tio, fico aqui de noite só c`ò lobo? - Olha…olha… olha… também tu? Se tens medo è nã quero cá tansos. Eh, Pedro, vai lá soltar o Galeão e traze-o pr`aqui. O rapazola encostou-se receoso à parede e não desatou a fugir por respeito ao tio. O lobo correu para dentro da oficina aos pulos a afagar o dono, a Rabicha latia estonteada de contente ao ver o seu amor em liberdade. - Eh Galeão… anda cá,… - acarinhava-o o dono – é gente de paz… tens aqui este que fica de noite a fazer-te companhia … E virando-se para o sobrinho: - Anda Zé, nã têjas com medo, faz uma festa ao Galeão p`ra ele se habituar a ti. O Rapaz um pouco mais à vontade, mas ainda com medo, passou a mão ao de leve pelo lombo do bicho.


Depois o Pedro agarrou-o pelas patas da frente cantando-lhe uma ária do circo, que lhe tinha ensinado, para ele se pôr de pé a bailar. - Bom, acabou-se a bricadêra. – grita o Mestre – o Pedro mete o lobo na jaula e vai pr`à forja, o Zé vai a casa buscar a estêra e as mantas e a Rabicha alça daqui p`ra fora. Toca a trabalhar. O fim do dia foi igual aos outros, só a noite foi diferente por que na oficina dormiam dois. O Zé acendeu o coto da vela, deitou a esteira no chão, tapou-se com as mantas e fez uma festa ao Galeão como pacto de amizade. Apagou-se a luz. O bicho adormeceu e o rapaz, atento ao companheiro, sentindo-o quieto e a dormir, adormeceu também. Pelas altas horas o rapaz acordou. Pelas frinchas das telhas rompia o luar que iluminou a primeira noite duma vida nova. Ia aprender um oficio, o tio seria amigo dele para lhe ensinar? Dava o seu primeiro passo de homem. Como ele gostaria de vir a ser um Mestre na sua arte, respeitado e admirado por todos da terra. E daí quem sabe se o tio quando chegasse a velho lhe passaria a oficina. Tinha tanta vontade de trabalhar e de saber, como o tio, possivelmente de o ver trabalhar e de lhe ensinar. Alto! O Galeão mexeu-se. O Galeão raspou na terra. O rapaz ficou quieto, mais quieto. Sentiu os


passos da fera a avançar para ele. Devia acender a luz? Devia falar-lhe? O animal era como um cão, o tio tinha confiança e por isso o pôs ali a dormir com ele. O lobo também podia acordar e mexerse. O Zé, pensava mas não se mexia. Agora era certo. A fera, cautelosamente, começou por lhe puxar com os dentes a parte da manta que lhe cobri os pés. Depois farejou-o. O rapaz a sentir nos pés o frio húmido do focinho da fera que o tateava. Entra em terror e de repente risca um fósforo para acender a vela. O bicho corre para o seu canto e estende-se manhosamente em atitude de estar a dormir. O rapaz aterrorizado sai a correr, fecha a porta e desaparece pelas ruas a tremer de pavor. O Manel Amaro, informado do sucedido, no outro dia de manhã entrou na oficina carrancudo. Chamou logo o sobrinho para lhe dar um sermão. - Das duas uma, ò tu és um tansozito de merda que tens medo de tudo e se te ferrou na cabeça c`o lobo te comia e tiveste medo e fugiste, ò o Galeão não é o cachorrito qu`ê criei e é lobo com`òs mais e leva um tiro nos cornos. Tu és filho do mê irmão, entras aqui como se foras mê filho, também, e por isso nã te admito que faças figuras de pandelêro.


Nos Amaros não há tansos nem maricas, e atão nã te conheço como mê sobrinho e vai lá aprender o ofício pâ casa do diabo. Esta noite quem fica aqui a dormir na oficina, sozinho a mai-lo lobo, sou eu. S`ele me quiser comer ferro-lhe um tiro e acabou-se. S`o bicho dormir sossegado é por que foste tu que tiveste medo e c`até as moscas a voarem julgavas que era o bicho a comer-te. Inté sonhaste qu`ele te tava a pâ comer os pés! Intão alças tu e nã levas um tiro mas é o que precisavas pâ nã ficares a estragar a raça que na nossa família não há cobardolas. - Ó tio – queria interromper o rapaz humildemente – mas é que o lobo a si conhece-o e nã lhe faz mal. - Não abra o bico sim ver o fundo ò penico! Inda onte cá chigou já me tá a dar opiniões. Ê já sabia comer câ mão direita antes de você ter nascido. Acabou-se a conversa, vamos ò trabalho! Este dia na oficina foi diferente dos outros. Só se ouvia malhar no silêncio da palavra.

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Dez horas da noite. A um canto dormia o Galeão em cima do seu estrado de madeira. No outro canto, na esteira, com a espingarda à mão, fósforos e uma vela, dormia tranquilo o Manel Amaro. Apenas escuridão separava os dois amigos, cada qual em seu lado. O silêncio negro e o calor do corpo despertaram o bicho. A fera, cautelosamente, pata-ante-pata procura o leito do dono. Quer cheira-lhe o corpo mas estava coberto. Com os dentes puxa-lhe a manta e sente agora melhor o cheiro humano. Espreguiça-se e focinha com prazer o corpo suado. Treme nervoso, volta a espreguiçar-se como que a ganhar coragem e rodeia-lhe o pescoço com a língua cobiçosa. O homem acorda de repente. Ronca e deita a mão à caixa de fósforos. A fera num salto volta para o seu lugar e estende-se no estrado simulando dormir. Trémulo não sabia se devia acender a vela ou pegar na espingarda. Faltavamlhe mãos. Fez-se luz. Afinal o seu Galeão dormia tão sossegadinho e tão longe dele. Foi pesadelo, sim, com certeza. Mas a manta estava tirada e o pescoço húmido. Mas ele podia ter-se destapado quando se acordou com o pesadelo. Estava todo suado e por isso o pescoço estava também.


- Foi um pesadelo. Apagou a vela. Ficou a magicar sem conseguir adormecer. – Rais m`abrasem mais ò medo, mais ò sonho ò lá o que foi que nim já sei se foi. Volta acender a vela. Levantou-se prega uma estaca no chão. Prende o lobo à estaca de modo que a corrente não deixasse chegar-lhe ao corpo. Torna a deitar-se e apagar a luz, cadenciando uma respiração lenta e fingindo ressonar levemente. A fera avança de ovo para ele mas agora decidida a um assalto surpresa. Arranca num pulo na direcção da esteira mas a corrente segura-o com enorme ruído. O domo volta acender a luz e o lobo volta para o seu estrado e finge que dorme. Lançando mão à espingarda, tremendo, sem conseguir sequer engatilhar o dedo, grita à fera: - Galeão, quero ferrar-te um tiro nos cornos mas quero que estejas a olhar p`ra mim p`ra veres que sou eu que te mato. Galeão! O bicho abre preguiçosamente os olhos e vira-se como que a responder contrariado à chamada. -Galeão! Cada vez mais trémulo, o dedo enrija-se-lhe e prende-se sem força para disparar.


A fera levanta-se e obedece ao dono, procurando mansamente, ir para junto dele mas a corrente prende-o. O homem tirou com a espingarda para o lado e acalmou. Dirigiu-se ao poial que ficava ao lado fole e encaixou nos beiços a quarta de água, tremendo todo até se molhar. Olhou indeciso para o lobo e para a espingarda. Fitou a estaca toda torcida pelo pulo da fera. - Ah! Galeão… Galeão… esta estaca torcida acusa a tua natural ferocidade e a minha indesculpável estupidês. Tirei-te do teu covil onde a tua mãe te dava teta. Roubei-te à tua liberdade das charnecas e dos matagais e puz-te uma coleira e uma corrente. Obedeci a um administrador, qu`inda é mais estúpido cá mim, e meti-te numa jaula, Dei-te uma cadela pâ fornicar, sem m`alimbrar o qu`ê faria se me dessem uma macaca em vez duma melhér. Insinei-te a bailar com`òs miseráveis cães do circo. Ê é que tou errado. P`ra qu`é que t`êde matar s`eras tu que me haveras de matar a mim. Porca vaidade do home que julga qu`é intelegente só por que tem força pâ vencer os bichos que tão mais certos na natureza e são menos bichos. - Galeão, vai lá para a tua cama!.. O lobo obedeceu. O serralheiro voltou a fitar a estaca torcida, cuspiu para o chão, apagou a vela, fechou a porta e saiu. De manhã na oficina os dois


rapazes não falavam à espera do Mestre. O pedro meteu o lobo na jaula muito sisudo e limitou-se a dizer ao Zé: - Eh repá… o tê tio nã tá cá, o lobo tá vivo e tu levas uma arroxada im ele chigando que vais a ganir. Òviste-o falar onte? - Tive pouca sorte. Por causa do raio do lobo fique cânha vida estragada. Ê pudera abalar antes de ele vir mas já agora inda hê-de levar arroxada na vida que mais uma ò menos uma é a mêma coisa e sempre quero ver o qu`ele me diz. - Nã refiles qu`ele é ruim a máli. Cala-te qu`ê é c`o conheço e é capaz de te dêxar ficáiri. O Mestre entra de súbito pela oficina dentro. Os rapazes pegaram em ferramentas e esperaram a estocada. - Bom dia! - Bom dia, Mestre. - Bom dia, Tio. O serralheiro deita a mão à estaca torcida, lançaa à bruta pela porta fora e dirige-se ao aprendiz: - Eh Pedro. Tens que ter paciença mas vais fazer um serviço qu`ê te mando. Há tempos um lavrador de Altar do Chão pediu-me o lobo pâ lhe górdar a herdade. Hoje mêmo vai-lo lá levar. Tive a pensar, dentro da jaula, só numa carroça, e ê cá não a tenho nim a peço. Vais cum ele a pé à corrente. Metes daqui a Coruche, depois


Ponte de Sor. Daqui pega logo a estrada que vai lá ter. Levas os dias que levares, nã te rales que ganhas como se estiveras a trabalhar aqui e mai-lo comer e mais aquilo qu`ê depois entender. Leva a espingarda, s`ele p`los caminhos fora começar a nã qu`rer andar prende-o a um pinheiro, ferra-lhe um tiro ò meio do focinho e vem-te imbora. Marcha já com ele no fresco da manhã qu`ê nã quero cá mais o animal. E virando-se para o sobrinho: - En Zé, põe carvão na forja e acende-a bem que hoje há muito que fazer e ficas só comigo temos que desembaraçar. Faz-te home qu`és filho do mê irmão!

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Pela estrada fora marchava a passo estugado o rapaz com o lobo à corrente, e atrás, saltitando de contente, a cadela Rabicha que se juntou à caravana. Ainda não tinham meia hora de caminho quando a fera teve a primeira hesitação e pretendeu resistir a cadencia do passo. - Eh Galeão… queres mijáiri? Vamos. Ó mijas ò vens. O lobo andou mais uns metros e voltou a esticar a corrente. – Eh Galão… querem vêri? A fera começou a farejar, estiraçou-se as patas da frente como cão a espreguiçar-se e lançou um uivo prolongado que fez tremer tudo. - Eh Galeão… qu`é isso? A fera lançou um segundo uivo firme nas quatro patas, arrebitando as orelhas, faiscou os olhos e arreganhou a dentuça aguda com espuma nos cantos da boca. A Rabicha correu para em saltitos de mulher. A fera dum salto amarfanhou-a pelo pescoço arrancando-lhe duma dentada o sangue quente das veias. O rapaz horrorizado puxa a corrente, aponta a espingarda mas, sem tempo nem tino, vê o lobo empinar-se direito a ele com o focinho a pingar sangue e a boca ansiosa a mostrar a goela. Recuou um passo e mete-lhe o cano ao peito para se defender. A fera rosna odiosa, nada a detém. O


dedo consegue entrar no aro do gatilho quando o sangue da boca da fera já lhe salpicava o rosto. O tiro à queima –pêlo furou o lobo de lado a lado. Dos três que saíram, só um é que voltou.

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- Eh Pedro… trazes sangue na cara, já vi. - Ò Mestre…. Teve que ser… - Não me chames Mestre. Saber malhar ferro é muito pouco!


Foto 1985 *Oficina do Ferreiro; Manuel Amaro, Rua do Rossio (Trás de Monturos), local onde se desenrolou parte do conto ”O Último Dia do Lobo em Salvaterra


Fotos de José Gameiro – obtidas em 1985, aos locais /sítios, que o autor: José Amaro, descreve como cenários do conto verdadeiro em que é uma das personagens.

Agosto. 2016








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