Primeiro capítulo

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J. Domingues

PRIMEIRO CAPÍTULO Para apreciação.

Fortaleza - CE 2015



“Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.” Friedrich Nietzsche



CAPÍTULO I O mensageiro misterioso H.D.C. - 20 de outubro de 1872, 22h.

A Lua crescente já ia alta naquela noite, no Rio de Janeiro. Encontrava-me no meu pequeno escritório empoeirado e mal iluminado, localizado ao largo do Paço da Boa Vista, próximo do Palácio e da Capela Imperial, tendo, ao fundo, a Igreja do Carmo. O ambiente exalava a mofo e papel umedecido. Nas paredes, grandes máscaras funerárias, oriundas da África, pareciam vivas sob o efeito de sombras projetadas pelas chamas tremulantes do velho lampião. 7


Debrucei-me, pela quinta vez, sobre alguns pergaminhos que continham escrituras em idiomas antigos, entre eles, o fenício, o hebraico e o grego. Ajustando os velhos óculos modelo Pince-nez sobre o nariz, buscava analogias ou algum significado oculto entre as palavras em caracteres cuneiformes que foram transcritas de uma pedra, enviada pelo senhor Joaquim Alves. Eis a tradução da mensagem: “Nós somos filhos de Canaã de Sidon, da cidade do rei mercador. Nós fomos lançados nessa costa distante, um país de montanhas. Nós sacrificamos um jovem aos deuses e deusas celestiais no décimo ano de nosso poderoso rei Hiram. Nós navegamos de Ezion Geber para o Mar Vermelho com dez navios e fomos separados pela mão de Baal, e alguns estão aqui, doze homens e três mulheres, na Costa Nova. Seria eu, o almirante, um homem que fugia? Não! Que os excelsos deuses e deusas nos favoreçam!” A tradução havia sido um sucesso, porém, as dúvidas sobre tal mensagem, só aumentavam. Faltava algo, uma continuidade, que talvez estivesse em outras pedras semelhantes, porém perdidas. Os antigos sempre documentavam

os

acontecimentos,

relatando

fatos

importantes, de forma que, pudessem dar referências históricas para a posterioridade. E cá estou, apenas com um pequeno fragmento da página de um diário que o tempo levou. 8


“... da cidade do rei mercador.” – Esse rei certamente seria Hiram, rei de Tiro (855 a 850 a.C.), que segundo as escrituras, enviara na época embarcações carregadas de ouro para o rei Salomão.1 “... Nós navegamos de Ezion Geber para o Mar Vermelho com dez navios e fomos separados pela mão de Baal,...” – Uma frota de dez embarcações estava em missão, rumo às terras da Galileia, porém, uma tempestade eclodira naquele momento. “e alguns estão aqui, doze homens e três mulheres, na Costa Nova.” – Costa Nova... Uma costa desconhecida? Uma expressão que talvez queira dizer que atracara numa terra virgem. Seria então a costa da ainda desconhecida Terra Brasilis? As sombras de algumas estatuetas antigas que estavam sobre minha escrivaninha, lembravam-me daqueles povos antigos numa dança frenética, evocando um ritual macabro. Fantasmas de tempos antigos sob a luz da grande fogueira iluminando uma grande pedra de sacrifício onde jazia o corpo de um mancebo no auge do desespero, amarrado, com o peito descoberto e ungido, à espera da ação do grande punhal que o sacerdote mantinha erguido ao céu enluarado, enquanto gritava fórmulas em linguajar que só ele mesmo conhecia. Despertando daquele transe momentâneo, meu corpo estremecera e, voltando a si, começara a enrolar os pergaminhos por sobre a mesa. 1 Fenícios no Brasil (Antiga História do Brasil - de 1100 a.C. a 1500 d.C.). SCHWENNHAGEN, Ludwig, Rio de Janeiro, 1986. 9


A noite avançava e o sono começava a me consumir. Meus olhos ardiam, e a fumaça escura do lampião ficava mais densa. Precisava me recolher, o cansaço tomava conta de mim. Enquanto isso, sons de batidas na porta ecoaram no silêncio da noite. Segurando o lampião em uma das mãos, dirigi-me à porta e, abrindo-a, deparei-me com um vulto misterioso. O visitante usava uma enorme capa escura e esvoaçante, seu rosto estava oculto por uma espécie de capuz. Por uma fração de segundos, tal estranho me jogara um pacote e, talvez pela força do vento, deixara o capuz cair por sobre os ombros, pondo sua fisionomia em evidência. Percebi que o intruso era um dos cativos da região, suas feições eram bastante singulares, devido às tatuagens gravadas na face, por meio de profundas cicatrizes em formas de riscos e círculos. Com os olhos quase saindo das órbitas, o escravo, pronunciando alguma frase desconexa, dera meia-volta e pusera-se a correr feito louco rumo ao breu da noite.2 Refazendo-me do susto inicial, estava tentando equilibrar o misterioso pacote, em formato tubular, debaixo do braço, enquanto girava a maçaneta. Era um tubo de madeira, não havendo nada na sua superfície. Com cautela, 2 Naquele tempo, não havia iluminação pública, afora alguns lampiões alimentados com azeite de oliva que eram acesos em frente às casas mais abastardas. 10


destampei-o, cuidando para que o mesmo fosse reutilizado posteriormente. Olhando, à luz do lampião, o recipiente parecia estar vazio, porém, ao enfiar o dedo no seu interior, senti uma película áspera. Puxei-a para fora com cuidado para não avariá-la. Na medida em que ia sendo desenrolado, mostrava-se ser um pergaminho de pele de ovelha. Estava dobrado sobre si mesmo e, aparentava ser bastante antigo, com pedaços por cair caso não fosse manuseado com cuidado. Usando luvas para a ocasião, desenrolei o pergaminho por sobre a mesa, juntando algumas partes como se fosse um quebra-cabeça. Aproximando o lampião, para visualizá-lo melhor, fui aos poucos distinguindo o conteúdo: um desenho rudimentar representando uma esfinge com a face de um rei (usava uma coroa, supunha) na cabeça. Lembrava-me do modelo da esfinge dos babilônios, o corpo de boi e a face humana, tão característico daquelas esculturas. Ao redor da esfinge, alguns símbolos estranhos, linhas e pequenos círculos que indicavam localizações obscuras e, no corpo dela, um conjunto de caracteres em destaque. Abaixo do desenho haviam inscrições que, para surpresa minha, identifiquei como sendo fenícias. Remexendo minhas anotações, iniciei o processo de tradução, levando menos de meia hora para decifrar a mensagem, tempo relativamente curto, favorecido pela boa conservação do manuscrito e, por conter símbolos comuns aos que já existiam nas anotações anteriores. 11


“Badezir, primogênito de Jethbaal, o filho de Canaã de Sidon guarda o ouro do templo. Al Dabarn, o guardião, esconde a chave do portal.” Após a tradução, minhas mãos estavam trêmulas, a mensagem parecia ter uma ligação direta com a frase incrustada na Montanha do Imperador3, descrevia Badezir como sendo filho de Canaã de Sidon, revelando então o nome do “almirante fugitivo” citado na pedra encontrada na Paraíba. O desenho da esfinge sugeria que tal mensagem fosse um enigma, e os caracteres em destaque no corpo evidenciava o enigmático nome “Al Dabarn”. Um achado de avultado valor arqueológico se for comprovado sua legitimidade, mas, quem o encontrou? Por que não se manifestou o remetente e, por que a entrega naquela hora da noite? Tais questões começavam a pulsar na minha mente. Com os olhos ardendo e lacrimejando devido à fumaça do lampião, achara melhor deixar para resolver essas indagações durante o dia, meu corpo pedia arrego. Desanimado e cansado, caminhei desnorteado em direção a uma rede, já armada em um canto da sala. Era o meu leito improvisado, quando ficava até tarde da noite no escritório. Tirando apenas os sapatos e a camisa amarrotada que jogara numa cadeira, nem lembrei-me de ter apagado a chama do lampião. Na mente, apenas um pensamento: pri3 LAABHTEJ BAR RIZDAB NAISNEOF RUZT = Tyro Phenicia, Badezir primogenito de Jethbaal. 12


meiro localizaria o emissário e, por meio deste, o remetente misterioso. Nesse ínterim, logo após ter-me arriado na rede, peguei no sono e, em seguida, um sonho confuso tomou conta de mim: estava correndo em uma mata fechada sob o breu da noite. Dois lobos furiosos me perseguiam com os olhos flamejantes. À minha frente, em meio a um nevoeiro espesso, um grande portal de pedra se abria e, uma espécie de luz de cor violeta saía do interior da rocha. Logo, encontrava-me no interior de uma caverna. Corria, no meu desalento, sem olhar para trás. Então, aos poucos, a névoa se dissipava e, vultos começavam a se definir à minha frente. Parecia alguém preso a uma grande pedra de sacrifício. Seu peito estava literalmente aberto, o coração exposto e pulsante, o condenado mirava-me com olhos arregalados de pavor e bramia em desespero. Ao seu lado, empunhando uma adaga, um sacerdote, trajando uma túnica vermelha, olhava na minha direção com a face oculta por um capuz, gritando numa voz gutural: “Decifra-me ou te devoro!” Após essas palavras, uma grande ventania tomou conta do ambiente, descobrindo a cabeça do sacerdote. Tal foi o meu assombro ao reconhecer as feições do executor: era o lacaio que me entregara o pacote naquela noite! Não sei por quanto tempo dormira. Despertara assom13


brado e pingando de suor, seguido de fortes batidas que ecoavam da porta. A sala encontrava-se parcialmente iluminada, sinal que a aurora já começara. Vestindo minha camisa, me dirigi, apressado, para atender ao chamado. Abrindo bruscamente a porta, já ia ao ponto de ralhar algumas “verdades” ao intruso, quando percebera que a visita era outra: à minha frente um grupo de homens (três, para ser exato) me observava pasmado. Pelas feições, certamente, não tiveram uma boa noite de sono. Era o truculento chefe de polícia Coelho Bastos, vulgo “Rapa-coco”4, e dois de seus subalternos, uns tipos engraçados, apesar das feições austeras. O capitão tinha uma estatura mediana e, apesar de ser mais baixo do que seus comparsas, aparentava ser bem maior, devido à forma em que se portava em pé. Era caracterizado por uma barba rala e grisalha em forma de cavanhaque, tinha espessas sobrancelhas que lhe davam uma expressão semelhante ao de uma ave de rapina. Um grande chapéu sombreava seus olhos negros e oblíquos, que me observavam dos pés à cabeça. “Bom dia, doutor Guilherme de Capanema!” “Bom dia, capitão Coelho Bastos!” – Respondi indiferente, pois ocupava-me em arrumar alguns fios de cabelos que teimavam em permanecer eriçados.

4 Levava essa alcunha por ter o costume de raspar a cabeça de quem prendia. 14


“Segundo uma testemunha, tu recebeste uma visita ontem à noite... Correto? Mais, precisamente, entre 22h30min e 23h.” “Receio não poder precisar o horário, mas, um indivíduo encapuzado bateu por engano na porta do meu escritório e depois debandou...”. Àquela altura, já cismava que o lacaio, houvesse sido preso. No íntimo, senti pena do miserável ou de quem quer que tenha sido capturado correndo nas ruas, na calada da noite. Porém, não vi motivos para que o serviçal fosse castigado. Como era um reles escravo, seria açoitado até esmorecer e, teria sua cabeça totalmente raspada, sendo logo mais, amarrado numa estaca em plena praça pública, como era de costume. “Podes, ao menos, dar-me uma descrição das feições do visitante, doutor?” “A noite estava bastante escura, não pude distinguir quem era e, como acabei de falar, ele encontrava-se encapuzado.” Olhando por cima do meu ombro, o capitão vira o pergaminho em cima da mesa. Entrando sem pedir licença, inclinara-se, analisando o “trapo”, sem tocá-lo. Enquanto isso, os dois subordinados mais pareciam ratos, metendo o focinho em todos os cantos da sala. Um deles, 15


que usava chapéu coco e enrolava o enorme bigode crespo com o auxílio da saliva, analisava absorto, uma pequena escultura de faraó. O outro, que trajava um velho paletó branco e amarrotado, trazia na boca, entre os dentes espaçados e amarelados, um cigarro apagado. Não parava um segundo, comportava-se como se, a qualquer momento, uma sombra fosse lhe assaltar. “Bom, capitão Coelho Bastos, como lhe dei as informações necessárias, agora preciso cuidar de meus afazeres.” – Falei, enquanto ajustava meu terno ao corpo. “Tudo bem, doutor Di Capa. Mas, não achas estranho alguém bater na tua porta de madrugada e, depois, debandar sem mais nem menos?” “Talvez fosse algum arruaceiro atrevido ou, quem sabe, tenha havido um engano, afinal, aqui no largo do Paço, as portas são muitos semelhantes umas das outras, não achas, capitão?” “É, tens razão doutor. Por enquanto, não vejo indícios que te associe ao incidente de ontem à noite.” – Dissera, cofiando a barba, com olhar perdido em algum ponto da sala. “Que incidente, capitão?” – Minha curiosidade despertara. “Um assassinato, doutor... Um assassinato.” – O capitão dissera aquilo como se falasse com os próprios botões, sem tirar os olhos do pergaminho. 16


Naquele momento, o chão parecia ter desaparecido sob meus pés e a respiração se tornara difícil. Tivera medo que o capitão notasse essa mudança brusca no meu aspecto. Poderia ter sido uma coincidência o horário da entrega do pacote, mas, precisava saber sobre a tal vítima que fora assassinada. “Podes me contar a respeito, capitão Coelho?” – Minha voz quase não saía... “Um desses lacaios que vendem fumo na feira levou uma ‘furada’ na barriga com algum objeto pontiagudo e cortante. Tudo indica que foi esfaqueado, apesar da arma não ter sido encontrada no local do crime.” “O assassino não pôde ser identificado, pois estava oculto pelas sombras, e fora bem ligeiro, segundo uma testemunha me contara.” “Pela forma em que ele foi atacado, talvez tenha reagido a um assalto...” – Arrisquei um palpite. “Não, doutor. Foi um assassinato bem premeditado, pois da vítima nada foi roubado. Tinha consigo alguns contos de réis num saco e, o mais estranho, muito dinheiro para um escravo carregar por aí.” “Bem, doutor ‘Dicapa’, isso é tudo. Mas, se por acaso tu lembrares de algum detalhe, procure-me.” – Dando meia-volta, prosseguira rumo à saída, escoltado pelos capangas. “Capitão Coelho!”

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O chefe de polícia se virara, olhando-me carrancudo. “O senhor não me deu a descrição física do serviçal. Quem sabe eu conheça o senhorio dele!” – Falei de forma desinteressada. “Talvez o tenha visto na feira. Ele tinha o rosto tatuado e cheio daquelas cicatrizes em forma de riscos e círculos, como é do costume de alguns africanos.” – Dando de ombros, prosseguiu seu caminho, rumo à delegacia.

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