EXPRESSõES!_15

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EXPRESSõES! mais que dizer - transmitir

José Danilo Rangel Rafael de Andrade César Augusto Leo Vincey Laisa Winter Douglas Diógenes Laura Salgado Melquizedeque Alemão Rosa Vilela Ana Paiva Elizeu Braga Rubens Vaz Cavalcante

ed. 15 - ano 2


Máscara Confeccionada por Bototo Foto: Douglas Diógenes

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EDITOR José Danilo Rangel CO-EDITOR: Rafael de Andrade COLABORADORES: Laisa Winter - Quadro a Quadro Ana Paiva - Grande Angular César Augusto - Visões Poéticas Rosa Vilela - Literatura em Rede Leo Vincey - Poesia Laura Salgado - Poesia Melquizedeque Alemão - Poesia Elizeu Braga - Poesia Rubens Vaz Cavalcante - Poesia Douglas Diógenes - Fotos

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ÍNDICE Conto

Apatia e Serenidade Por Rafael de Andrade

pág. 06

Crônica

São Seus Olhos! Por José Danilo Rangel

pág. 14

Quadro a Quadro

Uma História Real

pág. 34

Por Laisa Winter

EXTRA

Guaj. via 4 de Janeiro Por José Danilo Rangel

pág. 44

Preâmbulo..................................................................04 Apatia e Serenidade..............................................................06 São Seus Olhos!.......................................................................14 A Caverna dos Sábios............................................................16 Sobre Estátuas e Heróis......................................20 Qual a Face do Amor?............................................25 O Pouso.........................................................26 Oficina de Teatro......................................................27 Andorinhas....................................................................28 Hemorragia da Sombra..........................................29 “é poeticamente que o homem habita a terra”................................30 Amor Maroto.........................................................................31 Visões Poéticas: Temor................................................................32 Quadro a Quadro: História Real.................................34 Grande Angular: (In)Completo............................................36 EXTRA: Guajará Via 4 de Janeiro...............................................44 Do leitor.......................................................................59 Ao leitor.................................................................................60 EXPRESSõES! Out de 2012 | 04


PREÂMBULO

Uma coisa importante: o número de parceiros aumentou, agora contamos com o Douglas Diógenes, do MoshPhotography (http://www.moshphotography. com/), onde ele expõe cobertura de eventos do cenário alternativo, temos também o site da banda de punk rock Vuadera Fatal (http://bandavuaderafatal.webnode.com//) e o portal de Selmo Vasconcellos (http://www.selmovasconcellos.com.br/), onde você vai encontrar entrevistas, poesias dele e de outros autores, saber de eventos e ainda mais. Mais uma coisa importante: para quem mora em Porto Velho, no próximo domingo, dia 14 de outubro, vai acontecer a 5ª edição do evento que deu origem à EXPRESSõES!, o ISSO É POESIA? Temos confirmados Rubens Vaz Cavalcante, César Augusto, as canoras Gabi Amadio e Kali Torinho, Leo Vincey, Elizeu Braga, Rinaldo Santos, Rafael de Andrade e outros. Além dos seus trabalhos, os poetas apresentarão reflexões sobre o tema “Desmascarar-se: ISSO É POESIA?”. Também haverá performances com Bototo e Renata Evans e uma mostra de fotos comentada pelos fotógrafos Ana Paiva, Mari Azuelos e Douglas Diógenes. Começando pela capa: é uma foto de Douglas Diógenes. Você que nos acompanha há algum tempo vai lembrar das fotos dele do “ISSO É POESIA?” e do polêmico “Lembranças de Porto Velho”, que, para a inquietação dos portovelhenses mais ufanistas ocupou a seção EXTRA do 4º número da EXPRESSõES! (http://www.scribd. com/doc/71329281/EXPRESSoES-04). O entresseções também é dele, que nos mostra com um olhar todo seu elementos urbanos. Quem abre este número da revista é o Rafael de Andrade, com o seu conto “Apatia e Serenidade”, sobre um crápula que encontra uma forma terrível para se expressar, uma arte terrorista. Mais adiante, em parceria com Rosa Vilela, ele reflete sobre o verdadeiro papel de um revolucionário, calcando sobre a lembranças de um Brasil ditatorial. Eu contribuo com a crônica “São Seus Olhos!”, um texto engraçadinho e um tanto cínico, em seguida, apresento o que acredito ser ainda um embrião de uma perspectiva sobre as mais sofisticadas redomas ideológicas, em “A Caverna dos Sábios”. Mais para frente encerro minha contribuição textual com “Guajará Via 4 de Janeiro”. Desde meu trabalho “As Águas Estão Subindo”, onde tento descrever um panorama da Porto Velho de então, na já longínqua 3ª edição da EXPRESSõES! (http://www.scribd. com/doc/67106910/EXPRESSoES-03), lançada em setembro de 2011, que não escrevo uma poesia tão extensa. Guajará Via 4 de Janeiro tem 32 partes, e fala sobre mudanças e perspectivas de mudanças, um passeio dentro e fora. Neste número temos um diversificado painel de poesias com Laura Salgado, Elizeu Braga, Rubens Vaz Cavalcante, Leo Vincey, Melquizedeque Alemão. Depois, em Visões Poéticas, com seu estilo entre clássico e moderno, César Augusto nos apresenta “Temor”. Em Quadro a Quadro, Laisa Winter nos apresenta o inusitado “História Real”, de David Lynch, um filme de jornada com roteiro muito original e a escolha do protagonista, no mínimo, inesperada. Por fim, Ana Paiva entra com o ensaio (In) Completo, um trabalho delicado e enigmático. Espero que goste. Porto Velho - Outubro de 2012 José Danilo Rangel EXPRESSõES! Out de 2012 | 05


Conto

Apatia e Serenidade Por Rafael de Andrade

A ninguém, pois todo bom assassino de si mesmo, ama apenas a extinção.

O que estou fazendo aqui? Não sei ao certo definir desde quando, mas há muito tempo sinto que não tenho nada a fazer neste mundinho, nesta vidinha. Lembro que, chorando, andava pelas ruas da cidade, observando com grande desdém os homens que passavam e os encarava até o último momento. Com uma expressão de espanto, nada me respondiam quando, aos seus pés, eu lhes perguntava o intenso sentido da vida. Porém, eu era apenas uma criança e todos esperavam que quando a juventude viesse, as namoradas aparecessem, eu assumisse meu papel de macho e dominador, assim deixando para trás infantilidades como esta de pensar sobre o sentido da vida. Eu gemia

na porta dos quartos de meus pais, perguntando e gemendo, o que estou fazendo aqui? Mas os dois tampavam seus ouvidos com algodões ou tocavam uma alta música qualquer para não ouvir meus gemidos que rompiam a madrugada e a manhã adentro. Mais de uma vez, meu pai se levantou e com o velho chinelo de couro me surrava. Em poucos minutos ele corria para longe e de espanto gritava quando me percebia rindo daquela sensação. A dor me afastava daquela eterna sensação de deslocamento. Como se finalmente parasse minha alma de flutuar acima de meu corpo, das ruas, do concreto, da inutilidade da escola e voltasse para a realidade concreta, o que eu tanto desejava. EXPRESSõES! Out de 2012 | 06


As costas ardendo me concediam uma espécie de felicidade. Minha alma retornara ao corpo a fim de sofrer as penalidades da maldade. E não é impossível imaginar que eu me tornei uma criança masoquista, que fazia de tudo para apanhar dos pais, professores e dos outros meninos. Em casa, minha irmã mais nova sofreu toda minha maldade, perdeu cabelo, unhas, couro cabeludo e a paz, e meus pais me castigavam, batiam, me davam penitências enormes para uma criança afim de me ensinar o caminho correto do respeito, mas de nada isso adiantou e hoje, nem mesmo tenho respeito pela minha vida. Nas escolas, eu reunia um grande número de delinquentes ao meu redor, para ser o líder ou para que eles me batessem. Quando não havia necessidade de me baterem, facilmente eu arranjava e alguns meninos se vangloriavam enquanto me espancavam. A humanidade é composta por homens que gostam de sentir dor e por outros que adoram impor esta sensação sobre os outros. E na velha igreja que minha família se reunia todos os finais de semana eu era considerado um herege com o cão no corpo. E eu não culpava os velhos, pois eu merecia estes apelidos. Toda reunião, bebia um vinho que não devia, comia um pão que não era meu ou roubava dos pobres, que iam esmolar na frente das igrejas implorando para que o espírito religioso impelisse as mãos dos homens ricos para as moedinhas que lhes dariam o que beber e se drogar naquela noite. Nenhuma escola, igreja ou parente me aceitava mais e por isso fui encarcerado em casa pelos meus pais. Nesta prisão tive contato com homens realmente grandes que de uma forma ou de outra desdenhavam o mundo e se sentiam flutuando acima de toda normalidade. Quando terminei de ler razoavelmente seus pensamentos, eu já tinha a idade para ir à universidade, pelo menos foi o que me disseram. Nu, fui levado até uma grande escada onde fui empurrado pelo meu pai acima sem realmente ser agredido. Lembro que

havia uma escada e homens conversando, com jovens, mulheres e crianças correndo pelas colunas do local, mas minha mente era puro sofrimento e era como se realmente apenas metade de mim estivesse ali. Minha alma queimava e eu refletia sobre o fim de tudo aquilo. Neste momento, o temor do inferno já tinha passado à minha alma graças às leituras. Mefistófeles, o outro, a barca, o ranger dos dentes, o castigo: temia a toda estas coisas e por isso não retirei minha vida. Fui levado escada acima e apresentado a um homem qualquer... Eu teria que fazer um curso de direito para ser alguém. Meu pai acreditava que um curso exigente como aquele retiraria de minha cabeça as ideias velhas de suicídio e as ideias novas concebidas a partir da literatura. Ledo engano. Voltamos para casa e meu pai foi se drogar, sentar na frente da televisão e beber um veneno qualquer. Sentei-me perto de minha mãe e tudo ficou tão claro. Aquela mulher acabada pelo tempo descascava batatas para cozinhar para um homem que não amava nem sentia atração. E todo o mundo se fechava, se reduzia ao quarto, sala e cozinha... A vida se esvaia, os outros machos, os outros sexos, viagens, leituras, tudo se fechava. E penso que de fato ela nunca fora feliz, saltando de um órgão a outro, até engravidar de um infeliz, gerando um filho totalmente infeliz. A felicidade é uma verdade mal construída. É um jorro hormonal que engana nossos sentidos como uma droga qualquer, mas quando a produção é encerrada, voltamos ao mesmo descaso com as coisas, voltamos ao horror, que é a vida sem sedativos. Sentado à frente de minha mãe imaginava todas estas coisas e ela não levantou o rosto para me encarar. Sempre, desde o início eu fui uma vergonha para ela e mesmo fazendo o que todos esperavam, eu ainda era esquisito. Minha mãe era uma mulher bonita e eu poderia realmente transar com ela. Comecei a falar, e nunca havia me sentido tão bem desde a última surra que havia tomado. Escrevo

A humanidade é composta por homens que gostam de sentir dor e por outros que adoram impor esta sensação sobre os outros.

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como escrevem os outros homens, e pelo que me lembro, foi assim meu monólogo, que redigi em forma de carta e enviei para um endereço qualquer: mãe, eu te peço sinceras desculpas por ter nascido. Eu ouço você chorar alto todos os dias de madrugada porque eu não durmo. A dor não dorme. A fome não dorme. Mas eu quero que saiba que não sou o motivo de você ter fracassado enquanto mulher, enquanto qualquer coisa. Eu sei, desde o dia em que percebi os dias passar, que todo homem nasce fracassado porque a própria humanidade é um nojo, uma mentira. Você nem sabe o que é humanidade, estas questões não passam pela cabeça de uma descascadora de batatas, ou de um funcionário publico, ou de um artesão qualquer. Apenas homens sinceros sofrem desta doença e sinto ser sincero demais. Minha mãe levantou a cabeça e me disse as palavras que levo como minha única fé, disse que não poderia me salvar de mim mesmo. Abaixou a cabeça e pensei que eu não poderia fazer o mesmo por ela. Ninguém, salva, ninguém. Eu não tinha uma alma sequer a agradecer em minha última carta e por isso repensei se seria realmente necessário escrevê-la. Qual é afinal o sentido de uma última carta? Retratar a aqueles que se ama um último desejo, um último recado, abraço, dar conforto? Uma carta suicida é um verdadeiro engodo. O bom assassino de si mesmo não ama a ninguém, não possui desejos e não tem a necessidade ser eterno, ainda mais com uma ínfima carta. E por este motivo tudo que fora construído neste território até então deveria se destruído. Como todos os outros jovens, pensando em coisas inúteis, fui à universidade. Subi as escadas novamente, desta vez, sozinho e lentamente, me escorei nas colunas do prédio e por muitas vezes me cansei. Meu pai tentou me tornar um homem do Direito para me tornar um homem melhor. Perguntei pela turma em que me colocaram e fui direcionado por um funcionário abatido que arrastava os pés como se não quisesse se mover nem um

metro sequer. Eu poderia ter pedido que ficasse, mas fui cínico o suficiente para fingir ignorância e lhe provocar desconforto. Quem sabe, assim se sentiria vivo também. Mas, a cada minuto, ele olhava para trás e devia estar pensando na cadeira que estava sentado antes, que deveria estar lá e não acompanhando um estudante idiota. Arrastei-o até a porta e, chegando lá, pedi que ele me apresentasse ao professor e ele forçou um sorriso de forma tão desastrada que tive vontade de gargalhar. Me controlei e fiquei preocupado com todo aquele cinismo. O homem voltou rapidamente para sua cadeira, ligou uma pequena televisão e ali permaneceu até ser importunado por outro aluno idiota. Na sala de aula, nenhum aluno se encontrava. Só o professor, barba cheia, vestindo uma camisa de força aberta e uma calça suja me esperava. Não sabia como responder aquela situação, se me sentava ou se formalmente me apresentava ao professor como filho de fulano, neto de beltrano e tudo mais. Achei que isto seria desnecessário e permaneci calado e parado no mesmo lugar por alguns minutos. O professor lia e não parou de fazê-lo quando eu entrei na sala. Seu livro falava de muitas línguas, de homens em volta de fogueira, de forças e fraquezas, de homens de verdade, destas coisas que realmente importam e eu fiquei até um pouco feliz ao lembrar que já havia lido antes. Sem virar o rosto, falou que eu sentasse à sua frente. Retirou um papel imundo do bolso e me entregou. Era uma lista imensa de autores e era intitulada “para ler antes de morrer”. Sem me olhar falou que eu deveria ler todos os dias da manhã até o fim da noite na sala de aula, na frente dele e esgotar aquela lista antes de poder aprender algo de Direito. Sendo assim, me preparava para levantar e ir embora, pois não possuía o livro um da lista, quando ele puxou de sua bolsa o mesmo e ali fiquei até cair a noite, lendo. Descobri então que a mentira é algo saudável para a vida. Para continuarmos a caminhar por esta

Ninguém salva ninguém.

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existência única e débil, precisamos inventar uma série de mentiras. E eu poderia permanecer mais alguns anos naquela. Sentando todos os dias na cadeira e lendo coisas que de fato eu não entenderia, fingiria ser erudito para me enganar o dia inteiro e sofrer nos tentáculos da angústia durante a noite. Enquanto eu lia, meu professor, o velho, permanecia à minha frente sentado sem se mover. No início pensei que havia uma paz de espírito naquele velho, mais tarde descobri a verdade. Com a ajuda de remédios, o velho se drogava e a aparente calma, na verdade, era um dos sintomas da droga. Há muitos anos ele estava alheio do mundo, perdido entre os livros, tocado pela paz moderna pelos remédios e só assim podia suportar a vida. E este é meu caminho alternativo. O primeiro é a destruição de meu corpo, o tiro em meu crânio, o sentir a carne esfriar, a dormência e escuridão que se apossarão de meus sentidos levemente como a morte ou as drogas, viver uma vida sobre o jugo da pílula da felicidade. Não posso negar que existe outra dezena de drogas. O amor, verdade, família, status, riqueza, fama. Mas todas possuem o mesmo efeito: manter um corpo inútil vivo, ou melhor, afastar a arma da cabeça deste corpo. E, pensando assim, me drogando, cheguei em casa e percebi uma carta direcionada a mim. A carta possuía rosas desenhadas à mão e um perfume demasiadamente enjoativo. Sentei em minha cama e abri a carta com a apatia que beijaria o rosto de minha mãe. Uma história comovente. Uma mulher trabalhou durante tantos anos e juntou dinheiro para poder finalmente ter uma vida tranquila. Acontece que antes de poder gozar de sua recompensa, uma parenta ficara doente e ela teve que dar todo seu dinheiro para o tratamento. A parenta ficou curada. A mulher voltou a trabalhar com grande alegria, pois havia salvado uma vida. Anos depois, a vida (ou deus) a recompensou com uma morte calma e o paraíso. Li aquela carta com tamanho desprezo que a coloquei no chão e comecei a urinar em cima. Vi no

envelope um pequeno recado. A carta fora enviada por uma mulher que havia recebido minha primeira carta suicida. Então percebi que minha história poderia comover algumas pessoas e que de fato eu poderia me beneficiar com esta história de suicídio antes de cometê-lo. No dia seguinte, eu lia Notas do Subsolo e aprendia com o mestre que eu não era o único a pensar daquela forma. Fiquei na porta de minha sala e meu professor pouco se importou. Ele estava ali para ler e ganhar seu dinheiro e eu para ler e adiar o dia em que me mataria. Uma mulherzinha entrou na sala à frente e fiquei observando-a. Suas ancas e uma tatuagem que possuía logo acima das nádegas era um verdadeiro convite ao sexo. Tive vontade de fecundá-la e largá-la ao léu, com um filho barrigudo perseguindo-a por todos os lados e gritando que quer isso, quer aquilo, como um pequeno sátiro, como meu filho, ele não poderia ser algo diferente. Então eu fugiria para uma montanha distante onde viveria de meu ego, de minha literatura e de minha ânsia suicida e faria com meu filho assim como os deuses fizeram comigo, me largaram neste mundo de esperma e fezes, para sofrer como um cachorro velho, vivendo à custa de remédios e dores. Eu fui verdadeiro o suficiente para não me negar este direito doentio. Ela conversava algo inútil com alguém tão inútil quanto as palavras que se esvaziavam de sua boca. Cheguei ao seu lado e esbocei o sorriso mais mentiroso de minha vida para a mulherzinha enquanto o ser ao seu lado recebeu minha mais sincera careta. O jovenzinho se afastou, pois era apenas uma criança se dizendo inteligente, escritor ou poeta, quando na verdade nunca deixou de ser uma criança brincando com palavras e tentando seduzir jovenzinhas. Sinto uma espécie de pena desta espécie de artesão, que se diz escritor, que paira nos mercadinhos de camiseta e blusinhas verde-folha, com os pêlos do sovaco a mostra, a baba caindo no canto da boca ou cuspindo os que ouvem.

Para continuarmos a caminhar por esta existência única e débil, precisamos inventar uma série de mentiras.

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Quando me percebeu, saiu. Comecei a repetir todas aquelas palavras que li e estranhamente naquele dia eu não estava com o fedor característico que todo suicida possui. Os suicidas em geral fedem a hormônios do medo, temem a todo tempo retirarem suas vidas. Conversamos por muitas horas e acabou que quando entreguei a ela, dias depois, um texto que considero medíocre, ela me convidou para ir a sua casa. Lá, conheci seu pai e mãe, e mesmo com minha aparência doentia, eu fui realmente bem tratado. Chegou ao ouvido dos pais dela que eu era aprendiz daquele velho, mas eles não sabiam que o velho não ligava mais para a vida deles e muito menos eu, eu queria era montar a filha deles e largá-la logo em seguida. Assim, eu convenci aos dois que poderíamos nos casar. E minha família achou tudo lindo, meu pai até me prometeu uma pensão até quando eu me formasse naquele grande colégio. E todo meu plano ia bem. O velho ria de meu sadismo. Eu ria do sadismo que havia se desenvolvido em minha alma, assim eu me sentia cada vez mais humano. Meses depois, eu havia encerrado a leitura de alguns autores e o casamento ocorreu. Eu conseguia fingir alguma humanidade ao lado dela, beijando, sorrindo, aparecendo nas festas de família, mas na verdade ela era mais uma droga. Eu sentava ao seu lado e meu olhar vazio se distanciava para projéteis, canos, adagas ou qualquer outra coisa que pudesse retirar minha vida. Planejava doentemente o dia em que eu faria isto e eu queria causar o máximo de dor a todos de minha família. Não bastaria apenas me suicidar. Mas causar impacto e dor suficiente para que todos se matassem, um a um, como um vírus e por fim toda a humanidade se extinguisse a partir de minha primeira vontade. Nos casamos em uma bela festa e o velho foi um de nossos padrinhos. Ele sorria de meu sadismo. Após os festejos, a possui com uma fúria devastadora, ignorando quantos homens haviam invadido aquele pedaço de carne. Com meu direito adquirido, ejaculei

meu vício dentro de sua carne e naquela noite rezei pela primeira vez à toda mentira do mundo que ela ficasse grávida de minha violência. A vida de casado me pareceu indiferente pois eu continuava a estudar e ela também, mas logo sua barriga ficou proeminente e eu sorri. Os meses se passaram e dentro dela a pequena vingança se consolidava. O menino nasceu e eu não esbocei uma lágrima ou um sorriso quando isto ocorreu. Na verdade eu o abandonei no dia seguinte, partindo para uma cidade vizinha e gastando todo dinheiro que tinha em prostitutas e bebidas. Lá escrevi muitas poesias belas que hoje os homens leem como sinal de certa inteligência. Um tempo passou. Voltei para minha casa e pensava que seria espancado até a morte por aquela mulher, mas ela me recebeu com amor e isto me fez ter ainda mais nojo dela. A fraqueza da manada me enoja. O medo, a incapacidade de dormir sozinha no deserto com seu filho levam a mulher a aceitar seu homem, por mais imbecil que ele seja, de volta ao lar com o velho sorriso e a vagina aberta. Eu já estava acostumado a sofrer as dores do frio do deserto e por isto estar ou não no quente da manada não me incomodava. Assim, voltei para casa e até mesmos os pais dela não falaram nada. A lei estava, e sempre estará, acima de toda dignidade humana. Quando o homem abaixou seu tacape, sua fúria, ganância e fome em troca de uma lei, de uma casa quente, de uma peça de metal e uma familiazinha, ele deixou para trás toda sua dignidade. O artista é um ser que troca toda lei, casa quente, metal e família por um golpe violento de sua arte-tacape. Eu sou um homem que, na falta de encontrar um homem de fúria igual a minha, imolo minha própria existência até o fim, e não há mal nenhum em exterminar minha espécie. Eu sou um deus cruel. Escrevi à mão todos os convites. Eu atravessei exatamente quinze ruas, dei milhões de passos, vi cento e quinze pessoas passarem por mim, olhei o sol se pôr e não senti nenhuma sau-

Os suicidas em geral fedem a hormônios do medo, temem a todo tempo retirarem suas vidas.

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dade, vi crianças correndo e não senti nenhuma inveja. Comprei uma arma de cano curto, calibre trinta e oito. Paguei muito caro. Voltei para casa, vi um velho mendigando e por isso eu agradeci. Eu nunca chegaria aquela condição ridícula. Cheguei em casa antes dos convidados. Fiz a janta, uma bela macarronada regada com muito molho de tomate. Cortei com carinho a salada e ao fundo, Wagner tocava pela última vez para toda a humanidade. Um a um meus convidados foram chegando. Eu fui riscando a lista pacientemente. Pai, mãe, professor, mulher, filho, sogros, irmãos, amigos, padre, pastor. Todos foram sentando em volta da mesa para comerem minha refeição e agradeceram a deus por ela estar deliciosa. Conversaram sobre coisas que não me agradaram em nada. Uma só frase interessante me prenderia mais uma vez a este mundo, mas a mesma coisa de sempre, desde a vinda do salvador até hoje, a mesma coisa de sempre. Depois da refeição, sentaram todos na sala e continuaram a rir das piadas que meu pai fazia. Todas sem graça. Fui até o quarto, peguei a arma e a limpei mais uma vez. Esta morte não seria um ato de fraqueza, mas um atentado contra toda a humanidade. Na sala, com a arma escondida, falei a todos. “Desde meu primeiro maldito dia nesta vida, odiei este presente que me foi dado. Não sei explicar ao certo por que eu não consigo amar a vida como vocês, mas creio que sofro de uma doença genética, que não me permite acreditar na bela ilusão que todos acreditam, em história, em paraíso ou até mesmo em uma segunda chance. Os homens cantam suas músicas, vestem suas roupas, mentem suas guerras e continuamos por aqui na velha inutilidade de sempre.” – continuei – “Olho para a manada que acorda todos os dias para trabalhar ou para praticar o ócio, vejo os artistas que apesar de desejarem a divindade, são tão fezes quanto o boi que acabamos de comer. Toda humanidade é um gado, que acredita ser

superior ao que mata.”. E toda elevada expressão de arte evanesce hoje no ar, junto com minha vida. Veja, esta é a duração exata de todas as produções mais belas. Tudo termina no osso, na carne podre e no solo. O resto, de resto, é tudo invenção. Assim, puxo a arma e coloco contra a região temporal direita. Todos se espantam e tentam reagir, mas eu grito que fiquem parados. Dou o primeiro e último sorriso sincero de minha vida. Quase uma gargalhada. Digo que tudo que ocorre, é culpa de todos eles. Chamo o nome de meu filho e quando seus pequenos olhos se encontram com os meus, disparo. Minha massa cinzenta é arremessada contra a parede enquanto o sangue escorre do buraco e o cheiro da combustão que impulsionou o projétil se mistura ao vômito de minha irmã. Um grito de desespero. Um amigo começa a rir em pânico, mas na verdade todos tentam correr para fora da sala. E eu estava bem na porta. Aquela mulherzinha se casou novamente, meu filho se tornou um doente. Dois amigos meus se mataram, levando depressão e suicídio para suas famílias. Meu pai não fala desde então e minha mãe só chora. Meu professor adotou outro aluno e até passa as mesmas leituras, a vida continua inutilmente. Os sogros pouco ligaram, eles nunca sentiram nada por mim de verdade. Meu vírus se propaga até hoje e toda vez que, por minha causa, alguém se mata, estou lá para ver. E não, não existe inferno. Se existisse, eu não iria para ele. Na verdade ainda estou aqui, planejando cautelosamente meu suicídio e o executando centenas de vezes, enquanto tomo remédios que prolongam minha vida. Mas não importa o que faça, já estou morto.

Esta morte não seria um ato de fraqueza, mas um atentado contra toda a humanidade.

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Foto : Douglas Di贸genes

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Crônica

São Seus Olhos! Por José Danilo Rangel

Homens sustentam pensamentos a respeito de como as mulheres são e lidam com elas, não diretamente, mas segundo essas ideias. Com as mulheres acontece o mesmo. Exatamente o mesmo, elas assumem que homens são de certa maneira e passam a lidar com eles a partir das ideias que deles têm. Isso é normal. É possível imaginar a quantidade de problemas que isso traz para as pessoas. Imaginemos que um homem completamente convencido de que mulheres são mesmo chatas e nunca vão entender como é bom jogar videogames encontra uma mulher que gosta muito de videogames. Ele vai pensar, “ou tem algo errado com ela, ou ela vem de outro planeta, as mulheres daqui são todas de outro jeito”. O mesmo com as mulheres que, no decorrer da vida, cedo ou tarde, passam a crer que nenhum homem presta. Consideremos que algum deva prestar e é encontrado por uma mulher com o pensamento convencional. Ela vai pensar “tem alguma coisa errada com ele”. Mas o ruim ainda não é isso. Ruim é o fato de as pessoas com uma estante cheia de estereótipos não lidar senão com seus próprios estereótipos. A despeito da realidade daqueles com quem lidam, algumas pessoas fazem o

mundo caber nas suas próprias classificações, tratando-o segundo o que é sugerido como melhor tratamento para este ou aquele tipo. Por exemplo, político é corrupto, policial é violento, roqueiros são do demônio, pastores evangélicos só querem dinheiro, e por aí vai... De qualquer modo, talvez não haja pior lugar para ser tratado segundo um estereótipo do que no ambiente de trabalho, nem pior pessoa para encaixar você dentro de um do que o seu chefe. E minha antiga chefe, não era apenas uma chefe terrível qualquer, diziam que ela tinha sido ensinada pelo próprio senhor do submundo, para atazanar a humanidade, diziam isso e ainda muito mais, mas nunca pude confirmar tais informações. A mulher era de tal maneira insuportável que quando algum novato dizia que ia para o setor que ela chefiava, todos os presentes faziam um minuto de silêncio. Chamavam-na de generala, general, mal amada, mal comida, assistente do cão, dentre outros, muito mais vis e menos publicáveis, mas o mais significante era o apelido de pequenez raivosa, pois, observando-a, sempre com as orelhas em pé, o passo rápido, a fala rápida e curta como breves latidos, os olhos negros e atentos, os modos EXPRESSõES! Out de 2012 | 14


sempre de quem está prestes a fugir ou morder, era fácil entender o motivo da alcunha. Dentre todos os defeitos que ela tinha, um se destacava, elevava-a do nível chata “pacarai”, para o intolerável sem gelo e limão: ela não só estava completamente convencida de que servidores públicos são uma cambada de preguiçosos que investem mais esforço para enrolar no trabalho do que trabalhando, como tratava a todos os seus subordinados segundo o axioma. Crente de que todos estavam tentando enrolar, ela estava sempre à espreita, sempre desenvolvendo meios de manter os “preguiçosos” trabalhando. Bisbilhotava os computadores, que tinham, exceto o dela, os monitores voltados para o centro da sala. Controlava a saída e entrada de todos, o tempo que passavam conversando, o tempo que passavam fora da sala. Sempre que alguém saía, tinha que dizer onde ia e o que ia fazer, então, se ela não dizia nada, a pessoa podia sair. Se a saída demorasse mais que cinco minutos, ela mandava algum estagiário ir chamar de volta o passeante. Chegou ao cúmulo de regular o uso dos banheiros. Preciso dizer que ela era uma pessoa frequentemente alvo de hostilidade e seus atos prepotentes conteúdo de piadas internas? Geralmente, em repartições públicas, o primeiro momento da manhã é destinado ao café, no nosso caso esse momento inicial do turno durava exatamente o tempo de mastigar meio pão e beber um tanto de café. Só. Se alguém pegava um pão a mais, era pra enrolar. E como era fácil ela ver alguém enrolando. Tudo o que fosse diferente de estar trabalhando, fosse o que fosse, tomar café, beber água, ir ao banheiro, contar ou rir de uma piada, mexer no cabelo, bocejar, tudo, era considerado enrolação. Assim, não importava o quanto trabalhávamos, a despeito dos esforços dirigidos às atividades próprias das funções, sempre estávamos sendo tratados como quem não fazia nada. A esperança, para alguns, é uma coisa boa, porque mantém pessoas em caminhos, para outros, contudo, é algo mau, porque mantém pessoas nos mesmos e tristes caminhos. Deu para entender? Vou explicar melhor: a esperança até pode ser algo bom, quando você, acreditando em um resultado, permanece firme em um propósito, quando, contudo, todos os indícios mostram o contrário, a esperança é mais um tipo de estupidez derivada da credulidade do que qualquer outra coisa. No nosso setor, podia até demorar um tempo, mas todos acabavam entendendo que não havia meio de a chefe mudar, e quando se perdia a esperança de ela mudar e passar a reconhecer o trabalho executado, o que aconte-

cia? A gente passava a investir mais esforço para parecer que estava trabalhando do que em trabalhar. A lógica era simples, se por mais que eu faça muito, sempre sou tratado como fizesse pouco, e ainda sou avaliado segundo a perspectiva de uma paranoica, não há motivo para trabalhar. Quando, abandonando as esperanças, entendíamos e nos conformávamos com isso, desenvolvíamos meios de parecer estar sempre trabalhando, alguns viviam despenteados, outros só conversavam sobre os relatórios que deviam entregar. Era como se sempre estívessemos operando no máximo, quando, na verdade, fazíamos o mínimo possível. Isso, sem falar que só agíamos assim, na presença dela, mal saía a jararaca e fazíamos praticamente uma festa. Fácil supor que a demanda gerada para o nosso setor, que não era pequena, era apenas muito morosamente apreciada por nós, os subalternos, o que trazia muitos problemas para a chefe, porque ela respondia à diretoria, nós, os subalternos, não. Nós respondíamos a ela e estávamos ocupados demais fingindo trabalhar para trabalhar de fato. Ela, que ostentava como única qualidade perceptível a mesma obstinação que tinha mais como um defeito, não apenas desconfiando, mas tendo a plena certeza de que estava rodeada por uns incapazes, acabava assumindo para si o total das responsabilidades do setor. Assim, ela, que tratava para que trabalhássemos o mais que pudéssemos, era praticamente a única pessoa que realmente trabalhava num setor com mais de dez pessoas, os subalternos. E foi por esse motivo que ela organizou uma reunião geral do setor, reuniu desde o pessoal da limpeza, os oprimidos estagiários (que faziam de tudo, menos qualquer coisa que tivesse a ver com seus cursos), os assistentes administrativos, os assistentes técnicos, enfim, todos. Sentados, apenas ouvíamos os latidos. Ela falou de um, falou de outros, falou de todos, sempre o mesmo discurso, assim não dá, assim não pode, é muita preguiça num setor só, e blá blá blá. Estávamos todos sérios, acredito que a maioria, na verdade, estava prestando atenção a cada gesto para caricaturar e rir depois. Ela, então, voltou-se para um dos nossos colegas, famoso por suas brincadeiras em momentos inadequados, fitou-o com o seu olhar de pequenez raivoso e disse: - E você, fulano de tal, que não faz nada! Ao que ele respondeu com uma cara de “eu quero mais é que se foda”: - São seus olhos! ........................................................ EXPRESSõES! Out de 2012 | 15


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A CAVERNA DOS SÁBIOS Por José Danilo Rangel

MITO Deixa o homem a primeira caverna E porque descobre lugar mais claro, Bem logo, supõe-se “o vivente raro”, A quem embuste algum já não governa. Porém se engana, abraça outra quimera, Age outra farsa além da fenda aberta; Somente alcança com a descoberta O luzente engodo que nela impera.

Acha a multidão na redoma escura, Ainda pelas formas entretidas, Tal como antes de sua feliz partida, Idolatrando as sombras da clausura. Mais intenso sente o dever do aviso, Quando volta àquela gente presa, Quando no pátio escasso de beleza, Não encontra motivo para riso.

Na nova cúpula, onde agora pisa, Caprichoso portento se revela; É uma encenação, bastante bela, Que fulgente mistério realiza. As luzes, vibrando de lado a lado, Apresentam maravilhosa cena, Por palco tendo uma amplidão pequena, Por público, o juízo fascinado.

Atravessando o sombrio recinto, Para o centro corre da obscura trama, De lá, a incerta verdade proclama, A todos ofertando o domo distinto: “Despojai-vos disto que vos encilha, Desta treválica fonte de enganos, Pois para além do que enxergais, humanos, Há resguardada grande maravilha.”

Pelo teatro das luzes seduzido, Venerando a graça reluzente, Não duvida, pois o admirar não consente, Da firmeza do bem ali contido. Recolhe, dando por nome verdade A isto que vê na deslumbrante esfera, E à triste caverna, prisão austera, Retorna, que em dizê-lo tem vontade.

Bem rápido, todos têm grande susto, Ouvindo a tal mensagem proferida; Dizendo falso o que sabem da vida, Tudo o que conhecem, dizendo injusto. Satisfeitos com sua própria mentira, Porque estão nela bem acomodados, Desprezam os absurdos exaltados E aquele ser que da boca os atira. EXPRESSõES! Out de 2012 | 16


A poesia Mito, já antiga, de 2008, é de quando eu ainda desrespeitava sintaxe, semântica e tudo mais em prol da deusa serena de Bilac, a Forma. Ela trata exatamente do entendimento a que cheguei depois de ler o Mito da Caverna, de Platão, entendimento que só agora, depois de anos e anos, amadureceu e acabou por me incentivar a escrever o texto a seguir, junto com outras influências que a vicissitude de todas as coisas submetidas a minha subjetividade. Coloquei-a aqui, por achar que, apesar de muito falha, seus versos e, especialmente, as ideias contidas neles, têm tudo a ver com o que vem a seguir. 1. COISA DE QUEM LÊ Uma coisa que acho comum entre aqueles que leem, e que tomam o que leem por verdade, passando a tentar impingir como verdade o produto de suas leituras, é o fato de eles se tomarem como salvos da ignorância, da cegueira que dizem sofrer os amadores de Big Brothers, Tchu tchá tchá tchu, as fieis e os fieis telespectadores da TV, e ainda muitos outros grupos. Não é bem assim. Falo como quem já foi um daqueles a quem me reporto. Durante muito tempo, depois de ler muita filosofia e literatura em geral, assumi como minha própria, a realidade angariada nas compulsões cotidianas. Contribuiu para o equívoco, assim como para o perduro da postura por ele sustentada, um tanto considerável de idealismo e outro tanto, ainda maior, de obstinação. Minha sorte foi exatamente o fato de a minha obstinação ser maior que meu (antigo) idealismo, de tal modo que sempre fui menos dos que sonham e mais daqueles que ficam para ver o que acontece, que vão até onde dá, e foi ficando e indo que acabei conseguindo por fim, experimentar as grandes desilusões que, além de muita frustração, vergonha e outros e sentimentos autodepreciativos, trouxeramme a oportunidade de recomeçar, de tentar de novo. 2. O SALVADOR Imaginando o momento quando aquele personagem platônico deixa a caverna, não posso deixar de incluir certa dramaticidade: ele sai, e a primeira sensação que experimenta é uma terrível dor nos olhos, desconforto muscular, e sua insignicância perante o

que se estende bem a sua frente. Não é uma terrível descoberta, antes de ser boa, encontrar além da irrealidade do espetáculo das sombras toda a intimidante extensão de um mundo que se apresenta ainda inexplorado? Depois, sim, num segundo momento, quando ele esfrega os olhos e faz uns alongamentos, finalmente, entende e se maravilha com o que experimenta. Imaginar esta segunda parte, também é fácil. Depois do susto, do grande susto acompanhado pelo entendimento do erro, ele fica mais à vontade no vasto descampado onde sua inquietação o levou. Imaginemos, para o bem da metáfora um como e um porquê pra ele ter arrebentado as correntes e assim, ter conseguido atravessar a entrada

Não é uma terrível descoberta, antes de ser boa, encontrar além da irrealidade do espetáculo das sombras toda a intimidante extensão de um mundo que se apresenta ainda inexplorado? da caverna e ir lá fora. Vejamos a ele, inquieto, não porque desconfia de que haja algo lá fora, acontece, contudo, que o ângulo de onde vê as sombras passeando na parede não o favorece, assim, ele não vê o que todos veem, e se vê, não o faz como todos o fazem. Ele sente, então, que perde algo, que algo passa batido, então, esforça-se, não para se libertar, mas para aprumar os olhos ao modo como estão os olhos dos outros, para, enfim, ver como todos veem. Impaciente, considerando que não pode participar direito do grupo dos prisioneiros da caverna, já que a conversa é sobre as projeções na parede e, como ele sente não estar vendo direito, não pode fazer comentários sem que riam dele e de suas opiniões esquisitas, ele se debate mais, e mais ainda, até que um grilhão se rompe, ele se ajeita, mas ainda não consegue ver, debater-se mais parece uma boa ideia, ele o faz, e assim, até estar completamente livre. Contudo, mesmo regulando o ângulo, ele ainda não vê como todos veem, e daí para frente é fácil imaginá-lo EXPRESSõES! Out de 2012 | 17


andando pela caverna, interessado em seu intuito de feios e acusá-lo de herege, doido, entre outras coisas. ajustar a visão à visão geral, fácil também, imaginar que é assim que ele encontra a saída, e sai. O problema da saída, contudo, não está nela mesma, mas na volta. 4. DESNUDANDO O SÍMBOLO Um dos males da pós-modernidade, de3. O INTERESSE GERAL nunciado, por Baudrillard e também por outros, recai sobre o fato de haver representações sobre representaNão sou o primeiro a defender a necessi- ções. Considerando isso, ao parar para se ler um filme, dade social do homem, Aristóteles o chama de o ani- que já é uma representação, o que se cria é uma leitura mal social, ou por outro nome, que no fim, quer dizer da leitura, considerando tal dificuldade, passo a ligar a o mesmo, mas com outras palavras. Sendo um animal metáfora acima ao conjunto de pensamentos e obsersocial, o homem precisa viver em sociedade. Óbvio. vações que me levaram a elaborá-la. Assim, alguém Talvez não seja tão óbvio a forma como ele pode satisfa- perguntará, e por que não disse logo e pronto? Em zer tal necessidade. Sendo um animal que sente, talvez o homem precise se sentir integrado à sociedade, sendo um animal que pensa, talvez o homem precise pensar-se integrado à sociedade, e um tanto mais adiante, Sendo um animal que sente, talvez, ele precise sentir que se integra à sociedade talvez o homem precise se também a partir de seu pensamento e pensar que se integra a sociedade a partir do que sente. Confuso? Ainsentir integrado à sociedade, da o é para mim também. Vamos ver se consigo deixar sendo um animal que pensa, mais claro ainda falando sobre o homem da caverna. talvez o homem precise penSua sensação de deslocamento, responsásar-se integrado à sociedavel pelo esforço que acabou por retirá-lo de vez de dentro da caverna, que pode ser considerada como a redode... ma ideológica da comunidade da qual participava, se dava, pelo menos segundo o que está descrito acima, pelo fato de ele ser incapaz de entrar em acordo com a perspectiva geral a respeito do balé de sombras acon- verdade, vos digo – os símbolos são um ótimo recurso tecendo na parede, sua liberdade, fora angariada exa- didático e, afinal de contas, faço poesia, assim, tenho tamente pelo intento maior de ver como todos viam, uma certa experiência com imagens e sua importância. intento frustrado. Frustrado não quer dizer eliminado. Isto claro, vamos ligar as figuras aos seus Digamos que o intento continue mesmo equivalentes reais segundo, claro, minha concepção, depois de ele dar uma volta lá fora, como então, ele o que é, exatamente, o que vos ofereço. Quem são os satisfaria? Simples, retornando à caverna e avisando a prisioneiros da caverna? Fácil não? Aqueles que estão todos sobre o que havia lá fora, e aqui é que é preciso hipnotizados pela mídia, os que assistem filmes, novese perguntar se assim o fez para livrar os outros da es- las, seriados e outras produções e assumem o conteúdo curidão ou para iniciar uma nova redoma ideológica dessas produções como reais, adotando seus valores, sob a qual seria o principal estabelecedor, reduzindo suas interpretações da realidade, o comportamento e assim a possibilidade de entrar em desacordo com a as disposições nelas introduzidos. Assim, já sabemos o maioria. Simples assim, ele volta para tentar conven- que é a caverna, os aparelhos de TV, computadores, oucer a todos a compartilhar da realidade que acabou de tdoors, jornais, revistas, são as paredes da caverna. Sedescobrir. Retornando à caverna, e talvez, ainda muito guindo a lógica, o que seriam as sombras? Exatamente empolgado com a possibilidade de satisfazer uma das o que é transmitido por estes meios. Agora, quem é o suas necessidades de humano, de animal social com fe- indivíduo que se libertou e foi lá fora? Todo aquele que nômenos mentais específicos, lança-se ao trabalho de leu qualque besteira e sente o mais sábio dos homens. romper os grilhões dos conterrâneos... O que acontece a seguir? Matam-no. Não antes de o chamar de nomes ..................................................................... EXPRESSõES! Out de 2012 | 18


Foto : Douglas Di贸genes

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Literatura em Rede

Sobre Estátuas e Heróis

Por Rafael de Andrade e Rosa Vilela Lendo as notícias que temos hoje em dia, quando novas informações quanto às atrocidades cometidas na ditadura militar até então escondidas nos porões de nossa história, vendo o histórico daquelas trajetórias de vida, acompanhando o que acontecia com as mentes brilhantes que lutavam por um país melhor, um mundo melhor, não é difícil ficar realmente emocionado, ainda mais quando se tem a perspectiva de uma nova forma de organização social, um mundo mais igualitário. A emoção é composta por um misto de pensamentos. A tristeza por imaginar o quanto esses heróis sofreram e a dor pelo sentimento de companheirismo que é impossível não nutrir, o sofrimento por ver que demônios torturadores ganham amparo dessa maldita “justiça” brasileira, que os cobre toda noite em um calor maternal e moralista com essa bandeira IMUNDA de sangue. Sentimos raiva por ter que can-

tar um hino nojento de um Estado nojento, podre e dominado pela imundície. A história é feita pelos vencedores – os militares são nomes de Estados, Escolas e o que são aqueles guerreiros da liberdade? São tratados como bandidos e não como militantes políticos. O que queriam esses guerreiros? O que querem os que soltaram esses demônios do inferno? Quais são as consequências que sentimos hoje em nossa realidade devido o assassinato dessas ideias revolucionárias? O que esses heróis nos diriam hoje? Fato é que a esquerda deixou de ser, em muitos aspectos, revolucionária. O capital impõe sobre nossa juventude uma apatia angustiante, uma busca incessante pelo dinheiro que não trará nenhuma forma de liberdade, pois estão presos. Não meus caros, não nos referimos aos que lutaram e depois se venderam, pois os que se venderam nunca foram lutadores de alma e isso é bem coEXPRESSõES! Out de 2012 | 20


mum, nos referimos aos que lutaram e lutam ainda, aos que não delataram seus camaradas, aos que cuspiram na face do inimigo diante da morte iminente, aos que se mantém firmes até hoje, aos que não tiveram medo. Esses nomes deveriam ser nomes das escolas, praças, ruas, rios, cidades... Eles que devem ser lembrados, não os heróis assassinos de negros, indígenas e de pobres que povoam a história do Brasil. O quanto sofreram e sofrem as mães que tiveram seus filhos, filhas, maridos, irmãos assassinados? Se orgulhem senhoras, pois as suas lágrimas são menos dolorosas que as lágrimas das mães dos demônios que torturavam a liberdade dos homens. Os pais dos guerreiros da liberdade, esses seres tão incríveis, devem se orgulhar por terem posto no mundo pessoas tão fantásticas, seus filhos não eram aberrações, o mundo que sanciona a liberdade em prol de uma minoria, esse sim é uma aberração. Aquele que dá sua vida pela liberdade do outro verdadeiramente é uma explosão de diferenças, de forças que contradizem o que se chama de vida moderna, de homem moderno. Ainda assim nos emocionamos com essas informações, nos emocionamos por que elas não estão distantes. Uma das coisas que os revoltosos da liberdade queriam era liberdade de expressão, mas uma expressão política e cultural realmente transformadora da sociedade e libertadora para o povo, diminuindo a opressão da ideologia dominante sobre os sujeitos, a liberdade sexual para as mulheres para que houvesse um respeito a elas e não para que fossem usadas como objeto sexual, mas apenas de forma diferente. Eles lutaram bem, foram à primeira batalha e não foram vencidos, seus corpos ou esperança podem até ter sido destruídos, mas seu legado não, suas lutas ainda inspiram jovens a cada dia, sua coragem, ânimo e liberdade sempre serão um bálsamo e um consolo às novas gerações, assim como um elemento motivador. Por outro lado, podemos afirmar que atualmente não há mais DOI-CODI, os demônios já usam dentaduras, oficialmente a ditadura terminou. Mas hoje seus herdeiros políticos já encontraram novos porões, novos paus-de-arara, novos afogamentos: e a

arma hoje é talvez até mais eficiente. É a alienação, a falta de informação, a televisão, a escola, os livros didáticos, as rádios. Por que o uso da força se eu aniquilo antes de tudo a possibilidade do desenvolvimento de pessoas críticas? Muito mais eficiente para os gerentes de turno jogar qualquer carniça para os que estão com o cérebro inativo saborearem como filé fazendo com que eles nem saibam que existe um filé, ou fazê-los acreditar que o filé é mau. Isso meus caros explica pra mim o porquê de hoje não ter mais ditadura militar, não foi o Estado que mudou de ditatorial para o democrático, ele simplesmente deixou de usar choque elétrico para usar o Michel Teló. A manipulação das subjetividades é mais eficiente do que o controle violento. Essa é a vital diferença entre 1984 de Orwell, onde há um plano tirânico de controle total pelas leis e punições ao passo que em Admirável Mundo Novo de Huxley, as pessoas são controladas pela transformação de suas vontades em algo manipulado pelo Estado mundial. É essa diferença nos dias de hoje, fazendo com que os grevistas cantem o hino nacional, o hino que se fez tocar para comemorar a morte dos revoltosos. Mas como nem tudo são flores, não são flores nem para os gerentes que ainda precisam lidar com os resquícios, os filhos da revolta, os idealistas, os que por algum motivo ainda não compreensível não se renderam à tentação, da ostentação e promessa de riqueza que o capital nos impõe desde tenra idade. Esses são aqueles que recusaram a passividade política para se tornarem percussores da luta nos tempos atuais. E esses meus caros, conseguem pelo menos imaginar o que seus companheiros passaram, pelo menos os estudantes de cidade grande ainda não sentem o que sentem os valorosos camponeses revolucionários, mas sentimos o que certamente nossos antepassados viveram e que talvez seja a pior das dores: o silêncio. Não é ser pintado de “comedor de criancinhas” como eram pintados nossos companheiros pela igreja e mídia sendo que depois se descobriu que na

Seus corpos ou esperança podem até ter sido destruídos, mas seu legado, não!

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verdade era o contrário, a difamação faz parte e isso de pouco importa por que nossas ações nos mostram de fato, enquanto aos repressores suas palavras e atos os contradizem. Para os que lutam, a maior violência é ficar com nossos gritos presos no peito, é não poder mostrar aos que ainda não enxergaram o outro lado da moeda. Emociono-me por querer ouvir o que eles teriam a me dizer e imaginar se um dia poderei dizer o que tenho comigo. Acreditamos na educação e no estudante como principais atuantes nesse processo de luta e transformação: uma educação emancipatória, visando à autonomia é um dos passos fundamentais para a criação de um país verdadeiramente democrático e socialista. Também nos dói ver uma juventude que possui algumas liberdades hoje, graças aos que morreram nos porões da ditadura e ela não sabe aproveitá-las de uma maneira digna e se deixa levar pela correnteza do rio da ignorância, passividade, alienação e falsa vida no capital. Mal sabe essa juventude que pisa em sua própria cabeça quando age dessa maneira, mal sabe ela que esta se deixando enganar. Não se vendam por tão pouco, suas ações, sua criatividade, sua juventude, ideias, coragem, inocência... Valem tanto. Valem a derrubada de um corrupto (como o exemplo que deram os estudantes da Universidade Federal de Rondônia na greve que levou à mudança de um cenário político de anos), valem a libertação nacional, um desenvolvimento humano e em larga escala e trabalho árduo e contínuo, valem até a libertação mundial para o povo dessa ideologia maldita a qual somos feitos escravos. Pedimos que essa juventude não se venda por tão pouco pelo menos não subestime sua própria inteligência e capacidade, o mínimo pelo menos é não ser tão sugestionado ao ponto que nem sequer procure se informar sobre o mundo que está ao nosso redor. Isso é o básico que se espera de uma espécie que até a lua já foi – será que foi mesmo? Foi por nós que lutaram aqueles guerreiros da liberdade, se matarmos nossa memória, matamos também nosso futuro. Ao aceitarmos apenas a memória dada e pronta do vencedor, matamos de fato aqueles que foram a voz contrária da liberdade e acabamos por nos matar enquanto esperança de mudança. Não é nada confortável imaginar o que esses companheiros sofreram, a repressão dói, machuca e pode ser responsável por consequências inimagináveis, entretanto, ela nos desperta para ver o que está

por trás da capa, a se indignar, a gritar e ir cada vez mais além à luta. Quem sofre repressão, seja armada ou não, não têm como não sentir o que eles sentiam: é um sentimento cúmplice, por nós eles lutaram, em memória deles, por nós e pelas gerações futuras, devemos lutar. Não adianta nos acusarem por sermos assim: nos chamem de revolucionários, comunistas, anarquistas, rebeldes, vândalos, desbocados, mal educados, terroristas, enfim o que quiserem, mas saibam enquanto fizerem isso sem saber do que falam estarão apenas sendo úteis para manutenção do absurdo e reprodução da barbárie. A nós não interessa os adjetivos e sim as ações: as mentes abertas para ouvir um outro ponto de vista, os dispostos a lutar junto nas mais variadas esferas da luta (das salas de aula, resistência das comunidades tradicionais e dos homens e mulheres do campo), os curiosos corajosos, medrosos, mas honestos , os combativos, indignados. A perspectiva dialética do mundo é uma dádiva, ela nos move e move o mundo: o choque é inevitável e não nos calaremos diante a repressão. Podemos ser poucos, mas iremos até o fim, sempre haverá uma geração após a outra e cada uma delas terá seu Che Guevara, Marx, Dalai Lama, Gandhi, Lenin, Lamarca, Prestes, Pagu, Rosa Luxemburgo, Olga Benário, entre outros. Cada mosca deixará lugar à outra, na resistência. E quanto a esses infortúnios sempre presentes, contamos com uma mudança na realidade social. De gota em gota de sangue, lágrima e suor derramados por guerreiros do povo, uma hora o copo se encherá e transbordará. Nessa hora vamos cobrar uma conta e dar de cipó de Aroeira no lombo de ditadores e exploradores. Cobraremos nossa conta, o oprimido cobrará sua conta. Dividimos com esses heróis o sonho de um mundo mais igualitário. E mais, pensamos que são eles que deveriam ser transformados em heróis. Quebrem as estátuas dos positivistas, racistas, machistas, eurocêntricos heróis brasileiros e não formem outras novas: guerreiros da liberdade não geram estátuas, mas novas formas de revolução. Porto Velho, Setembro de 2012.

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Foto : Douglas Di贸genes

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QUAL A FACE DO AMOR? Daquele amor que navega em águas salgadas. Do que despenca de estrelas, Do que salienta a mesa, E o que desnorteia a palavra. Do amor de doçura à boca, De amarga lágrima, De falsas fadas E que assaz coroa. Do amor inquieto e reverso, Do amor tranquilo e incisivo. Do amor que tu sentes, Do amor que eu sinto, Seja de uma brisa que mente, Seja de um tornado colorido.

Laura salgado

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O POUSO Quando ele fala Tudo emudece. Pois nada e absolutamente Ninguém ousa ser contra. Suas palavras abrandam o espírito angustiado, A alma entorpecida e o corpo Enfadado. No ar, na terra ou mar, Tudo! E todos se prostram ante o seu agir. Doçura, firmeza, eloquência, São emoções transmitidas E que inebriam o momento. Pois quando ele chega, O incrível torna-se palpável, O incomensurável tão real, A felicidade estampa-se nos olhos, E nota-se o sorriso mais lindo E inexplicável. A inquietude já não existe E a força que pensávamos ter desvanece. Render-se é ser sábio. E não se permitir sentir é ser louco. É perplexo sim, e por isso mesmo É extasiante. Meus olhos vislumbram E meus olhos sabem muito Bem o que é sorrir. E se, o Sol se exime, O vento cala, O mar apazigua; É quando ele, Somente ele, Vem doce e lentamente Pousando sobre mim: O Amor.

Laura Salgado EXPRESSõES! Out de 2012 | 26


OFICINA DE TEATRO pouco aprende da viagem quando precisa chegar pouco gosta da comida quando precisa comer pouco sente do carinho quando tem hora pra dar pouco gosta da vassoura quando precisa varrer pouco admira a asa (disse um pássaro) quando precisa voar pouco se demora no abraço quando precisa abraçar a rua vem, quando a gente quer quem. A gente encontra, reencontra, andando com a cabeça no pé. Sabe como o ator aprende a utilidade cênica de uma escada? Ele sobre escadas

Elizeu Braga

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ANDORINHAS Nômades a trazer boas novas Um marinheiro ergue as mãos aos céus Unidas são felizes Unidas são fortes Ógea elegante seduz e só de uma oportunidade precisa Um canto emite Código de salvação O céu cruzam Cansadas da viagem elas chegam Muito horror pelo caminho O voo triste prenuncia a catástrofe O céu cinzento ( não vai chover ) É o novo ar que se respira As esperam Postes e fios Copas das árvores ( as poucas existentes ) Meninos que sonham... O som que produzem é tão lindo Difícil não parar para ouvir e ver À noite a brisa refresca os corpinhos Casais de andorinhas se afagam e suspiram Na árvore o calor é mais natural Correntes gigantes se aproximam Bicharada faz suas últimas preces... Na árvore um alvoroço Ai Lágrimas em forma de peninhas cobrem o chão No céu as sobreviventes olham a cena Alguém acende um cigarro e ri de todos Até quando Até quando Até quando...

Leo Vincey In: http://poesiemfoco.blogspot.com.br/

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HEMORRAGIA DA SOMBRA O fôlego axiomático que entope os brônquios, ataca-me como a estaca de prata cravada no peito do vampiro. Grito rascunhos de silêncio ao sentir a alma cortada. Pareço estar imerso no oceano mais profundo. A filosofia do sofrimento aumenta a dor dualística conscientemente sentida; Orquestra de ondas sinápticas sintonizadas com a morte. Lacro as pálpebras e digo: - Haja trevas sobre a terra! Semelhante a deus me torno, no entorno das línguas antigas. Sou minha própria religião. Aqui dentro mora milhares de cópias de mim mesmo. Legião ligada às coisas secretas; A sanguessuga me consome... - Alimenta-se de escuridão.

Melquizedeque Alemão In: http://arte-histico.blogspot.com.br/

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“é poeticamente que o homem habita a terra”

o poeta a terra habita o poema a terra inventa a poesia passa & fica no verso que apimenta poeticamente minto & pateticamente canto

Rubens Vaz Cavalcante In: http://rubensvazportovelho.blogspot.com.br/

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AMOR MAROTO estar feliz quando ainda um raio de luz ilumina a sala de estar do meu coração aprendiz

Rubens Vaz Cavalcante In: http://rubensvazportovelho.blogspot.com.br/

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Visões Poéticas

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TEMOR Texto: César Augusto Fotos: Henderson Baena

Temo eu, na reviravolta das palavras... Ver meu pesar rasgando com travas Esse pouco querer de meu ser profundo movo as bagagens de meus pesadelos e apesar de suas vertentes serem medos ainda tanto pondero que me inundo... temo em minhas ciladas, todas as desventuras... todas as saudades e diante delas as posturas que desejam mais que a dor expoente... mais que a vida em seu interno leito mais que a suplica ao nó desfeito em minha escala de liras transcendentes... temo no entardecer dessa sutil sobriedade adormecer meus lapsos em certa castidade que segue meus versos na frígida carência temo que do grande vasto, só use uma parte temo ponderar, temo todo esse dislate como angustio temer essa rimada sapiência temo o andar das estrofes... os contos que me levam ao norte.. temo tão convicto que trincam os dentes! Em palavras que destoam o impassível tento escrever meias linhas no impossível... derreter de meus desejos frementes! Ah! como anseio e temo este paraíso etéreo que adormece de terror sidéreo... em lembranças do vultuoso afago desejo e reprimo este calor latente que alimenta minh’alma com o poder fervente que me torna lancinante como um mago... temo, repudio e revolto... o tudo que em mim adormece e devoro... como em um calabouço infinito de trevas como uma força em que me anulo... e cada vez que mais temo e recuo... em cada milímetro de minhas vértebras... ........................................................................... Para mais de César Augusto, acesse: http://sempropositodeproposito.blogspot.com.br/

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História Real por Laisa Winter

História Real (The Straight Story,1999), do diretor David Lynch, narra a história verídica de Alvin Straight (Richard Farnsworth), que no ano de 1994, aos 73 anos, ao saber que o irmão havia sofrido um derrame, toma uma decisão inusitada. Com a visão comprometida e sem permissão para dirigir, Alvin decide fazer uma viagem percorrendo mais de 500 km em cima de um pequeno cortador de gra-

ma. Há mais de 10 anos sem falar com seu irmão Lyle, Alvin finalmente decide que é hora de reatar. Sua viagem é uma despedida da vida e uma penalidade que é quitada a cada quilômetro. Alvin é um homem simples, de olhos gentis e com grandes lições a dar. Em cada lugar que passa compartilha suas mágoas, ressentimentos e acertos. Sempre disseminando sua sabedoria, às vezes, EXPRESSõES! Out de 2012 | 34


Ninguém pensa na velhice quando é jovem. Nem deve. Não vejo vantagem em ser cego e coxo ao mesmo tempo, mas... Na minha idade, vi quase tudo que a vida tem para mostrar.

sensível, às vezes amargo. É um filme que nos mostra que as coisas mais simples são, realmente, as que importam, são mesmo as que possuem maior validade. Bem clichê, eu sei, mas quantos filmes bem sucedidos desse gênero você conhece? E entre esses, quantos não precisaram fazer uso de um ator bonitinho, hit entre adolescentes? História Real possui uma trilha sonora impecável e suave feita por Angelo Badalamenti. Um casamento perfeito para acompanhar um filme repleto de imagens bucólicas que nos convence que não temos razão alguma para continuarmos presos em uma rotina. Lembrou-me muito de quando assisti Brokeback Mountain. Ao longo do filme existem alguns acontecimentos simples, mas que nos fazem refletir seu significado e relacioná-lo com a vida de Alvin, como a jovem grávida que deu as costas a sua família, os irmãos mecânicos que não se entendem e, assim como Alvin e Lyle, deixam a vaidade e o orgulho falar mais alto, os jovens ciclistas em seu primeiro grande desafio aprendendo em como lidar com as dificuldades que encontram pelo caminho. E a mulher que precisa percorrer todos os dias a mesma estrada para trabalhar e segue em seu caminho, mesmo sabendo que vai atropelar um animal na rodovia, mostrando para Alvin que ele poderia ter retornado mais cedo e mudar em sua vida aquilo que tanto o incomodava, assim como a pobre moça poderia

arrumar outro emprego mais perto de casa. Lendo um pouco sobre Richard Farnsworth, logo deduzi que ele não precisou se esforçar tanto para interpretar um homem doente e manco. Anos depois de lutar contra um câncer na próstata, Farnsworth recebeu uma péssima notícia: agora tinha câncer no osso, em estado terminal, suas feições de dor e a lentidão não eram assim tão teatrais. Não suportando mais tanta dor, Farnsworth se matou no ano 2000, esse foi seu último filme.

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Ficha Técnica Título no Brasil: História Real Título Original: The Straight Story País: França/EUA Gênero: Drama Tempo de Duração: 111 minutos Ano de Lançamento: 1999 Direção: David Lynch EXPRESSõES! Out de 2012 | 35


Gr nde ngular

A

(IN)COMPLETO POR ANA PAIVA

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EXTRA

GUAJARÁ VIA 4 DE JANEIRO

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Guajará Via 4 de Janeiro é uma poesia que me tomou dois meses de trabalho, fazia tempo que eu buscava alguma coisa com mais substância para escrever, fazia tempo que tentava escrever algo com mais de duas páginas. Ao que parece, consegui. A poesia é uma grande compilação de reflexões sobre mudanças e sobre perspectivas sobre mudanças onde busquei trabalhar o maior número possível de concepções. Quem reconhecer alguns dos tópicos com o qual já trabalhei anteriormente, não estará errado. Espero que goste.

José Danilo Rangel

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1. Se depois de um tempo com os sentidos afastados do que a eles se fez hábito mostrar, expomos olhos e ouvidos e pele e nariz e boca aos estímulos que eram os do costume, não acontece de tudo no entorno, parecer outro, ou novo, acontece, contudo, de se constatar, imediatamente, um tanto de novidade e diferença recobrindo ou descobrindo as coisas, as pessoas, os ares...

sempre disponível nas conversas, nos gestos, nas roupas, nas ideias, como eu, felizes ostentadores da estranha alegria de feder.

Um pouco do que a distância efetua na visão nos faz ver mudança até onde não há, desconhecer o que é conhecido, o que não é de todo ruim, ou triste; é para se pensar... Geralmente, apenas quando desgrudamos os olhos da coisa observada é que podemos reparar na mudança.

Mas tudo é outro agora, outra gente, outras ideias, outros são os tempos, até a mesma gente é outra gente, as mesmas festas são outras festas, tudo, até o mesmo, agora, é outro!

Pudéssemos acompanhar o grande rol de minúsculas transformações que acabam por tirar a borboleta da lagarta, como podemos acompanhar em diversos e incontáveis casos o cada passo do andar de uma a outra forma, talvez achássemos que uma era a outra coisa, percebendo, portanto, nas duas, a mesma coisa, adivinhando, na borboleta, a lagarta, e no íntimo da lagarta, a borboleta. Vendo, contudo, ora a lagarta, ora a borboleta, é mais fácil considerar que são dois entes, e se a consideração não desponta, é mais fácil que se enseje a sensação da diferença, mas não das sutilezas amontoando-se entre um e outro, plim: isso é aquilo?

2. Por esses dias, retornei ao meio daqueles que chamo “gente divertida”, os contraculturais, os roqueiros, os metaleiros, grunges, bangers, cross, skatistas, os desajustados em geral, jovens e outros, nem tão jovens assim, com os históricos de peripécias

Foda! Tiraram o Half da Praça do Half, acabaram com a Oficina do Rock, e quantas mais coisas do meu tempo, viraram nada, puft!, assim é a vida, adeus!, e ainda assim, o pessoal resiste.

Saído de entre eles, um tempo atrás, fui andar por outros cantos, conhecer outras gentes, outros meios, agora volto, anos depois, agora também outro, e é como se tivesse viajado um bom tempo, é como estar diante da borboleta, depois de ter deixado a vigília da lagarta. Dá pra entender? Mesmo os iguais, que os reconheço, são outros, porque são agora num novo ponto da eterna novidade do mundo, num ponto diverso daquele primeiro ponto em que os conheci: o ponto antes. Andando na penumbra da Batkaverna, como antes andei pela Oficina do Rock, bebendo cerveja, como já bebi cachaça com refrigerante, pelas madrugadas das praças, eu me divertia, com as fisionomias, ponderando se eu as veria como naquela noite as vi, se, por acaso, tivesse acompanhado a sucessão dos instantes que as moveram do ponto antes até o ponto agora.

3. Nossos olhos nem sempre estão EXPRESSõES! Out de 2012 | 46


atentos à eterna novidade do mundo, se, contudo, a ela sempre estão atentos; transportados, suavemente, pelas transformações cotidianas, e tendo que se acostumar com elas, sempre aos poucos, sempre dentro do que se pode chamar de limiar do tolerável, ficamos cegos e não mais as vemos. A constante mudança no imediato derredor, que sob a regência inequívoca dos relógios, para frente, marcha, inexorável, invariavelmente, de segundo a segundo, mais velozmente, ou mais vagarosamente, contudo, dentro sempre da regularidade, de tanto badalar, cedo ou tarde, deixa de ter percebidas as badaladas. A constante mudança, que tem pêndulos por pernas, leva tudo de um ponto a outro, mas porque não é ela bem o algo que arrasta, digamos, portanto, de outro modo: tudo se move, vai de um ponto a outro, e do outro a outro e ainda a outro, e é esse mover-se, dali prali, daqui pra lá, que se torna de algum modo imperceptível quando testemunhado a poucos palmos da retina. Acho que por isso que o Caeiro, talvez por isso, o Pessoa vestindo a pessoa do Caeiro, diz que anda pelas estradas por onde anda, olhando para a direita e para a esquerda, e, de vez em quando, virando a cabeça para trás... ao que parece, apenas com a observação de pontos distintos e afastados um do outro por uma certa distância no tempo e nas estradas, é que se olha a mesma coisa pela segunda vez como outra coisa que a hora trouxe, constatando, assim, a mudança.

4. É preciso desgrudar os olhos, um tanto, do andamento das coisas para ter claro que elas andam. Ficamos um mês fora do nicho, às vezes, menos, às vezes mais, e voltando a ele, e voltando a olhar

uma pessoa dele - o rosto é outro! Reconhecemos a pessoa do costume, mas é como uma ruga nova riscasse o semblante conhecido, tornando-lhe outro. Antes de ontem, fiz a barba, e ao me olhar no espelho, consigo me imaginar barbado, mas é como sempre tivesse esse rosto, desde a infância, como tivesse nascido assim, difícil perceber a diferença além do óbvio. Os outros é que me avisam das mudanças: tá magro, tá gordo, tá sério, tá velho, tá novo, tá mais magro, tá mais gordo, tá outro! Quase não te reconheci! Eu me olho e não vejo diferença, eu sou eu, os espelhos mentem? Sei que o eu de hoje não existia, não é, de fato, que não existisse, mas existindo, existia de outro modo, existindo de outro modo, não era, portanto, este eu que agora sou, eu sei disso, mas a sensação do que vejo é a de que eu sempre fui eu, sempre fui este eu que agora sou. Se tomo dois pontos distantes no tempo da memória, sou bem capaz de conceber a mudança, não sou mais o menino magrelo e sujo que corria pelado na chuva, sou outro, sei tanto disso que percebo como fôssemos dois, eu, um, ele, outro, e no meio, nada que nos ligue. Não consigo ver o tanto de eventos que ligam estes lugares do meu ser e se vou mais para trás, em vão tento alcançar o quando em que surgi para mim (como eu) e se vou para frente, vou aos saltos, percorrendo uma história de muitas falhas de um eu a outro e ainda a outro.

5. Mudar o olhar é também mudar a coisa olhada, EXPRESSõES! Out de 2012 | 47


mas não falo apenas de observar de outro ponto, falo de quando nossas lentes se reajustam e, se reajustando o suficiente, acontece do mesmo derivar o outro, da sensação de mesmo derivar a sensação de outro. O objeto não mudou, é, portanto, idêntico ao que fora no ponto antes, praticamente idêntico, o objeto, o mesmo, mudamos, contudo, tendo algo em nós mudado, e a mudança nos faz ver diferente, como outro o que era hábito notar como o sempre visto. Parte de nós mudou e, mudando a parte, a parte que mudou, mudou o todo, nós mudamos tudo, por isso, para nós, tudo mudou, também a nós mudando, é que nós mudamos e tudo a nós, mudou. De repente, notamos, como nunca antes, tudo que era sempre o mesmo, agora outro, e mais: algo que estava ali, sempre esteve, sempre bem na cara, sempre bem à mostra, mas fora da visão, porque ali era o ponto cego, surge, como instantaneamente, e é como curar-se de cegueira. E são linhas e cores e texturas que apesar de evidentes, não víamos, mas passamos a ver, e tanto é outro, porque somos outros e é percebendo a mudança no que não mudou, que percebemos: a diferença vista fora vem de uma diferença dentro da vista.

6. Sou outro, e muitos outros fui, concebo perfeitamente, isso, buscando pontos diversos no tempo, passeando por passear, dentro, é da idade, eu acho, que pede um rever de tudo o que foi, para saber o que restou, o que sobrou, onde estão os erros e acertos, passear é bom, visitar lugares visitados, lá, que sempre estão aqui para visitação, enquanto, a memória, que os toma, teima em os conservar.

Nunca entramos no mesmo rio duas vezes, o rio flui, e as águas de agora são outras águas, distintas são as águas de um e de outro mergulho, nunca entramos na mesma memória duas vezes, sempre algo excede ou escapa de uma lembrança a outra, algo surge ou some, algo a mais, ou a menos. Nunca entramos no mesmo rio duas vezes, mesmo se o rio se repetisse, mantendo-se, porque não nos mantemos, também fluímos, e fomos um ao entrar num rio pela primeira vez e somos outros, ao entrar no mesmo rio pela segunda vez. É bom dar uma volta por dentro, dar um mergulho em si, de vez em quando, porque é como assistir um filme, se assistir filmes sempre e toda vez concedesse a sensação de protagonizá-los, dar uma volta por dentro e observar, e observando, perceber-se em movimento, ao perceber que as coisas viram outras coisas, e que num processo em constante andamento, há nascimento e morte e recomeço além do que se percebe nascer e morrer e recomeçar. Mudamos, e não direi como disse Heráclito, (muito menos prático que eu, muito mais filósofo) mudamos, ainda assim, também além da compreensão da mudança. Mudamos, e mudar é como um desgaste, as horas raspam a superfície e mais fundo do que somos, e a cada passada da lixa temporal, um pouco de nós se perde, mas mudar, é como um acumular, também, as horas vêm e depositam qualquer coisa sobre a superfície e mais fundo no que somos, e a cada novo depósito, um pouco de nós ganha, enfim, o tempo leva e traz, a gente perde e ganha, mudar talvez, seja isso, um leva e traz, um perde e ganha.

7. Dentro tem muito de fora, não só o que dele capta, e registra, não só nas inscrições que ele grava, no que dele imita e tem por base, EXPRESSõES! Out de 2012 | 48


o espaço dentro tem muito mais que muito de fora, mas não falo de intersecção de elementos, nem das operações realizadas entre os conjuntos Dentro e Fora... falo do tempo num mesmo agindo no espaço de suas circunscrições. Dentro e fora, tudo envelhece se envelhecer é ganhar idade e se perder com o ganho, e mais se perder com o mais ganhar. Pode ser que isto resista mais que aquilo, mas tudo sofre sob o tiquetaquear, ou corre, ou anda, mas ruma à mesma dissolução, mas tudo que é vivo se renova, o que é vivo e morre se transforma, e como que passa a vez, mas tudo o que é invenção humana sem mãos humanas a dar cuidados, sofre o tempo e quando morre, morre e ponto, é assim, dentro e fora. Há outra diferença pra falar: talvez, uma diferença maior: embora o fora, destacados de nós, possa ser abandonado, ou trocado, não podemos viajar de nós mesmos, nem do fora que está dentro, podemos sobrepor ideias, sentimentos, partir de um modo a outro, mudando, mas não há como se afastar de si, deliberadamente, nem decidir o quão longe se deseja estar de si, em determinado momento, tirar férias de si mesmo, desgrudar os olhos de si mesmo. Talvez, exatamente por essa razão, seja divertido correr passado adentro, e digo adentro, porque as gravações mais antigas são as mais profundas, as mais recentes, mais superficiais, assim, quanto mais ao passado, mais fundo vamos, talvez daí decorra o divertimento de mergulhar em si e se buscar

em outras estações, buscar os outros que se alternaram até aqui, até agora. Talvez daí derive o bom de imaginar futuros e possibilidades, de frequentar sonhos elaborados pelas mãos dos anseios, de visitar o que é lembrança e o que seria perfeito lembrar, imaginar é se dar uma folga, é viajar de férias de si e do entorno que esse ser sustenta, talvez...

8. Se eu viajasse, não sei pra onde, fosse pra onde fosse, só pra ficar longe, pra passar um tempo longe, e passando um tempo longe, depois, voltasse para cá, como eu veria Porto Velho? Como eu veria essa Porto Velho que, hoje, mais vejo de passagem, da janela do ônibus? Seria diferente, ou não, vê-la? E o ônibus sempre lotado, Seria diferente, ou não, estar nele? Seria estranho? Estranharia o calor, as chuvas, as valas, os políticos, o açaí, a pupunha? Certamente, não seria como a primeira vez, não seria como nunca tivesse pisado por aqui, como seria, então? – eis a pergunta! Como seria? Andando por aí, percebo novidades, a Praça da Estrada de Ferro, reformada, agora outra, está bonita até e tem apresentações de teatro, fica cheia de vida e cores aos domingos. De lá, dá para ver a gigantesca construção, as usinas, agora parte do quadro geral, agora parte da paisagem, não estava ali, agora está. EXPRESSõES! Out de 2012 | 49


Mas essas são partes, como veria o todo? Na verdade, não creio haver um todo, um todo para todos, senão para fins práticos. O todo que concebo como todo, apenas a totalidade das partes a que meus sentidos me expuseram, um todo, senão meu, senão para mim, resultado de todos os pontos que já visitei, por onde já morei por aqui, o todo que resulta de registros meus, desse é que me pergunto - como veria? Viajando por aí, por um tempo, mesmo curto, não veria apenas a mudança acontecida fora, mas também dentro, porque novos elementos fariam parte de mim, do todo que sou, então seria outro, como outros me tornei indo de um a outro bairro de PVH da Nova Porto Velho ao Centro, do Centro ao São Francisco, do São Francisco ao Socialista, do Socialista ao Jardim das Mangueiras e, daí, para o Aponiã.

9. Acho incrível a quantidade de eus que costumo encontrar nos reencontros, acho incrível quando eu encontro outro eu ainda existindo além de mim, ainda por aí, na cabeça daqueles que com ele conviveram. Andando pela Sete, alguém me acena, alguém me pára, alguém me lembra: Oi, como tá, moleque doido? Bem, e você? E as cachaças? E a bike? E os livros? Ainda está sem estudar? Ainda está sem trabalhar? Então, trocamos nossas velhas impressões a respeito de pessoas que não existem mais, eu falo com quem encontro como fosse ainda aquele mesmo do meu conhecimento, assim, como quem encontro faz, assim, por um instante, somos dois quase desconhecidos

falando com as pessoas erradas sobre amigos que desapareceram Lembra disso? Lembra daquilo? Sim, não, talvez... e daquela vez, lembra? E aquele dia? E aquela noite? Sim, não, talvez... É como ser confundido com outra pessoa, com a diferença de que não se fala de outra pessoa, mas de uma versão anterior de mim... E a pessoa que encontra você, sabe que você é outro, ela diz, nossa, como você mudou, tá cabeludo! Tá magro! Tá alto! Tá forte! Tá velho! Mesmo assim, vai buscar o que ainda há daquele outro neste ser de agora. Ainda está lendo? Ainda está sem estudar?

10. Andando por aí, já reencontrei o menino que morou na rua 4, ele estava nas memórias de um amigo de lá, daquele tempo, um dia desses, revi o estudante do Barão do Solimões, ele estava ainda na lista de piores alunos de um professor, que, contudo, mostrou-me um sorriso amistoso, antes de seguir, rua acima... O sem futuro da Praça do Half é com quem mais me encontro, outro dia, me falaram do cristão meia boca, quase não lembrava mais dele, também do ingênuo, do capinador de quintal, do entregador de água, e ainda de outros, eles, talvez, ainda morem por aí. Tem gente que ainda tem medo de mim, tem gente que ainda tem raiva, tem gente que ainda me ama, tem gente que ainda me admira e acha que serei um grande homem, mas não é a mim que realmente sentem, seus afetos são de outros, outros que fui, hoje, sou ainda outro. Sou um pouco de tudo o que fui, é o que já disse sobre lagarta e borboleta, EXPRESSõES! Out de 2012 | 50


é o que já disse sobre perda e ganho. Se me vissem, aqueles que conheceram os outros que fui e que desgrudaram os olhos de mim, o que diriam?

11. Buscar-se no passado é como viajar da cidade onde se mora para uma cidade onde já se fez morada, e então voltar e, na cidade onde se mora, repassar na memória as imagens da cidade onde já se fez morada, mas não viajamos para fora, viajamos para dentro, mas não viajamos para longe, viajamos para perto, e é como voltar dessa viagem se, já de volta, já em casa, nos pomos a pensar na viagem. É diferente, em contrapartida, deparar-se por aí com um quem de antes trazido por alguém de um passado comum, às vezes, é como falar de um velho amigo, às vezes, é como ouvir falar de um amigo cuja lembrança desapareceu, ou já não está tão disponível. 12. Antes, não havia Porto Velho, nem Rondônia, nem região Norte, se vou andando para trás, pelos registros mentais que tenho, concebo o não haver nem isso, nem aquilo, nem todo o resto, pelo menos o quando nada disso havia, pelo menos o antes. Não havia para mim, não havia em mim, a cidade não estava em mim, como eu de nenhuma forma estava nela, éramos desconhecidos, um do outro. Volto a quando nada disso havia, nem nada além de um perímetro em torno da BR 116, em Itaitinga, uma extensão de mata, já descabaçada, cercada, cultivada, descoberta, uma escolinha que se chamava Pinóquio,

o quintal de um avô que fazia abacatadas, a casa pequena, depois a casa nova, um pedaço do centro de Fortaleza, um pedaço de mar, uma ou duas ondas. Então, de súbito, havia um lugar pra onde iríamos, por que iríamos, não soube, não sei direito até hoje, mas um lugar havia para ir, e iríamos, o que punha o meu pai rodando as ruas atrás de fazer uma caixa para o compressor, e minha mãe buscando meios de levar as suas máquinas de costura.

13. Eu li o Poema Sujo, do Gullar, A cidade está no homem, como o homem está na cidade, ele diz, eu digo: Mas o homem não entra na cidade Como a cidade adentra o homem. O homem ou nasce na cidade, ou compra passagem e vai parar lá, minha família comprou passagem, e de estar na cidade é que a cidade, por fim, hoje está em mim e nela estou, estou de dois modos, como de dois modos ela está em mim. O primeiro modo é o estar de fato, como uma coisa na outra, a cidade está em mim, como? Ela entra pelos meus sentidos, eu, com endereço e estar de fato, estou na cidade. O segundo modo é o estar como memória, assim, porque a cidade é feita de gente, e a gente lembra, mais que as coisas, mais que os registros e as documentações, embora não tão precisamente, estou na cidade porque a cidade é feita de gente, e a gente lembra, e ela está em mim, porque lembro. EXPRESSõES! Out de 2012 | 51


14. O homem deixa a cidade, mas a cidade não deixa o homem. O homem sonha outros lugares, arruma as trouxas e vai embora, assim, ele atravessa os limites municipais e não está mais na cidade, senão como memória, ou objeto de saudade ou rancor daqueles, que ficaram. A cidade, contudo, fica no homem não como ela é, em movimento, mas como aquilo que se registra na mente depois que os olhos não provê novidades, a cidade fica no homem como um retrato fica na estante, e mais correta estaria a imagem se o retrato se tornasse parte da estante e a ela matizasse.

15. Temos, cada um de nós, uma paisagem do lugar onde vivemos, montada a partir da conjugação imprecisa de todas as impressões das mais várias paisagens dentro da paisagem maior por onde passeamos. Parece que as impressões mais repetidas constituem a paisagem predominante e tudo o que não se assemelha ao que temos já elaborado pelo hábito, nos causa um certo pasmo, um susto, não estamos mais no mundo como o conhecemos. Em Porto Velho, andando em Porto Velho, que de tantas e tão várias paisagens se constitui, não sei se sou apenas eu, mas já experimentei mais de uma vez a sensação ainda estou em Porto Velho?. A primeira vez que peguei o Campus Unir, a primeira vez que entrei no São Sebastião, que atravessei a Rio Madeira, que atravessei o Rio Madeira,

que fui ao lixão, à cascalheira, a algumas partes da Zona Sul, um tempo atrás, quando, depois da Mamoré, encontrei como que um mundo novo! Foi, ali, descendo a Calama, indo para onde ela acaba, ou começa, na rua de um ponto final de ônibus, era outra terra ali, de um lado, um matagal sem fim, de outro, casas feitas cada uma a seu modo naquela arquitetura de improviso tirada das plantas desenhadas em folhas de cadernos com medidas imprecisas...

16. A nossa paisagem mais habitual é como um parente cujo envelhecimento não somos capazes de perceber, sem uma brusca e repentina mudança que supere as minúsculas mudanças cotidianas que de tanto ver, acabamos deixando de ver. Convivemos com ela, a paisagem, dentro dela e do tempo dela, e se acontece de algo nela mudar a ponto de ela se converter em outra, de ser percebida como outra, então, usamos a paisagem anterior para marcar o tempo: Lembra de quando ainda tinha o campinho? Ah, isso ainda é do tempo da vala! Vixi, faz tempo hein, ainda de quando tudo era aquele matagal! A nossa paisagem se elabora, adentra os sentidos e lá dentro toma de nós um tanto e se faz com esse tanto, que dela também toma, para modelar, e se fixa, assim, como o cisco no fundo do copo, ou como algo de argila moldado a muitas mãos, e segundo diversos critérios de modelação; quando nossos sentidos se deparam com elementos que são ainda de fora, completamente de fora, além, depois, estranhos à coleção de formas EXPRESSõES! Out de 2012 | 52


que temos familiares, assentadas no ser, desconhecemos e nos espantamos. É assim quando vemos a paisagem, quando somos vistos, entanto, partes da paisagem de alguém, que olha, que se deixa invadir pelos sentidos, somos igualmente captados como imagem; quando alguém que nos viu de um modo, e desse modo nos moldou, nos vê, agora outros, também nos desconhece, também se espanta.

17. A Porto Velho da minha infância era um território tão amplo quanto permitiam as minhas pernas de menino, partindo do aperto de uma casa de madeira, por cujas frestas eu via os carros passeando depois da meia noite pela Almirante Barroso. Expedições em busca de lixo, buscávamos lixo, pelo Jardim das Mangueiras, eu achei um submarino de brinquedo assim, o resto do espaço, foi o espaço que descobri correndo atrás de papagaios. O céu da Porto Velho da minha infância é de um azul intenso, imenso, com muitos pontinhos de todas as cores, onde penduravam-se papagaios e rabiolas, e quilômetros de fios brancos se estendiam, embaixo, uma confusão de idades, a rua 04, fervilhando, uma gritaria, uma correria. Perto de casa, um interminável terreno baldio, um terreno grande, inclinado para a rua 04, o mato alto, mamonas, entulhos, não sei o porquê, mas me fascinava aquele pedaço de selva urbana, eu e outros moleques construímos um forte por lá. Depois desse incrível matagal, um campo de futebol, de terra preta,

ladeado por postes de fios pendurados onde gatos arremessados viraram gatos assados diante da risada psicopática da molecada, era legal... Ainda na redondeza, uma serralheria, playground dos moleques suburbanos, quando não estávamos invadindo construções para escalar suas paredes e brincar da pira, ou derretendo de calor dentro de um tanque (de um daqueles de caminhões) abandonado ao lado do campo, estávamos, eu e meus pequenos comparsas, saltando de carroceria em carroceria, ou empurrando a carcaça de um carro velho.

18. Depois, mudamos para a Sete de Setembro com a Campos Sales, fomos para lá de caçamba, ela era do meu tio, era vermelha e velha, eu lembro de estar em cima dela e de um monte incrível de bregueços, subindo a Sete, à noite. Não é à toa que não gosto de mudar, você pega tudo o que já tem lugar, desacomoda o que está acomodado e transporta para outro lugar, depois, vem a parte da organização, que é a operação inversa, acomodar o que está desacomodado, hora de encontrar lugares no novo lugar para o que foi trazido do antigo, e para o que ficou é dizer adeus. Adeus, Nova Porto Velho da infância, onde banhei-me a primeira vez nas águas do Norte, adeus, valas onde eu metia mãos e braços atrás de peteca, agora, eu tinha, sob os pés, asfalto e contra minha vontade de seguir adiante, paredes frias e duras portas de vidro, em vez de grandes e divertidos matagais. Agora, eu via outra Porto Velho, mas a cidade não mudou, mudou minha família, de casa, de ares... outro lugar, carros, prédios, postes de concreto, EXPRESSõES! Out de 2012 | 53


a Sete de Setembro, onde minha mãe ia, não era mais um lugar para ir, era um lugar para estar.

a praça ainda está lá, o lugar, mas é outra praça, outro território, a praça que foi o meu lugar não está hoje, senão em quem nela esteve.

Desconheci e me espantei. Reformaram-na. 19. A Porto Velho dos meus vinte anos era muito mais ampla, ia até o Candeias, eu andava de Cross, eu era um Cross, andava por todos os cantos da cidade, e até hoje, permanece a impressão de que a Zona Sul é outra cidade. Sempre vivi do lado de cá, habituei-me, portanto, ao modo geral que este lado da cidade ostenta, ando por essas ruas de cascalho há muito tempo, conheço-as, por isso, a Zona Sul é como outra cidade, lá, há ruas e vielas que se impingiram sinuosas sobre o mapa, como cobras que depois de se retorcerem, agônicas, pararam, mortas. Elas se cortam e entrecortam e em seus caminhos está evidente a mão de intento incerto, a mão do acaso do uso cotidiano, que as consolidou, como a via sobre a grama que a pisada frequente acaba por inaugurar. O terreno de lá, é muito mais acidentado, tem mais morros, mais altos e baixos, mais valas, as casas de lá foram levantadas por outra arquitetura, e as feições das gentes, modeladas por outros escultores, sempre vivi do lado de cá, por isso, quando estou lá, sinto um grande estranhamento, percebo o clima, que muda. Você não está num lugar se está de passagem, eu pedalava pela cidade inteira, por quase toda a cidade, pelo menos, e, contudo, o meu lugar era a Praça do Half,

Um lugar não é apenas o espaço sobre a Terra, o endereço na cidade, um lugar é também a gente que o frequenta e o chama seu, é também as convenções que são fixadas por essa gente, é também a história que fica dessa gente e de seu caminhar. Com a reforma da praça, a gente da praça se dispersou, assim como o que lá fora estabelecido, a Praça do Half, agora memória, e está para cada um, como cada um para ela esteve, cada coisa é uma coisa para cada um.

20. Engraçado, o clichê de que a visão de um objeto depende de onde se olha para o objeto é muito verdadeiro, apesar de batido. Se uma pessoa olha um lado de uma moeda e outra pessoa olha o outro lado, podemos apostar que elas concordarão: a moeda é circular, mas um dirá “cara”, o outro, “coroa”. Tem um conto hindu ainda mais foda, ele diz que havia alguns cegos apalpando um elefante, por mais que cada um descrevesse a parte apalpada para os outros, nenhum deles era capaz de conceber o elefante inteiro, senão como um todo desfeito nas partes em cada cego.

21. Quando nos reunimos, eu e o pessoal da bike, cada um de nós conta um tanto do que vive EXPRESSõES! Out de 2012 | 54


no lugar em que vive, e assim, vamos descobrindo outros lugares, um de cada um de nós, falamos das partes que apalpamos do elefante. Falamos de lá, de cá, de ali, e sempre voltamos à Praça do Half, a Praça do Half - hoje, a antiga Praça do Half, ainda é nosso espaço comum e nas lembranças ainda é divertido ir para as madrugadas de lá. Sexta à noite, e estamos bêbados, falando muito alto, rindo desesperadamente, de tudo e nada, de todos, de nós mesmos, dos chilenos que falavam até la tampa, da polícia que insistia pra nos afastar de lá, dos embriagantes recreios de bebuns: Um limão não, dois limões, Dois limões não, três limões... Festa do estudante, a praça entupida de gente, e, de repente, briga, Lembra daquele chute? O cara segurou minha camisa, mermão, sentei-lhe a mão na cara! E a festa no Ipiranga? Cem real de cerva paga com o bolsa escola! Há, há, há, há, há! Eu nem lembro como foi que cheguei em casa!

certamente, guarda a sua praça, um lugar do território, suas regras e suas formas de prestígio. E é possível que eles também se reúnam em dias de festejo, ou sem nada mais que fazer, e, em torno de garrafas e copos, contem suas histórias sobre a sua praça, e nem deem por isso, ou gargalhando ou deplorando as coisas que fizeram e viram fazer pelas madrugadas de lá.

22. Quando li um pouco sobre a Teoria do Caos, fiquei impressionado com o mundo que passei a ver depois do texto fazer sentido para mim, um mundo maior que o mundo aos pares retratado no que chamo de dialetismo taoísta. No fundo, é simples, uma expressão, só uma, prendeu minha atenção: dinâmica sistêmica! É simples, ao invés de considerar um sistema onde as suas partes estão todas sujeitas a um conjunto fixo de leis gerais, considera-se um sistema maior que é o conjunto de sistemas menores, cada um com suas próprias leis, nem gerais, nem imutáveis, como suas peculiaridades.

Há, há, há, há, há! E aquele fila da puta que mijou no armário lá de casa? Era outro mundo, e outro mundo que era, tinha outras regras, outras formas de prestígio, era um mundo regido por outras forças, que tinha muros próprios e a cidade em torno, e, contudo, estando na cidade, nele, a cidade também estava. Porto Velho estava na praça como a praça estava em Porto Velho, a cidade que estava nas gentes dali, estava também ali, gente de toda parte trazendo toda parte para ali, para rodear o coreto e o half, e cada grupo que perambulou na praça,

Foi, assim que entendi “dinâmica sistêmica”; entendi errado! É-erre-a-dê-ó! ERRADO! O conceito original prevê outra coisa, uma coisa talvez muito diversa, talvez, mas não importa, importa que o entendimento (o que tive e não o correto) é legal, e serve para ver de outro modo. Pensando, portanto, como pensei e aproveitando a concepção derivada do equívoco, deu para teorizar um pouco. Com que ouço e vivo e vivi, com que tenho percebido de PVH, em cada bairro certos hábitos, EXPRESSõES! Out de 2012 | 55


em cada grupo certos juízos, concebo a Porto Velho maior igual a uma colagem, um caleidoscópio, como a conjugação total de todas as instâncias menores que lhe constituem, cada uma, com características a ela inerentes, e todas, numa interação complexa, resultando num enorme mosaico vivo. Essa ideia explica os tantos tipos e jeitos do pessoal que encontro por aí, além do mais, é divertido pensar que atravesso dimensões, frequentando tantas e tão diversas populações que sustentam tantas e tão diversas realidades

23. No fundo, eu entendo que, para alguns, a realidade social, o mundo social, humano, é como um grande baile de pares, onde forças que se opõem bailam pelo espaço, transformando-o, assim como no universo taoísta: o Todo é um baile de pares de contrários, a beleza abraça a feiúra, a luz, a sombra, o bem, o mal, vão, agarradinhos, a paz e a guerra, a miséria e a abastança, pelo imenso salão. Para mim, o mundo mais se parece com outro tipo de festa, parece uma rave, uma boa e enorme rave! Um evento multiambiental, eis o Mundo, muitas músicas, muitas danças, muitos ouvintes, muitos dançarinos! Olhando a multidão, por cima, dá para notar, pela sua extensão, os vários ritmos em que ela vai pulsando, e o Dj? - perguntarão, afinal, raves têm DJs, e eu vos direi: são as circunstâncias. Agora, tomemos um só indivíduo, você consegue concebê-lo? Ele está num determinado espaço dentro do alcance de determinada música,

e, por isso, dançando de um determinado modo, como todos dentro de determinado perímetro. Além, contudo, outro espaço, outra música, portanto, outros determinados modos de dançar. Não vês o mundo aí? Um espaço, uma música, um modo de dançar, Um território, uma conjuntura, um modo de ser. Simples e bonito! Isso explica também a discrepância do que se diz do Mundo, ouvir o que se diz do Mundo é como ouvir várias pessoas que estiveram em lugares diferentes ouvindo músicas diferentes, dançando de modos diferentes, na mesma festa.

24. De manhã, sacolejando no Guajará, vítima da melancolia matinal dos dias úteis, silente, sonolento e introspectivo, me pergunto sobre o quanto o hábito não me deixa ver, o hábito consolidado que insensibiliza minhas retinas, penso no que não vejo, no que não vejo de Porto Velho, da gente cotidiana que entope a grande e barulhenta lata de sardinha no quanto não vejo de mim e do entorno, por frequentá-los tanto. No ônibus, mais da metade do Aponiã se aperta, se acotovela, se pisa, se xinga, as caras cansadas e putas de sempre, os incômodos de sempre, não há sequer um riso pela manhã... Mesmo horário, mesma rota, mesmo tudo, trabalho, escola e outros compromissos, pendurado no meio do corredor, porque o fundo já estava ocupado, penso, pensar, às vezes, distrai, e distração é algo bom pro desconforto. Vou pro centro, pro trabalho, quarenta e cinco minutos passam rápido, EXPRESSõES! Out de 2012 | 56


penso, daqui a pouco estou fora daqui, o braço que dói, por segurar a mochila, vai parar de doer, daqui a pouco, vou poder mover os braços, vou poder andar, aquele sol da manhã me espera lá fora, Farquar: daqui a pouco chego no Ferroviário, desço, e pronto – trabalho.

chega o dia em que um pequeno desvio nos faz desconfiar do fim do mundo. Você está lá, todo abestadão, pensando tudo e nada, mais em nada que em tudo, nem aí para o caminho que o ônibus obedece, então, súbito como um soluço às três da tarde, ele faz uma curva imediata, adentra uma rua estranha, e você fica apavorado!

25. Numa dessas manhãs, não sei por que motivo, mas pensei “e se ainda cresse em Deus?”, como estaria naquele momento, sufocado no ônibus? Rogaria por piedade? Pediria força? Maldiria seu nome? Iria renegá-lo ali mesmo? E noutro caso, iria agradecer a bênção de Ele me enviar um ônibus vazio?

Depois de rodear um quarteirão, no entanto, ele retorna às ruas de sempre; aí, você fica tranquilo, sentindo que a Ordem do Universo foi reestabelecida! Ele retorna e quando ele retorna às vias do costume, você sente alívio, você sente que passou, ainda não foi daquela vez, em pouco, o coração volta a bater normalmente.

É engraçado!

Os minutos fazem horas que fazem dias que correm em pistas muito estreitas, haja sequer um pé fora dos planos! Já falei que entendo o mundo como uma rave? E como um carnaval? E como a Banda do Vai Quem Quer?

E se em vez de descrer, tivesse mudado de crença e fosse hoje, adepto de outra religião, se fosse espírita? Seria o passeio de ônibus de todos os dias algo para aprimorar meu espírito ou para pagar os feitos de uma vida passada? Não é engraçado, o mundo que poderia ser?... Não é engraçado, o mundo que é para uns, não é o mesmo mundo de outros... É divertido pensar em possibilidades, e conceber além do palpável, o possível, as probabilidades não realizadas. E se eu não tivesse lido tanto? E se eu não tivesse sido tão rebelde? E se eu não tivesse parado de estudar? E se eu tivesse acreditado em todo mundo? Menos festas, me fariam mais sério? E se eu não tivesse lutado tanto? E se eu não tivesse ficado para ver o que acontece? E se eu desistisse fácil? Tanto que poderia ser, e não é... Tanto que é, que não poderia ser...

26. Pegar ônibus é ter certeza de chegar a um ponto passando por uma rota prefixada, direita, esquerda, reto, reto, reto, esquerda, direita, direita, e se pegamos o mesmo ônibus todos os dias

27. Um dia, o ônibus parou, sinal vermelho, no encontro da Sete com a Campo Sales, eu estava no meu canto, sentado, calor, aperto, desconforto, mas uma certeza, daqui a pouco, estou em casa. Aconteceu algo, contudo, um descamisado morador de rua com evidentes distúrbios mentais, tinha numa das mãos uns dois metros de ripa e não sei que conjunto de ideias na cabeça, sei que passou por uns quinze carros, e nada fez, chegando diante do ônibus, contudo, parou e lhe deu uma bonita paulada no parabrisa, foi tão gratuito como um beijo apaixonado, sem mais nem menos, tão gratuito como a flor que desponta num terreno baldio. Direi gratuito, mas não direi sem razão. Foi PAH! - e então, gemidos, gritos, e muitos puta que o pariu!. Engraçado e esquisito, juntamente; EXPRESSõES! Out de 2012 | 57


ao mesmo tempo, eu pensava em agradecer e esmurrar aquele doido. De tantos ônibus no mundo, tinha que ser o meu? O ônibus parou depois da Campo Sales, desce todo mundo, sobe todo mundo noutro ônibus, subi também - era o errado! Tive que andar uma porrada ainda antes de chegar em casa. É engraçado como as rotas são mudadas, de repente, e como se curva a linha que seria reta...

28. Às vezes, é bom andar de ônibus, no raro dia frio de Porto Velho, se há pouca gente e o motorista tem juízo, é bom sentar-se à janela e observar, quieto como quem se esconde, o enquanto que é possível observar, aquilo que vemos passar porque passamos. Melhor quando é voltando pra casa, a friagem ou o frescor de depois da chuva, borrifa um tanto de langor em tudo, em tudo e todos (não só em todos) as casas, os prédios, os carros, tão langorosos quanto as pessoas, não bocejam, nem se espreguiçam, nem desejam, mais que tudo, a cama, a coberta e que fosse feriado, mas se assemelham, os brutos, aos vivos, se assemelham tudo e todos, cheios de sono, num dia frio. Há dias felizes em que estamos tristes, há dias tristes que estamos felizes, há dias calmos em que estamos agitados, há dias agitados em que estamos calmos, há dias que não estamos nem aí, nem sempre o que se passa dentro encontra ajuste com o que se passa fora, no frio, contudo, é bem mais fácil que aconteça. O mundo não fica triste, fica quieto,

eu também não fico triste, fico quieto, recolho-me, adentro-me. 29. Era um dia frio, aquele dia, eu estava olhando para a janela do ônibus, e devia estar olhando doidamente, porque depois que desgrudei os olhos do vidro, muitos olhos se grudaram em mim, eu ri. No vidro empoeirado da janela, via dançarem reflexos, mais ou menos nítidos de acordo com a luz de fora. No fluxo dos reflexos da janela, passam rostos e pernas e narizes, passam grandes portas de loja, paredes coloridas, propagandas, mais intensa a luz lá fora, menos nítido é o retrato especular, e a retina reflete o que é já reflexo, mais uma vez refletido no vidro... Algo que se move, disse Einstein, a quem lhe pediu a definição da realidade, perfeito, mas nos falta e ao que nos faz, algo que se move e que nos move, algo que se move e que movemos, tudo é movimento, tudo, em andamento, tudo é transição, e transige, dentro e fora, numa troca: o homem faz o meio que faz o homem que faz a política que faz o homem que faz a moral que faz o homem que faz o trabalho que faz o homem que faz a tv que faz o homem que faz dinheiro que faz o homem que faz... E é a um incrível e movente amontoado dessas coisas, gentes, relações que chamamos Fora; e é a um incrível e movente amontoado dessas coisas, gentes, relações que chamamos Dentro.

30. Não conheço muito do deus Shiva, sei que é um deus hindu, um deus que dança, guardião da Vida e da Morte, em sua dança dançam Vida e Morte, mas não é que dancem, mas não é que eu contrarie a imagem, EXPRESSõES! Out de 2012 | 58


Vida e Morte dançam, mas não é bem dança a dinâmica que as põe em comunhão, Vida e Morte não se dão as mãos, embora sempre de mãos dadas... De qualquer forma, Shiva é o deus dançarino, e nas vicissitudes de sua densa coreografia, exata e de improviso, eterna e instantânea, estão os gestos da transformação, o mundo é uma rave (já disse?), é um carnaval de circunstâncias (já disse?), fervilha, corre, anda, muda! Eu sempre falo de Shiva, quando falo de mudança.

31. Imagine o mundo instável, e sobre ele, girando as manivelas invisíveis do Universo, a trindade hinduísta, Shiva, Brahma e Vishnu, destruição, criação e preservação, o velho dá lugar ao novo, que se preserva até a velhice e, por sua vez, devastado, dá lugar ao novo novo que, ao se estabelecer, já adivinha o próprio colapso, e assim de novo e ainda mais uma vez, e então, de novo e de novo, até se perder de vista.

às vezes, mudamos, para fazer mudar, noutras vezes, mudamos para acompanhar o giro da roda, às vezes, há um anseio para ir, noutras vezes, o desespero é por ficar. O Grande Rio flui, corre ou anda, de qualquer modo, flui, como fluem a Vida, o Mundo, o Ser e Tudo Mais, e há luta e gozo e paz e peleja, por ficar, por seguir, por ir, por voltar, por borboletas que surgem e que de novo são lagartas que serão novas borboletas que serão novas lagartas... De igual maneira a gente, que está em si, nem em si mesmo permanece, também o ser é algo movediço, o ser decide e muda, e, mudando, vê mudar; o ser responde ao mutável mundo e muda, e mudando, ao mundo vê mudar; o mesmo ser que o fogo da mudança no mundo e em si mesmo ateia, nela vê a si e ao seu mundo incendiar... ..Algo que se move, realmente, Einstein era um gênio!

É a firmeza somente na inconstância do Gregório de Matos, o continuamente vemos novidades, do Camões, salvo as peculiaridades, é o devir que eu vi na janela do Guajará!

32. O ônibus descia a Farquar, como sempre, e como sempre alguém puxou a cordinha, era a hora de descer, então desci, do coletivo, mas não dos devaneios, o todo dia às vezes é um desconforto de onde pensar distrai um pouco... Às vezes, é bom, às vezes, dói mudar, às vezes, tudo muda, de repente, noutras vezes, não há modo de mudar,

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DO LEITOR A EXPRESSõES! tem se moldado ao longo do tempo, e por diversas orientações, uma delas é a opinião dos leitores que sempre dão interessantes feedbacks a respeito de toda ela, mas, pelo facebook. Se você tem uma crítica, uma sugestão, mande para nós, temos bons ouvidos, Obrigado. José Danilo Rangel

expressoespvh@hotmail.com EXPRESSõES! Out de 2012 | 60


ENVIO DE MATERIAL Para submeter o seu texto, foto ou desenho para a revista EXPRESSõES!, é muito fácil: escreva um e-mail explicitando a vontade de ter o seu trabalho publicado na revista, anexe o material, na extensão em que ele estiver, .doc, .jpeg, e outros, e seus dados (nome, idade, ocupação, cidade) com a extensão .doc, para o endereço: expressoespvh@hotmail.com Para contos, a formatação é a seguinte, fonte arial, 12, espaço simples, máximo de 10 páginas. Para crônicas, arial, 12, espaço simples, máximo de 5 páginas, Para poesia, arial, 12, espaço simples, máximo de 10 páginas. Ainda temos as seções Decodificando, que abarca leituras de diversos temas, e a 10 Dicas, também com proposta de abraçar uma temática diferenciada, onde você pode sugerir filmes, revistas, música, conselhos e não sei mais o quê, além dessas, a seção EXTRA, visa abranger o que ainda não couber nas outras seções. Para fotos ou desenhos, a preferência é por imagens com resoluções grandes, por conta da edição, e orientação retrato, por conta da estética da revista. A revista EXPRESSõES! sai todo dia 10, de cada mês, então, até o dia 20 de cada mês aceitamos material,

Porto Velho - Outubro de 2012 José Danilo Rangel

EXPRESSõES! Out de 2012 | 61


Um Agradecimento Especial Para:

Vanessa Galvão

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