2 minute read

Entre linhas

Consigo lembrar-me do que estava a fazer quando li um livro, onde o lia e o que pensava enquanto o fazia Ao reler uma obra, mesmo alguns anos depois da primeira leitura, são-me trazidas memórias diversas de sentimentos, do que escrevi no meu diário, das decisões que me preparava para tomar.

22:22 PM

Advertisement

B. Pereira

O que naquela altura tinha e acabei por perder ou deixar ir revive-se; o que não tinha e criava espaço para existir, explode. Os passos que me levavam lentamente a algum tipo de crise ou revelação entrelaçam-se numa história O triste torna-se trágico, o feliz é nostalgia, os erros transformam-se em aprendizagens. É raro despedir-me destas memórias.

Não sou boa esquecedora A minha cabeça remói-se constantemente, para o bem ou para o mal. Permito-me este ato dúbio. A revivência e releitura da minha memória são o mais conhecido e amado caminho do meu pensamento. Quando o sofrimento, o desespero e a frustração se escondem, rapidamente os tento trazer ao de cima, porque eu não sou nada se não uma luta A releitura concede-me o desejo de guerra.

Eis os pedaços de leitura que continuam on repeat na minha cabeça e tornam-se melhores com cada releitura.

O humor de José Eduardo Agualusa (A Educação Sentimental dos Pássaros). Sempre irónico e inteligente. É a pimenta dos seus contos.

“Este elevador é agora o meu mundo. Ao menos continuo em movimento. Não paro nunca. Sou um multívago vertical Corrigi o [meu] nome para Ascêncio, o qual, atendendo à função, me parece mais adequado do que Incrível Aladino. Por vezes, quando estou mais pessimista, ocorre-me mudar para Descêncio [ ] ” (78)

“O anjo olhou para Ele incrédulo

Protestou:

- E eu lá sou doido, ó Deus?! [...] Deus, o qual, como se sabe, é brasileiro, não estranhou nem que o anjo falasse português, nem sequer o forte sotaque carioca.” (83-84)

As imagens de José Saramago (Ensaio sobre a Cegueira), assombrações belíssimas num cenário distópico: Brutalidade nunca censurada, violência nunca leviana O ser humano é cruel e patético

“Evidentemente, muitos destes cegos estão a ser pisados, empurrados, esmurrados, é o efeito do pânico, um efeito natural, pode-se dizer, a natureza animal é mesmo assim, também a vegetal se comportaria de igual maneira se não tivesse todas aquelas raízes a prendê-la ao chão, e que bonito seria poder ver as árvores do bosque a fugir ao incêndio.” (229)

A memória de Annie Ernaux (Os Anos)

Aquela que se elimina num momento, mais breve que uma milésima de um segundo. O passado e a lembrança entrelaçam-se e ganham qualidades (meta)físicas únicas.

“Tudo se apagará num segundo. O dicionário acumulado desdo o berço até ao leito de morte irá desaparecer Depois, o silêncio e nenhuma palavra para o dizer.” (16)

Olhando para uma fotografia: “Todas, à exceção de quatro, olham para a objetiva com um ligeiro sorriso Aquilo que estão a ver - quem fotografa? Uma parede? Outros alunos? - perdeu-se para sempre ” (60)

O desespero de Dostoiévski (Crime e Castigo)

Raskólnikov, exasperado com a sua irmã, torturadopeloamordasuafamília:

“Estás a mentir! - pensava ele roendo as unhas com raiva - Orgulhosa! Não queres confessar que [te vais casar] por caridade! Oh, que caracteres tão baixos! Amam como quem odeia…Oh, como… os odeio a todos!” (225)

Por fim, não podia faltar a frase que iniciou o meu amor pelos livros, o primeiro passo que tomei, sem saber, em direção a todo um novo mundo, com apenas 12 anos. Desde então, li e voltei a ler as mesmas palavras milhares de vezes. Ouço-as quando vou dormir:

Referências

Agualusa, José Eduardo. A Educação Sentimental dos Pássaros - Onze contos sobre anjos, demónios e outras pessoas quase normais. 1 ed., Quetzal, 2011.

Dostoiévski, Fiódor Crime e Castigo 17 ed., Editorial Presença, 2021.

Ernaux, Annie. Os Anos. 1 ed., Livros do Brasil, 2022

Kafka, Franz. A Metamorfose. 5 ed., BIS, 2019

Saramago, José Ensaio sobre a Cegueira 1 ed., Porto Editora, 2018.

This article is from: