RelevO - Março de 2020

Page 10

10

Lucila Nogueira No sopro do oceano o meu destino. Meu canto é de galáxias e cavernas e eu cruzo em cada gesto o infinito. Lucila Nogueira em Almenara

Lucas Silos

A poesia de Lucila Nogueira, embora tenha certo reconhecimento em alguns países, ainda está suspensa no abismo no que se refere ao Brasil, já que, em resumo, o único estado em que é aclamada é Pernambuco. A escritora nasceu em 30 de março de 1950, no Rio de Janeiro, tendo vivido por muito tempo em Recife. Lecionou, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), diversas disciplinas de literatura e de crítica literária; traduziu para a língua portuguesa os poemas de Miguel Hernández, César Vallejo, Gabriela Mistral, Paul Éluard e Emily Dickinson. A autora publicou mais de vinte livros e teve algumas de suas obras traduzidas para as línguas francesa e espanhola. Apesar de vários críticos terem se pronunciado a respeito da imensa qualidade de sua poesia, seus versos ainda são pouco conhecidos e admirados pelo grande público, o que também ocorre com os demais integrantes da Geração 65, grupo pernambucano de literatos ao qual a poeta pertenceu. Para esta edição do RelevO, selecionamos quatro poemas do seu extraordinário livro de estreia, Almenara, de 1978), que lhe rendeu o Prêmio Manuel Bandeira do Governo do Estado de Pernambuco, em 1979. Trata-se de uma obra mística, com forte teor reflexivo,

!

e, que não raro, atinge o plano do metafísico. O eu-lírico transita entre as questões transcendentes do espírito humano (“Vivo rondando em vão à tua porta/ mundo que vai me amar depois de morta”) e as inquietações do amor (“Depois do amor, o amor. E amor ainda/ enquanto a pele acorde sobre o osso”); regressa às imagens da infância (“No tempo dos amigos invisíveis/ eu caminhava, azul, dentro do mundo”) e segue, finalmente, o caminho da preocupação social (“Sempre serei tão clara como a vida/ dos simples: sem joguetes ou enganos”). Por fim, no que se refere à forma, todo esse plano temático é, em sua maior parte, incorporado a quadras e decassílabos, bem como ao pouco uso de rimas, o que concede certa naturalidade e fluência aos poemas. Lucila Nogueira morreu em 25 de dezembro de 2016, no Recife, aos 66 anos, em virtude de um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Em 2020, completaria 70 anos.

PORQUE NÃO TE CONHEÇO TE PROCURO

O HOMEM Por toda a parte a cruz, a sede, o espinho

Porque não te conheço te procuro

o sangue refletindo a face exausta

E te chamo de amigo e te asseguro

e o chicote entoando ao céu seu hino.

que invisível falcão me dilacera.

Por toda parte o peso do absurdo.

Sou uma caça abatida em meio a feras.

Por toda parte a queda. E a terra fria

E abatida inda busco o monumento

Mergulhando a ferida consentida.

que eleve a paz e luz o sofrimento.

Por toda parte o gesto é paralelo e o gel inunda o lábio que suplica.

Amar é dispensar todas as armas. É partir para o sonho, o corpo claro

Por toda parte sofre o ser que intenta

e voltar tinturado pelas balas.

Aureolar na sombra o absoluto. Por toda parte a morte é companheira

Eu peço ferro e fogo nesta chaga

e a solidão persiste além do túmulo

Até que ela por si murche e endureça E a ternura em seus marcos amanheça.

Por toda parte a carne é véu-limite da chama que esvoaça sobre o tempo.

Eu recuso, eu acuso e ultimo a farsa

Mas se fiel o homem a seu caminho

que está sempre exigindo quem abraça.

Por toda parte é deus e ressuscita.

Quando a verdade some a fé naufraga.

Que o sangue no meu peito não te afaste: Feridas em memória eu transfiguro. Porque não te conheço te procuro.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.