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MAPA / JORNAL DE INFORMAÇÃO CRÍTICA / DEZEMBRO 2020-FEVEREIRO 2021

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Terrorismo: o álibi perfeito

Aproveitando os tempos de comoção que se seguem a atentados como os que ocorreram recentemente em França ou na Áustria, a União Europeia (UE) pretende acelerar a produção de legislação perigosa para a protecção dos dados pessoais e para as liberdades de expressão e informação. TEÓFILO FAGUNDES TEOFILOFAGUNDES@JORNALMAPA.PT

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à informação». Nesse sentido, consideram que a utilização de filtros de upload é «inaceitável», uma vez que «não compreendem diferenças culturais ou linguísticas, são incapazes de aferir de forma precisa o contexto das expressões» e implicam necessariamente o processamento de dados pessoais. Os signatários lembram, a este propósito, que a Regulamentação Geral para a Protecção de Dados dá aos utilizadores o «direito a não serem sujeitados a decisões automáticas sem intervenção humana». «Filtros automáticos obrigatórios não são legais, de acordo com a lei da UE» e «comprometem a liberdade de expressão, a liberdade de informação e a protecção de dados pessoais». Esta proposta está em andamento, já foi aprovada pelo Parlamento Europeu e a presidência alemã da UE pretende ter o assunto definido «antes do fim do ano».

9 de Novembro, 16 organizações ligadas aos direitos humanos e digitais tornam pública uma carta aberta em que apelam aos participantes no «triálogo»1 para que a Proposta de Regulamentação do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a prevenção da disseminação online de conteúdos terroristas «obedeça à Carta dos Direitos Fundamentais» e para que se «discutam mais alterações que respeitem integralmente a liberdade de expressão, de informação e de protecção de dados pessoais dos utilizadores da internet». Em primeiro lugar, estas 16 organizações consideram que «a definição de terrorismo é injustificadamente abrangente» e propõem que se «reduza a definição de conteúdo terrorista e que se defina rigorosamente que material é ilegal». Por outro lado, «a remoção automática de conteúdos pode ameaçar o fluxo livre de informações legais e a liberdade de acesso

NOTAS 1 Depois da aprovação em plenário do Parlamento Europeu, esta proposta tem de passar por uma discussão que envolve os representantes das três instituições europeias – o Conselho, o Parlamento e a Comissão – para procurar chegar a um texto comum.

Quem vê caras, vê tudo

O reconhecimento facial para autenticar os cidadãos, aprovado para 2021, levanta questões quanto ao controle que o Estado exerce em nome da modernização. FILIPE NUNES FILIPENUNES@JORNALMAPA.PT

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orçamento de Estado aprovado para 2021 na generalidade prevê a utilização do reconhecimento facial em serviços da Administração Pública online, em tempo real, através dos telemóveis e dos computadores, sem recorrer ao cartão de cidadão. Esta poderá mesmo ser alargada a outras entidades, mediante acordo celebrado com a Agência para a Modernização Administrativa (AMA). A medida do governo socialista de António Costa não faz parte de um enredo de ficção científica orwelliana do século XX, nem de uma cabala conspirativa alimentada nas redes sociais. Trata-se de uma medida muito concreta, tomada na sequência de um processo de normalização do controle individual, cada vez mais abrangente, nos organismos do Estado, desenvolvido ao abrigo da modernização e de um acesso aos serviços públicos mediado e dependente do uso do gadget tecnológico que hoje marca o quotidiano.

o regime da CMD, permitindo, não apenas instituir um sistema de autenticação numa palavra-chave permanente, escolhida e alterável pelo cidadão, como prever que essa opção possa ser substituída pela «confirmação de identidade através do recurso pela associação do número de a sistema biométrico de comparação das imagens do rosto identificação civil (ou passaporte recolhidas eletronicamente em para o cidadão estrangeiro) a um único número de telemóvel e ou tempo real com a imagem facial a um único endereço de correio constante do cartão de cidadão». eletrónico. A nova medida auto- De uso voluntário, salvaguarda riza agora o Governo a alterar na sua redação «que os dados

Trata-se de uma medida muito concreta na sequência de um processo de normalização do controle individual, cada vez mais abrangente, nos organismos do Estado. O reconhecimento facial é concretizado em associação com a Chave Móvel Digital (CMD). A CMD foi instituída em 2014 como meio alternativo e voluntário de autenticação dos cidadãos nos portais da Administração Pública,

armazenados são cifrados e não ficam associados ao cidadão». A intenção é replicar o gesto voluntário que se veio instalando na opção de reconhecimento do rosto nos telemóveis e computadores. A medida, porém, havia já levantado dúvidas à Comissão Nacional de Proteção de Dados, que pediu explicações à AMA sobre as implicações, em termos de proteção de dados, da recolha de dados biométricos. Estes são considerados «dados sensíveis», pelo que carecem de uma lei que enquadre expressamente o consentimento dado pelos seus titulares à sua recolha e ao seu tratamento. Por outro lado, o seu uso em âmbito laboral tem vindo a levantar diversas questões: quer no que respeita às condições em que esse consentimento «é explícito, informado, específico e dado livremente», como em relação ao risco associado à utilização dos dados por terceiros – se estes forem, por exemplo, roubados à empresa. A normalização irrefletida do seu uso em âmbito administrativo e público não afasta esses riscos e possibilita, inevitavelmente, um controle quer securitário como autoritário sobre quem concede o seu uso.


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