Mapa#12

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CADERNO . TERRA, TERRITÓRIO E TURISMO . 16

Firma-se a morte dos campos em nome da crescente dependência alimentar externa. É nesse quadro que em 1991 os Espírito Santo regressam com uma nova perspectiva para o território: um «Projecto Global de Desenvolvimento Integrado» com a «valorização e requalificação do património natural, urbanístico e agrícola». A indústria turística. De imediato vendem cerca de 3000ha a familiares e amigos, aumentando a aposta no ramo imobiliário apenso umbilicalmente ao turismo. Sucede-se toda uma reorganização empresarial no Grupo Espírito Santo (GES). Em 2003 a Herdade passa a designar-se “Herdade da Comporta, Actividades Agro-silvícolas e Turísticas” e em Fevereiro de 2004 a Atlantic Company põe termo aos seus 90 anos de existência. O GES, desde 1994 com Carlos Manuel Espírito Santo Beirão da Veiga à frente da Comporta, surge agora na imobiliária Atlantic Company (Portugal) - Turismo e Urbanização (criada em 1988) e na Atlantic Meals S.A.. Esta é uma associação entre o GES e a Portalimpex-Certejo (da orizicultura do Sorraia após o desaparecimento das cooperativas agrícolas) que terá desde 2010 como parceira a Monte da Barca. Mantém a produção agro-florestal (1100ha de arrozais e 7100ha florestais), o Vinho da Comporta, alguma horticultura e viveiros para a plantação de relvados. Mas o Projecto Global da Comporta tem os pilares em diversos fundos de investimento imobiliário que em 2013 correspondem aos activos imobiliários das áreas de Desenvolvimento Turístico da Comporta (ADT2, Comporta), Comporta Dunes (ADT3, Carvalhal), Aldeamento da Área Turística de Lagoas, Loteamentos Casas da Encosta (C12, C13 em Carvalhal-Lagoas) e Loteamentos no Possanco.

Comporta: um território Resort O novo território delineado nos anos 90 ganha plena expressão na primeira década do século XXI. Como já tivemos ocasião de referir no Jornal MAPA15, a Comporta junto com a Tróia da Sonae é a ponta de lança da visão oficial do desenvolvimento para o Alentejo: um território de vocação turística16. A Comporta tornar-se-á o cenário por excelência do regabofe BES que continua a defraudar o erário público. Um embuste que assentou nesse processo de “desenvolvimento” em marcha que transforma o Alentejo em “território resort”. As baixas densidades populacionais e o desemprego continuam a querer justificar na política nacional e local a excessiva ou total dependência do turismo. O peso da restauração na Comporta é disso exemplo quando somado ao quadro envelhecido dos agricultores. E a profunda transformação deste território observa-se no seu tecido social, ou nos novos padrões com que são agora tecidos a antiga relação de servidão entre criados e grandes famílias. Do antagonismo dos trabalhadores rurais com os senhores da Herdade, passamos para a clivagem entre as populações e os novos ranchos jet set de turistas e novos ricos que “descobrem” a Comporta. Um testemunho local em 2010 não deixava sombra para dúvidas sobre a clivagem social que se operava: «A cultura é coisa que tem raízes e história, não é uma visão importada por um “chique” que a viu algures numa das suas viagens patrocinadas por um qualquer cartão (visa). Ser comportense começa a parecer ser uma espécie rara, à semelhança dos algarvios nas décadas de 70 e 80 do século passado. (…) Se recuarmos uma década para trás, conseguimos lembrar-nos dos postos de trabalho que se extinguiram em nome do progresso.

O mesmo progresso que é lucrativo para uma minoria e está a deslocar para longe a maioria (os netos e filhos) daqueles que desbravaram e ergueram a pulso esta terra chamada Herdade da Comporta”17. O “Projecto Global de Desenvolvimento Integrado” da Comporta levou à substituição de uma boa parte do sector primário pela hotelaria, comércio e restauração. A administração local aplaudindo, numa relação de subserviência tal como antes às mãos dos Espírito Santo.

Expulsando os Pobres Orlando Ribeiro descrevia como as antigas aldeias alentejanas «foram crescendo, ávidas de terra, afogadas no latifúndio, servindo-o com a sua população de ganhões ou trabalhadores assalariados». A apropriação do espaço envolvente – do território – levou essa população no 25 de Abril, como refere Oliveira Baptista, a vencer «no espaço social das aldeias e das vilas»: «Retomaram-se estradas e caminhos tradicionais que os grandes domínios haviam fechado arbitrariamente. Abriram-se logradouros, fez-se recuar o limite dos campos cultivados e alargaram-se assim as áreas onde as gentes viviam o quotidiano»18. O que se passa na Comporta é precisamente a inversão dessas conquistas, em que o processo de transformação turística do território passa pela asfixia do espaço social conquistado. Com os investimentos imobiliários, chega uma vaga de vedações, cancelas, câmaras de vigilância, cartões de acesso limitado, avisos, proibições e penalizações por todo o lado. Em 2011 o “caminho da madame”, como é conhecido na Comporta, foi um dos primeiros caminhos para as praias a ser encerrado. A reacção oscilou entre o queixume servil («pois nós os habitantes desta terra e desta Herdade sempre soubemos ocupar o nosso lugar») e a embirração pelos de fora, esses «descobridores dos anos 90 [que] quando chegaram à Comporta não deram pela falta de uma ETAR, para ajudar a tratar a merda que vieram fazer»19. A revolta com a situação soa mais a resignação do que a outra coisa, ainda que cresça a revolta nas vozes ligadas sobretudo ao Bloco de Esquerda20. Em 2013, a tirada de Cristina Espírito

Todo o dia-a-dia decorria nos seus limites, pesando sobre quotidiano uma vida controlada, ao ponto de ser relatado que era cobrado quem quisesse casar com alguém fora das suas terras, tal era a dominação social exercida. Santo de vir para a Comporta para «brincar aos pobrezinhos», trouxe a lume a atitude desde há muito notada pelos habitantes. Já em 2010 as elites e as “pessoas de bem” eram retratadas tratando «as crianças e animais por você e os empregados por “tu”»21. Na terra «onde as tradicionais casas de colmo chegam ao mercado a preços entre 160 a 300 mil euros (…), depois da história dos “pobrezinhos” passou a dizer-se que «o colmo no verão arde melhor»22. Um confronto surdo abafado por uma imprensa servil da enorme operação de marketing e imobiliária da Comporta. Esta anuncia antes o destino “eco chic” descrito pelo New York Times como o próximo hit de férias, onde desfilam títulos e vaidades desde que se tornou terra dos Espírito Santo há 60 anos: de Américo Thomaz que aí caçava, passando pelo rei Juan Carlos, até às linhagens plebeias ou nobres de Sarkozy e Carla Bruni, à realeza da Jordânia, do Mónaco, etc., e sendo um claro ponto de encontro de todos os grandes nomes da finança, seguindo as pegadas dos banqueiros Rothschild e Rockefeller que aqui chegaram logo nos anos 50. Por tudo isto, fiel à tradição das grandes famílias, é criada em 2004 a Fundação Herdade da Comporta, não fosse a já referida caridade e as obras públicas os meios tradicionais por excelência na sociedade portuguesa de combate às crises de trabalho e de conflituosidade social. Em Setembro de 2011 apresenta um Projecto Social visando a colaboração com várias entidades para regularizar as habitações da Herdade «onde vivem atualmente famílias carenciadas em regime de comodato e/ou ex-trabalhadores da Herdade e seus descendentes». Mas as dificuldades na regularização das casas de gerações tornam claro o objectivo de afastá-las da Comporta. Casos de Leo-

nilde e José Maria dos Brejos da Carregueira, a quem o jornal i dava voz em Agosto de 2014. Casal idoso a viver a reforma na sua casa construída quando eram centenas as famílias vizinhas. Hoje sobram quatro, a quem a Herdade da Comporta entregou um cartão para abrir a cancela com videovigilância. «Vivem lado a lado com retiros luxososos, sabem que os querem expulsar dali». Já em 2015 é tornado público que nos Brejos da Carregueira, 1945m2 de casas da família Espírito Santo, incluindo a de Carlos Beirão da Veiga, foram construídas sem licenças. Mas pese as evidências, mais frequente continua a ser a vassalagem: «eles oferecerem trabalho à gente e nós sustentarmos as famílias, que foi sempre o que aqui aconteceu. Eles tinham aí projetos bons, e isso era importante por causa do emprego, mas agora parou tudo»23.

A queda dos Espírito Santo 2014 ficou na história como o ano da queda da família Espírito Santo. A Comporta tropeça no Projecto Global do Grupo Espírito Santo (GES), cujos passos trocados na complexa rede de activos e de entidades financeiras perdem a capacidade de iludir, levando ao seu desmoronamento. Nesse emaranhado da teia Espírito Santo, a Herdade da Comporta agregava-se à Rio Forte, controlada pela Espírito Santo International, sociedade da cúpula do GES. A Rio Forte actuava a nível mundial no campo do turismo, imobiliário, agro-pecuária e no mercado petrolífero e energético. Criada em 2009 no Luxemburgo, é declarada insolvente em 2014. É aqui que entra a Comporta como um dos activos mais cobiçados, num processo de que pouco se sabe. A participação do Áman Resorts, diz-se, transitou para enigmáticos fundos


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