Revista de Domingo nº 557

Page 3

conto

joSÉ NIcoDemoS*

Lenda do mar

(

Envie sugestões e críticas para o e-mail: aristida603@hotmail.com

)

C

ontava a lenda. Noite de lua, horas altas, um homem aparecia cantando pela praia, e era tão triste sua voz que o luar, profundamente tocado, como que se desfazia em pranto sobre o mar. Não demorava, e desaparecia como aparecera. Alto, musculoso, cabelo alourado de sol, tez morena, olhos verdes, era a figura de um pescador. Mas uma figura de todo desconhecida dos moradores, ali da praia da Pedra-Grande. De todas as praias do litoral dali. Os mais afoitos tentavam acompanhar-lhe os passos, praia afora, sem no entanto conseguirem dele aproximar-se. Se voasse. Era como se andasse dentro do vento. Ou se fosse o próprio em figura de gente. Ainda contava a lenda que, uma dessas noites, o pescador de nome Glicério, ao segui-lo pela praia, quando viu estava ao lado dele, tanto que o homem misterioso tinha uma cicatriz, funda, no lado esquerdo do rosto. Fora a única pessoa que tivera esse privilégio. Pela visão bem de perto, e ao clarão do luar, pôde Glicério descrever, com mais detalhes físicos, pros moradores da Pedra-Grande, aquele homem que cantava à beira-mar, nas noites de lua, com uma voz como a expressão mais profunda de todas as tristezas. Dava a impressão de ser uma propriedade dos raios da lua.

Alto, musculoso, cabelo alourado de sol, tez morena, olhos verdes, era a figura de um pescador.

Numa choupana no alto do morro mais alto da praia, na sucessão do coqueiral a perder de vista, habitava o velho Chico Pedro, com os mais de cem anos da sua idade, ainda pescador pelos noventa e poucos. Era o mais apreciado contador de estórias, dali e redondezas. A pedidos, repetia sempre a de um moço pescador, do seu tempo – não lembrava o nome dele – que vinha das praias do Ceará pescar ali no mar da PedraGrande. Sozinho, numa jangada de seis paus. Pequena. . Quando foi um dia, já amanhecendo, a jangada do pescador solitário do Ceará deu na praia do Morro-Pintado, vazia. E nunca mais o pescador solitário apare-

ceu, vivo ou morto. Lembrava-se, seu Chico Pedro, de que ele, o pescador solitário, sempre lhe contava que uma sereia lhe seguia a jangada, pelas horas do entardecer, se fazia lua cheia, declarando-lhe um grande amor numa canção de tom verde, que parecia beber o silêncio enorme escondido do vento no azul profundo do mar sem fim. Não se cansava, o moço cearense, de contar essa estória, os olhos como perdidos num mundo misterioso no fundo abissal talvez de um mar desconhecido. Era alto, musculoso, cabelo aloirado de sol, olhos esverdeados, no lado esquerdo do rosto moreno uma cicatriz, funda, de uma briga na praia de Caiçara.

Jornal de Fato | DOMINGO, 31 de março de 2013

3


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.