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OPINIÃO
from Jornal De Fato
ESPAÇO JORnALISTA mARTInS DE VASCOnCELOS
Organização: CLAUDER ARCAnJO
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Carta aONaMOradO
JOSÉ DE PAIVA REBOUÇAS
é escritor e jornalista josedepaivareboucas@gmail.com
Quase 60 anos depois da experiência de Paulo Freire em Angicos, retornamos à pequena cidade para conversar com alguns dos ex-alfabetizandos ainda vivos. Era 10 de julho de 2021, um sábado. Combinamos com a agente de cultura Silvana Pacheco Nunes, guardiã da Casa de Cultura de Angicos, artista plástica e entusiasta da cultura, das artes e da memória de Paulo Freire. Nos encontramos com ela na sede do espaço cultural que funciona no antigo prédio da Estação Ferroviária, o mais emblemático e talvez o mais bonito da história local. Amarelo vivo, destoa com sua arquitetura inglesa e as inscrições que trazem a data da construção e o nome da cidade: 1933 – Angicos.
Silvana, muito solícita, demonstrava preocupação porque, estando o prédio em reforma – pois passava por pintura e organização de um acervo pequeno com antigos objetos, esculturas e pinturas, além de uma biblioteca –, nos recebeu à porta. Tomamos um café enquanto ela contava de sua luta para preservar a história da cidade, de Paulo e viver de arte, tendo apenas um salário de agente cultural. Pelo adiantado da hora, perguntei se ela tinha feito contato com os ex-alfabetizandos, conforme combinado por telefone dias antes. Confirmou que sim.
Ainda na Casa de Cultura, ligou para Eneide – Maria Eneide Araújo, 65 anos. Ela é a garotinha que todos os pesquisadores relatam ter frequentado as aulas de Valquíria aos seis anos de idade. Preocupada com a pandemia provocada pela covid-19, disse que não podia nos atender pessoalmente, por isso falou conosco por videochamada. “Um dia, a professora disse a meu pai: Eneide está lendo”, ela lembrou.
De todos os que visitamos, Eneide foi a única que seguiu na educação. Minutos depois que falamos com ela, aceitou nos receber na calçada da casa de sua irmã para um retrato. Foi o tempo de se aprontar e aparecer com o cabelo arrumado, brincos bonitos, um vestido elegante de cor azul e um batom puxado para o bordô. Era muito criança para trazer lembranças claras daquele acontecimento, mas relatou sua trajetória escolar.
Estudou o primário no Educandário Padre Félix e o ginásio na Escola Estadual Prof. Francisco Veras, passando a atuar como professora do município logo em seguida. Nos anos 2000, cursou pedagogia no campus de Assú da Universidade do Estado do Rio
Paulo Freire dá as boas-vindas aos que entram em Angicos – Foto: Gabriel Leite

Grande do Norte (UERN). Na calçada da casa de sua irmã, sentava despreocupada uma aposentada da educação que investiu 45 anos de sua vida na alfabetização de crianças, cumprindo o sonho que floriu ao ver a professora Valquíria – hoje advogada e mestre em Educação pela UERN. “Não posso ser se os outros não o são”, disse ela parafraseando Paulo Freire.
Diferente de Eneide, a realidade dos demais ex-alunos do método visitados por nossa reportagem está muito mais parecida com a interrupção do propósito iniciado por Paulo Freire em 1963. No contato com eles, percebe-se que se tornaram pessoas diferentes, mais críticas e capazes de interpretar o mundo, embora quase não tenham aprendido nada tão além do que conseguiram nos Círculos de Cultura.
Maria Lúcia da Silva Andrade, dona Mariquinha, 79 anos, nos recebeu no portão de sua casa. Evitamos entrar por causa da pandemia. As lembranças da época eram poucas, basicamente repetindo as mesmas histórias – o que aconteceu com todos, como se houvessem internalizado um discurso que vem de fora –, falando dos Círculos, das palavras “belota” e “tijolo”, além de outros pormenores. Do Círculo de Rosali Liberato, ela teve nota máxima em Alfabetização (10) e mediana em Politização (7), terminando com média 8,5. “Eu era uma pessoa cega, não sabia de nada”, revelou. Apesar de tentarmos extrair mais lembranças, não conseguimos, dando a entender que era uma pessoa quieta e reservada. “O povo não era ‘infuluído’, não tinha algazarra”, comentou.
Paulo Alves de Souza, seu Paulo da Carroça, 79 anos, é uma das figuras mais referenciadas se alguém chega em Angicos e pergunta pelos ex-alfabetizandos. Apesar da idade, parece um garoto, tamanha a disposição. Esperamos por ele em frente à sua casa, uma construçãozinha antiga e baixa, com paredes sem cor, isolada em um terreno onde ele cria galinhas e mantém algum cavalo ou rês bovina. Não estava lá, mas não demorou a chegar, vindo do mercado na garupa de uma motocicleta com sacolas na mão. Ao se apear, não ficou contente de encontrar Silvana com nossa equipe sem antes ter sido avisado. Mas, ao mesmo tempo que reclamou com ela, se dirigiu ao nosso carro com grande gentileza.
Paulo foi um dos melhores alunos dos Círculos, concluindo as aulas com nota máxima (10), a mesma que tirou em Alfabetização e Politização. Ele esteve no grupo coordenado por Talvani Guedes, com 17 anos e ainda frequentava o ginásio, e por Margarida Magalhães.
Como bom sertanejo, primeiro contextualizou sua época, explicando sua realidade. “Naquela época, isso aqui não era uma cidade, era um monturo, não sabe? Ali só tinha umas casinhas e um prédio que o finado Pedro Moura construiu, aí, também isso aqui, tudo era mato, não tinha casa não. Aí apareceu essa casinha velha (e apontou para sua casa), que apanhei dele. Fiquei por aqui, ‘fiquemo’, ‘fiquemo’, aí foi crescendo, crescendo, mas aqui não tinha nada não”, explicou em sua variação linguística cheia de interjeições. Disse ainda que tinha esperança de viver mais de 100 anos, porque sua mãe viveu 104.
Seu Paulo da Carroça, que ganhou essa alcunha por ter trabalhado com fretes de carne do matadouro para o açougue em sua carroça de tração animal, também repetiu a história meio empacotada que toda a Angicos conta sobre o ocorrido em 1963. “As primeiras palavras que ensinavam a gente era ‘telha, tijolo, areia, barro…’; tinha uma história de uma ‘belota’”, conta, informando que, ao chegar no Círculo, já tinha algum estudo. “Eu já sabia um pouco porque minha mãe era muito religiosa e todos os filhos dela aprenderam um pouquinho, mas com o reforço de Paulo Freire aumentou mais”, afirma.
Ele também trouxe a história de que os jovens eram mais comportados, mas deixou escapar que tinha outras motivações para ir às aulas. “A gente era novinho e ia pela influência das namoradas, tinha mocinhas, rapazes”. Perguntado se saiu namoro, disse que tinha havido até casamento e se lembrou do matrimônio de um casal por nomes Nita e Chico de Lucas. Logo que terminaram as aulas, ele também se casou, depois se casou de novo e teve filhos nos dois casamentos, mas não conseguiu formar nenhum.
Quase 60 anos depois, ele se lembra das aulas como algo extraordinário que aconteceu em sua vida e não é raro se emocionar. “Nessa idade tudo de alegria pra nós é uma emoção”, conta ao dizer que costuma se emocionar ao ver a foto de Paulo nos pórticos de entrada da cidade. “Na minha vida foi muito importante e na vida de Angicos também porque ele ‘evoluiu’ muitas pessoas. Eu já sabia escrever o meu nome e uma coisinha ou outra, mas tinha muita gente que não sabia de nada”, recorda. “Depois que ele foi embora, com uns tempos ele voltou aqui e passou três dias ‘com nós’ dentro da classe, reunindo tudo, agradecendo pelos esforços que ajudaram a ele e tudo. Ele era uma pessoa excelente, chegava assim no meio da gente, parecia qualquer um de nós”, completa.
Quem também se lembrou de pouca coisa, mas não escondeu a importância daquele momento, foi dona Valdice Ivonete da Costa, 72 anos. Assim como seu Paulo Alves, também fechou as aulas com nota dez em Alfabetização, em Politização e na média geral. Também não tinha sido avisada de nossa aparição por Silvana, mas interrompeu a conversa na área da frente, desarmou uma rede bonita e sentou-se para falar com a reportagem. Bem apresentada, tem a voz mansa e educada, embora pouco a dizer, disse o essencial. Segundo ela, se não fossem as aulas não teria acontecido nada em sua vida e ela nem teria estudado.
“Pra mim foi a coisa maior do mundo, essas aulas de Paulo Freire, nunca esqueci. Não só eu, vários que estudaram. Alguns já morreram, mas quando tinha eventos, eles iam, falavam que tinha sido bom, que tinham aprendido a ler”, comenta. Mãe de seis, conseguiu formar uma filha que atualmente é professora concursada. Também tem uma neta fazendo Ufersa. Ela também estudou um pouco, fez até a 5ª série no Educandário Padre Félix.
“Me lembro das aulas, que a gente ia à noite, aquela farra dos jovens, era bom demais”, recorda no meio da conversa como numa digressão. “Se não fosse as aulas de Paulo Freire, eu não sabia nem pegar num celular”, completa dizendo que usa com frequência as redes sociais WhatsApp e Facebook “Pra falar com a família”.
Das casas que visitamos, onde mais nos demoramos foi na de Maria Gildenora Costa Araújo, 74 anos, conhecida como Maria de Ferreiro. Irmã de dona Valdice, mas com a pele mais escura e cabelos branquinhos, demonstrou resistência a contar suas lembranças. Percebemos, no entanto, se tratar de certa pirraça que ela confirmou depois: “Não viu eu me amostrando”, disse como antigamente para se referir à criança que faz birra. “Não sabe escrever não, me dê que eu escrevo!”, brincou comigo quando pedi para repetir seu nome.
Morando em uma casinha simples na esquina de um bairro, teve cinco filhos e criou mais um. A maioria com sua vida própria, apesar disso Maria ainda é responsável pelo sustento de dez pessoas, entre filhos e agregados, apenas com ajuda de uma filha, Francinete, 45 anos, que a muito custo conseguiu um cargo comissionado na Prefeitura. Aliás, observamos que tinha foto dos candidatos na parede da frente. Entre os que moram em sua casa está o neto Pedro Henrique, filho de Francinete, atual estudante de Ecologia no IFRN de Ipanguaçu, talvez o primeiro que consiga entrar na faculdade. A mãe dele foi a que mais estudou, concluindo o Ensino Médio.
Maria nasceu no sítio Batuque, em Santana do Matos, mas se mudou para Angicos ainda criança de colo depois que o bisavô morreu. Sentado numa cadeira de balanço, dessas preguiçosas, passa o dia costurando máscaras de proteção individual para atender demandas da pandemia e outros serviços menores. “Era uma coisa muito boa estudar”, diz. Chegou ainda a frequentar aulas numa escola local depois de ser alfabetizada nos Círculos, no entanto não se lembra até que série fez. Como também não se lembra de quem foi o tutor de seu Círculo. Consultamos e achamos seu nome no grupo de Talvani Guedes e Margarida Magalhães. Foi uma boa aluna tirando média 8 em Alfabetização, Politização e na média geral.
Perspicaz e de olhar atento, confessou ter sido da “ala-moça de Aluízio Alves” e que, se tivesse estudado mais, seria hoje detetive. “O juiz me ensinava tudo”, disse, lembrando do tempo que trabalhou como auxiliar de serviços gerais, na década de 1980, no cartório eleitoral da comarca, sendo pessoa de confiança do juiz José Augusto.
Já bem à vontade, resolveu contar sua melhor história dos dias de 1963. “A coisa que eu achei mais graça e achei mais interessante – que hoje em dia os filhos dizem e as mães não estão nem aí – é que eu cheguei em casa e disse: mamãe, eu já sei ler. Aí ela disse: então, está muito bom, seja muito bom pra você. Então, quando eu cheguei de volta lá no ‘colégio’, eu disse a ele (ao professor): vou dizer um negócio aqui pro senhor, eu já sei ler e escrever. Aí ele disse: ah, é uma coisa muito boa, então agora você já vai fazer uma carta pro seu namorado. Aí, quando cheguei em casa, fui dizer isso pra minha mãe e ela disse: pois agora você vai levar uma pisa e não vai mais pra escola (risos). Aí eu meti o olho a chorar, porque, ah povo besta era o povo de antigamente! Porque se não fosse tão besta, não tinha queimado os cadernos que a gente escrevia tudo e aprendeu aquilo tudo, no tempo que disseram que vinha polícia, a Ditadura e não sei o que mais”, relatou Maria de Ferreiro.
E a surra, levou, dona Maria? perguntei. “Não. Meu pai disse: deixe ela ir estudar que isso é uma besteira. Nós não namoramos, e não ‘casemo”?!, concluiu em gargalhadas.

dI reçÃO geral: César Santos dIretOr de redaçÃO: César Santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.
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