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OPINIÃO

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GERAIS/OPINIÃO

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organização: CLauder arCanjo

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MUIta geNte acredIta qUe a fOrça, ENão o DiREito, é SoLUção PARA tUDo

aéCio Cândido

professor da UERN, aposentado. autor da obra Tempos do verbo aeciocandidocuite@gmail.com

Madame Sevigné foi uma francesa do século XVII. O mundo a conhece, porque ela, nobre, mulher sensível e amante das artes, deixou para a posteridade algumas centenas de cartas, publicadas postumamente, e nelas figuram muitos registros da vida na corte parisiense e alguns traços dos sentimentos da época.

Sua fama se deve também à atenção que, dois séculos depois, Alexis de Tocqueville (1805 – 1859), importante sociólogo e político francês, deu a uma de suas cartas. Tocqueville foi buscar nela a ilustração empírica de uma de suas teses: a de que a moral humana tem evoluído.

Na carta que interessou a Tocqueville, Madame Sevigné escreve à filha, falando de enforcamentos em massa como de acontecimentos banais e confessando o prazer que sentiria ao assistir à execução de agitadores políticos. Ela graceja com a descrição da carnificina. Antes de qualquer comentário, Tocqueville ressalta que a senhora Sevigné não era uma mulher má, perversa, mas que “Hoje, o homem mais duro, escrevendo à pessoa mais insensível, não ousaria, a sangue-frio, se entregar à zombaria cruel que eu terminei de reproduzir, e mesmo que seus modos particulares o permitissem, os modos gerais da nação o impediriam”.

De fato, as execuções públicas na fogueira, na forca e na guilhotina foram em séculos passados espetáculos apreciados por homens e mulheres de bem, em geral, gente temente a Deus. Na época de Jesus, apedrejavam-se mulheres como punição pelo crime de adultério. O costume cruel permanece em alguns poucos países do mundo islâmico. Os romanos do tempo do Império, mesmo os mais educados e de espírito refinado, apreciavam assistir na arena a luta desigual entre cristãos e leões e o previsível estraçalhamento dos primeiros. O castigo imposto ao corpo morto de Tiradentes (o esquartejamento, a exibição dos pedaços do corpo em diferentes caminhos de Minas e a salga do terreno de sua casa destruída) não parece ter causado nenhum escândalo moral à época. Causaria hoje, com toda certeza.

A constatação de Tocqueville a respeito da mudança na sensibilidade moral o incentiva a se perguntar: “De onde vem isso? Nós temos mais sensibilidade que nossos pais? Eu não sei, mas seguramente nossa sensibilidade abarca hoje muitos assuntos mais”. De fato, o sofrimento da criança já nos foi indiferente, como o da mulher, o do homossexual, o do estrangeiro, o do preso, e mesmo o dos animais. É como se nada que ocorresse de mal a esses grupos nos dissesse respeito. Hoje, representada pelo Estado, a sociedade se ofende e se escandaliza com agressões a eles. A sociedade reconhece neles alguns direitos que não reconhecia antes. Em resumo, a senhora Sevigné não era uma mulher cruel, mas se sentia atraída pela crueldade como um passatempo: ver execuções capitais lhe parecia uma forma saudável de ocupar o tempo. O tempo de Madame Sevigné pensava assim.

Há poucos dias, num grupo de WhatsApp, um amigo postou um áudio dizendo-se contra qualquer opressão, declarando-se a favor da liberdade, mas, temeroso da anarquia e do comunismo que, segundo ele, ameaçam a vida do país, só enxergava uma saída: uma intervenção militar. Suas palavras: “Infelizmente, nosso país tá marchando pra isso. Só tem duas saídas: ou vira o comunismo mesmo, passa a ser um país comunista, e o militar fica quieto, calado, ou então o militar tem que agir. Eu acho que só tem essas duas saídas”

Meu amigo é uma boa pessoa. Não, na verdade, é uma excelente pessoa: é compassivo, sensível, alegre. E no seu exercício profissional tem intenso contato com gente que trabalha com a ciência e com gente que trabalha com arte, sendo ele mesmo um artista – músico percursionista. De onde vem a crença de que os militares são um grupo social moral e cognitivamente superior, talhado para guiar a política do país? De onde vem também a crença de que o país vive esse dilema?

A primeira questão diz respeito a algo meio intuitivo. Parece estar em nossa natureza mais primitiva a admiração pela força, pelo guerreiro e pela guerra. Mas desde alguns séculos a força física já não é mais determinante da nossa sobrevivência, como indivíduos ou como grupos. Eu não dependo da força física para construir minha casa, nem meu barco. Nem dela para resolver uma querela com meu vizinho. Pelo menos desde a Revolução Industrial, a qualidade da vida no planeta depende mais do conhecimento do que da força. Ainda que agressões externas sejam sempre uma possibilidade e em razão disso os países mantenham exércitos regulares, os militares não são homens reconhecidos pela sabedoria. Razão por que em qualquer país democrático eles devem estar submetidos à política (ao Estado de Direito) e não a submeterem a si. Não quero citar exemplos, mas que conhecimentos tem o general Hamilton Mourão? O que pode ensinar à juventude o general Augusto Heleno? O último militar com capacidade de nos ensinar alguma coisa foi o marechal Rondon.

Em países mais modernos, a interrogação política tem outra natureza. Em geral, se pergunta: onde estão os homens e mulheres mais preparados para governar? No mundo dos negócios, na comunidade científica, nas artes, na política, nos esportes, na esfera religiosa? Apesar da pertinência da questão, esta não é uma boa pergunta, porque ela leva a uma má resposta. O filósofo Karl Popper defendia que a pergunta deveria ter outro conteúdo: o que fazer para que os maus não possam fazer, no comando do país, o mal que desejam? Ou seja, que instituições desenvolver, de modo a impedir o desastre de um mau governo? A segunda questão (7º parágrafo) aponta para uma construção social. Quem governa, e sobretudo quem governa de modo totalitário, sabe que precisa de inimigos, reais ou imaginários. Sem o Diabo, Deus não existe. Não se faz religião nem política sem medos coletivos, daí eles serem recorrentes na história. O temor dos bárbaros, na Roma cristianizada; o temor dos mouros, na Europa cristã; o temor dos judeus, na Península Ibérica do século XVII e na Alemanha do século XX; o temor dos comunistas, no Brasil e no Ocidente, em geral, no período da Guerra Fria. Os homens juntam-se, e esquecem suas diferenças, diante de uma ameaça comum.

Eu fico me perguntando: que razões tem o meu amigo para admirar mais os militares que os cientistas? E por que imagina ele que militares são intrinsecamente bons e sábios e capazes de compreender um mundo complexo como o nosso, do qual a vida na caserna é uma palidíssima sombra? A ingenuidade do meu amigo o alista no exército dos inocentes úteis. Graças a ele, muito mal é feito ao se buscar o bem.

E pra concluir: se um bolsonarista me apontar alguma declaração inteligente do Capitão, eu reescrevo o artigo.

dI reçÃO geral: César santos dIretOr de redaçÃO: César santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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