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OPINIÃO
from Jornal De Fato
eSPaÇo JoRNaLiSTa maRTiNS de VaSCoNCeLoS
Organização: CLaudeR aRCaNJo
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COVID VI
RaimuNdo aNToNio de SouZa LoPeS
é escritor e jornalista rsouzalopes@hotmail.com
5º Dia
Terça-feira, dia 2 de novembro. Acordei sem febre, sem nenhuma sensação de mal-estar, com paladar e olfato, graças a Deus. A impressão que dava era de que, em razão das vacinas, o corpo tinha reagido e expulsado de vez o tal do coronavírus de dentro de mim. Levantei disposto e pronto para colocar em prática o que havia pensado, de relance, na noite anterior: organizar meus arquivos, procurar alguns “que estavam perdidos”, agrupar fotos; enfim, dar um “tapa” no visual dos meus contos, crônicas, poemas… etc. e tal. Bem, o que eu mais precisava era de tempo e esse eu tinha de sobra. Tomei um banho e recebi, em seguida, através dos toques pelo outro lado da porta, a indicação de que o desjejum estava à minha espera. Animado, acabei de me aprontar. Depois devorei o café da manhã, com extremo apetite, diria. Mal sabia eu que esse “extremo” seria, no futuro próximo, a maior preocupação com a minha saúde.
O dia transcorreu sem nenhum incidente, praticamente. Por ser Dia de Finados, eu me lembrei dos meus que se foram… Deu saudade. Minha vó “Dona”, a primeira a ir para junto do Pai, trago a doce lembrança de uma mulher miúda, caridosa, muito apegada a mim e a sua neta Jane. Acho que se não tivesse sido ela, eu não teria resistido aos “maus caminhos da adolescência”. Jovem rebelde, queria ser dono do meu nariz e, por isso mesmo, fui muito penalizado no início da adolescência. Aliás, acredito, já na pré-adolescência, se não fosse a “sua asa” protetora, eu teria me desviado, e muito, do que eu sou hoje. Meu avô Manoel Pedro. Esse, um sábio. Um homem culto, filósofo, de uma capacidade quase que infinita de dar conselhos, mostrar caminhos, fazer as pessoas refletirem. Foi através de seus livros de capa dura, com nomes estranhos e difíceis de pronunciar, que eu criei gosto pela leitura. Gostava de vê-lo lendo e parando para refletir sobre o que lia. Era impressionante como o seu semblante se tornava iluminado, transcendente. Via-se, hoje eu percebo isso, a manifestação da compreensão invadindo a sua intelectualidade. Dele eu recebi a maior lição de todas, contada em uma crônica, quando ele me mostrou como o ato de ir e vir, sem precisar pedir a ninguém para fazer isso, era o ato mais importante para um cidadão pleno. Detalhe: mostrou-me tudo isso apenas se sentando no chão da calçada de sua casa. Foi brilhante!
Meu pai adotivo. Tio legítimo. Esse, um grande homem. Simples, motorista de caminhão, meio ermitão (claro, em razão de passar muito tempo sozinho, quando de suas viagens para o “sul” do país), era um homem bom, um excelente pai, um exemplo de marido. Sinto falta de não ter tido mais tempo para conversar com ele, para pedir perdão por algumas coisas. Minha tia Bil. Casou depois de madura, mas dedicou a sua vida a cuidar de seus sobrinhos, dentre eles, e especialmente, eu e a minha prima Jane. Queria muito bem a mim, eu sabia. E meu tio Dinarte. Um homem que tinha “mais ideias que a Sudene”, que sabia como ganhar dinheiro, tinha o felling para o negócio, mas que se perdeu pelos caminhos da avareza e da mesquinharia. Poderia ter sido o homem mais rico da cidade, porém o medo de ficar pobre o impediu de ser mais rico.
Fiquei pensando em todos eles. E pensei nas minhas avós de Assú: Ana Cândida e Maria Cândida (irmãs). Maria Cândida, mãe do meu tio legítimo - e pai adotivo -, e Ana Cândida, sua irmã. Convivi com elas por um bom tempo. Justamente em um desses períodos de rebeldia. Fazia “o comer” das duas, que já tinham mais de noventa anos. Gostava de ouvi-las contar suas histórias, todas as manhãs, no pé da porta da frente da casa. Diziam que ficavam ali recebendo o vento da manhã e assim “esfriarem” o corpo para tomarem banho às onze horas. E não adiantava dizer que “o corpo esfriava” sem precisar de tanto tempo Às vezes, mesmo ficando
Ilustrativa

ali das sete às onze da manhã, seus corpos, segundo elas, “ainda estavam quentes” para irem tomar banho. Eram duas figuras. Escrevi também algumas crônicas para elas... Ah, não poderia deixar de falar em Alice Lopes, depois conhecida por Alice Morais, já que se casou com Chico Morais, um agricultor e morador do sítio Cuó. Ele foi o pai dos últimos nove filhos dos doze que ela teve. Os três primeiros, segundo me disseram, eram filhos de três pais diferentes. Tia Alice, como eu a chamava, foi quem me botou no mundo. Deu vida ao terceiro filho que ela teve. Um dia o seu irmão Severino falou que a esposa não podia ter filhos e que, diante disso, se ela não estaria disposta a “dar” um dos seus filhos para ele “criar”. Disse que registrava como se fosse seu filho legítimo. Aqui faço um parêntese para observar a cena: Severino chegando em seu caminhão, parando no terreiro da casinha de taipa, perto do pé de cajarana, descendo e cumprimentando a todos. Os três meninos de Alice (uma menina e dois meninos), assustados com o caminhão, agarram a perna da mãe. “Qual deles você quer?”, pergunta ela. “O menorzinho”, responde ele. Pronto, estava concretizada a mudança de rumo daquela raquítica criança de menos de dois anos de idade. O caminhão deve ter voltado logo. Só fiquei sabendo disso tudo doze anos depois. Acho que mexeu muito comigo. Custei a entender o porquê de não estar no meio dos outros onze irmãos. Talvez a rebeldia e alguns traumas sejam disso. Bem, Alice era, segundo diziam, uma moça muito bonita. Bonita e viçosa. Os homens enlouqueciam por ela. E, segundo me disseram, ela nunca se fez de rogada para aceitá-los. Teve vários parceiros, aproveitou a mocidade e só se aquietou quando conheceu Chico Morais…
Deitado, tentando refletir sobre a vida, sobre os parentes que se foram, a cronologia dos mais novos enterrarem os mais velhos (nem sempre compreendida pelos que ficam vivos, mas de suma importância para a perpetuidade da espécie - dizem que a dor de enterrar um filho é maior, para os pais, do que o inverso dessa cronologia), sobre as ilusões da vida, já que a luta diária pela sobrevivência vai esbarrar, sem sombra de dúvida, na última estação; enfim, só para não dizer que não falei das flores, fiquei imaginando, enquanto os estertores da minha respiração denunciavam a ansiedade de tudo quanto pensei e coloquei no papel, o quanto tudo isso mexe comigo. Não pude deixar de me imaginar nunca tendo saído de junto da perna de minha mãe. Será que a minha vida teria sido pior ou melhor do que foi até hoje? Será que o trauma de me descobrir “enjeitado” e, consequentemente (na cabeça de um menino de doze anos), “rejeitado” pela própria mãe, contribuiu para que eu não alçasse maiores voos na minha vida profissional? Uma das coisas que me falta na vida, hoje sou bem consciente disso, é a ambição de querer lutar muito por algo. Luto, claro, até tenho vontade além da medida por determinadas coisas, porém não sou muito de, percebendo que as dificuldades a serem enfrentadas são inúmeras e bastante dificultadas, correr atrás. Não. Normalmente deixo de lado. Desinteresso-me. Eram, portanto, muitas inquisições… A vida é uma ilusão? Vale a pena viver? Será que de fato há vida além desta?
E a terça acabou sem muitas novidades. Ah, um detalhe, na terça comecei a tomar o remédio à base de corticoide. Dormi bem confiante.
Continua...

DI reçÃO geral: César Santos DIretOr De reDaçÃO: César Santos gereN te aDMINIS tra tIVa: Ângela Karina DeP. De aSSINatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.
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