5 minute read

OPINIÃO

EsPaÇo JoRNaLIsta MaRtINs DE VasCoNCELos

organização: CLauDER aRCaNJo

Advertisement

WIllIam FaulkNer, o Caravaggio da literatura

VERa LúCIa DE oLIVEIRa

Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-dF) veraluciaoliveira@hotmail.com

Não, o homem ajoelhado bebendo água da fonte não tinha um revólver no bolso, como lhe foi perguntado, e sim um livro – em diálogo que abre o romance Santuário, de William Faulkner (1897-1962), publicado em 1931.

Assim começa a narrativa que opõe dois fortes elementos da cultura dos Estados Unidos da América: o revólver e o livro. O revólver, cada vez mais utilizado pelos cidadãos fortemente armados do imenso país, e o livro no seu papel de contraponto, de cultura humanista e democrática do saber. Dois polos. Duas armas.

Numa atmosfera inóspita da região do Mississipi, no pós-Guerra de Secessão, com o sul derrotado e devastado, passa-se essa história de supremacia branca, racismo, crimes hediondos, violência física e psicológica contra negros e, claro, contra as mulheres:

– Meu irmão disse que mataria Frank. Não disse que me daria uma surra, se me encontrasse com ele; disse que o mataria, no seu carro amarelo. E meu pai amaldiçoou meu irmão, dizendo que ainda estava em condições de dirigir sua família; e me fechou em casa, e foi até a ponte esperar por Frank. Mas não fui covarde. Desci pela goteira e fui prevenir Frank. (...) Meu pai estava sentado na varanda. Disse: “Saia daí”, e eu desci, pedindo a Frank que continuasse. Mas também ele desceu. Subimos o caminho e meu pai entrou e pegou a espingarda. Pus-me na frente de Frank e meu pai perguntou: “Quer levar o tiro, você também?” Tentei ficar na frente, mas Frank me empurrou para trás, aí me segurando. E papai atirou em Frank, dizendo-me: “Abaixe-se e fique na sua sujeira, vagabunda.” (SP: Abril Cultural, 1980. Pág. 51, 52).

Não há espaço para otimismo, alegria ou esperança nesse belo livro sombrio e desesperador. O que o torna um monumento literário, no entanto, é a linguagem extremamente elaborada. Não seria de outra maneira que o autor conceberia o mundo à sua volta, ou seja, com ideias pessimistas e visão artística. Um novo Caravaggio, “o tenebroso”, como foi apelidado o genial artista italiano que retratou prostitutas, ladrões, mendigos, toda a escória que encontrou nas ruas de Roma – ele mesmo acusado de assassinato. Não o nosso autor americano. Homem bondoso, tímido, pacato, testemunhou, entretanto, como o pintor italiano, a violência de seu tempo: execuções públicas, enforcamentos e outras barbáries. Se Caravaggio combinou o sagrado e o profano em sua arte, Faulkner combinou o moral e o amoral, a justiça e a injustiça – essa a força da literatura do leitor apaixonado da Bíblia, sobretudo do Antigo Testamento, que sempre levava num bolso (e Shakespeare no outro).

Na luta quixotesca por justiça, o personagem Horace Benbow, de caráter nobre e abnegado, enfrenta sozinho um sistema corrompido pelo preconceito, desumanidade e degeneração moral. Horace, profundamente humano, é o protagonista, se é que se pode falar em protagonista nesse romance-puzzle em que as peças e personagens vão se encaixando à medida que a narrativa avança, com mudanças bruscas, o que torna a leitura desafiadora e desconcertante para o leitor, mesmo experiente. Chamam também a atenção as surpreendentes comparações e a animização de objetos:

Derradeiros reflexos corde-açafrão tingiam o teto e a parte das paredes onde viamse as sombras de paliçada da avenida, que a oeste se erguia contra o céu. Ela viu-os desaparecer, consumidos pelos sucessivos bocejos da cortina. Viu também a última luz condensar-se na parte fronteira do relógio e o mostrador passar, no escuro, de orifício redondo a disco suspenso no nada, no primitivo caos, e mudar depois para bola de cristal que continha, na sua tranquila e misteriosa profundidade, o caos ordenado do mundo complicado e sombrio sobre cujos flancos, marcados de cicatrizes, as velhas feridas rolam vertiginosamente para a frente, mergulhando na escuridão onde se escondem novos desastres. (Pág. 126).

E ainda:

Contra o ouvido de Horace, o rádio ou vitrola teve uma sonoridade de saxofones. Obscenos, fáceis, pareciam eles lutar um com o outro, como dois hábeis macacos numa jaula. (Pág. 165).

A cabeça de Bud era completamente redonda, o nariz cheio de sardas, como manchas de pesada chuva de verão sobre a calçada. (Pág. 205).

Às oito horas ele entrou no pátio da cabana da louca. Somente uma luz brilhava na alucinante profundidade da casa, como vagalume apanhado num sarçal. (Pág. 220).

Leitor e admirador de Joyce, Faulkner vai utilizar a sua técnica moderna de escrever, com recursos como o fluxo de consciência, episódios descontínuos, períodos longos e detalhes que só serão esclarecidos adiante, com cruzamento de personagens e imagens inéditas, como vimos acima. Por isso e pela prosa áspera, o autor não caiu nas graças do grande público leitor. Foi reconhecido inicialmente apenas pela crítica, pois criou uma obra de alta complexidade, com vários pontos de vista, um caleidoscópio. O espetáculo principal, portanto, fica por conta da linguagem trabalhada, originalíssima. Foi o artista da palavra.

Se o tema da decadência moral do sul dos Estados Unidos foi o seu incômodo, o Mississipi, onde ele nasceu e viveu, foi o motor de sua literatura, o palco de muitos horrores, com suas figuras grotescas e linchamentos de negros. (Não há como não se lembrar de “Strange Fruit”, na voz da maravilhosa Billie Holiday...). Faulkner não quis apenas dar um depoimento sobre a triste história de decadência das grandes famílias da região, inclusive a dele, mas quis, sim, reconstruir o mundo hostil que conheceu. Assim como em Caravaggio, em Faulkner não há sentimentalismo, somente realismo cru. Para ele, o escritor só necessita de experiência, observação e imaginação para construir uma grande arte. E de demônios, como diria Orwell.

Segundo Olívia Krähenbühl, tradutora do romance Uma fábula, de 1954, desse ganhador do Nobel de 1949,

Faulkner tornou-se o porta-voz da angústia e da esperança de um grupo cada vez mais considerável de seres humanos, que pensam e sentem como ele perante a tensa realidade no mundo contemporâneo, onde, em certas plagas, a própria palavra paz se tornou suspeita.

Assim também em Luz em agosto – um de seus grandes romances ao lado de Absalão, Absalão e O som e a fúria – que guarda algum parentesco com Santuário, que lhe deu celebridade e algum dinheiro. Faulkner deixou-nos extensa e riquíssima obra que consta de romances, novelas, contos, poesia, literatura infantil e roteiros para o cinema.

E declarou um dia: “Se eu tivesse de escolher entre a dor e o nada, escolheria a dor.”. Foi o que fez nesse Santuário dessacralizado.

dI reçÃO geral: César Santos dIretOr de redaçÃO: César Santos gereN te ad mINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINaturaS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

FILIADO À

This article is from: