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OPINIÃO
from Jornal De Fato
eSPaÇO JOrNaliSTa MarTiNS de VaSCONCelOS
Organização: Clauder arCaNJO
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COVID III
raiMuNdO aNTONiO de SOuZa lOPeS
é escritor e jornalista rsouzalopes@hotmail.com
Deixei o posto de pronto atendimento com a cabeça pipocando de questionamentos, de interrogações, de dúvidas, cheio de medos. Sim, e se eu tivesse passado essa maldita doença para meu filho, para minha esposa e para a minha sogra, esta já com noventa anos? Casos houve de famílias inteiras serem dizimadas por causa desse infeliz coronavírus. Deu vontade de chorar; no entanto, evitei. Não podia deixar meu filho preocupado. Fomos comprar os remédios. Enquanto o meu filho comprava o que havia sido prescrito, eu tentei fazer uma lista de prioridades para, se por acaso eu precisasse me ausentar do isolamento social preventivo do meu quarto para o isolamento total, cinco estrelas, de uma UTI, já deixasse tudo organizado para a posteridade. É claro que pensei nos livros prontos que tenho guardado: um romance (a primeira parte com 385 páginas), três livros de contos; duas novelas; seis livros de crônicas publicadas no jornal Gazeta do Oeste, aos domingos, no período de 2005 a 2015; um livro de prosa poética e outro de poemas. Depois pensei em escrever algo como sendo “a última crônica”, porém, claro, sem conotação de despedida. Apenas um “prevenimento” de, se por acaso acontecessem “emoções eternas”, eu deixasse registradas as minhas últimas memórias. E me lembrei das pessoas queridas, dos amigos, familiares, de quem eu devia pedir perdão, de quem seria preciso me reconciliar, de me desculpar por ter ofendido. Tudo isso em meros cinco minutos. Foi aí que percebi o quanto a vida passa rápido e de como a gente perde tempo com coisas infrutíferas, supérfluas e sem objetivo para um bem comum. E o engraçado é que essa rapidez só aparece justamente nos momentos de aflições. Quando se está “numa boa”, desfrutando das “emoções eternas”, o tempo parece não existir, não se esvai. Por isso que a felicidade, embora não seja eterna, traz essa sensação de parar o tempo. Deu-me de novo vontade de chorar. A sorte é que ao encher os olhos do líquido “lacrimejoso”, meu filho voltou. Engoli metaforicamente as lágrimas.
Saímos dali em direção a minha residência. Enquanto o carro fazia o seu trajeto, e na hora exata em que ele “atravessou” a imaginária linha da antiga rede ferroviária, na altura da praça de alimentação (entre a Avenida Rio Branco e a Rua Frei Miguelinho), não pude deixar de me lembrar da Estação de Trem e a que iremos pegar para embarcarmos para nossa última viagem. Meus pensamentos se voltaram mais uma vez para as dúvidas, as indagações, os questionamentos… Será que o meu tempo havia chegado? Será que o isolamento seria a purificação, a preparação para “eu me arrumar” convenientemente para a viagem? E o que levar? Poeticamente, só levamos as recordações, as saudades, as lembranças (sim, são sinônimos, no entanto, na minha cabeça, cada uma delas tem um significado especial em minha vida)... Será? E se embarcarmos, onde sentaremos? Na janela ou no corredor? Se for na janela, haveremos de ver a nossa vida em flash, passando pelo lado de fora? E se não for na janela? Será que no corredor também teremos essa mesma visão? Outra coisa também me chamou a atenção: o tempo de isolamento a que teria de me submeter, de quatorze dias, a contar dali, serviria para o tal tempo de mundificação? Instintivamente, olhei para o console entre o banco de passageiro e do motorista, aquele em que fica a alavanca de marcha, procurando uma moedinha… É que me lembrei de Caronte, o barqueiro de Hades, que carrega as almas dos recém-mortos sobre as águas dos rios Estige e Aqueronte e que é preciso uma moeda, colocada na boca do morto, para fazê-lo atravessar até o seu destino final. Por isso a minha procura pela tal moeda, mesmo sendo uma de real, feita de cobre, níquel, estanho e prata. Ou será que no mundo atual a moeda precisaria ser dólar americano, libra esterlina e/ou euro? Pois se fosse assim, eu estava “lascado”. E mais lascado ainda se fosse preciso utilizar as moedas originais descritas na mitologia grega (óbolo ou dânaca). Se bem que, valor por valor, até a moeda brasileira estaria mais valorizada… Ah, lembrei-me de um detalhe, enquanto o carro seguia o seu trajeto de volta, pilotado pelo atento motorista chamado Pedro… Diferentemente do trem, para se pegar o barco era preciso ser conduzido, ser buscado, levado, talvez por Osíris - deus da mitologia grega, considerado o senhor dos mortos. Meu Deus! Estava a “trevaliar” mais uma vez! Seria a febre que teria aumentado de grau? De 39 para 40 graus? Só podia! Estava pensando só negativamente! Precisava condicionar meus pensamentos, trazê-los para o lado positivo, demonstrar equilíbrio, perseverança, força de vontade e fé.
E para me abastecer de fé e esperança, a minha formação religiosa é a católica apostólica romana, tendo Jesus Cristo como o meu pastor, único Deus vivo, dotado de toda misericórdia, apaixonado pelos seus filhos, amando a cada um deles pelo próprio nome, eu sei que jamais deixaria que um filho dEle chegasse a adentrar as portas do Inferno, no máximo, e olhe lá!, um
Ilustrativa “purgatoriozinho” só para purificar as vestes de entrada no céu. E se por acaso chegasse ao extremo de realmente ir dessa para melhor, se eu pudesse “escolher” a rua na qual iria morar, gostaria que fosse a mesma em que estivessem morando Elvis Presley, John Lennon, Joe Cocker, Ella Fitzgerald, Louis Armstrong… Belchior, Pixinguinha, Cartola, Cássia Eller... Chico Anysio, Costinha, Dercy Gonçalves, Clodovil, Hebe Camargo, Flávio Cavalcante… Honoré de Balzac, Victor Hugo, Miguel de Cervantes, Montagnier, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Fernando Sabino, Rubem (Braga e Alves), Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Patativa do Assaré, Luís Campos, Chico de Neco Carteiro… E se essa rua fosse mais comprida, Giordano Bruno, Nietzsche, Jean Paul-Sartre, Voltaire, Epicuro… Será que estou pedindo muito? Finalmente o carro parou, abriu o portão eletrônico, entrou, o portão se fechou atrás dele, eu desci e me encaminhei para a minha cela (quero dizer, o meu quarto, já preparado com o básico para me receber como único hóspede pelos próximos quatorze dias). Interessante como é a vida! De repente, algo tão familiar como o quarto de um casal torna-se como que estranho quando se entra nele por obrigação, por imposição, por impedimento. Quando entrei, e antes de fechar a porta atrás de mim, vi lá no início da sala a minha esposa olhando-me, não pude evitar que uma lembrança recente viesse chegando, devagarinho... Recentemente falecido, um escritor amigo fez a sua passagem com velório ao lado do Museu Municipal, na parte de trás. Pois bem, nos anos cinquenta, esse escritor precisou pagar por um erro seu na Cadeia Pública de Mossoró, que funcionava onde é hoje o Museu Municipal. Nessa época, os presos tomavam banho de sol na parte de trás da cadeia, onde ficavam o pátio e os portões. Num desses portões, o segundo da direita para a esquerda, era onde se sentava esse amigo. Ficava por lá o tempo que fosse permitido, olhando, quem sabe, para o seu futuro, ou pensando no que o futuro lhe reservava depois de sair dali. Sete décadas depois, ele se despediu dele mesmo, ao ser velado no outro lado da rua, de frente para o portão em que se sentava, e que olhava, só Deus e ele sabem, para seus últimos momentos entre nós. A porta foi fechada atrás de mim. Continua...


DI reçÃO geral: César Santos DIretOr De reDaçÃO: César Santos gereN te aDMINIS tra tIVa: Ângela Karina DeP. De aSSINatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.
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