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OPINIÃO
from Jornal De Fato
EsPAÇo JorNALIstA mArtINs DE VAsCoNCELos
organização: CLAuDEr ArCANJo
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APONtAmeNtOs de uma viagem homérica
VErA LúCIA DE oLIVEIrA
Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-dF) veraluciaoliveira@hotmail.com
Impossível não pensar em Ulisses nos Apontamentos de viagem, de J. A. Leite de Moraes (SP: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011). Nesses apontamentos, vamos acompanhá-lo na incrível viagem de São Paulo a Goiás, em 1881, para onde fora nomeado Presidente da Província. Diferentemente do Ulisses de Homero, o nosso herói é de carne e osso, mas o que os torna parecidos são as dificuldades encontradas no caminho desconhecido que trilharam. E a superação.
Após a nomeação, o paulista Joaquim Almeida Leite de Moraes (1835-1895) saiu da Estação da Luz na cidade de São Paulo, no dia 27 de dezembro de 1880, com destino à cidade de Goiás, capital da província homônima à época, pequeno vilarejo sem luz, aonde chegou a 31 de janeiro de 1881. Foram trinta e cinco dias à frente de uma pequena expedição, acompanhado do fiel escudeiro Carlos Augusto, seu oficial de gabinete, e mais o guia, cavaleiros e dezoito cavalos. Assim como fizeram seus ancestrais bandeirantes, embrenharam-se sertão a dentro, enfrentaram todas as dificuldades que se possa imaginar: do sol abrasador do verão tropical, que quase deixou Carlos Augusto sem nariz, às chuvas torrenciais, que os deixaram inúmeras vezes encharcados até a alma. Passaram por lagos infectos, por regiões com lama até a barriga dos cavalos de onde saíam irreconhecíveis. Andavam nas matas, perdiam-se, ressurgiam, dormiam em pousos inacreditáveis na beira das estradas (que estradas?), numa aventura cujas dificuldades só podem ser comparadas às da odisseia de Ulisses ao voltar para a sua Ítaca, onde era esperado pela esposa, Penélope, pelo filho, Telêmaco, e pelo pai, Laertes. Assim também a família de Leite de Moraes, sem notícias, o aguardava de volta. Ambos, o grego e o paulista, só tinham um objetivo: voltar para casa.
Se Ulisses encontrou criaturas desmemoriadas que viviam num eterno presente, sem conhecer o passado ou vislumbrar o futuro, Leite de Moraes encontrou habitantes no Brasil profundo que não tinham a mínima noção do tempo e do país, caboclos esquecidos dos governantes e de Deus. Ainda em Minas Gerais, debaixo de chuva, ao anoitecer, tomaram um trilho só iluminado pelos relâmpagos, e... melhor deixá-lo contar:

Veio a noite e caminhamos apalpando... De quando em quando, ao clarão do relâmpago, procurávamos uma casa, um rancho... e nada! (Pág. 46)
E encontraram. Mas a alegria durou pouco:
– Estamos salvos! – disse eu aos companheiros, e gritando – Oh! De casa – apareceume um caboclo, a quem pedi licença para pousarmos naquele rancho. Concedendonos a licença, acrescentou ele, apontando para a esquerda – Aí tenho uma casa para onde vou mudar-me, e é mais asseada do que esta; se quiserem lá ir, podem ir. Ora não havia como hesitar entre um rancho aberto e uma casa mais asseada; fomos para esta casa. Dar milho aos animais, soltá-los numa mangueira, pendurar os arreios, os ponches e as botas foi obra de um momento. A casa tinha uma sala, uma alcova, um corredor e uma cozinha. Ficamos na sala, onde havia um catre sem colchão e um jirau de palmito. Eu e o Carlos Augusto fomos à cozinha e de lá trouxemos alguns pedaços de lenha e fizemos o fogo, e enquanto isto o alferes Dantas já tinha contado ao pobre caboclo que ali estava o presidente de Goiás etc. Ao clarão do fogo desdobrase diante dos nossos olhos um quadro assombroso, que se desenha nas quatro paredes do pequeno compartimento onde estávamos! O teto, as paredes, os arreios, ponches, botas, baixeiros, o chão – tudo estava coberto de uma densa camada de baratas de todos os tamanhos e de todas as cores, cujo movimento produzia um som confuso que chegava aos nossos ouvidos! Nesse espetáculo pavoroso, vemos as baratas aumentarem, assenhorando-se da casa inteira, subindo por dentro das ceroulas, das calças, ao que Carlos Augusto reportou mais tarde: “Baratas aos milhões, aos trilhões, número incalculável! Não se dorme; os pacíficos insetos conspiram contra nós. É muito expressivo! (Págs. 48 e 49)
Mas os perigos só estavam começando, pois estamos nos primeiros dias de viagem ainda em Minas Gerais. E, como o curioso Ulisses, Leite de Moraes queria tudo ver, e viu – como disse reiteradas vezes, com seu espírito de jornalista em narração deliciosa, pois também o foi – vagando à deriva, cada vez mais longe de casa e do progresso da civilização. Se Ulisses levou os irritadiços ventos Norte, Sul e Leste bem presos em um saco para evitar tempestades, Leite de Moraes não teve a mesma sorte, pois num dos abrigos em que pernoitavam sob forte tempestade, até as camas foram açoitadas pelo vento frio e impiedoso. E, os mesmos ventos impiedosos, que depois arrebataram os navios de Ulisses, fizeram todo tipo de estrago no bote Rio Vermelho jogando-o para todos os lados na volta pela longa travessia fluvial. Sim, no retorno a São Paulo, o trajeto foi outro. Muito pior.
É preciso dizer que após cumprir a interinidade de um ano como presidente e ter feito excelentes benfeitorias na capital e no estado de Goiás, consertando e construindo pontes, que ele viu tão necessárias, trabalhando para o desenvolvimento do estado empobrecido após as riquezas do ciclo do ouro, cuidando da educação e da justiça, Leite de Moraes volta para casa. E que volta! Como estava traumatizado com a vinda em lombo de burro, na inacreditável viagem que durou 35 dias, e que só Deus sabe como chegaram todos vivos, o presidente decide retornar pelos rios, dizendo com seu habitual bom humor: “Ao menos farei a viagem para o Pará ou para a eternidade... deitado numa rede.” Partiu, portanto, do rio Vermelho, seguindo pelo Araguaia, passando pelo violento Tocantins e afluentes até chegar aos rios do Pará, verdadeiros oceanos, e pisar em terra firme na capital Belém, fim da primeira etapa. Essa viagem foi outra odisseia. Como Ulisses chorou pelos amigos devorados pelos canibais Lestrigões, Leite de Moraes chorou a morte do ajudante de ordens e amigo Barbosa que, ao ser tragado por horrível correnteza, só teve tempo de gritar duas vezes por Nossa Senhora da Abadia, desaparecendo nas profundezas do rio. E se Ulisses se refestelou na ilha paradisíaca com a carne suculenta de sua caça e viu a ninfa deslumbrante, o presidente caçou veados campeiros e, como exímio atirador, matou aves em voo, pescou centenas de peixes e viu belas índias de cabelos nos ombros caídos nas aldeias carajás que visitou, muitas vezes rodeado por índios nem sempre amistosos, ou atacados por outros, selvagens e traiçoeiros. Se Ulisses teve de viajar para o perigoso Hades, reino subterrâneo dos mortos, o presidente também navegou por rios infernais, enfrentando ondas gigantescas, com corredeiras entre estreitos rochedos, rebojos, em uma embarcação que exigia constantes reparos, sob o risco de naufragar a qualquer instante. Só navegava por milagre de Deus e da perícia do excelente piloto. A ira de Posêidon continuava a sacudir as profundezas das águas e, a inenarrável viagem, iniciada no dia 9 de dezembro de 1881 só terminaria no dia 16 de janeiro de 1882, com o ajudante e amigo dorminhoco Carlos Augusto, que se tornaria seu genro e lhe daria um neto chamado Mário de Andrade (1893-1945) – ícone do Modernismo brasileiro de 1922. Leite de Moraes é, portanto, o avô materno de Mário Raul de Moraes Andrade. A maçã não cai longe do pé...
Assim, embarcados no vapor Ceará, com novas peripécias, Leite de Moraes visitou as capitais da extensa costa do país, tudo anotando, com seu espírito elevado, justo, mas também indignado com o abandono e os desmandos nessas capitais.
Se Ulisses, disfarçado de mendigo, foi reconhecido após vinte anos pelo cão Argos, o notável e bom Leite de Moraes surpreendeu a família, com a mesma robustez e saúde, em volta antecipada, no dia 7 de fevereiro de1882, declarandose muito feliz!

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