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OPINIÃO
from Jornal De Fato
ESPAÇo JornALISTA mArTInS DE vASConCELoS
organização: CLAuDEr ArCAnJo
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A mArcA de cAIm
vErA LúCIA DE oLIvEIrA
Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-dF) veraluciaoliveira@hotmail.com
Há cem anos José Saramago veio ao mundo. E veio para ficar. Deixou sua marca nos leitores de Portugal, sua pátria, e de todo o planeta com a escrita do mago que era. Trouxe com talento nato uma nova maneira de contar histórias, imprimindo oralidade aos textos, atropelando as regras da gramática quanto à pontuação, aos diálogos, uso de maiúsculas e parágrafos, exigindo atenção dos leitores. Mas não há quem não o entenda. Mestre do bem dizer, da língua portuguesa, da imaginação criadora, e muito mais. Prêmio Nobel de literatura de 1998, o único até hoje em nosso rude e belo idioma. Ficou, portanto, duplamente imortalizado: pela Academia e pelas gerações de admiradores que, com certeza, se sucederão. Saramago escreveu milhares de páginas. Romances, contos, peças de teatro, poesia... Uma vida inteira dedicada à literatura. São obras impactantes, emocionantes, críticas, a exemplo de Memorial do convento, O evangelho segundo Jesus Cristo, Todos os nomes, Ensaio sobre a cegueira e tantos outros romances que mostram o reverso da medalha da religião e da história. Mas vamos falar aqui especificamente de Caim (SP: Companhia das Letras, 2020), um de seus últimos romances, de 2009. Caim é pura irreverência. Há quem possa talvez considerá-lo blasfemo, pois Saramago faz do Caim bíblico personagem protagonista e mostra o seu triste destino. Após assassinar o irmão Abel, Caim (com c minúsculo como todos os nomes próprios no romance) foi marcado pelo Senhor com um sinal na testa, o que deixa indignado o narrador. Por que o Senhor só aceitou a oferenda do irmão mais novo Abel e não a dele, fruto igualmente do seu trabalho? Por que foi humilhado e sentenciado a ser um andarilho sem rumo, sem pátria nem família? Assim começa a narrativa e a história do solitário e renegado Caim. Tornouse um pária, um eterno exilado. E as andanças serão muitas. Com o humor rascante e o ateísmo que lhe são peculiares, Saramago revisita e reinventa o Antigo Testamento, brinca com o tempo cronológico fazendo a ação avançar e retroceder, misturando os episódios bíblicos, divertindo o leitor. Caim cai nos braços da bela e sensual Lilith, salva Isaac no momento extremo de ser sacrificado pelo pai Abraão – por ter chegado atrasado o anjo que o salvaria (teve problemas com as asas mecânicas). E o narrador pergunta: por que um pai mataria seu único filho? por que o Senhor é tão cruel e raivoso? E Caim vê também a fé do pobre Jó ser duramente posta à prova. Vai a Sodoma e Gomorra onde assiste ao massacre de crianças inocentes e conhece a família de Lot, cuja mulher virou estátua de sal por desobedecer à ordem de não olhar para trás. Mais uma vez, o narrador questionador indigna-se: por acaso não é natural querermos ver o que está nas nossas costas? A curiosidade não é própria do ser humano? Não foi por curiosidade que Eva comeu a maçã? Não é a curiosidade a base do conhecimento? Mas Adão e Eva caíram em desgraça por terem provado o fruto proibido, conhecendo doravante o bem e o mal. Ao ser interpelada pelo Senhor, disse Eva:


Fui à árvore, comi do fruto e levei-o a adão, que comeu também. Ficou-me aqui, disse adão, tocando na garganta. Muito bem, disse o senhor, já que assim o quiseram, assim o vão ter, a partir de agora acabou-se-lhes a boa vida, tu, eva, não só sofrerás todos os incômodos da gravidez, incluindo os enjoos, como parirás com dores, (...) e agora vão embora, saiam daqui, não vos quero ver nunca mais na minha frente. (...)” (pp. 17, 18).
Dessa forma, expulsos do Paraíso, envergonhados, Adão e Eva saíram à procura do sustento. Depois de muito perambular, o casal se estabeleceu junto a uma colina numa “casa de toscos adobes, aí onde já poderiam nascer os seus três filhos caim, abel e set (...)” (p. 32). Caim e Abel cresceram com vocações diferentes. Caim gostava de plantações, dos frutos da terra; Abel gostava dos animais, criava ovelhas. Eram muito amigos até que o futuro entendeu que já era hora de se apresentar, diz o narrador. E se apresentou da pior forma possível, com o infeliz Caim vendo sua oferenda ao Senhor rejeitada várias vezes e vendo-se ainda vítima do escárnio de Abel: “E sempre a falta de piedade de abel, os dichotes de abel, o desprezo de abel.” (p. 33). Não foi por outra razão que Caim, traiçoeiramente, matou o irmão. Indagado pelo Senhor por que fizera isso, Caim responde com outra pergunta, iniciando um longo diálogo em que questiona de modo impertinente as ações do Senhor, até ouvir-lhe a sentença:
Andarás errante e perdido pelo mundo, Sendo assim, qualquer pessoa me poderá matar, Não, porque porei um sinal na tua testa, ninguém te fará mal, mas em pago, da minha benevolência, procura tu não fazer mal a ninguém, disse o senhor, tocando com o dedo indicador a testa de caim, onde apareceu uma pequena mancha negra, Este é o sinal de tua condenação, acrescentou o senhor, mas é também o sinal de que estarás toda a vida sob a minha proteção e sob a minha censura, vigiar-te-ei onde quer que estejas. Aceito, disse caim, Não terias outro remédio. Quando principia o meu castigo, Agora mesmo. (p. 36).
Assim, depois do acordo com o Senhor, Caim parte numa jornada como renegado, sem descanso... Essa marca de Caim tem sido tema da literatura de vários autores e épocas diferentes. Para lembrar apenas dois clássicos: Byron, com o polêmico “Caim: um mistério”, e Baudelaire com o seguinte poema “Abel e Caim”:
I –Raça de Abel, dorme, haure e come; Deus te sorri condescendente,
Raça de Caim, na lameira Rasteja e morre pobremente.
Raça de Abel, teu sacrifício Honra o nariz do Serafim!
Raça de Abel, vê teus plantios E tua manada progredirem;
Raça de Caim, tuas entranhas Grunhem de fome qual cão velho. ....................................................... II –Ah!, raça de Abel, tua carcaça Engorda o solo fumegante!
Raça de Caim, tua labuta Não foi realizada o bastante;
Raça de Abel, eis o teu labéu: O ferro é vítima da lança!
Raça de Caim, ao céu monta, E sobre a terra lança Deus!
(In: As flores do mal. RJ: 7 Letras, 2021, tradução de Margarida Patriota.)
Como o Caim dos versos de Baudelaire, o de Saramago traz a marca dos excluídos, o que em nossos dias podemos ver nas levas de imigrantes, sobretudo africanos, nos “navios negreiros” de que falou Castro Alves. Ou a marca dos que tiveram seus trabalhos rejeitados, no caso, o próprio autor com o romance Claraboia, inédito até 2011. E, ainda como o seu Caim, Saramago protesta e se revolta contra a injustiça da sociedade contemporânea, dizendo num poema:
Aqui na Terra a fome continua, A miséria, o luto, e outra vez a fome. ......................................................... E dizemos amor sem saber o que seja.
(In: Os poemas possíveis).

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