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OPINIÃO
from Jornal De Fato
esPaÇo JoRNaLIsta MaRtINs de VasCoNCeLos
Organização: CLaudeR aRCaNJo
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SAUDOSAS LEMBRANÇAS
RaIMuNdo aNtoNIo de souZa LoPes
é escritor e jornalista rsouzalopes@hotmail.com
Nem que a vida passe, nem assim deixarei de pensar, de sentir saudade e de sonhar com o lugar de onde vim. É de lá que trago as verdadeiras e eternas lembranças, os primeiros ensinamentos, as melhores recordações de menino aprendente. Ai que saudade do meu tempo de criança...
“Eu daria tudo que tivesse para voltar ao meu tempo de criança” e percorrer os caminhos que me trouxeram até aqui. Lembro-me de que as dificuldades, durante um certo tempo, foram inúmeras; mas dava prazer andar um quilômetro e meio, para comer feijão com gorgulho, misturados na água com sal e acompanhados por um punhado de farinha e um pedaço de rapadura preta do Cariri.
O trajeto era repleto de aventuras, a começar pelas areias escaldantes das margens, quase infindas, do rio Açu, que eu, menino sonhador, as comparava com as areias desérticas do Saara. Assim, até chegar ao leito do rio – que era atravessado, com água na cintura – Lawrence da Arábia se fazia presente, junto com seu camelo, de forma que a memória cinematográfica tomava corpo, e o corpo franzino de menino encenava todo o percurso que o ator, no famoso filme, fazia; com direito, inclusive, às cenas de suor, cansaço, fome e sede.
O suor era substituído, logo que chegava às margens do leito do rio, graças ao frescor obtido com o mergulho nas águas límpidas e geladas do rio Piranhas; e o cansaço dava lugar às brincadeiras e pulos acrobáticos de ponta-cabeça.
A fome? Ah, essa não durava muito, pois na margem oposta, nos barrancos que serviam de encostas para que o rio continuasse o caminho até o seu destino (as águas salgadas do mar, após a cidade de Macau/RN), os ribeirinhos plantavam as vazantes de batatas. Elas, além de matarem a fome, ainda ajudavam na prevenção de parasitas intestinais – assim dizia a medicina caseira da mãe.
A sede, então, tão logo o banho terminava, não por vontade própria, mas por imposição do espaço que ainda se fazia necessário percorrer até a casinha de taipa, onde a panela de barro – colocada em cima do fogão a lenha – guardava, quentinho, o manjar que saciaria o estômago de esmeril, era mitigada, logo ao subir a encosta, onde ficavam os sítios dos justafluviais, quase todos com pés de mangas, pinhas, goiabas, cajaranas e ... cocos. Os pés de cocos anão eram os preferidos, pois não precisava nem subir para tirá-los: era só levantar os braços, pegar no coco, rodar um pouquinho e ele se desprendia do pé. Furálo? Qualquer estaca, que fazia parte da cerca, servia. E a água saborosa, levemente doce, descia goela abaixo, saciando a sede e dando uma bela hidratada na no corpo.
O resto do trajeto ainda trazia a areia do rio como tapete para a estrada vicinal, estreita e ladeada pelas cercas de arame, que delimitavam os terrenos, repletas de velames, pés de melão-de-são-caetano, pés de algarobas e pés de juás. Estes, além de servirem de alimentos, ainda deixavam os dentes branquinhos, saudáveis e com bom hálito.
E a farra continuava para o menino sonhador, que trocava o camelo pelo cavalo e se transformava em Roy Rogers. Aí, o galope engolia o restinho da estrada que faltava para chegar. Ou então, quando se cansava de galopar, a imaginação fértil substituía o equino pelo canídeo e ele, lado a lado, caminhava com Rin-Tin-Tin.
Em casa, na sala inteiriça – da frente até a porta da cozinha – apenas uma espécie de cristaleira e uma mesa grande (capaz de juntar quinze bocas famintas, de uma vez só, em suas laterais), a cena mudava e o banquete dos palácios de Roma se fazia presente. Valia tudo quanto a imaginação podia criar (e conhecer) dos variados cardápios, servidos nas festas dos imperadores romanos – o preá, o tejo, a nambu, a rolinha, a galinha, a guiné, o bode, a seriema e o refresco de cajarana, adoçado com a raspa da rapadura preta do Cariri. A cada bocado levado pela colher para a boca, ia, também, arroz, macarrão, farofa de galinha torrada, um pedaço de batata doce e outro de jerimum. Dessa forma, o feijão de corda, cozinhaQuando a noite caía, e cada um ia para sua casinha, chegava, então, a hora do pão-demilho. Cada prato recebia um pedaço do cuscuz, uma concha de coalhada e um pedaço de rapadura preta do Cariri.

do n’água e no sal, com um pouco de farinha seca por cima e um pedaço de rapadura do Cariri, ganhava novos sabores e descia feito os melhores manjares do mundo.
E os finais de tardes?! Ah, esses sempre foram especiais e aguardados, ansiosamente, pelo menino devaneador. Momentos, em que os vizinhos vinham para um dedo de prosa. Ali, embaixo do alpendre, sentados em tamboretes, trazendo seus cachimbos e cigarros brejeiros, eles contavam suas histórias de trancoso, do “ouvi dizer que aconteceu lá em canto fulano de tal” – e nunca era um lugar perto... O interessante é que os cachorros, não se sabe o motivo, também gostavam de se acercarem daqueles velhos e calejados sertanejos, mesmo que alguns deles levassem, de vez por outra, uma cusparada, carregada de fumo de Arapiraca. Tinha nada não. Para o menino sonhador, o mais importante era ouvir, atentamente, sem perder um detalhe, as histórias contadas, para ir juntando com as suas, já armazenadas em sua mente fecunda. Hoje, acredito, elas são contadas, em pequenos blocos, chamados: crônicas, contos e prosas poéticas.
Quando a noite caía, e cada um ia para sua casinha, chegava, então, a hora do pão-de-milho. Antecipadamente moído, o milho zarolho (deixado de molho de um dia para o outro) dava lugar, quando cozido, a um belo cuscuz, dividido em tantas partes quantos fossem os convivas. Cada prato recebia um pedaço do cuscuz, uma concha de coalhada e um pedaço de rapadura preta do Cariri. Misturados, não tinha nada mais saboroso e forte para se comer. Os meninos, quando terminavam de devorar aquela “sustância” toda, davam um arroto grande – não era por falta de educação, mas para aliviar a pressão no “bucho” que recebera alimentos até topar! E, logo depois, se preparavam para cair nas “pussarecas” (neologismo criado pelos moradores das redondezas para nominar a rede onde se deitavam), não antes de fazerem o sinal da cruz e pedirem a bênção (“bença” mamãe, “bença” papai), calando-se, em seguida, para ouvirem a melodiosa voz da matriarca que, solenemente, todas as noites, sentada na sua “pussareca” – com a cria mais nova no colo – e se balançando, cantava lindas canções das rainhas do rádio. E, assim, terminava o dia...

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