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“NARRATIVAS E MEMÓRIA”* (Parte I)

Li L ia Souza Escritora, membro da ASBL – Academia Sul-Brasileira de Letras, da ACCUR – Academia de Cultura de Curitiba, autora dos livros Olhares canhestros e Estórias de Trevol do Nada, dentre outros. liliasouza@uol.com.br

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Tenho comigo a visão de que história e literatura, há muito, caminham juntas, lado a lado. Duas margens de um mesmo rio. Um caudaloso rio que se agiganta à medida que se trançam as águas do que é real, do que é imaginado, do que desencadeia ou que é resultado de múltiplos líquidos passos. História e estórias; verdade e imaginação; registros e literatura; memória e narrativas.

Falei em múltiplos líquidos passos. Explico a analogia. As águas tomam caminhos próprios, reviram-se e correm, espirram e espumam, banham e invadem, encontram novos caminhos, a seu bel-prazer, com sua indomada natureza, sem que sobre isso consigamos obter o controle. Caudaloso e indomado rio.

Temos visto, ao longo das últimas décadas a século e meio – apenas para citar um tempo por nós vivido ou mais recente na construção do país – a importância da história para a literatura; e mesmo da literatura para a história. O que poderíamos dizer da literatura (principalmente a poesia) de vários inconfidentes para transformações em nosso país?

O que poderíamos falar da relação entre a poesia condoreira e a abolição da escravatura? – aqui, citando apenas duas situações desse intrin- cado amálgama de águas, misturadas em mesma correnteza: realidade gerando literatura; literatura a precipitar a transformação da realidade, construindo nova história, reescrevendo os rumos da história. Quanto de nossa história registrada é real? Quanto é inventada? E que registros teríamos, não fossem tantos documentos guardados, não fossem as narrativas de quem vivenciou ou ouviu falar, dos que buscaram na memória; das narrativas que correram de boca em boca, fiéis ou acrescidas – afinal, “quem conta um conto aumenta um ponto” – e depois registradas. Bem se diz, a história é contada pelos vencedores. Temos registros históricos e documentais a comprovarem a veracidade de fatos – ou a ludibriarem nosso olhar, mostrarem a nós a face que gostariam que víssemos; ou a servirem de lastro para narrativas ficcionais, literárias – que nos trazem reflexões e nos renova o olhar. Podemos tomar como exemplo o livro Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, em que a autora – que pesquisara por quase 10 anos o movimento conhecido por Inconfidência Mineira – imagina cenas e situações daquele período histórico e, com sua sensibilidade, o romanceia em versos, em caudalosas e poéticas águas de estórias. Isso confere uma nova identidade ao movimento.

Além da História, pensemos em aspectos culturais, de costumes, valores, espaços das cidades... Machado de Assis fez registros disso em suas muitas crônicas; e em seus contos e romances, ainda que ficcionais, imprimiu incontáveis registros de elementos culturais do Rio de Janeiro de sua época – e isso pode ser conhecido, recuperado, mesmo estudado, a cada leitura que ainda se faz de sua obra, na fruição do que Machado nos legou. Suas narrativas registram a memória de uma época.

Volto no tempo, lembro as grandes epopeias, A Ilíada e A Odisseia – importantes marcos da literatura grega e grandes referências para a literatura universal, até hoje lidas, admiradas, estudadas, citadas, intertextualizadas. Segundo estudiosos, tais obras, antes de serem compiladas por Homero, durante vários séculos eram narrativas repetidas oralmente pelos bardos e acrescidas, estórias reconstruídas, até receberem registros gráficos. E hoje, quase 3 mil anos depois de Homero, tais narrativas continuam vivas, carregadas de elementos da memória de várias épocas, permanecem difundidas e valorizadas mundo afora – porque foram registradas graficamente.

(Continua...)

*Fala proferida em Curitiba/PR, em 28 de junho de 2023, para alunos de graduação de Letras e História, do Grupo UNINTER – Centro Universitário Internacional, na Mesa-redonda “Cultura material e imaterial: práticas, identidades e memória”, durante lançamento do Projeto de Extensão “Rios de Estórias”.

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