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OPINIÃO
from Jornal De Fato
ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS
Organização: CLAUDER ARCANJO
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ANDRÉ JORDAN, UMA VIDA QUE VALE POR DEZ
EDMÍLSON CAMINHA
Escritor, membro da Academia de Letras do Brasil edmilson.caminha@gmail.com
Há vidas de mulheres e de homens cheias de aventuras, experiências, amores e perdas, que bem valem o chavão “dariam um romance”. Pena que nem todas saibam narrá-las com talento, brilho e leveza, como Ricardo Amaral em Vaudeville, ou Cesar Camargo Mariano em Solo, ou Luiz Carlos Miele n’O contador de histórias, ou Jô Soares n’O livro de Jô. Seleção em que se inclui André Jordan com O Rio que passou na minha vida (Rio de Janeiro : Leo Christiano, 2006) e Uma viagem pela vida ( 2. ed. Coimbra : Almedina, 2020), a edição portuguesa das memórias de tal maneira ricas, e interessantes, que custa acreditar sejam de uma só pessoa.
Judeus, o pai e a mãe escaparam da Polônia, em 1939, com os pequenos Andrzej e Janina, antes que os prendesse o exército alemão. Mulher refinada, a Sra. Faustyna é fluente em francês e gosta de Proust, chega a traduzir-lhe uma obra para o polaco, quando moça. Na fuga para a Romênia, o carro da família é parado em uma barreira. O motorista volta-se para o civil Henryk e diz, imperturbável: “Meu coronel, este soldado quer ver os seus documentos”. Temerosa da reação de um oficial superior, a patrulha deixa-os passar. De Bucareste vão para Lisboa e, de lá, para o Rio de Janeiro, onde em pouco tempo o imigrante polonês faz fortuna como empreendedor imobiliário. Constrói, ao lado do Copacabana Palace, o Edifício Chopin, endereço de frequentadores das colunas sociais, entre eles o próprio, dono da cobertura.
Homem de sentimentos fortes mas instáveis, o velho criou a pitoresca figura do que se pode chamar “corno em domicílio”:
A mudança para Nova Iorque é a consequência inevitável da volubilidade romântica do meu pai na década de 1940. Ele passa os anos da guerra a construir prédios e a destruir corações – entre os quais o dele próprio! Muito antes de ter o primeiro enfarte, aos 47 anos, vivia imaginando problemas cardíacos. A dado momento, envolve-se com uma antiga atriz, polaca e alcoólica, casada com um médico. Quando se sentia pior, recebia as pessoas no quarto, fossem amigos ou colaboradores dos negócios. Como não podia sair para ir ver a atriz, mandava vir o marido, para assim ter notícias.
Em Manhattan, o estudante André, que já aportuguesara o nome, sente-se bem, mesmo com a visão do emigrante “e a atitude do velejador que sabe que não faz parte natural do mar em que, no entanto, navega suavemente”. Satisfaz a paixão pelo jazz no El Morocco, o mais concorrido nightclub nova-iorquino, sob a regência de um mâitre italiano que “com um apurado sentido da beleza humana, e da elegância, nunca escolhia os ocupantes de uma mesa por acaso”: distribuía-os, segundo ele próprio, como se fosse o salão uma tela em branco, e as pessoas, suas tintas – “metáfora notável”, escreve o memorialista. Clientes e artistas famosos aproximavam-se em circunstâncias prosaicas:
Uma noite, no WC, quando olho para o lado, deparo com o grande Frank Sinatra, o ídolo da minha geração. Meti logo conversa: “Quando voltar ao Brasil e disser que estive urinando ao lado do Sinatra, os meus amigos não vão acreditar...” Ele riu e disse, educadamente: “Have a good time!”
“Jovem milionário com grande vocação para o proletariado, samaritano de dia e playboy à noite”, no conceito espirituoso do pai, o bon vivant volta ao Brasil para viver os anos dourados cariocas, quando um certo Antônio Carlos Jobim lhe pede carona ao sair da casa noturna em que toca piano, por não ter dinheiro para o táxi... Repórter do Diário Carioca, convive com Carlos Lacerda, Augusto Frederico Schmidt e Negrão de Lima, “o único político brasileiro que eu posso assegurar que nunca recebeu um tostão de ninguém, a nenhum título”. Passa o carnaval de 1954 em Salvador, o bastante para apreender com argúcia a memória da cidade e o espírito daquela gente, povo e terra de que Gilberto Gil é a mais completa tradução:
Penetrar na Bahia, nesses anos 1950, ainda era como passear por um Portugal tropical, setecentista, atravessando ambientes completamente fora do seu tempo. Os baianos adoram falar, usando as palavras como enfeites de um discurso que ao princípio nos parece deslocado, mas no qual vamos fluindo. E que nos vicia. Pede-se a alguém uma informação, na rua, e ouve-se uma narrativa colorida. Fantasia e realidade confundem-se e, em nenhum outro lugar que eu tenha visitado, como por aquelas ruas e calçadas, o fantástico nos parece tão natural. Jorge Amado dizia que, ao contrário do que as pessoas pensavam, ele não inventou nada, tudo é verdadeiro. Os baianos são assim mesmo, como ele os retratou.
Chamado pelo organizador de um baile de debutantes no Copacabana Palace, para dançar a valsa com uma das convidadas estrangeiras, André apaixona-se pela princesa Monica Maria Theresia Elisabeth, de Liechtenstein, com quem se casa e troca o Rio por Buenos Aires, para cuidar de negócios da família.
Em 43 páginas de Uma viagem pela vida, revela os bastidores políticos e econômicos da Argentina, tão indecorosos e corruptos quanto os de um determinado país com que faz fronteira. Quer saber de um amigo como acelerar o loteamento de terras à margem de uma ferrovia, em hibernação nas gavetas de burocratas:
O meu interlocutor perguntame por que não falo com um certo funcionário do departamento dos terrenos dos caminhos de ferro. Eu nem fazia ideia de que tal personagem existisse. “Ele é o assessor jurídico e está à espera de que você vá conversar com ele. Está aqui o telefone, ligue-lhe!” O homem seria autor de um último relatório que eu desconhecia e nos era desfavorável. Liguei e marcamos encontro em casa dele. Quando chego, encontro um rapaz igualzinho ao Orson Welles. Grande, gordo, parecia um sósia do ator, quando jovem. Não esteve com rodeios. “Vou dar-lhe os argumentos jurídicos para contestar o meu relatório.” E estipulou o preço.
Durante a temporada portenha, o brasileiro promove, no teatro Colón, espetáculos de dança dos amigos Margot Fonteyn e Rudolf Nureyev. Em uma noite, a presença não aguardada do chefe de governo, que o narrador lembra com alguma malícia:
Um ano antes, tinha havido mais um golpe militar que derrubara o presidente eleito, e mandava na Argentina, ocupando o lugar, o general Juan Carlos Onganía. Tinha o porte daqueles oficiais ingleses de outros tempos, militar típico, frio, um grande bigode grisalho alourado escondendo os lábios. Apareceu no teatro sem se fazer anunciar, com a mulher e um pequeno séquito. Fui cumprimentá-lo no camarote presidencial e ouvi um inesperado comentário: “Nureyev tem umas belas pernas!” Desci aos bastidores e transmiti ao nosso Rudi o que Sua Excelência me dissera. “Diz-lhe que venha falar comigo ao camarim, depois do espetáculo”. Mas não creio que Nureyev e Onganía tenham chegado a encontrar-se...
Atento observador, Jordan vê com lucidez como funcionam os Estados Unidos no começo da década de 1960, a partir da convivência com um diplomata norte-americano em Buenos Aires:


Amiúde, Henry Hoyt convocava-me para conversar com personagens que vinham de Washington, sobretudo as mais graduadas. Foi assim que detectei uma inesperada fragilidade do presidente Kennedy: mandava, sucessivamente, pessoas diferentes com a mesma missão, comportamento típico de quem não tem experiência diplomática nem uma estratégia controlada. Chegava alguém com perguntas e interesses bem identificados e, pouco tempo passado, vinha outra pessoa, exatamente com a mesma conversa. Era uma desorganização que me surpreendia, por levar a ideia, talvez romântica, de que os Estados Unidos dispunham de um aparelho político sofisticado e de funcionamento impecável. Apesar de ter nascido numa família de políticos profissionais e da razoável experiência como senador, JFK não estava preparado para as responsabilidades da presidência. Acredito que o mesmo tenha acontecido, meio século mais tarde, com Barack Obama, que se deixou manietar por um sistema em profunda contradição com as mudanças que queria implementar.
Em 1970, Portugal se dividia entre a ditadura do Estado Novo e os cravos da revolução que a derrubaria, quatro anos depois. É quando André Jordan compra, no Algarve, o que viria a ser a Quinta do Lago, projeto com a ambição de inaugurar o turismo de luxo português: 700 lotes para a construção de moradias, quatro hotéis, três clubes de férias, restaurantes, centros comerciais, campos de golfe, quadras de tênis, pistas de equitação... Preço das terras: 5,5 milhões de dólares, dos quais o empresário não dispunha sequer dos 200 mil de entrada... Quantia que lhe empresta, em Madri, um conde francês, aviador herói da Rússia na segunda guerra mundial, de quem recebe o valor em dinheiro vivo, empacotado. No hotel de que é hóspede o volume some do quarto, reaparece em outro e volta a sumir, na mala posta em voo diferente do que o leva para o aeroporto de Lisboa. Cenas dignas das aventuras de James Bond...
Espírito nobre que não se deixou empobrecer pela riqueza, André refinou-se intelectualmente com discrição e sabedoria:
No que se refere às artes visuais, sempre me pareceu desnecessário aprender as respectivas tecnologias – e o mesmo vale para a música, a literatura e até a religião. Com a exposição sensorial continuada, vamos desenvolvendo uma sensibilidade analítica que, depois de algumas décadas, se transforma no que se pode convencionar chamar “cultura”. Quando caminho por um museu que visito pela primeira vez, sei que vou deter-me diante dos quadros dos melhores autores, fato que confirmo invariavelmente quando me inclino para os identificar. Esta aptidão pessoal de discernir foi adquirida pela experiência, porém, não desdenho daqueles que têm a capacidade de dissecar uma obra nas suas várias características, de forma academicamente explicada.
Em meio às tramas da política e à inépcia dos agentes burocráticos, o idealizador da Quinta do Lago conheceu presidentes, soberanos, artistas, banqueiros e bilionários como Daniel Ludwig, que lhe propôs tocar um megaempreendimento na Amazônia, o famoso Projeto Jari, destinado à produção de celulose. Felizmente recusou a oferta, ao descobri-lo um patrão avarento e temperamental, que despedia colaboradores de confiança ao menor desencontro de ideias.
A pessoas assim, desagradavelmente cheias de si mesmas, o autor de Uma viagem pela vida prefere lembrar carinhosamente a grandeza humana de Jorge Guinle, Carybé, Dorival Caymmi, Leonard Bernstein e Margot Fonteyn, a bailarina a propósito de quem escreveu: “Ser superior é aquele que sabe estar acima do bem e do mal, que tem a capacidade do perdão e da compreensão, um dom natural de empatia e o poder de dar aos outros sem a expectativa do retorno”. Conceito de que André Jordan é merecedor por todas as razões, aos 88 anos de uma bela e luminosa existência que, como se conclui, vale por dez. Pelo menos.

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