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OPINIÃO
from Jornal de Fato
ESPAÇo joRNAlISTA MARTINS DE VASCoNCEloS
organização: ClAuDER ARCANjo
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A CENtELhA do AUtoRitARiSMo em O súditO, dEhEiNRiCh MANN
VERA lúCIA DE olIVEIRA
Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-dF) veraluciaoliveira@hotmail.com
“Os deuses folgam de ouvir aos que sempre submissos se mostram.” (Canto I, da Ilíada, de Homero.)
Diederich Hessling tinha o bigode com pontas viradas para o canto dos olhos, idêntico ao do imperador Guilherme II da Alemanha, sua pátria mãe gentil. Era um modelo de subserviência e patriotismo. Fanático até a medula.
Diederich é o personagem protagonista de O súdito (São Paulo: Editora Madalena, 2014), romance de primeira grandeza de Heinrich Mann, primogênito da família de escritores, artistas, dramaturgos, jornalistas e muito mais. A trágica família Mann. Um caso raro de talentos. Luiz Heinrich Mann (18711950), filho da brasileira Júlia da Silva Bruhns, daí o “Luiz” em português, é conhecido do grande público, principalmente por O anjo azul, romance imortalizado no cinema por Marlene Dietrich, em 1930. Escritor renomado, estudioso de Nietzsche, não teve, no entanto, o mesmo reconhecimento da estrela da família, o irmão premiado com o Nobel, em 1929, Thomas Mann. Foi ofuscado. Mas nada diminui ou tira o seu brilho. Ao contrário, sua obra fecunda mostra que trilhou caminho próprio, sem necessidade de ninguém que lhe dissesse de que lado nasce o sol. Talentosíssimo, crítico ferrenho da sociedade alemã do pósguerra, do reinado de Guilherme II, nesse romance de 1919 aponta premonitoriamente o embrião dos graves acontecimentos que manchariam a história da Alemanha nos anos de 1920 a 1940, do século 20.
Diederich, personagem muitíssimo bem construído, preocupantemente atual, é representante do fanatismo extremo, um verdadeiro súdito das ideias perigosas e até criminosas, em nome de valores de uma suposta moral – dúbia, aliás –, da ordem e da lei que só podemos reputar como reacionárias; além do espírito de adulação mais asquerosa, como foi chamada pelo jornal “A voz do Povo”, da pequena Netzig, cidade onde se passa a ação. Isso na Alemanha, no último quartel do século 19, incluindo o período da unificação alemã, 1871, ano do nascimento da nação atual.
Diederich foi esculpido com perfeição pelo autor: de menino sensível, sonhador, travesso, a déspota que tinha todos sob os seus pés, temos uma longa jornada nesse extenso, e denso, romance de formação do personagem. Era filho de pai tirano, terrível, mas “ainda era preciso amálo”. Desse sentimento ambivalente de amor e ódio fez-se o caráter e o temperamento do adulto. Se os operários do pai riam dele ao ser castigado na infância, não foi por outra razão que, mais tarde, ao herdar o comando da fábrica, deu-lhes o troco:
Pessoal! Por serem meus subordinados, quero apenas lhes dizer que doravante o trabalho será árduo. (...) Agora tomei o leme dos negócios. Meu curso é o correto, vou conduzi-los a dias gloriosos. Aos que me querem ser prestativos dou as boas-vindas de coração; mas aqueles que quiserem se opor a mim nessa tarefa, estes eu vou trucidar. (...) Aqui há um só senhor, e este sou eu.
E continuou:
... e os círculos socialdemocratas, nossas relações estarão cortadas. Pois, para mim, cada socialdemocrata é, ao mesmo tempo, inimigo da minha empresa e da pátria... (Págs. 108, 109).
Assim, repete o papel do pai, com o acréscimo de esperteza, crueldade, conhecimento e sagacidade que o título de doutor lhe dera. Ainda nos bancos escolares de Netzig, humilhou o único colega judeu fazendo-o ajoelhar-se diante da cruz, no que foi aplaudido pela turma, sentindo-se recompensado por ser o representante de um pensamento coletivo. Essa passagem antecipa o seu desejo de pertencimento ao rebanho, ao país, ao ideal de mando e subjugação dos mais fracos. E vê-se aí o antissemitismo que explodiria com o nazismo de Hitler. Esse é o seu traço psicológico dominante: no fundo, inseguro e fraco, precisa ser aceito pelo grupo. Vamos encontrá-lo mais tarde engajado no exército quando, por negligência e preguiça, fez um papelão, usando de meios ilícitos para ir para a reserva. E, na sua desfaçatez, ainda disse:
Então é mesmo uma desgraça esse meu infortúnio de ter que me separar bem agora do serviço militar de Sua Majestade. Posso dizer que eu teria cumprido totalmente o meu dever para lutar contra os inimigos internos. Até onde eu sei, o imperador pode confiar no exército. (Pág. 65).
Exército que, por ironia do autor, era para Diederich “o único Pilar da pátria.” Mas tratou de ressignificar a covardia dizendo “fui muito bem qualificado”, ocultando-a até para si mesmo, se isso fosse possível...
Outro traço fortíssimo em Diederich é a adoração a Guilherme II, o jovem imperador, o dos bigodes atrevidos, a quem imitava e fazia suas as palavras dele, colocando-o no topo do pódio da Alemanha e do mundo. Um verdadeiro súdito cuja subserviência ilimitada o fez um dia correr atrás da carruagem oficial em Berlim dando “Hurras”, e noutra ocasião, em Roma, como um alucinado, perseguir o cortejo do imperador, conseguindo apenas um sorriso frio senão de desprezo.
Num dos momentos mais tensos da narrativa, temos o julgamento a que Diederich foi intimado por incriminar um inocente, no caso seriíssimo do assassinato de um operário (fato histórico), levando-o à prisão, acusado de injuriar o imperador; já em sua defesa, disse que o fizera “em nome de um idealismo desinteressado, prerrogativa de um alemão” (...) “pois exige-o ninguém menos que Sua Majestade, nosso Imperador excelso...” (Pág. 221).
Com a ascensão econômica e aceitação social, conseguidas por meio de cotoveladas e negociatas, esse arrivista participou das eleições, tumultuadas diga-se, conseguindo finalmente cargos e poder. Chegou lá. Mas seu grande orgulho foi aprovar – a duras penas, é verdade, pois enfrentou forte oposição dos socialdemocratas e do partido dos operários – o projeto de construção de uma estátua em homenagem ao antepassado do jovem imperador, Guilherme, o Grande, de quem também era súdito. Orgulhou-se mais uma vez de si mesmo. É preciso dizer, porém, que o projeto da estátua venceu o de um orfanato. Para que orfanato?, perguntava:
A quem era apropriado um orfanato como aquele? Sobretudo a crianças ilegítimas. O que isso promovia, então? O vício. Isso era mesmo necessário? (...) Querem premiar nascimentos ilegítimos, porque, de resto, não querem mais soldados. Mas nós não estamos apodrecendo, alegremo-nos por uma geração inesgotável! Somos o sal da terra.” (Pág. 359)
À medida que as conquistas e o reconhecimento de Diederich se consolidavam, seus valores morais com a família recrudesciam. Mãe, irmãs e mulher eram apenas instrumentos, parte do seu “castelo”; existiam por causa dos filhos e deviam manter-se nos três erres: “Religião, refeição, rebento”, na sociedade misógina da Alemanha prussiana. Usurpador da fortuna da mulher, que no íntimo desprezava, surpreende, porém, na intimidade em que se torna seu vassalo, humilhando-se, numa fantasia sexual. Muito significativo esse lado oculto da sua psique.
Personagem complexo, Diederich representa o alemão ultraconservador que Heinrich Mann tanto desprezava. Por isso, O súdito foi censurado: por retratar, não sem ironia, humor – característica de todos os seus romances – e crítica cáustica, um tipo alemão daquela época autoritária, marcada fortemente pelo militarismo. Mas, como a Fênix, o livro, que foi também queimado na época de Hitler, em maio de 1933, num ritual macabro chamado “Ação contra o espírito antialemão”, está hoje em nossas mãos, permitindo-nos conhecer a sociedade que plantou a semente do nazismo, alertando-nos para o perigo das ideias totalitárias, dos súditos que se veem como legítimos representantes de governantes antidemocráticos.
Sobre esse livro político extraordinário, cujo protagonista encarna o pior da brutalidade, da covardia, do tradicionalismo burguês, da misoginia, do nacionalismo fascista e nazista embrionários, deixemos o crítico Kurt Tucholski, que também viveu exilado da Alemanha, dizer com sábias palavras como devemos lutar contra o espírito servil:

É assim que desejamos lutar. Não contra os governantes que sempre hão de existir, nem contra os homens que fazem decretos para os outros, que impõem aos outros sobrecarga e trabalho. Devemos privá-los daqueles que, com estupidez e satisfação constante, causaram a desgraça deste país; daqueles que, com prazer, veríamos sacudir das sandálias a poeira da pátria: os súditos! (Pág. 16)
Finalmente, endereçamos a Heinrich Mann as mesmas palavras que endereçou a Nietzsche:
Os grandes livros possuem uma vida que a pessoa que os escreve não é capaz de mensurar nem prever. Eles sabem mais que o autor. Criam-se por si sós, estendem-se para além do ponto aonde o autor poderia ir. Fazem de homens e coisas o que ele não pretendia fazer, embora o exigissem suas profundidades ocultas. (In: Nietzsche. São Paulo: Três Estrelas, pág. 19.)

dI reçÃO geral: César Santos dIretOr de redaçÃO: César Santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.
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