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OPINIÃO

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POLÍTICA

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ESPAÇo joRNAlISTA MARTINS DE VASCoNCEloS

organização: ClAuDER ARCANjo

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EDGAR MORIN QUE FAZ CEM ANOS

VERA lúCIA DE olIVEIRA

Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-dF) veraluciaoliveira@hotmail.com

Como é fácil falar sobre um escritor como o francês Edgar Morin! Um homem de mil qualidades. Não bastasse a formação acadêmica múltipla de historiador, geógrafo, advogado, filósofo, sociólogo, combateu fortemente o nazismo na França ocupada durante a Segunda Guerra Mundial. Sua obra diversa e extensa atesta o seu humanismo e é referência mundial na educação. Sem contar a lucidez nos cem anos de vida, a doçura de pessoa que é esse ser superior, de bem com a vida, lição para todos nós de saber e temperança, de que andamos tão necessitados.

Para melhor mostrar a formação e o caráter de Morin, escolhemos Meus filósofos (Porto Alegre: Sulina, 2020), obra fundamental para o conhecimento de sua trajetória intelectual, a partir das leituras que lhe influenciaram o pensamento. De Heráclito aos surrealistas do século 20, ele leu tudo e falou sobre todos: Buda, Jesus Cristo, Montaigne, Descartes, Pascal, Spinoza, Rousseau, Hegel, Marx, Heidegger e muitos, muitos outros contemporâneos. Adentrou ainda as searas da psicanálise de Freud e da música de Beethoven. Sem faltar Proust, é claro. E Dostoiévski, paixão desde a juventude.

O primeiro da lista é o pensador grego Heráclito, que disse que nenhum homem bebe água duas vezes no mesmo rio, já que tudo flui, muda, e deixou a lição definitiva da verdade dos opostos. Morin tornou-se heraclitiano, pois entendeu que nada explica melhor a natureza humana do que o contraste, o contraditório: “O Bem e o Mal são uma coisa só”, pois têm fonte comum, “O caminho da ascensão e o caminho da queda são o mesmo”, “Acordados, eles dormem”, pois somos 90% comandados por coisas das quais não somos conscientes, antecipando Freud. Verdades contraditórias que nos protegem da visão redutora, lateral e maniqueísta, diz ele. Comprovou essa ideia no Yin e Yang dos sábios chineses do Tao que, diferentemente do mundo ocidental, aceitaram a união dos contrários, o quente e o frio, o masculino e o feminino, a escuridão e a luz.

Com o budismo aprendeu que o mundo é “Samsara”, mundo de aparências em que tudo o que percebemos é ilusão dos nossos sentidos. Morin, no entanto, reflete e diz que essa ilusão é nossa única realidade. Buda, cujo pensamento se opõe ao de Sócrates e de Jesus, cada vez influencia mais o Ocidente com sua experiência subjetiva de busca da paz interior e por responder “ao grande mal-estar de nossa civilização”. Assim, considera-se “neobudista” por partilhar o sentimento de Sidarta pela compaixão e sofrimento, que se estende ao mundo animal. Todos os sofrimentos, não apenas o humano.

Mesmo não se reconhecendo cristão, Morin prefere a mensagemnova – de um Jesus totalmente humano que oferece o perdão ao pecador, perdão que é superior à justiça; ele, que tem da religião o sentimento do “que religa”, sente-se, porém, ligado a todos os homens perdidos na “aventura desconhecida, incerta e misteriosa” da vida. Como Spinoza, que reconduziu a mensagem bíblica a um conteúdo ético, odiou o ódio, desprezou o desprezo, rejeitou tudo o que rejeita; identificou-se com a sua tolerância, seu horror à violência e perseguições. Com Montaigne, cuja leitura o acompanha desde os quinze anos, aprendeu as contradições essenciais da humanidade e a indagar a si mesmo: “Que sei eu?”, “Quem sou eu?”, numa autocrítica racional. Montaigne encantou-o também pelo humanismo e compaixão pelos oprimidos, antecipando LéviStrauss ao reconhecer o valor de outras civilizações, como a dos gentios e ameríndios, denunciando as barbáries dos conquistadores europeus. E admirou-o pelo profundo pedagogo que foi.

Morin prefere Pascal a Descartes. Vê-se muito próximo ao autor dos Pensamentos, incita-o a meditações infinitas. Sobre essa obra inacabada, diz: “Algumas obras são grandiosas porque não foram terminadas”, bela reflexão que, numa pirueta de raciocínio, lembra-nos o que disse Guimarães Rosa sobre o homem em Grande sertão: veredas: “(...) o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.(...)”. Assim também obras como Almas mortas, de Gógol, e Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, ficaram inacabadas e se tornaram grandiosas e imortais.

Numa das leituras mais brilhantes, Morin analisa a obra de Marx e separa o joio do trigo: conserva o grande pensador complexo, laico e politizado, e refuta o Marx que não compreendeu que, ao combater os mitos em nome da racionalidade, perdeu-se no mito da luta de classes e da sociedade sem classes, ou seja, substituiu um mito por outro. O que chama a atenção nessa crítica, bem como na de outros pensadores de sua formação, é a serenidade do posicionamento, a coerência e profundidade da argumentação, o respeito e admiração por todos, mesmo quando há divergência de opinião. Mais um exemplo para nós nos tempos bicudos de hoje.

Mas o melhor desse livro vem a seguir: Dostoiévski e Proust. Dostoiévski é para Morin “o mais revelador, o mais presente, o mais íntimo”, aquele que foi o seu primeiro despertar para a Filosofia, para o sentimento de compaixão pelo sofrimento, que o fez ver que a razão e a loucura estão intimamente associadas, que o ajudou “a compreender que podemos ser possuídos pelos mitos, pelas ideias, pelas ideologias, bem como por seres reais, por demônios.” Foi com ele que pôde conhecer o insondável mistério dos seres humanos e da vida, a virtude dos excluídos e dos malditos, a possibilidade sempre aberta do resgate e da redenção, como afirmou, com a sensibilidade dos homens bons e justos. E Proust encantou-o com a sua frase longa que revela as possibilidades da linguagem com desdobramentos, simultaneidades, desordenamentos, sem perder jamais o fio da meada, com a extrema precisão da palavra, assim como revela compreensão à complexidade humana. Pois é disso que trata Meus filósofos: da contradição que é também complementaridade, marca da natureza do homem.

Sem adentrar a análise das escolas modernas de filosofia, seguimos até Beethoven, cuja Sinfonia pastoral levou-o a regiões insondáveis e o fez assistir ao “estouro do Big Bang com um martelamento gigantesco, uma formidável criação do mundo. Era a gênese, o nascimento do cosmo em meio ao caos, com tudo o que isso comporta de energia colossal, e que lança, em seguida a aventura da vida com alternância de ternura, doçura, violência, loucura, recomeço. Pela primeira e única vez em minha vida, meus cabelos se eriçaram.” Ele tinha quinze anos. E numa admiração que seguiria por toda a vida, viu na música do gênio o sofrimento, o infortúnio, bem como a alegria avassaladora. Viu também ética. Dele, guardou a frase: “Eu me inclino apenas diante da bondade.”

Assim, esse livro rico, despretensioso, nos ensina muito, nos fala das experiências de leitura desse humanista que nasceu há cem anos, em 1921, e continua se encantando “diante de uma flor, de um pássaro, de um pôr do sol, diante do mar, de uma paisagem, no amor, na amizade, na fraternidade.”.

ilustrativa

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