
6 minute read
OPINIÃO
from Jornal de Fato
ESPaço JorNaLISTa marTINS DE VaSCoNCELoS
organização: CLauDEr arCaNJo
Advertisement
tchaIkóVSkI: UMA vidAE MUitoSSEgREdoS
VEra LúCIa DE oLIVEIra
Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-dF) veraluciaoliveira@hotmail.com
No dia 12 de agosto de 1893, na cidadezinha de Klin – entre Moscou e São Petersburgo –, Piotr Ílitch Tchaikóvski (1840-1893) concluiu a Sexta Sinfonia. Nesse dia quente sem uma brisa, o mundo ainda não sabia que acabara de ganhar uma obra-prima da música. Foi chamada imediatamente de Sinfonia Patética pelo irmão Modest Tchaikóvski, também artista. Era o canto do cisne. Ou o seu réquiem. Não por outra razão, trouxe em cada acorde a tristeza, o drama, o desespero de uma vida inteira naqueles quarenta e cinco minutos. Foi dedicada ao jovem sobrinho Wladimir Livovitch Davidov, adorado pelo tio talentoso. Mais que adorado, motivo da sinfonia, sua inspiração, sua razão de viver.
É dessa vida trágica que trata o livro Sinfonia Patética – a vida de Tchaikóvski (SP: Brasiliense, 1989), do não menos trágico Klaus Mann (1903-1949), célebre autor de Mefisto (1936), romance fundamental da literatura alemã e mundial do século 20. Filho primogênito de Thomas Mann, identificou-se com o solitário músico russo, ele também, Klaus, um eterno expatriado, um eterno viajante. Disse ele sobre Tchaikóvski: “Ele era um emigrante, um exilado, não por motivos políticos, mas porque não se sentia em casa em parte alguma. Sofria onde quer que estivesse.” (Pág. 257). Um estranho no ninho. Como santo de casa não faz milagre, na Rússia, consideravam pouco “russa” a sua música porque não buscava paisagens ou cor local (como se na Abertura 1812, em Eugene Onegin e em A Dama de Espadas, baseada no romance de Púchkin, não estivesse toda a alma russa); já na Alemanha, era tida como asiática; e em Paris, alemã. Assim também Klaus, que se sentiu incompreendido em seu meio e foi um exilado político com toda a família Mann, fugindo do nazismo de Hitler. E ambos, Tchaikóvski e Klaus, eram naturezas complexas, torturadas e sensíveis, homossexuais e grandes artistas. “Eu o apreciava com todos os seus defeitos, fraquezas e equívocos. Minha ambição era representá-lo por inteiro.” (Pág. 258), diz o autor.
Tchaikóvski sofria horrivelmente ao reger suas obras. Sentia tanta vergonha em frente ao público que tinha vontade de “sumir sob a terra”. Mas precisou fazê-lo incontáveis vezes mundo afora. Era o seu trabalho, o seu ganha-pão desde que por volta dos vinte anos, tardiamente portanto, passou a interessar-se pela arte da música, que seria a paixão e a dedicação de toda uma vida. Detestava, porém, as viagens intermináveis, sempre com o pé no trem, ora na Rússia, ora na Alemanha, ora na França e até nos Estados Unidos, onde foi aclamado e tratado como rei. Mas o excesso de compromissos, festas, jantares, discursos, pompas, tudo o castigava. Queria tão somente voltar para casa, para a sua solidão. E rever o sobrinho Bob, como o chamava, a quem dava todo o seu amor e a quem dedicou a Patética, cujo título só Modest elucidaria, a partir dos comentários do irmão, segundo o posfácio de Martin Gregor-Dellin:
“A primeira parte representa a sua vida, aquela mescla de dores, sofrimentos e o irresistível anseio pelo grande e pelo nobre, de lutas e angústias mortais por um lado e, por outro, as alegrias divinas e um amor celestial pelo belo, pelo verdadeiro e pelo bom em tudo o que a eternidade promete em termos de graças celestiais.” O segundo movimento espelharia as alegrias fugazes de sua vida, incomparáveis com as diversões comuns dos outros, daí o compasso de cinco por quatro. O terceiro movimento descreveria a “história de sua evolução musical. Não passava de um folguedo, uma espécie de passatempo e uma brincadeira no começo de sua vida, até os vinte anos, mas depois vai se tornando cada vez mais sério, e finalmente acaba coberto de glórias.” O quarto movimento representaria o estado emocional de Tchaikóvski durante seus últimos anos de vida, “a amarga decepção e profunda dor pelo fato de ser obrigado a reconhecer que até uma vocação artística é efêmera e incapaz de aplacar seu pavor do eterno Nada, daquele Nada que ameaçava devorar inexoravelmente e para sempre tudo o que ele amava e que durante a vida inteira considerou como eterno e duradouro.” (Pág. 260).

Ou seja, vida, paixão e morte. Uma vida de paixões ocultas, proibidas, e uma morte desejada, a última fuga. Sua música não compreendida inicialmente, a exemplo do lindíssimo Concerto para Violino e Orquestra, cuja batalha travada entre o solista e a orquestra era considerada de difícil execução. E o Concerto para Piano n. 1? Tanta beleza e sentimento juntos nos transportam ao sétimo céu, o da música dos anjos. Como não se deixar enfeitiçar pela magia do oboé em O Lago dos Cisnes? E a leveza da Valsa das Flores?
Tchaikóvski não gostava de falar de si mesmo: “– Da minha vida não há nada para contar. Eu trabalho.” (Pág. 91). As lembranças que ocultava pesavam-lhe e tinham o gosto acre de uma erva amarga, como disse em carta a uma amiga. As mulheres, aliás, fizeram parte de sua vida de modos diferentes: a bela mãe de olhar triste que cedo partiu e o deixou eternamente órfão; a querida irmã Alexandra, que também se foi; a misteriosa amiga e protetora, que o ajudava a distância, pois só se comunicavam por cartas, e que um dia o abandonou; a esposa de mentirinha Antonina; e a babá francesa Fanny com a sua caixinha de música na qual ouviu pela primeira vez o Don Juan de Mozart e compreendeu que não poderia haver música mais bela – e que lhe contou a história da Virgem de Orléans, que o inspiraria a compor a ópera A dama de Orléans, que nos transporta para os campos de batalha da França, com a poderosa mão de Deus guiando a destemida Joana D’Arc. Todas o marcaram com o sentimento da perda irreparável. Da família, conservou poucas fotografias sobre as quais o seu olhar emocionado via todos bonitos, bem-vestidos e penteados posando para a eternidade. Onde estão esses rostos agora?

Nada restou dos meninos cujos rostos, vozes e riso Piotr Ílitch ainda recorda muito bem. Com o tempo, tudo neles se transformou. Cada segundo decorrido desde então modificou algo neles. Pois cada segundo é uma pequena morte que mata a vida, mas ao mesmo tempo também é vida, pois a vida é constituída somente desses segundos fugidios, fatalmente transitórios. Ficam as lembranças. (Pág. 98).
Pois foi desse compositor extraordinário, que amava a cidade sagrada de Kiev, onde se ouviam sinos desde a entrada, agraciado com o título de doutor honoris causa pela Universidade de Cambridge, honraria e reconhecimento pelo trabalho de trinta anos, de que Klaus Mann se ocupou nas 260 páginas do livro. Identificou-se com sua vida errante de incessante procura de si mesmo, regida por uma lei impiedosa, preferindo estar em qualquer outro lugar – de preferência em lugar nenhum – a estar aqui. E o mais doloroso: a morte voluntária de ambos.
Klaus Mann ofertou a nós leitores as mais impactantes cenas de uma vida dedicada a mais bela música, cheia de arrebatamentos, tormentos e também de ternura, como no balé A Bela Adormecida. O século 19 está inteiro no romantismo de Tchaikóvski. E o 20, na alma torturada de Klaus Mann.

dI reçÃO geral: César Santos dIretOr de redaçÃO: César Santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.
FILIADO À