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OPINIÃO
from Jornal de Fato
ESPAÇo joRnALISTA MARTInS DE VASConCELoS
organização: CLAuDER ARCAnjo
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A DOR DA GENTE SAI NO JORNAL
EDMíLSon CAMInhA
Escritor, membro da Academia de Letras do Brasil edmilson.caminha@gmail.com

Sempre me fascinou a língua armênia, seus sobrenomes sonoros, cheios de vogais, Balabanian, Boyadjian, Fermanian, Kardashian, Malakian, Nercessian, Tonoyan, com o sufixo patronímico a indicar filiação, naturalidade ou profissão: Vosgueritchian, filho de ourives; Najarian, filho de carpinteiro; Sivaslian, da cidade de Sivas... Milhares de homens e de mulheres que deixaram o país no Cáucaso para sobreviver à perseguição do Império Otomano, oficialmente declarada genocídio pelo presidente Joe Biden. Não se sabe ao certo quantos morreram, entre 600 mil e um milhão e meio, de 1915 a 1923. Os que fugiram espalharam-se pelo mundo, chegaram até aqui, fizeram-se honrados brasileiros em São Paulo, Mato Grosso, Ceará, venceram no comércio, na indústria, na medicina, afetuosos, gentis, sorridentes, mesmo destinados a sofrer para sempre “a grande dor das coisas que passaram”, como no verso de Camões.
Contam os jornais mais de 400 mil mortos pelo coronavírus, no Brasil do pesadelo Bolsonaro. Serão, daqui a pouco, 600 mil, matança que o governo turco ainda hoje nega. Penso na canção do disco Tropicália 2, lançado em 1993, e ouso atualizá-la. Não, Caetano e Gil, não é o Haiti que é aqui. É a Armênia.
A empresa Vale (que já foi do Rio Doce) testa periodicamente alto-falantes espalhados por Itabira (MG), cidade onde nasceu o poeta Carlos Drummond de Andrade, para acionamento caso se rompam barragens com rejeitos da mineração. Vez por outra ouvem-se, nos bairros a jusante desses depósitos, a Quinta Sinfonia de Beethoven, a Primavera de Vivaldi, uma sinfonia de Mozart, um concerto de Bach... Peço a Deus que, como na tragédia em Brumadinho, milhões de metros cúbicos de lama não soterrem casas, pessoas, sonhos, histórias, enquanto uma orquestra executa a Cavalgada das Valquírias. Seria como se o cineasta Francis Ford Coppola refi-
Charge de Sinovaldo
zesse a famosa cena dos helicópteros na guerra do Vietnã, ao som da ópera de Richard Wagner. O filme se chamaria Apocalypse Now 2: Omissão.
Ao J. R. Guzzo que defende o (des) governo Bolsonaro, prefiro o que descompõe o Estado, poço sem fundo que jamais se enche com os bilhões de reais em impostos e contribuições nele despejados todo dia, sem que o cidadão os tenha de volta em saúde, educação, transporte coletivo, saneamento básico, segurança pública... Se o imposto de renda é agressivamente simbolizado por um leão, para mim o Estado é um elefante obeso, moroso, doente. Como o que George Orwell pôs em Dias na Birmânia, paquiderme de cujos intestinos se arrancou uma tênia com seis metros de comprimento, bastante para prostrá-lo nos trópicos em que se ambienta o romance.
Fosse escrita hoje, a peça de Dias Gomes, sobre a religiosidade popular e a intolerância da Igreja, bem se poderia chamar O pagador de impostos. Feitas as modificações necessárias, que se mantivesse o nome do protagonista: Zé do Burro. Cada vez mais atual...
“Ministro do STF manda Governo realizar o censo demográfico em 2022”
Personagens dos dois pesadelos que nos roubam o sono – a covid-19 e a demência das autoridades que a negam –, os ocupantes do poder bem que serviriam de matéria para investigação da psicanálise. De dez em dez anos, recensear a população é o único meio de aferir a realidade econômica e social do povo brasileiro, conhecimento a partir do qual se definirão as políticas públicas para que se cumpram deveres constitucionais incumbidos ao Estado: saúde, educação, saneamento básico, transporte coletivo, segurança pública... Cancelar o censo, pelo corte de quase toda a verba estimada, é mais do que incompetência política: é sintoma de grave desordem mental, pela recusa dos governantes a que o Estado e a nação se conheçam a si mesmos, como se ignorar problemas bastasse para resolvê-los. Não duvido que a um desses gênios da administração pública ocorra o toque mágico para diminuir o número de menores abandonados, ou “em situação de rua”, como hoje eufemisticamente se chamam: é só decretar-lhes a maioridade a partir dos dez anos...
Diferentemente do verso de Caetano Veloso em “Sampa”, hoje os inquilinos do Palácio do Planalto acham feio o que é espelho. Um antinarciso, esse Presidente...
No Correio Braziliense: “Homem retirado à força do metrô no DF recitava poemas para sustentar família”
Rafael da Cruz Santos, negro, 31 anos, pai de três filhos. Artista de rua, escreve os poemas que diz nos vagões do metrô. Não foi preso na Operação Lava Jato, não montou esquema de “rachadinha” no gabinete de deputado, não recebeu na conta bancária cheques depositados por Fabrício Queiroz: “Trabalho como um funcionário público. Todos os dias começo cedo. É minha forma de sobrevivência. Nesta pandemia piorou muito, mas estamos lutando. Não incomodo ninguém, estou ali trabalhando”. Foi levado à delegacia de polícia, onde se lavrou boletim de ocorrência por desacato.
Enquanto isso, o jornal El País estampa, na primeira página, foto dos reis de Espanha, Felipe e Letizia, na casa do poeta Francisco Brines, de 89 anos, para entregar-lhe o Prêmio Cervantes, o mais prestigioso da literatura espanhola. Esta, a diferença: na terra do Quixote, a realeza se curva ante a poesia; na Bruzundanga de Lima Barreto, o poeta ouve o que lhe tem a dizer o delegado...
No Dia das Mães, o Presidente Bolsonaro reúne amigos no Palácio da Alvorada para comer, em torno da piscina, uma picanha dita japonesa, ao preço de R$ 1.799,00 o quilo (pago, naturalmente, por nós contribuintes, os trouxas). Dinheiro correspondente a sete vezes a parcela do auxílio emergencial de R$ 250,00, para famílias com duas pessoas ou mais.
A esbórnia nada republicana deve ter comovido mães de filhos mortos na pandemia, moribundos sem oxigênio, empresários à beira da falência, trabalhadores desempregados... e milhões de brasileiros que passam fome. Tragédia antiga, de não ter o que comer, contada por Drummond em “Debaixo da ponte”, do livro A bolsa & a vida, publicado em 1962, já se vão quase 60 anos.
Gostasse de ler, sugeriria ao Presidente buscasse o volume na biblioteca do Alvorada, embora com o risco de não encontrá-lo. Quem sabe não foi exatamente dele que se arrancaram páginas para acender o fogo do churrasco...?
“Ministro do Meio Ambiente é suspeito de agir em favor da exportação ilegal de madeira”
Fosse o ministro da Economia, ou do Desenvolvimento Regional, ou da Infraestrutura, ou das Relações Exteriores a denúncia já seria escandalosa. Neste Brasil que põe Kafka no chinelo, a autoridade sob investigação é a institucionalmente responsável pelas políticas de proteção ambiental, pela defesa da Amazônia, que pouco a pouco se transforma no caminho da “boiada” (expressão do próprio ministro) depois da qual só restará fogo, devastação e cinza.
“Tamanho crime não ficará impune! Um dia alguém contará a história para as gerações do futuro!” Permitamme esclarecer os mal informados: o livro já existe. Chama-se Não verás país nenhum, do escritor Ignácio de Loyola Brandão, publicado em 1981, há exatos 40 anos. “Ah, esses comunistas sem ter o que fazer! Não perdem a mania de adivinhar o futuro...”
O jornalista Sérgio Augusto cita o escritor João Paulo Cuenca, a propósito da mendacidade (ao dicionário, bolsonaristas!) de Wajngarten e Pazuello na CPI do Genocídio: “Eles sabem que estão mentindo. Nós sabemos que eles estão mentindo. Eles sabem que nós sabemos que eles estão mentindo. Nós sabemos que eles sabem que nós sabemos que eles estão mentindo.”
Como a ignorância grassa democraticamente à direita e à esquerda, há quem diga ter Affonso Romano de Sant’Anna escrito o poema “A implosão da mentira” indignado com os mitômanos ouvidos pelos senadores. Não sabem que o poeta o publicou em 1980, ante a farsa da bomba que explodiu no Riocentro. Passados 41 anos, o pior é que os versos continuam absurdamente, vergonhosamente, assustadoramente atuais:
Mentem, sobretudo, impune/mente. Não mentem tristes. Alegremente mentem. Mentem tão nacional/mente que acham que mentindo história afora vão enganar a morte eterna/mente.
Em 1961, Haroldo Barbosa e Luís Reis compuseram “Notícia de jornal”, depois gravada por Chico Buarque, obra-prima da MPB de que tanto gostava o crítico Artur da Távola:
Tentou contra a existência num humilde barracão Joana de tal, por causa de um tal João
Depois de medicada, retirou-se, segundo a notícia, pro seu lar, e aí o jornal não diz a verdade: o lar não mais existe, ninguém pode voltar ao que acabou, Joana é mais uma mulata triste que errou. Conclusão da história:
Errou na dose, errou no amor, Joana errou de João, ninguém notou, ninguém morou na dor que era o seu mal a dor da gente não sai no jornal.
Fizessem a música hoje, com tantas notícias que nos comprometem como nação e nos envergonham como povo, Haroldo Barbosa e Luís Reis certamente mudariam o último verso. A dor da gente sai no jornal, sim. É só ter olhos para ler, ouvidos para escutar, coração para sentir.

DI ReçÃO ge RAl: César Santos DIRetOR De ReDAçÃO: César Santos ge ReN te ADMINIS tRA tIVA: Ângela Karina DeP. De ASSINAtURAS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.
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