
5 minute read
OPINIÃO
from Jornal De Fato
esPAÇo JorNALIstA mArtINs de VAsCoNCeLos
organização: CLAuder ArCANJo
Advertisement
A cOmuNIdAde cIeNtífIcA é uma invenção de descartes
AéCIo CâNdIdo
professor da UERN, aposentado. autor da obra Tempos do verbo aeciocandidocuite@gmail.com
Descartes sabia que chegara às linhas mestras de um método fecundo, capaz de produzir conhecimento seguro. Isto, porém, não o livrava de outras preocupações. Ele se preocupava, por exemplo, com a brevidade da vida e com as limitações intelectuais que afetam todos os humanos. Esses dois fatos constituíam um sério entrave ao avanço do conhecimento. Muitos estudos importantes poderiam ser interrompidos pela morte e não terem continuidade ou não irem além, por limitações do autor. Contra esses perigos, ele imaginou uma saída coletiva: uma rede de “espíritos bem formados” unida pela divulgação das descobertas. Estas, a rede e a divulgação, seriam a garantia de prosseguimento de trabalhos iniciados. Suas palavras, no Discurso sobre o Método, traçam um sonho realista: “(...) julgava que não faria melhor remédio contra esses dois impedimentos do que comunicar fielmente ao público o pouco que eu tivesse descoberto, estendendo o convite aos espíritos bem formados a procurar ir mais além, contribuindo cada um conforme sua própria inclinação e poder, para as experiências que fosse necessário realizar, dando ciência por sua vez ao público de tudo quanto aprendesse, a fim de que os últimos iniciassem por onde seus antecessores tivessem terminado e englobando desse modo as vidas e os trabalhos de muitos, poderíamos todos juntos ir muito mais longe do que cada um isoladamente”.
Sem dúvida, uma das condições para a evolução do conhecimento é a continuidade. A contribuição ininterrupta de uns e outros gera o acúmulo necessário para o salto. Muitos atribuem a história tortuosa e descontínua do conhecimento na China Antiga à falta de um método e de uma comunidade científica organizada. Lá, muitos conhecimentos ficaram perdidos, morreram com seus descobridores, porque não havia outros que o entendessem e porque os meios de divulgação eram muito limitados. Não havia, portanto, continuadores de obras.
O Ocidente também conheceu essa descontinuidade, se pensarmos que a Grécia Antiga conviveu com um bom número de pensadores interessados em investigar a natureza, e não apenas a psicologia do homem, o comportamento moral deles e suas relações com os deuses. Mais de mil anos se passaram, quase toda a Idade Média, para que a retomada de algumas ideias, pela reconstituição de seus fragmentos, fosse empreendida. Um hiato muito grande. Muitas obras se perderam por completo, outras em grande parte.
A obra de Aristóteles salvouse quase toda. E chegou até nossos dias graças aos árabes, que a preservaram, quando no Ocidente Aristóteles era acusado de paganismo e recusado por isso. No entanto, de muitos outros pensadores, importantes, como os présocráticos, nenhuma obra chegou até nós na íntegra. Chegaram-nos fragmentos exíguos e uma ou outra discussão presente nos escritos de Aristóteles ou de Platão, por exemplo.
A destruição da Biblioteca de Alexandria, consumida por um incêndio, foi sem dúvida uma das maiores perdas da cultura mundial. Num tempo em que os livros existiam em pequenas quantidades, muitos deles com apenas uma ou pouquíssimas cópias, desaparecer da face da Terra sem deixar rastros era uma possibilidade muito real.
ilustração: Jean Baptiste Moret (fl.1790-1820), 1791

Exílio, banimento, condenação à morte, como sucedeu a Sócrates, Sêneca e Giordano Bruno, além de guerras, saques, perseguição religiosa ou política, queima de livros ou perda das cópias existentes são assaltos contra o conhecimento e frequentemente implicam em perda e ameaça à continuidade.
Apesar de tudo, a continuidade do pensamento no Ocidente é um fato e este permitiu a Newton a constatação entusiasmada e famosa: “Nós somos anões, mas sobre ombros de gigantes, por isso podemos ver mais longe”.
Descartes morreu em 1650. Talvez sem muita convicção de que em breve sua ideia se tornaria realidade. De fato, 10 anos depois de sua morte foi criada a primeira sociedade científica, a Royal Society de Londres, sob a influência do pensamento de Francis Bacon. Seus objetivos eram claros e modernos (isto é, diferentes da tradição): buscar a verdade, submetendo-a ao argumento do fato levantado pela pesquisa experimental, e jamais aceitá-la em função apenas da palavra de uma autoridade. A recusa à autoridade estava expressa no seu lema: Nullius in Verba, ou seja, Nas palavras de ninguém. Nunca acreditar somente na palavra. Por si só, a palavra, independentemente de quem a profira, não pode valer como verdade.
Newton foi presidente da Royal Society durante 25 anos, os últimos de sua vida. Cem anos depois de criada a primeira, ou seja, em finais do século XVIII, já havia cerca de 200 sociedades científicas ou artísticas espalhadas pela Europa e América do Norte.
A associação de pares tem três efeitos poderosos: propicia o diálogo, amplifica as vozes, prepara a continuidade do aprendizado. As academias de ciência serviram para divulgar a ciência entre o público em geral, disseminar as ideias do método científico e sensibilizar patrocinadores. Internamente, elas propiciaram o debate, a crítica e a supervisão rigorosa do percurso que vai de uma hipótese até sua demonstração.
Se a crítica não garante a verdade, facilita, pelo menos, a eliminação do erro. E de eliminação em eliminação, nos aproximamos da verdade. É esta a grande conclusão que se extrai do pensamento de Popper, o maior filósofo da ciência no século XX. Este espírito perpassa as academias, mesmo que a história tenha registrado alguns casos pouco edificantes envolvendo grandes nomes da ciência. Newton, por exemplo, foi acusado por muitos de seus pares de deslealdade, de omissão de autorias e mesmo de invejas rasteiras. Sua convivência com Robert Hook e com Leibniz, criador do Cálculo Diferencial, nunca foi a mais amistosa. Mas a obra de todos eles sobreviveu, apesar das divergências pessoais.
Os homens (hoje também as mulheres, felizmente) reunidos nas sociedades científicas partilham uma linguagem, conhecimentos e procedimentos comuns. Desse modo, a crítica pode ser exercida de forma profunda. São pares: há uma homogeneidade de conhecimentos, o que torna o olhar mais agudo para a análise de um dado fato e mais fácil a compreensão das conclusões.
Reuniões periódicas – os congressos -, a edição de revistas, reguladas por seus conselhos editoriais e pelo trabalho analítico de referees (pareceristas, avaliadores, árbitros), e outros mecanismos institucionais promovem o rigor da seleção e a divulgação das descobertas.
Essa comunidade científica desenvolve um ethos institucional que foi estudado pelo sociólogo americano Robert Merton. Sociólogos contemporâneos que gravitam em torno das teorias da pós-modernidade, sobretudo aqueles alinhados ao chamado “programa forte” da sociologia da ciência, certamente não endossariam as conclusões de Merton. Contra eles, resta o fato de que algumas conclusões de Merton resistem bem à crítica e ao tempo; quanto às teses pós-modernistas, a maior parte delas, não passam de um modismo que já começa a se despedir.

dI reçÃO gerAl: César santos dIretOr de redAçÃO: César santos gereN te Ad mINIS trA tIVA: Ângela Karina deP. de ASSINAturAS: alvanir Carlos um produto da santos editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por césar santos e carlos santos.
FILIADO À