O Cinema em fricção com o Mundo: As articulações do real no documentário

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Diego Franco David Israel Batista de Oliveira Jocasta Luiza Horta Andrade Mirela Persichini Cunha Gonçalves Vieira Rafael Marinho Dias Rayane Lara Santos Tavares Thayna Silva Pacheco Pereira

O Cinema em fricção com o Mundo: As articulações do real no documentário

Projeto Experimental apresentado ao Programa de Graduação em Comunicação Social Integrada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social. Orientadora: Beth Miranda

Belo Horizonte 2011


RESUMO Este projeto pesquisa o documentário e as diferentes formas de se tratar realidade neste gênero cinematográfico, a partir de questões como a subjetividade, intervenção/omissão, relação do diretor/realizador com seu objeto e de um risco acerca do real. O segundo e o terceiro capítulos traçam uma linha histórica de análise do documentário, caracterizando a sua evolução prática e conceitual através dos tempos. O segundo trata das primeiras produções mundiais, até meados dos anos 1960 e o terceiro foca nos documentários brasileiros a partir dessa data. No quarto capítulo discute-se de forma mais profunda as teorias do fazer documentário através da produção/reprodução da realidade. Teóricos como Gilles Deleuze e Jean-Louis Comolli são utilizados para ampliar e fundamentar as discussões propostas no segundo e terceiro capítulos. Paralelamente à construção do quarto capítulo é desenvolvido um experimento como forma de ampliação e aplicação das discussões propostas por esta pesquisa. O experimento é constituído de forma metalinguística, como um documentário que questiona a realidade nas produções do gênero a partir da entrevista de documentaristas e estudiosos do assunto. PALAVRAS CHAVES: Documentário. Articulação do real. Fabulação. Objeto. Sujeito. Risco do real.


SUMÁRIO

1.

INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 4

2.

ESFERAS DE RECRIAÇÃO DE REALIDADES NA HISTORIA DO CINEMA ......................................... 8

3.

REPRODUÇÃO, NEGAÇÃO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE: AS DIFERENTES ABORDAGENS DA

REALIDADE NO DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO .................................................................................. 32 4.

O VESTÍGIO DO ENCONTRO: AS MANEIRAS DE FAZER SÃO FORMAS DE PENSAMENTO ......... 57

5.

METODOLOGIA.......................................................................................................................... 69

6.

CONCLUSÃO .............................................................................................................................. 73

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................................... 77 REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS ......................................................................................................... 83



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1. INTRODUÇÃO A intenção de estudar documentário se deu pela curiosidade suscitada pelas produções deste gênero, que se reinventam a cada obra e se modificam durante os processos de criação. Ainda com um olhar inocente sobre o tema, iniciamos o estudo do gênero a partir do “fenômeno” chamado de dispositivo1 recorrente no cinema contemporâneo brasileiro. Assim, a intenção era percorrer as diferentes estratégias escolhidas pelos cineastas para a produção de um documentário. A partir do inicio das pesquisas e de um maior acúmulo de conhecimento sobre a história do documentário, percebeu-se que as diferentes linguagens adotadas pelos diretores estavam relacionadas à projeção da subjetividade sobre o tema ou objeto tratado (JOÃO SALLES, 2005), o que inevitavelmente interfere na representação da realidade. Essa percepção gerou uma mudança fundamental no tema deste projeto, que passou a ter como objetivo analisar as diferentes articulações da realidade na produção documental.

Se o que vemos na tela é uma representação, é óbvio que a sua construção é o lugar de um sujeito, aquele que se coloca como observador e criador dessas imagens. Temos assim uma operação complexa que começa com o sujeitorealizador, a mediação de uma técnica e de uma equipe, composta de outros sujeitos, em diferentes fases de elaboração, um objeto construído ou não para a câmera e um outro sujeito, este o espectador, que reconstrói todo o processo complexo com a sua capacidade intelectual e emotiva. Significa dizer que o documentário como representação só se realiza inteiramente ao nos colocarmos no ambiente de um processo que só acontece com a projeção ou exibição da obra. (PEREIRA, 2005, p. 30)

Desta maneira, o documentário extrapola a simples representação do real. A proposta do gênero, segundo Migliorin (2005), vai além de um produto fechado, é polissêmico, e possibilita várias interpretações. Com base nesses aspectos, e através das discussões e reflexões acerca do tema, percebeu-se que o debate sobre as articulações do real existem desde os primórdios do cinema. 1

“(...) Remete à criação, pelo realizador, de um artifício ou protocolo produtor de situações a serem filmadas.” (LINS, 2008, p.56)


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Para melhor identificar essas articulações, o primeiro capítulo deste projeto, Esferas de recriação de realidades na historia do cinema, faz um apanhado histórico levando em consideração as diferentes formas de lidar com a realidade nas produções de caráter documental. O intuito deste capítulo é apontar como a intervenção e inventividade sempre estiveram presentes, mesmo nas primeiras obras do gênero e, com isso, iniciar um processo de desconstrução do conceito, baseado no senso comum, de que o documentário tem o poder de mostrar a verdade como ela é. A discussão inicia-se a partir das produções pré-cinematográficas dos irmãos Lumière, devido a sua caracterização, muitas vezes tida como representações puras da realidade. Porém observa-se neste projeto que mesmo estas películas não se isentaram das intervenções subjetivas de seus realizadores. Em seguida, são analisadas as obras de Robert Flaherty, considerado o pioneiro do gênero, pela incorporação de narrativa nos filmes que tem como objetivo mostrar a realidade. Destacam-se, neste momento, a utilização de recursos como a encenação dirigida, além de diversos outros elementos que propiciam a dramatização do filme. Por outro lado, é ponderada a construção cinematográfica de Dziga Vertov, que propõe, de forma diferenciada, um cinema feito em contato direto com a realidade. Sua contribuição situa-se a partir da proposição de questões como a montagem, a opacidade e o olhar da câmera como noções indispensáveis para o debate da retratação da realidade no cinema. Baseando-se principalmente nestes dois últimos realizadores, o conceituador do gênero, John Grierson, defende a criatividade na produção da obra em si, o que possibilita uma constante reinvenção nas abordagens do real. Assim, ao teorizar sobre o documentário clássico e definir os seus limites, Grierson de certa forma, prenuncia a superação dos mesmos. O primeiro capítulo, também abarca os inovadores movimentos cinematográficos da década de 1960, que repercutiram na construção da realidade dentro das produções documentais a partir das renovações tecnológicas e dos questionamentos dos “dogmas” presentes no Documentário Clássico: o Cinema Direto, dos americanos e canadenses, que prioriza o silêncio, a invisibilidade e a não intervenção da câmera; e o Cinema Verdade, surgido na França, que, por sua vez, interpela, interrompe e entrevista seus objetos de pesquisas.


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A partir dessas perspectivas, a discussão é feita para refletir a relação entre o objeto filmado e seu próprio realizador, levando em consideração a construção de cenas, as encenações e formas de registros da realidade, além da utilização das diferentes percepções geradas por recursos subjetivos, como enquadramento, corte, intervenção, omissão, opacidade, transparência e montagem. No segundo capítulo, Reprodução, negação e construção de identidade: as diferentes abordagens da realidade no documentário brasileiro, o projeto propõe uma reflexão acerca do documentário nacional a partir da análise de cineastas cujo trabalho apresenta um marco na inovação da linguagem documental, devido à forma como se relacionam e representam a realidade em seus filmes. Para isso, é realizado um histórico resumido, que situa as primeiras produções brasileiras a partir da década de 1920, no mesmo contexto da produção mundial, até o final dos anos 1950. Esse apanhado histórico é importante para entendermos a grande mudança sofrida pelo cinema brasileiro por volta dos anos 60. Isso acontece principalmente pela influência do Cinema Verdade no Cinema Novo. Com isso os documentários passam a ser repletos de intervenções, metalinguagens e autorreflexões. O cinema brasileiro começa a buscar sua própria identidade, e não apenas a reprodução dos movimentos que acontecem fora do país. Neste sentido, destacam-se as inovações estéticas propostas por Glauber Rocha e por Arthur Omar, que se contrapõem diretamente ao Documentário Clássico. Ainda no segundo capítulo, destaca-se a contribuição de Eduardo Coutinho, que além de carregar os preceitos básicos do Cinema Verdade, como entrevistas e interativismo, traz em todos os seus filmes importantes reflexões sobre os limites entre: ficção e documentário; verdade, mentira e fabulação; espontaneidade e encenação; e diversos outros fatores. Por fim, faz-se uma análise das produções de João Moreira Salles, um dos grandes nomes da nova vertente do documentário contemporâneo nacional, por sua constante tentativa de diversificação na forma de abordar a realidade e pela valorização da subjetividade dos objetos de seus filmes. Já o terceiro capítulo, O vestígio do encontro: As maneiras de fazer são formas de pensamento, parte para uma análise teórica mais profunda sobre as infindáveis formas de relação entre o realizador de um documentário e a realidade. Inicia-se com


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uma análise da passagem do documentário clássico para o contemporâneo começando pelas classificações de gêneros feitas por Bill Nichols. Essas classificações, embora pragmáticas, são importantes para situar as mudanças na visão do documentário iniciadas por Gilles Deleuze. A partir deste ponto há uma desconstrução dos conceitos estabelecidos por Nichols, tendo em vista a análise de Ismail Xavier, que faz o diagnóstico de que a realidade e a ficção se intercalam e se relacionam, tornando a visão da retratação da realidade mais ampla e complexa. Radicando a aproximação do documentário com a ficção no cinema contemporâneo, Deleuze e Jean-Louis Comolli se aprofundam nessas mudanças a partir dos conceitos de imagem e tempo, fabulação, potencialidade do falso, e o estabelecimento da reprodução da realidade plena como utopia. Dialogando com Comolli, utiliza-se referências de Cláudia Mesquita, Consuelo Lins e Francisco Elinaldo Teixeira para falar destes movimentos nas produções brasileiras contemporâneas, a partir da relação do realizador com o outro e a construção de sentido e significado segundo essa relação, e a criação do real pelo cinema. Ainda no terceiro capítulo cita-se Mesquita e Jean-Claude Bernardet para aprofundar as teorias de relação entre o realizador e o objeto, com a análise de elementos novos como o outro de classe, muito presente no documentário contemporâneo brasileiro. Assim como o próprio documentário, este projeto não tem a pretensão de responder a todas as questões levantadas por ele, mas de percorrer e se descobrir durante o processo. Por isso a realização do experimento Extracampo: Realidades que não podem ser dominadas (ou negligenciadas) é tão importante para seu desenvolvimento, para se aproximar também em método do objeto que ele pretende, mesmo que parcialmente, desvendar.


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2. ESFERAS DE RECRIAÇÃO DE REALIDADES NA HISTORIA DO CINEMA

A origem do documentário se confunde com a origem do próprio cinema, pois as primeiras experiências cinematográficas nasceram documentais em sua essência (COMOLLI, 2008). Segundo o crítico André Bazin (1991), mesmo antes da invenção do cinematógrafo, as experiências que o antecederam, como a câmera obscura, o quinetoscópio, a fotografia e o fonógrafo, já tinham como objetivo o realismo integral. “Recriação do mundo à sua imagem, uma imagem sobre a qual não pesaria a hipotética da liberdade de interpretação do artista nem a irreversibilidade do tempo.” (BAZIN, 1991, p.30). O primeiro cinematógrafo é datado de 1894, e já tinha a tripla função de gravar, copiar e projetar pequenos filmes de um minuto. Sua inauguração oficial ocorreu no Grand Café de Paris, no dia 28 de dezembro de 1895. Antes dos irmãos Lumière, outras invenções já eram capazes de registrar imagem em movimento, como o quinetoscópio de Thomas Edison. Este seguia o princípio de uma máquina de entretenimento individual, na qual o espectador coloca moedas para assistir a pequenos filmes. O engenheiro e fotógrafo William Dickson foi o responsável pela maioria dos filmes produzidos para o invento de Edison. Os temas seguiam uma estética cênica de diversão comercial, como danças, acrobacias, lutas e pequenas encenações teatrais. Toda a ação era focada nos personagens que eram filmados de forma centralizada, contra um fundo preto2. (DA-RIN, 2006) Não é inesperado que o trabalho dos irmãos Lumière e seu cinematógrafo fossem mais cativantes ao público que os experimentos anteriores. Além da projeção, que permitia compartilhar a experiência cinematográfica, os filmes apresentavam situações do cotidiano, isto é, com pessoas em ambientes familiares integradas a sua natureza diária. “Enquanto o quinetoscópio se contentara com produzir mecanicamente fitas zootrópicas, o cinematógrafo Lumière era uma máquina para reconstituir a vida” (SADOUL, 1963, p.22).

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Apesar de Dickson usar atores contratados para as performances, ainda não se pode chamar seus filmes de ficção. Esse gênero só passa a existir no cinema com George Méliès.


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Um bom exemplo da sensibilidade artística de Louis Lumière3 é o filme A chegada do trem à estação4 (1896). Com apenas 50 segundos de duração, o filme mostra uma imagem comum para o século XIX: a estação La Ciotat na cidade de Paris e alguns de seus moradores à espera do trem, que vem de encontro à tela de projeção. É considerada a primeira obra de arte do cinema, por seu enquadramento ousado, além da ótima utilização do preto e branco. O realismo da cena apavorou os 33 espectadores da primeira exibição, que se desviaram acreditando que o trem sairia da tela e os atropelaria. (MERTEN, 2003) Figura 1 - A Chegada do Trem a Estação

Fonte: DVD The Lumiere Brothers' - First films

Outra característica a ser ressaltada na obra deixada pelos Lumière é a unidade estilística de seus filmes. Em um minuto, retratam situações cotidianas, com a melhor iluminação e enquadramento possíveis. Este ato de escolher filmar instantes da realidade, sem preocupação de controlar o ambiente a ser retratado, representava as intenções tecno-científicas dos Irmãos Lumière para com o seu invento (DA-RIN, 2006). Merten sugere que o fato de existirem várias versões para o mesmo filme seja um traço de intervenção consciente de Louis Lumière. Já Da-Rin (2006), remete este fato à finalidade sistemática de aperfeiçoamento do método de reprodução do movimento real. Meus trabalhos foram trabalhos de investigação técnica. Jamais fiz o que se chama de „mise-en-scène‟5 (...). No cinema, o tempo dos técnicos acabou agora é a época do teatro. (Entrevista de Louis Lumière à Georges Sadoul – 19466). 3

Louis, o Irmão mais velho, era o responsável pela maioria dos filmes, seus conhecimentos em artes plásticas – fotografia, desenho e escultura – contribuíram para a qualidade técnica e estética de seus trabalhos. 4 Título original: Entrée d'un train en gare de la Ciotat. 5 Mise-en-scène é colocar em cena. Pode-se remeter também a direção. 6 Citado por Da-Rin, 2006, p.29


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Essas explorações científicas com o objetivo de aperfeiçoamento geraram várias versões para o filme A Saída dos Operários das Fábricas Lumière7 (1895). Cada uma delas com diferentes ângulos e personagens. Neste filme os irmãos Lumière se permitiram a manipulação em suas produções, através da direção do movimento de seus personagens, em uma “contaminação” do real cotidiano, a saída da fábrica. Intervenção esta que é evidenciada por três razões: os operários sabiam que estavam sendo filmados, pois não olham em direção à câmera em nenhum momento; a saída inicia-se exatamente no instante em que se começa a filmar, e encerra-se com um minuto, o tempo de duração máximo da película, além das diversas versões do filme. (MERTEN, 2003) Figura 2 – A Saída dos Operários das Fábricas Lumière

Legenda:Três versões do filme Fonte: DVD The Lumiere Brothers' - First films (1895)

A dramatização é mais clara em outros filmes como Jogo de cartas8 (1895). Dois homens sentados à mesa jogam cartas enquanto um terceiro observa. Um jovem garçom entra em cena para servir os homens e passa também a observar o jogo. Apesar de o enredo apresentar uma ação cotidiana da época, o que se destaca é a atuação do garçom, com movimentos bruscos e exagerados, que se distancia da realidade. Já O regador regado9 (1896), é considerado por muitos historiadores como a primeira Gag10 do cinema, por sua intenção claramente cômica. Neste filme, que possui cenário e intérpretes, é possível perceber uma preocupação com a permanência dos personagens dentro do plano e a ação ensaiada. (MERTEN, 2003)

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Título original: La Sortie des Usines Lumière. Título original: Partie d‟Ecarté. 9 Título original: L‟arroseur Arrosé 10 Efeito cômico de desempenho do ator, geralmente breve e de representação física. 8


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Apesar dos pequenos flertes dos irmãos Lumière com a encenação, o verdadeiro criador da ficção no cinema foi o mágico Georges Méliès. Seus primeiros 80 filmes copiavam a obra de outros autores de sua época como Dickson e, principalmente, os irmãos Lumière11, que apesar de encenados, ainda retratavam o cotidiano. A originalidade de Méliès foi iniciada a partir da descoberta da trucagem12, que possibilitou o verdadeiro espetáculo no cinema. Os filmes voltam para o estúdio e passam a ser fortemente influenciados pelo teatro. As histórias não têm nenhum compromisso com a realidade, pelo contrário, ganham cada vez mais destaque de acordo com o que se distancia dela e se aproxima do mágico e fantástico. (SADOUL, 1963) Assim, percebe-se que a dicotomia entre realidade e ficção no cinema começa a surgir juntamente com o cinematógrafo, a partir das experiências dos Irmãos Lumière e de Georges Méliès. O segundo completamente voltado à fantasia e interpretação, os primeiros, embora muitas vezes utilizando de recursos dramáticos simples, tinham como ideal a impressão da vida como ela é. “Criaram-se assim, desde a base do cinema, duas vertentes: a realista dos irmãos Lumière e a fantástica de Méliès”. (MERTEN, 2003, p.8) Mesmo com as novas experiências iniciadas por Méliès, a estética realista permanece no cinema a partir dos filmes de viagem. Estes são filmes mais contemplativos, que mostram imagens dos lugares visitados sem construir uma narrativa através da lógica de desencadeamento dos fatos. Embora propusessem um novo formato para as produções, ainda eram fortemente influenciados pelo modelo estético proposto pelos irmãos Lumière.

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Partie d‟Ecarté (Referencia à Partida de Cartas), L‟arroseur Arrosé (Referencia ao Regador regado), L‟arrives du Train (Referencia à Chegada do trem a estação) são exemplos dos filmes que Méliès copiou dos irmãos Lumière. 12 A Trucagem é um efeito visual amplamente utilizado até os dias de hoje, ele consiste na substituição, desaparecimento ou aparição de uma pessoa ou objeto na tela. O efeito é construído através da interrupção da filmagem para fazer mudanças na cena, e iniciar novamente com todos os outros atores e objetos na mesma posição em que estavam antes da filmagem ser interrompida.


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A realidade dos Irmãos Lumière e a Fantasia de Georges Méliès – Imagens retiradas do youtube.

A estética anteriormente instaurada pelos irmãos Lumière só é substituída pela construção da narrativa do real a partir do lançamento de Nanook do Norte13 (1922), de Robert Flaherty. Nanook passa a ser a nova referência de realidade do cinema, inclusive sendo considerado o primeiro documentário. Denominado por João Moreira Salles (2000) como o Adão do gênero, por usar da construção narrativa para conduzir a história de um personagem real, Nanook do Norte torna-se um marco do fim do período estético de representação da realidade proposto pelos irmãos Lumière (DA-RIN, 2006, p.40). O filme, realizado pelo explorador Robert Flaherty, investiga a vida e os hábitos dos Inuik, uma tribo de esquimós que habitava o norte do Canadá. Flaherty, como pesquisador fez várias expedições antropológicas à tribo e acompanhou o cotidiano daquelas pessoas. Incentivado por um de seus financiadores, o cientista fez um breve curso de filmagem e então em suas expedições seguintes levou uma câmera e com ela registrou a rotina e os hábitos dos Inuik, conseguindo um vasto material descritivo sobre os esquimós. Quando a edição do filme já estava concluída, um acidente queimou grande parte do material, sobrando apenas um copião14 de trabalho. Como conseqüência desse acidente, o explorador levantou fundos para fazer um novo filme e após conseguir o investimento, Flaherty remonta o filme através de encenação, com atores nativos e no local das filmagens originais. Em junho de 1922, Nanook do Norte é lançado e considerado pelos críticos e público um sucesso. O filme é focado na rotina do pescador Nanook e sua família e é através desses 13

Título Original: Nanook of the North.

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Copião é o filme bruto, ou seja, todo o material sem edição ou tratamento.


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personagens que a história e a vida dos Inuiks é apresentada. Flaherty inova na forma como constrói a narrativa conectando fatos em uma ordem lógica, criando uma dramaticidade. Nesta época ainda não havia se constituído teoricamente e conceitualmente o gênero documental. As produções contemporâneas a Nanook são filmes ficcionais, com a presença do drama e atuação, sendo também roteirizados e dirigidos. Para Da-Rin (2006), o filme de Flaherty “inovava ao colocar os fatos que testemunhou em uma perspectiva dramática” (DA-RIN, 2006, p. 46). A edição e a narrativa de Nanook conectam as cenas umas às outras criando uma linha de acontecimentos. Essa montagem tem um potencial emocional característico dos filmes ficcionais, ou seja, Robert Flaherty acrescenta ao documentário características da ficção. Flaherty incorporou a Nanook of the North as conquistas, ainda relativamente recentes da montagem narrativa, que resultam na manipulação de espaçotempo, na identificação do espectador com o personagem e na dramaticidade do filme. (DA-RIN, 2006, p. 47).

Cenas em que crianças brincam enquanto os pais trabalham, ou a indigestão delas, mostram como se davam as relações afetivas entre os esquimós, emocionando e aproximando o personagem do espectador. Na cena da caça à morsa, percebe-se a dificuldade e o perigo dessa atividade, aparentemente cotidiana a Nanook e outros moradores. Porém, o que se sabe é que esta cena foi integralmente dirigida e manipulada por Flaherty, já que a caça à morsa não era mais comum e os arpões já haviam sido substituídos por armas de fogo. O diretor, assim, transita entre o real e a ficção, a partir do momento em que reproduz uma atividade aparentemente real, utilizando de artifícios para alcançar uma carga dramática. Conviver e pesquisar o comportamento dos nativos é uma característica do trabalho documental de Flaherty, com o objetivo de captar a essência do lugar para a construção da narrativa. A imersão durante um determinado período de tempo no local fez com que o diretor conseguisse ordenar da melhor forma o material extraído. John


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Grierson15 confere a Flaherty a mudança fundamental no formato e produção do documentário, introduzindo dramaticidade através da articulação do material capturado do habitat natural. Para ele, no entanto, a estratégia de Flaherty gera alguns resultados indesejados. A romantização da vida selvagem, o foco no exótico e a centralização do filme em torno de um personagem desviam o documentário de sua função social, que é tratar dos problemas de sua sociedade e não de lugares distantes. Apesar das criticas, Grierson e os demais autores consideram as inovações de Nanook fundamentais para a formação do gênero. Outra importante obra de Flaherty é Os Pescadores de Aran (1934). Assim como Nanook do Norte, este filme conta a historia e o cotidiano dos habitantes da ilha de Aran, localizada na costa oeste da Irlanda, através da vida de uma família. O filme também mostra as dificuldades e a sobrevivência em um ambiente desfavorável. Porém, a diferença de Nanook em relação a Os Pescadores de Aran é que a intervenção de Flaherty na realidade do segundo filme é ainda maior, chegando ao ponto de montar a família de pescadores. Nenhum dos personagens, apesar de nativos, pertence à mesma família. Em Os Pescadores de Aran, Flaherty utiliza uma técnica de produção diferente de Nanook: ele filmava durante o dia, de noite assistia ao que foi filmado e no dia seguinte refilmava. A remontagem, que aconteceu em Nanook por acidente como conseqüência de um incêndio, foi aplicada na produção em Aran de uma forma mais refinada e mais consciente. Jean Louis Comolli (2008), afirma que Flaherty utiliza essa forma de produção porque “para ele, o cinema vem primeiro, a realidade filmada se antecipa à realidade vivida”. (COMOLLI, 2008, p. 231) Considerado por Comolli (2008) como um dos filmes que mais se utilizou da montagem de sua época, Os Pescadores de Aran (1934) se constitui de cortes rápidos, criando uma dinâmica e ação muito grande. Apesar da fragmentação, da multiplicidade de formas e ângulos, a montagem recupera a unicidade e a continuidade. Isso, de acordo com o autor, se dá pelo fato de Flaherty ter sua visão centrada na montagem,

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Neste momento Grierson será citado várias vezes como o teórico que cria o termo documentário e que caracterizou Nanook do Norte como o primeiro filme do gênero. Mais tarde será aprofundada sua obra


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nem sempre acreditando no que vê no mundo. E por acreditar no cinema ele consegue fazer com que o mundo e os pedaços fragmentados se tornem algo memorável, incrível (COMOLLI, 2008).

Nanook do Norte (1922) e Os Pescadores de Aran (1934) - Imagens retiradas do youtube.

A partir disso pode-se inferir que Nanook foi o começo do desenvolvimento das técnicas do próprio Flaherty e, mais do que isso, é a base do documentário. Mesmo utilizando de encenação, recriação de situações, montagem e refilmagem típicas da não-ficção, Os Pescadores de Aran e Nanook do Norte são considerados documentários. “Flaherty percebeu que o cinema não é um braço da antropologia nem da arqueologia, mas um ato da imaginação”

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. Em seus filmes fez muito mais que

registrar a realidade. “Precisamente essa imaginação narrativa – que Flaherty decerto possuía, alguns dizem que até em excesso – é o que faz dele o pioneiro do documentário. Ele não descreve; constrói.” (JOÃO SALLES, 2010, p.63). Nanook do Norte e Os Pescadores de Aran são os primeiros experimentos da articulação da realidade no cinema. As duas obras de Flaherty são fragmentos de imagens manipuladas com o intuito final de representar a idéia de seu realizador. Representações essas de tempo e espaço, que se alternam durante a construção da montagem, guiada pelo olhar do realizador. De acordo com Comolli (2008), o olhar humano biocular é substituído pelo olhar monocular da câmera, que direciona e limita o objeto. A construção do documentário iniciou-se com Flaherty, porém ele não foi o único a utilizar técnicas narrativas para mostrar o real. Também na década 1920, na União Soviética (URSS), o cineasta Dziga Vertov

como cineasta e sua formalização do documentário. 16 GRIERSON, citado por João Salles, 2010, p.63


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desenvolve um novo modo de ver, pensar e produzir filmes através de seu contato com a realidade, porém de forma diferente daquela adotada por Flaherty. Para Vertov, as primeiras realizações cinematográficas soviéticas não possuem uma linguagem própria, pois ainda estão presas aos velhos modelos artísticos, como a literatura e o teatro. O diretor propõe uma revolução para a linguagem cinematográfica, a fim de gerar uma nova percepção reveladora do mundo. Para isso Vertov cria o manifesto Cine-olho17, grupo assim denominado para diferenciá-los dos “antigos cineastas”. Os Kinoks (...) através de seus filmes e dos manifestos redigidos no curioso estilo futurista, proclamaram que o cinema devia recusar o ator, figurino, maquilagem, estúdio, cenografia, iluminações, em uma palavra, toda encenação, e submeter-se à câmera, olho ainda mais objetivo que o olho humano. A impassibilidade da mecânica era para eles a maior garantia da verdade. (Sadoul, 1963, p.170)

Vertov ressignifica a função da câmera, que deixa de ser usada com o intuito de replicar o que o olho humano era capaz de ver. Para o diretor, o olho é impotente, falível, ou seja, cego. O olhar mecânico por sua vez é onipotente e delata aquilo que o homem não consegue enxergar. (COMOLLI 2008). As imagens produzidas pela câmera seriam ultrapassadas e atravessadas pelo real já que permitem tornar visível o invisível e tornar verdade a mentira. Só assim a câmera teria uma visão própria. “A câmera, ao contrário do olho humano, pode ser indefinidamente aperfeiçoada. Forçar a câmera a copiar o trabalho do olho humano significa violentá-la.” (DA-RIN, 2006, p.109). A realidade aqui explorada tem a montagem como sua ferramenta principal. São demasiadas as interferências técnicas que provém da visão do diretor, não permitindo assim um cinema contemplativo.

A sobreposição de imagens colabora para a

opacidade e subjetividade no filme, por escolha de seu realizador em optar por uma realidade alternativa em seu produto final.

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GRIERSON citado por João Moreira Salles, 2010.


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A genialidade de Vertov foi ter percebido que a inversão no olhar só podia se efetuar em uma duplicação da ilusão. (...) Ascender a dimensão analítica da decomposição do movimento equivale assim, bastante paradoxalmente, a aderir mais do que nunca à magia sintética do cinema – a renovar a postulação de crença dessa impressão de realidade ligada ao movimento da vida. (COMOLLI, 2008, p. 250)

Ele sugere a relação entre a filmagem de improviso e a produção de sentido a partir da montagem, aproximando arte e cinema através dessa experimentação que é exclusivamente cinematográfica. Em 1922 Dziga Vertov produziu seu primeiro documentário, Cine-Verdade18. Para ele, era a partir da montagem que se dava todo o processo da fabricação do filme. Considerando a montagem como operação mental, o cinema sofreu uma experimentação inédita e absoluta, “que ultrapassa e esgota por antecipação todas aquelas que serão tentadas no cinema por vir” (COMOLLI, 2008, p. 124). A narrativa existente no filme se torna possível devido às montagens associativas, às alternâncias tão bem pensadas e principalmente pela exploração da sobreposição de imagens (COMOLLI, 2008). O Homem com a Câmera (1929) é um marco para a história do cinema. O filme se desenvolve a partir do cotidiano, retratando a cidade em seu despertar e, aos poucos, as pessoas que vão surgindo em quadro dão ritmo à sequência. Paralelamente são inseridas imagens de um cinegrafista que filma essa circulação social. No prólogo, uma sala de cinema vazia é revelada ao espectador. Aos poucos, personagens entram para assistir a um filme, sendo este o próprio O Homem com a Câmera. Essa passagem revela o forte caráter metalingüístico que se mantém durante todo o filme, um resultado das experimentações nas montagens, da transgressão das técnicas e convenções. Desta metalinguagem surge o conceito criado por Vertov de cineespectador, que nada mais é que a ação do espectador de O Homem com a Câmera assistindo a sua própria representação: na cena do filme em que espectadores em uma sala de cinema vêem o filme O Homem com a Câmera.

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O Cine-Verdade de Vertov (Titulo original: Knopravda), nada tem a ver com o Cinema Verdade de Jean Rouch. Mais tarde falaremos desse movimento e de seu autor.


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Cenas de O Homem com a Câmera mostram a metalinguagem e a trucagem experimental, através da sobreposição de imagens cotidianas com explicitação da presença do cineasta e da câmera. Imagens retiradas do youtube.

A metalinguagem também é utilizada através da presença da câmera em várias cenas do filme.

Sua escolha de montagem acaba por identificar a inevitável

congruência entre o olhar biocular, olhar humano e o olhar monocular, olhar mecânico, ressaltando assim as diferenças e as possibilidades para o uso deste recurso. O ato de filmar é colocar a câmera a disposição da realidade. O diretor russo usa o olhar mecânico para forçar e organizar o seu conceito de real. Os recursos, utilizados repetidamente durante o filme, são responsáveis pelo controle da produção imagética. Alguns desses são: enquadramento, corte, aceleração e desaceleração, o que torna O Homem com a Câmera um dos filmes menos realistas, menos documentais e menos filmados de improviso da história do cinema (COMOLLI, 2008). Mesmo com essa afirmação, o autor aponta que o contato da câmera com o outro sempre resulta em um acontecimento inédito e irreprodutível. Dessa forma o excesso de imagens acaba por garantir o improviso. De certa forma, o fator da realidade é discutível todo o tempo na obra de Vertov como nunca antes no cinema. A inevitabilidade de permanecer real a presença da câmera é paradoxal a partir do momento em que a construção elaborada pelo diretor agrega um senso de realidade próprio, já que ligar a câmera modifica os acontecimentos filmados, mas ao mesmo tempo que não nega seu caráter real. A partir dessa articulação, surge uma realidade construída a partir do olhar da câmera. Os que atuam nesses filmes não são, com efeito, aquilo que se convencionou chamar de “atores”. Nem por isso atuam menos, corpos cúmplices, para uma câmera, um quadro, uma luz, e até mesmo para uma trucagem, uma câmera lenta, uma aceleração. Venham eles do palco ou das ruas todos se colocam sob o olhar da câmera, com ela se constroem. (COMOLLI, 2008 p. 239)


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Com uma linguagem singular, Dziga Vertov mostra em sua obra o comportamento das pessoas ao se deparar com uma câmera, quando percebem que estão sendo filmadas. Em uma cena, um homem que dorme na rua acorda e sorri timidamente para a câmera enquanto ajeita seu chapéu. Em outra, é possível identificar uma mulher acenando para a câmera, como um cumprimento a ela. Com esses fatos apresentados durante a montagem do filme, Vertov deixa perceptível ao espectador como se dá o processo de construção da obra. Dessa forma, cria-se uma relação entre a verdade e a montagem:

Todo o método de Vertov se organiza em torno desta contradição dialética entre fatalidade e montagem; ou seja, articulação entre o cine-registro de fatos e a criação de uma nova estrutura visual capaz de interpretar relações visíveis e invisíveis. [...] A verdade não era encarada como algo “captável” por uma câmera oculta, mas como produto de uma construção que envolvia as sucessivas etapas do processo de criação cinematográfica: “os filmes do „cinema-olho‟ estão em montagem a partir do momento em que se escolhe o assunto até a cópia final, ou seja, estão em montagem durante todo o processo de fabricação do filme” (DA-RIN, 2006, p. 117).

O trabalho de Dziga Vertov revolucionou o cinema e foi fundamental para o surgimento de outras teorias, além de acarretar outras mudanças na construção processual do documentário. Assim como fez Dziga Vertov, na década de 1920 na URSS, o filósofo e metafísico, John Grierson, conseguiu na década seguinte impulsionar a produção cinematográfica documental através de patrocínios do governo da Inglaterra. Porém, Grierson conseguiu ir além de Vertov. Sua visão institucional fez dele o primeiro a estruturar e teorizar sobre o que viria a ser chamado de documentário clássico. Além disso, diferentemente dos soviéticos que estavam restritos à vanguarda artística da época, Grierson conseguiu popularizar o gênero e estabelecer ao redor de si um vasto número de cineastas com a mesma opinião (NICHOLS, 2007). Para Grierson, os cineastas que utilizam os materiais naturais, ou seja, gravam fora do estúdio e sem roteiro na tentativa de extrair o real daquele ambiente, dividem-se em duas categorias, a “inferior” e a “superior”. Os filmes que se enquadram na categoria


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“inferior” são aqueles que meramente descrevem a realidade, como os educativos, científicos e filmes de viagem. Já os que se enquadram na categoria “superior” deixam de ser meramente uma descrição simples ou fantasiosa do material natural para seu arranjo, rearranjo e formalização criativa. Esta formalização criativa ocorre pelo método que Grierson denominou de dramatização. Um cinema que tivesse por matéria prima as imagens naturais registradas pela lente da câmera disporia de condições privilegiadas para, através da montagem, desenvolver processos de generalização e simbolização capaz de interpretar as forças determinantes da realidade. (DA-RIN, 2006, p. 74)

Grierson defende que, para dar o que ele chamava de “tratamento criativo da realidade”19, é necessário que a história seja extraída do ambiente em que ela se passa, e não forjada com roteiros de histórias carregadas de psicologismo e de dramas artificiais. É necessário filmar a história viva e a cena viva, privilegiando o meio social como fonte de inspiração capaz de formar uma história com significado humano. Ele ainda sugere uma mudança de foco, pois a capacidade intrínseca de representação naturalista do cinema era distorcida e diluída na maioria dos filmes de ficção. (DA-RIN, 2006) O real que o ambiente proporciona, de acordo com o teórico, nem sempre é perceptível imediatamente, pois a historia que o local conta pode ser resultado de um processo interpretativo, que ocorre através da dramatização e da montagem, fundamentado pelos conhecimentos filosóficos, religiosos e artístico do diretor do filme. Sendo assim, o real “não é o conjunto dos aspectos superficiais do mundo empírico, mas uma realidade subjacente e determinante.” (DA-RIN, 2006, p. 73). O fator básico para fazer um bom documentário é que o cineasta tenha um período de convivência com o ambiente e as pessoas do lugar antes de filmar. É preciso ter intimidade e conhecimento profundo do tema a ser trabalhado no filme, para conservar ao máximo a espontaneidade e o comportamento natural do ambiente e, a partir disso, saber ordená-lo. O método de observação participante, utilizado pela

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Expressão criada por Grieson - “tratamento criativo da realidade” é a primeira definição formal para o Documentário Clássico.


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antropologia e incorporado ao cinema a partir de Nanook do Norte, é essencial para Grierson (DA-RIN, 2006) Como já citado anteriormente, apesar de ter sido influenciado pela obra de Flaherty, Grierson defendia que o cinema deveria cumprir uma função social, comprometido com a educação cívica e com a integração social, e que seu foco deveria ser a sociedade e o contexto em que o filme estava inserido. Para ele o documentário não poderia ser regido por conflitos de ordem pessoais e introspecção. Ou seja, era necessário abandonar o herói individual e a forma da história para constituir o filme com uma figura dramática social auto-suficiente, como faziam os grandes poetas e pintores da época. (DA-RIN, 2006) Sobre este aspecto, o cinema soviético também foi uma importante fonte de inspiração, principalmente cineastas como Eisenstein e Vertov. Estes cineastas chamavam a atenção de Grierson por três razões fundamentais; a primeira delas era a montagem. A teoria da montagem dialética de Eisenstein interpretava o corte como um choque entre dois fatores, originando um conceito, ou seja, a produção de efeitos dramáticos sem necessariamente recorrer à “forma da história”. O segundo aspecto é a estreita relação entre escolha do tema e sua finalidade social. E por último o uso do cinema como veículo de propaganda para o estado. (DA-RIN, 2006)

Cenas de Drifters, que demonstram o registro de uma cena que tem compromisso com a realidade, a generalização do cidadão inglês e cenas da natureza que representam uma metáfora do estado de ânimo dos personagens. Imagens retiradas do youtube.

Grierson considerava que um cineasta que se preocupa em demasia com a estética por ter a intenção de fazer uma obra de arte, tende a perder uma qualidade fundamental, a finalidade do trabalho. Para ele “a arte não é um fim, mas o subproduto


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de um trabalho bem realizado.”20 O cineasta caracterizou três métodos sobre o tratamento cinematográfico: o método do tempo, o método do ritmo e o método das massas e do movimento. O primeiro consiste na forma sinfônica pura, que é o fluxo orquestrado de imagens, baseado na montagem do cinema soviético, acrescida de finalidade. O segundo tem como fundamento modelar os ritmos do filme com elementos pertencentes ao drama, que são o suspense e clímax. Neste caso, quanto mais intenso for o conflito de informações entre as cenas, mais fácil será a sua interpretação. O terceiro método tem o intuito de inserir imagens poéticas ao movimento, fazendo com que a interpretação aconteça através de associações de conceitos e reconhecimento de símbolos, na tentativa de situar o espectador exatamente em como está o ambiente e estado de ânimo. Os três métodos podem ser usados em um filme, a critério do diretor. (DA-RIN, 2006) O resultado de todo o estudo, teorização e formalização da técnica documental realizado por Grierson foi o documentário Drifters (1928), que teve um peso importante para a criação da Film Unit

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. Em seu filme Grierson é fiel aos seus conceitos, usa da

imagem natural para criar expressões simbólicas, as cenas são mostradas de forma generalista, e pouco detalhada. Grierson evitava se aprofundar em questões econômicas e sociais, mostrando a realidade e as relações sociais de forma idealista e conservadora (DA-RIN, 2006). Os pescadores mostrados em Drifters não têm individualidade, “todos eles formavam o modelo do pescador inglês, inspirado nos moldes do herói coletivo do cinema soviético” (LINS, 2004, p. 69). O modelo formal proposto por Grierson começa a sofrer alterações a partir da segunda metade da década de 1930, por três motivos principais. O primeiro é o advento do som nas produções cinematográficas, que significou uma ampliação das fronteiras técnicas; o segundo é o aprofundamento da crise na Inglaterra que criava discussões sobre a forma como eram retratados os trabalhadores e fatos políticos, e terceiro, o uso cada vez mais freqüente de artifícios ficcionais nos filmes. Este terceiro fator se

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John Grierson citado por Da-Rin, 2006, p. 81.

Film Unit foi o grupo de cineastas que faziam filmes com o patrocínio do governo inglês a partir da estética criada por Grierson.


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intensifica após o brasileiro Alberto Cavalcanti22 assumir a direção da Film Unit. Cavalcanti criticava duramente a definição de “documentário” para designar a produção do cinema de não ficção. Em suas produções ousou quebrar muitas das regras da escola de Grierson, chegando ao ponto de substituir narrações pela utilização de diálogos roteirizados. (DA-RIN, 2006) A verdade é que mesmo Grierson chegou a criticar a sua própria definição para o documentário, classificando-a anos mais tarde de “deselegante” e de “desajeitada”. Ele nunca acreditou que poderia reproduzir a realidade em sua totalidade. Para Grierson: “não existe uma verdade até que você a formalize. Verdade é uma interpretação, uma percepção”

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. Para seus fundadores, o documentário não significa uma negação do

cinema de ficção, mas uma alternativa que o complementa. Mais do que a utópica intenção de refletir a sociedade, o documentário tinha a intenção de interpretá-la e intervir sobre ela. (DA-RIN, 2006). Apesar da gradual perda da influência de Grierson sobre o cinema inglês, o modelo proposto por ele para o documentário permaneceu sendo usado até meados da década de 1950. Antes disso, mesmo com alterações éticas e estéticas pontuais, Grierson ainda era a principal referência no gênero. A partir de 1950, a revolução tecnológica – com equipamentos mais leves, captação de som direto e maior sincronia entre áudio e imagem – permite a aproximação do documentarista com o objeto de filmagem. Essa „câmera sensível, móvel e pouco embaraçosa‟ como se refere Francisco Teixeira (2006) às novas tecnologias, alavanca mudanças estéticas importantes que se associam à concepção de Dziga Vertov de Cine-Olho, influenciando diretores na década de 1960 com a possibilidade de dar visibilidade ao que até então não era possível ser visto. A redução nas dimensões do equipamento, a lente zoom e maior abertura do obturador, são algumas das características técnicas que permitem o dinamismo nas filmagens. A utilização de luz natural, sem equipamento de iluminação, os personagens reais em tela, a redução nas equipes de filmagem e a saída dos estúdios também são 22

Alberto Cavalcanti foi um cineasta contemporâneo a Grierson. Participou da Film Unit desde a sua fundação e contribuiu para a ampliação e flexibilidade de conceitos da escola inglesa de documentário. 23

Grierson citado por DA-RIN, 2006, p.92.


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traços encontrados em diversas produções do período dos anos 1960. Além do gênero documental, estas características são encontradas no Neo-Realismo24 italiano, na Nouvelle Vague25 francesa e no Cinema Novo26 brasileiro. Já no documentário, dois filmes produzidos no inicio da década de 1960 revolucionaram o que até então era pensado no gênero. Primárias27 (1960), do norte americano Robert Drew e Crônicas de um verão28 (1960) de Jean Rouch e Edgar Morin, rodado na França. Em Primárias, o diretor acompanha com uma câmera silenciosa e pouco intervencionista o dia a dia dos candidatos do partido democrata à presidência dos Estados Unidos, Hubert Humphrey e John Kennedy. Rubem Queiroz (2010) ressalta que, até então, seguir os personagens era considerado quase impossível. O filme de Rouch, por sua vez, apresenta um recurso inédito: uma intervenção ativa, de constante interferência, e montagem marcante. Essa vanguarda distante dos moldes do que até então era produzido no gênero demonstra novos conceitos juntamente com novas denominações e posicionamentos, conforme Teixeira (2006). A cada escola uma forma de se pensar o documentário é definida, juntamente com um novo nome. Nos Estados Unidos, “Living Camera” e o “Cinema do Comportamento” de Richard Leacock e Pennebaker; “Candid–eye” composto por antropólogos canadenses; e seguindo uma lógica oposta às escolas canadense e norte-americanas, o “Cinema Verdade” francês, de Rouch e Morin. A expressão Cinema Direto é o sinônimo abrangente de produções das décadas de 1960 a 1970.

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O Neo-Realismo nasce inconscientemente a partir do pós-guerra com a intenção de fugir dos padrões hollywoodianos. A proposta é mostrar uma realidade sócio-cultural e política. Com produções que privilegiavam as cidades e as ruas. A técnica e a estética privilegiavam o realismo dentro das produções ficcionais. 25 Na França pós-guerra, jovens cineastas passam a questionar os padrões cinematográficos aceitos e esses questionamentos impulsionam os cineastas a irem às ruas e filmarem. O realismo, a proximidade e a centralidade do papel do diretor eram as marcas e preceitos desse movimento. Diretores mais influentes foram: François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer. 26 O Cinema Novo surgiu no Brasil fortemente influenciado pelo Cinema Verdade, pela Novelle Vague e pelo Neo-Realismo italiano. Os filmes demonstram o contexto social brasileiro, a desigualdade social, pobreza e o regionalismo como alguns dos temas mais abordados. O movimento tem início em 1955 com Rio 40 graus e seu fim coincide com o fim da Embrafilme, responsável por grande parte do financiamento dos filmes da vanguarda. 27 Título original Primary. 28 Título original Chronique d‟un Étè.


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O documentarista do Cinema Direto leva sua câmera para uma situação de tensão e torcia por uma crise (...). O artista do cinema direto aspirava a invisibilidade, (...) desempenhava o papel de um observador neutro. (Barnouw citado por Da-Rin, 2006, p. 150-151)

As questões levantadas pelo Cinema Direto são muito mais complexas do que explanadas pela citação acima, (QUEIROZ, 2010). Canadenses e norte americanos buscavam um cinema que possuísse força através das imagens. A estrutura do documentário deveria se subjugar à visão do observador, assim como o processo do filme. A voz a ser ouvida seria proveniente “apenas” do objeto. Um delator secreto que não abandona a identidade, assim Tiago Machado (2010) denomina o diretor do Cinema Direto. Essa câmera contemplativa mostra sua força imagética através da captura do inconsciente da vida cotidiana. (MACHADO, 2010) Em Don’t Look Back

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(1963), o diretor norte americano D. A. Pennebaker

acompanha o cantor Bob Dylan por três semanas em sua turnê pela Inglaterra. Não é um filme musical. João Moreira Salles (2005) ressalta as sutilezas da obra, que vai além de um retrato de um artista considerado um gênio musical de seu tempo. Em tela vê-se toda complexidade de uma geração demonstrada pelo movimento das ruas ou durante os bastidores dos shows. Para Salles (2005) nenhum outro filme expõe a década de 1960 em suas sutilezas e contradições, dando paralelamente ao expectador a sensação de inserção temporal. Essa característica de pertencimento é descrita por Queiroz (2010) como “interativismo”, que só é possível graças à aproximação, permitindo a câmera, mesmo invisível e observadora, travar um dialogo e, após a montagem, evidenciar e expor da melhor forma possível o pensamento intrínseco dos personagens. O diretor norte americano Wiseman dedicou suas obras à sociedade disciplinar. Esse conceito desenvolvido na primeira metade do século XX pelo filósofo Michel Foucault pressupõe que existem mecanismos impostos pelas instituições como forma de poder, sendo esses exercidos dentro de um espaço físico específico, com o objetivo de disciplinar os indivíduos de uma sociedade. Conceito que permeia as obras de Wiseman, já que o seu principal foco, segundo Machado (2010), são as instituições americanas e as relações de poder. 29

Não possui título em português. Tradução livre: Não Olhe para Trás.


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Titicut Tallies (1967), primeiro filme de Wiseman, vê-se em um manicômio judicial onde se encontra a escória do povo americano: loucos, bêbados, paranóicos e suicidas. Esse filme foi censurado nos EUA, pois retrata – graças a uma montagem primorosa, (Machado, 2010) – a natureza das instituições e a natureza suicida do poder verticalizado. O princípio dos filmes desse diretor está na não interpelação. Logo, a instituição era filmada por ela mesma e ao seguir as regras impostas pelo próprio sistema é possível expor suas falhas. Escolas, prisões e hospitais são vistos através da câmera “mosca na parede”. A expressão se refere à observação contemplativa de um fato, sendo sua participação não influente ou tendenciosa. Tal modo de filmar transforma-se em uma habilidade pela qual o diretor delata a opressão exercida pelo poder verticalizado. Os documentários de Wiseman demonstram sua crença de que após horas de filmagens, a câmera passa a ser ignorada, assim o comportamento do “personagem” corresponde a seu cotidiano.

Cenas de importantes filmes do Cinema Direto, que tenta retratar a realidade com o mínimo de intervenção possível do realizador, respectivamente: Primárias, Titicut Tallies e Don’t Look Back,Imagens retiradas do youtube.

A dissolução da câmera para João Salles (2005) seria possível graças a não utilização de entrevistas, trilha sonora - a não ser som ambiente -, narração e construção de narrativa. A combinação dessa técnica com a versatilidade dos novos equipamentos garantiria ao Cinema Direto uma menor interferência e a presença confortável de uma câmera, sugere João Salles (2005). “O cineasta passaria a apagar os seus rastros na montagem da mesma forma com que, em cena, negava a presença de sua câmera” (MACHADO, 2010, p. 250.) O documentário direto insere diversos elementos técnicos que guiam a narrativa à procura da „sinceridade viva‟. A partir desse ponto, Teixeira (2010) sugere que a ética passa a orientar a filmagem, a montagem e posteriormente, a exibição. Sendo assim, toda a


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estética do documentário – assim como sua produção – é conduzida por um senso ético. (...) não havia necessidade de „rebuscamento‟ (termo de Rosselline) para o tratamento desse material, espesso e multifacetado o suficiente para desafiar e ultrapassar todo o senso de ficção. Foi assim que a dimensão ética, doravante, converteu-se num correlato inextricável da estética (TEIXEIRA, 2006, p.275).

A invisibilidade e o distanciamento são resultados da aproximação teórica entre a antropologia moderna e o Cinema Direto (QUEIROZ, 2010). A observação de uma realidade adversa ao pesquisador/cineasta deve ser feita com certo distanciamento, para que a visão do observador não interfira no olhar nativo. A pesquisa do meio e a observação participante possibilitam essa aproximação sem contaminação. Aproximarse o suficiente para ser afetado e ao mesmo tempo estar distante para se abster de qualquer opinião - dessa forma o pesquisador/câmera se tornaria solúvel ao meio. Tanto nos Estados Unidos quanto na Europa os documentaristas se focam nas teorias sociológicas para embasar as técnicas e a estética de cada vertente. Na França o Cinema Verdade surge pelas mãos de Jean Rouch, cineasta que se assemelha nas idéias e percepção da participação ativa no processo documental de Flaherty, diretor que nos anos de 1920 acaba compreendendo as limitações pretensas da observação parcial. O documentarista do Cinema Verdade tenta precipitar as coisas antes de filmar. Segundo Eric Barnouw (1963) o personagem do Cinema Direto aspira pela invisibilidade no documentário e tenta desenvolver um papel de observador, enquanto o do Cinema Verdade se assume como um participante e provocador. O Cinema Verdade posiciona a sua câmera no conflito do contexto. E faz parte dele. Intervém, indaga, quer ser visto. O documentário se encontra aqui como um dispositivo que não se conforma em apenas observar. Ser invisível não é uma opção e não convence, nem ao menos encontra objetivo em passar a realidade. Essas diferenças passam a render críticas ao Cinema Verdade, proferidas pelo cinema direto dos norte-americanos. De acordo com Sílvio Da-Rin (2006), durante o surgimento destes dois estilos, é apontada uma razão cultural para a distinção entre esses cinemas. O temperamento anglo-saxônico contra o temperamento latino.


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Preocupados com o risco de que uma câmera ligada ou um gravador pudessem interferir diretamente na espontaneidade dos personagens, ou seja, alterar o “real” daquilo que se quer extrair, o Cinema Verdade passa a assumir esse papel de observador participante do processo documental. A partir de um diálogo entre realizador e personagem, começa a se construir uma narrativa do real de acordo com seus diretores. Algumas características técnicas do Cinema Verdade se tornam importantes para criar a identidade dessa nova forma de se pensar e fazer documentários. A influência da sociologia e da etnologia quanto às novas dimensões dos equipamentos usados nas gravações, permitindo assim maior mobilidade, a captação de som direto e a grande intervenção dos próprios realizadores no filme são algumas destas. A partir destas especificidades, Rouch e Edgar Morin filmam em 1960 o documentário Crônicas de um Verão (1960), sendo a primeira materialização dessa nova onda que utilizava diálogos, interação ativa, captação de som direto e equipamentos portáteis. Crônicas de um verão (1960) aparece como uma narrativa que tem como objetivo compreender a concepção de felicidade dos jovens parisienses. As perguntas que regem o filme - „como você é feliz?‟ e „como você vive?‟ - mostram essa intenção dos autores. Ao longo do percurso, temas como política, desespero, tédio e solidão vêm à tona trazendo dimensões reveladoras ao documentário. Os „atores sociais‟, „participadores‟ do filme, se colocam em uma posição em que, como pessoas reais, em sua própria personalidade, começam a se auto dirigir e a interpretar um papel como um reflexo de sua própria personalidade. Um simulacro de suas próprias vidas, elevando seus gestos e trejeitos a um maior nível. Em maior ou menor grau, eles são também criadores do filme. Ao criá-lo, não só criam o filme como criam uma dimensão de si mesmos que não poderia existir sem o filme, dimensão a um tempo só real e imaginária. Através de monólogos, diálogos e discussões coletivas, reagindo a provocações mútuas, em movimentos de atração e rejeição, crítica e autocrítica (...) (DA-RIN, 2006, p. 157).

Em 1963, no MIPE-TV (Mercado Internacional de Programas e Equipamentos de


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Televisão) na França são então apresentadas e discutidas as características do Cinema Verdade francês por Jean Rouch e Edgar Morin e do Cinema Direto (americano) por Robert Drew e Richard Leacock. Morin aponta o Direto como possuidor de uma desconfiança da palavra que contaminava o real e a essência documental. Leacock se levanta contra o Cinema Verdade como prisioneiro do verbo, ignorando a espontaneidade do real e forçando a representação. Drew questiona a pureza do Verdade, por possuir, em seu ponto de vista, um grande grau de interação entre realizador e ator. Com isso, os personagens são moldados e construídos junto ao andamento da produção. Rouch é o último contraponto, acreditando que a câmera ligada e a participação ativa passam a criar no personagem uma postura diferente, e que essa postura também é espontânea, e que traz circunstâncias reveladoras. Edgar Morin acredita que uma simples filmagem das ações não basta. Para ele, o diálogo extrai a verdade escondida ou adormecida nos personagens e traz revelações que não se podem ter no Cinema Direto. Já que a participação do observador é necessária para a realização de todo o processo documental, o Cinema Verdade procura aproveitá-la da melhor forma, segundo eles, de modo que sua interação tenha como conseqüência um resultado mais dinâmico do processo. Eis que a “Intervenção Ativa” surge com a proposta de potencializar a presença do realizador, de dissimulá-la. Como a própria ação de filmar e registrar já sai do campo do natural, do Cinema Verdade, os realizadores desse cinema assumem a partir de então a faceta de interpretação e manipulação das ações que ficam gravadas. Essa exacerbação entre os próprios colaboradores do filme é extraída e instigada pelos realizadores. A verdade é algo que está além da superfície de declarações naturais. Não se tratava de evitar intervir, para que a „realidade dos eventos‟ fosse preservada; tratava-se de fazer da intervenção a condição de possibilidade de revelação, pela palavra, daquilo que estivesse latente, contido ou secreto. (DARIN, 2006, p. 153).

No cinema de Jean Rouch e Edgar Morin são válidas discussões sobre questões dos próprios participantes, – entre eles os próprios realizadores –, divagações, e um peso metalinguístico em momentos de reconhecimento da própria realização do filme. Críticas de trechos já filmados e a observação dos mesmos pelos próprios realizadores.


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Com o áudio de sua voz, em uma gravação em off, Jean Rouch assegura aos espectadores que o filme fora feito não por atores, mas sim por pessoas que viveram tais experiências. O percurso do filme mostraria que, do mesmo modo como a imagem não pode captar verdades objetivas imanentes, tampouco havia verdades interiores latentes a serem verbalizadas. Não que a interação com os personagens provocasse necessariamente respostas falsas (...). A própria vida social é que era concebida como um conjunto de rituais, uma espécie de teatro cujos papéis incorporamos ao nosso cotidiano. (DA-RIN, 2006, p. 154)

Duas cenas em Crônicas de um Verão ilustram vários métodos utilizados e descobertos por Rouch e Morin. A cena em que Marceline caminha sozinha por Paris, entoando lembranças sobre o pai, do qual foi separada em decorrência da guerra, é o primeiro momento em que Jean Rouch utiliza do microfone de lapela em seus filmes. Tendo a mobilidade do microfone para o som direto, a câmera permanece mais distante, dando certa privacidade a Marceline, que recorre às suas lembranças mais profundas, e que, em suas palavras, invoca “um personagem dramatizado criado por Marceline”. (DA-RIN, 2005) A partir desta sequência, que foi comentada pelos próprios participantes do filme, é possível observar uma preocupação em relação ao que era impresso para as câmeras. Marceline admitiu ter atuado naquele momento, e o motivo para tanto era outra cena do próprio filme, anteriormente vista pelo copião, que a havia influenciado. Com isso, a influência da representação e a fluência do real marcam a cena.

Cenas de Cronicas de um Verão que ilustram os métodos descobertos e utilizados por Rouch e Morin. A utilização do microfone Lapela, e a participação dos diretores na cena. - Imagens retiradas do youtube.

Outro momento marcante do filme é a cena em que, sentados em uma mesa, todos os participantes de Crônicas de um Verão, incluindo Jean Rouch e Edgar Morin,


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iniciam uma conversa sobre racismo, desencadeada novamente por Marceline e outro personagem, um jovem negro. As interferências feitas pelos diretores são claramente propositais, evidenciando uma técnica aliada a improvisação e manipulação. Pontuais e específicos, os direcionamentos guiavam os personagens segundo o que Rouch e Morin pretendiam em cena. Ao contrário de um testemunho mecânico dos acontecimentos, o documento é sempre o produto de um processo de manipulação, envolvendo a cada passo um leque de alternativas metodológicas e técnicas, que afinal são opções estéticas. (DA-RIN, 2006, p. 157)

O percurso de Crônicas de um Verão mostrou que nem o Cinema Direto, nem o Cinema Verdade, cada qual com sua peculiaridade, mostram de fato o real, já que as pessoas estão a todo o momento interpretando personagens de acordo com o local e a situação em que elas se encontram. Rouch e Morin chegam então à conclusão de que a vida segue a mesma linha de espetáculo e de encenações que acontecem nas produções audiovisuais.


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3. REPRODUÇÃO, NEGAÇÃO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE: AS DIFERENTES ABORDAGENS DA REALIDADE NO DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO O cinema nasce com o cinematógrafo, mudo e não ficcional. No Brasil não é diferente. Segundo as convenções historiográficas, a primeira filmagem no país foi feita por Afonso Segreto em 19 de julho de 1898, na entrada da baía da Guanabara. Essa filmagem teria sido um travelling pela orla do Rio do tombadilho de um navio emblematicamente chamado “Brésil”. Labaki (2006) aponta que Afonso Segreto, trabalhando ao lado de seu irmão Pascoal, se torna um dos mais ativos diretores brasileiros nas primeiras décadas do século XX, fundando, em 31 de Julho de 1897, juntamente com Cunha Sales, a primeira sala fixa de cinema no Brasil. Para o autor, a filmografia de Segreto exemplifica bem o binômio com que Paulo Emílio Salles Gomes classificou o documentário mudo nacional, chamando-o de O Berço Esplêndido e o Ritual de Poder. O documentário silencioso começa então em 1898 e ocupa quase que com exclusividade as salas de exibições até 1907, estendendo-se até a transição para o sonoro no final dos anos 1920 e começo dos anos 1930. Segundo Labaki (2006), filmes de encomenda financiados pela elite brasileira, registros urbanos de cotidiano e festas (como o carnaval), formam um bom resumo da produção não-ficcional silenciosa no Brasil. Esses filmes eram chamados de cinema de cavação. Por todo o país, alguns nomes começam a se destacar como pioneiros nas produções documentais. É o caso dos irmãos Botelho na então capital brasileira, Rio de Janeiro, Antônio Campos em São Paulo, Aníbal Requião no Paraná, sucedido por João Batista Groff, o alemão naturalizado Eduardo Hirtz do Rio Grande do Sul, Igino Bonfioli e Aristides Junqueira em Minas Gerais, Adhemar Bezerra no Ceará, entre outros. Segundo Labaki (2006), a partir daí, o documentário passou a ser cada vez mais uma forma de descrição, em direção a uma narrativa. Esse fato proporciona ao cinema brasileiro um caráter mais autoral por parte de seus produtores. Luiz Thomaz Reis, por exemplo, se une à Comissão Rondon em 1912 e começa a fazer suas filmagens em 1914. Já o português Silvino Santos se profissionaliza em 1913 nos estúdios Pathé-


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Frères e nos estúdios Lumière, iniciando no ano seguinte seus primeiros filmes de cavação. Silvino Santos se consagra no norte brasileiro com seu documentário No Paiz das Amazonas (1922), passando de fotógrafo diletante a figura central do documentário mudo brasileiro. Apesar de sua extensa filmografia com 7 longas, 5 médias e 83 curtas, apenas No Paiz do Amazonas chegou até nossos dias. As filmagens são realizadas em Manaus, rio Madeira, rio Purus, Apuiá e Maués, no Amazonas; em Porto Velho e na estrada de ferro Madeira-Mamoré, em Rondônia; e na cidade de Rio Branco, no atual estado do Acre. O filme mostra as várias possibilidades de exploração da natureza como forma de geração de riqueza e economia no estado. Realizado no mesmo período que Nanook do Norte, o filme de Santos é comparado ao de Flaherty por Labaki: Nanook of the North é exatamente contemporâneo da obra-prima de Santos. A narrativa fragmentada e o estilo distanciado de No Paiz das Amazonas não alcançam a curva dramática que notabilizou o cinema de Flaherty, mas Santos nada fica a dever a ele na majestade de suas imagens. (LABAKI, 2006, p. 24)

São Paulo, a Symphonia da Metrópole (1929), ao lado do melodrama experimental Limite (1931), de Mário Peixoto, representam o pico máximo do cinema mudo no país. O filme surge a partir de uma nova vertente que se espalhava no meio cinematográfico documental, que era a de mostrar o dia a dia de uma cidade comum, o que ia no sentido oposto das obras até então, que retratavam lugares distantes para mostrar trabalhos que não estavam associados com a rotina social dos grandes centros urbanos. Apesar de grandes obras lançadas nesse período, como Rien que les Heures (1926) e O Homem com a Câmera (1929), a maior inspiração para a produção de São Paulo, a Symphonia da Metrópole, ainda que negada por seus autores, foi Berlim Sinfonia da Metrópole (1927), de Walter Ruttman, como afirma Labaki (2006). Ao se mudarem para São Paulo, Adalberto Kemeny e Rudolph Lex Lusting dão vida a São Paulo, a Symphonia da Metrópole que retrata aspectos da cidade, com suas pouco mais de um milhão de “almas”. O enredo do documentário mostra o trabalho na


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cidade, com foco nos trabalhadores e suas várias especificidades do dia a dia na rotina de um grande centro urbano. O filme também conta com algumas encenações, como quando uma aluna chama a atenção de seu colega de escola por jogar lixo no chão na hora do recreio, ou quando se vê um “flagrante do cotidiano”, numa conversa entre vizinhas, e até quando um grupo de atores relembra o episódio histórico do rio Ipiranga, em 1822.

Cenas de No Paiz das Amazonas e de São Paulo, a Symphonia da Metrópole, destaques entre os primeiros documentários brasileiros. Imagens retiradas do youtube.

Percebe-se que no início do documentário brasileiro dessa época há uma forma de tratar o real muito parecida com os primórdios do documentário, por assim dizer, mundial, tratado no capítulo anterior. Os filmes do gênero são descritivos e não possuem uma narrativa. São filmes que descrevem o Brasil, a partir da observação e descrição da realidade, - é o começo do cinema de “não ficção” no país. Mas é a partir da década de 1960, que se vê de fato uma articulação diferenciada da realidade, com um tratamento mais refinado da matéria prima do documentário. A grande virada do documentário no Brasil acontece a partir do Cinema Novo, vanguarda brasileira influenciada pela Novelle Vague francesa e pelo Neo-Realismo italiano. É possível também identificar a influência do Cinema Verdade em toda a trajetória do Cinema Novo brasileiro. Mesmo nos primeiros filmes documentários da vanguarda brasileira, - como Arraial do Cabo (1959) de Paulo César Saraceni e Aruanda (1960) de Linduarte Noronha, - em que os artifícios técnicos como as câmeras mais leves e os equipamentos de captação de som portáteis ainda eram limitados, é possível identificar características estilísticas do Cinema Verdade, embora estes ainda sejam considerados documentários clássicos. Arraial do Cabo (1959) é considerado um marco na filmografia cinemanovista. É “o primeiro documentário no qual se sente com


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intensidade a atração pela imagem do povo, por sua fisionomia.” (RAMOS, 2004, p.8384). As câmeras portáteis e equipamentos de captação de som revolucionaram a linguagem documental, porém estes equipamentos só chegam ao Brasil em 1962, através do cineasta sueco Arne Sucksdorff, que vem a convite da UNESCO promover um seminário de cinema. O cineasta trouxe dois gravadores Nagra e duas câmeras leves que permitiram a realização do documentário Marimbás (1963) dirigido por Vladimir Herzog.

Arraial do cabo, Aruanda e Marimbas (respectivamente) são representantes de uma mudança importante no documentário nacional, a busca pela identidade do povo brasileiro- Imagens retiradas do youtube.

Os documentários anteriores às mudanças da década de 1960 possuem formato padronizado, bastante contemplativo e que tentavam se aproximar do registro puro, a documentação formal. Arthur Omar foi um grande crítico deste modelo de registro. Acreditando que esse padrão é um modelo insuficiente, que não consegue atingir nem o que se propõe a fazer, que é documentar, escreve um artigo intitulado “O antidocumentário, provisoriamente”, no qual faz suas considerações sobre o documentário e expõe o que seria a antítese do que estavam fazendo na época, o anti-documentário. (RAMOS, 2004 – 1). O anti-documentário é uma ruptura da estrutura do cinema documentário tradicional. Para isso, Omar quebra a hierarquia que organiza os sons e imagens nas produções clássicas, subvertendo, por exemplo, uma das principais características do documentário clássico, a função do narrador. Até então o narrador é responsável por transmitir as principais informações do filme. Sua voz é caracterizada por uma fala pausada e didática, com um timbre grave acompanhado de uma música de fundo que realça ou contrasta com o que é dito pela voz over. As imagens correspondem, de


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forma análoga, à narração, meras ilustradoras do que está sendo dito. Desta maneira todos os elementos (narração e imagem) que compõem a cena possuem a mesma importância dentro do filme. O que Omar propõe em seus filmes é desarticular essa hierarquia, quebrando a lógica da produção. Dessa forma, o cineasta busca causar no espectador choques emocionais, ações sensoriais ou psicológicas, a partir de uma montagem de atrações30. Com isso os documentários do Omar desarticulam a estrutura, aprofundando a experimentação na relação entre imagem e som. Não há referências claras sobre o tema do filme. As imagens e o som seguem um fluxo único, ou seja, não existem imagens e sons análogos, cada um carrega uma carga de informação diferente. Além disso, o anti-documentário volta a usar lâminas legendadas – abandonadas desde o cinema mudo – e fotos completamente paralisadas, o que aumenta a quantidade de informação a ser assimilada e a complexidade dos filmes. Com esta ruptura o documentário tem a composição de sua totalidade a partir da livre associação estabelecida entre seus elementos. Para Omar não importa se a cena é encenada ou não ou se acontece em tempo real ou não, mas sim contrapor o documentário com o próprio documentário. (RAMOS, 2004-1) Os filmes de Arthur Omar que melhor ilustram esta contraposição e que foram denominados pelo diretor de anti-documentários são: Congo (1972) e Triste trópico (1974). Nestes filmes percebemos a ruptura contínua das estruturas do documentário convencional. A relação entre imagem e som causa estranheza à primeira vista, porém essa relação não é aleatória, ou gratuita. Os conflitos de informações gerados são compreendidos dentro do contexto em que o tema é apresentado. (RAMOS, 2004-1). Em Congo, a voz over masculina, grave e solene – própria do documentário padrão – transforma-se na voz de uma menina de nove anos que fala um texto de Mário de Andrade sobre a congada. O texto não é modificado, mas o tom de voz de uma criança é desqualificador para o tipo de conteúdo apresentado. Além disso, é complementado com imagens de terreiros onde a congada não está acontecendo (RAMOS, 2004-1, p. 125)

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Este é um conceito criado por Eisenstein para definir uma montagem que tem o objetivo de provocar sensações


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Após o Anti-documentário, Omar mergulha ainda mais fundo na experimentação com os filmes Tesouro da juventude (1977) e Vocês (1979) que possuem uma linguagem ainda mais abstrata. O som e a imagem não se referem ao tema, mas estão em sintonia. Estes filmes caracterizam a segunda fase de Arthur Omar, a dos documentário-experimentais. (RAMOS, 2004-1)

Cenas de Congo, principal obra do Anti-Documentário, demonstrando a contraposição de cenas do cotidiano, com fotos e cartões de legenda.- Imagens retiradas do youtube.

De acordo com Andréa França (2010), Omar, em seus trabalhos, faz uma aproximação entre o documentário e outras formas de arte como: fotografia, vídeo instalação e artes plásticas, que são influências do cinema de vanguarda da Europa dos anos de 1920. Por isso as montagens fragmentadas, “disrruptiva-associativas”. (FRANÇA, 2010). Com sua forma diferenciada de pensar o documentário, principalmente a partir de um afastamento da representação mecânica da realidade, e aproximação de outras linguagens, Arthur Omar quebra os limites pré-estabelecidos do documentário clássico, agregando e desagregando valores, e com isso influenciando diretamente diversos realizadores do cinema moderno e contemporâneo. Assim como o anti-documentário, o Cinema Novo foi essencial para dar resposta a uma modernização puramente técnica do cinema brasileiro. Estes movimentos agregaram ao documentário novos pensamentos e formas de produção, afastando-se do conservadorismo. E como um dos principais nomes desse movimento, Glauber Rocha, apesar de ser mais reconhecido por suas produções ficcionais, teve grande influência na desconstrução do gênero e formação da identidade brasileira. Apesar da grande influência do cinema verdade no Cinema Novo Brasileiro, Rocha demorou a se

de estranheza e assimilação, sem compromisso com a construção de uma narrativa linear.


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dedicar à produção de documentários, sendo as suas principais produções de 1977 DiGlauber e Jorjamado no Cinema, que sofreram influência direta do Cinema Verdade (Baggio, 2009), foram tão fundamentais na subversão de conceitos e alteração da linguagem do documentário brasileiro quanto os antidocumentários de Arthur Omar. Antes disso, suas primeiras experiências com documentários foram através de trabalhos de encomenda, como Amazonas Amazonas (1965) e Maranhão 66 (1966) “onde desenvolve seu caminho singular, suas pesquisas com a vertente eisensteineana que marcou sua ficção e acompanhou o tom trágico do país.” (MACHADO, 2007, p. 334). Apesar de serem trabalhos encomendados e de estilo clássico, ambos os trabalhos têm características autorais. Em Amazonas Amazonas, apesar de todos os problemas de produção, Rocha insistiu em fazer um documentário que mostrasse a realidade social da Amazônia e se recusou a fazer o que relatou em carta para o produtor Augusto Mendes como “uma série de vistas falsificadas para uma propaganda de turismo”31. Na mesma carta Glauber completa: “agora você veja: sem índio, sem onça, sem cobra, sem vitória régia, sem pescaria, sem seringueiro – não é um filme do Amazonas”. A partir disso, o documentário assume o ponto de vista de Glauber Rocha sobre o território que estava acabando de conhecer.

Cenas de Amazonas Amazonas e Maranhão 66 (respectivamente), primeiros filmes documentais de Glauber Rocha- Imagens retiradas do youtube.

Em seguida, Glauber Rocha foi convidado pelo então governador eleito José Sarney para registrar a cerimônia de sua posse no Maranhão. O resultado é o 31

Glauber Rocha citado por Bentes, Ivana 1997, p.264.


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documentário Maranhão 66. O filme contrapõe a miséria do Maranhão com o discurso eloqüente do governador eleito que se compromete em resolver todos os problemas sofridos pelo estado, como a corrupção, a fome e a violência.

Tomava eu posse no governo do Maranhão e fiz uma ousadia que não deveria ter feito com um amigo da estatura de Glauber Rocha. Eu lhe pedira que documentasse a minha posse. (...) Ele não filmou a minha posse, ele filmou a miséria do Maranhão, a pobreza, filmou as esperanças que nasciam do Maranhão, dos casebres, dos hospitais, dos tipos de ruas, e no meio de tudo aquilo ele colocou a minha voz, mas não a voz do governador. Ele modificou a ciclagem para que a minha voz parecesse, dentro daquele documentário, como se fosse a voz de um fantasma diante daquelas coisas quase irreais, que era a miséria do Estado. (Entrevista do senador José Sarney ao Jornal do Brasil – 25 de agosto de 1981)

Este documentário é o embrião do que viria a ser a obra prima de Glauber Rocha, o longa-metragem de ficção cinemanovista Terra em Transe (1967), considerado “o melhor estudo cinematográfico sobre populismo messianismo e a burguesia nacional” (BENTES, 1997, p.36). Inclusive Glauber utiliza do real em sua ficção ao retirar dois planos do negativo original de Maranhão 66 para utilizá-los na montagem final de Terra em Transe. As cenas do comício real de Sarney foram sobrepostas com as cenas do comício do governador fictício Filipe Vieira. Em 1977 Glauber Rocha lança o premiado32 e polêmico curta-metragem DiGlauber, ou como é dito nos primeiros segundos de filme “Di Cavalcanti – Ninguém assistirá o enterro de tua última quimera; somente a ingratidão, aquela pantera, foi tua companheira inseparável”33. Também conhecido pelos títulos Di Cavalcanti, Di Glauber, ou apenas Di. O filme nasce após Glauber Rocha tomar conhecimento da morte do pintor Di Cavalcanti pelo rádio, como explicado no próprio filme “e naquele dia, então, acordando de manhã, venceu o impacto da notícia que o Di morreu e resolvi fazer um filme...” (TEIXEIRA, 2004, p. 151). Com uma câmera e filmes emprestados, Glauber Rocha e o fotógrafo Mário Carneiro se dirigiram ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro onde estava sendo realizado o velório de Di Cavalcanti. Glauber Rocha “faz da 32

Ganhou o prêmio especial do Júri do XXX Festival de Cannes. Nas primeiras falas do filme, Glauber Rocha coloca dois títulos. O primeiro alude ao nome do pintor e o segundo é uma citação adaptada dos primeiros versos do poema de Augusto dos Anjos, Versos Íntimos. 33


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morte uma festa”

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. As filmagens causaram protestos e indignação por parte da família

do pintor, que mantém o filme censurado até os dias de hoje. Ao filmar a morte real, Glauber derruba mais uma barreira da representação da realidade. André Bazin (1992) afirma que o ato de filmar a morte real e o sexo explícito deveriam ser limites a não se ultrapassar sob risco de promover a “pornografia ontológica”. Contudo, não é isso que acontece em Di Glauber, ao filmar o enterro de Di Cavalcanti. Glauber não faz do espectador um voyer da morte, mas recria a realidade transportando-o para um ritual que revive o pintor. (MATTOS, 2004) No momento em que Glauber decide filmar a “morte” é como se ele se distanciasse dela para poder tratá-la como objeto. A total liberdade do cineasta em filmar o que lhe convém, e da forma que lhe convém, faz com que ele rompa com todos os padrões estéticos não só de um documentário, mas ainda de um documentário sobre a morte. (MATTOS, 2004 p. 169)

Devido a sua montagem não linear e, em alguns momentos, quase aleatória, o documentário é apresentado de forma fragmentada. Sua unidade estética está justamente no caos de sua montagem. “As imagens possuem uma autonomia e o som também. O filme é composto por uma sucessão de imagens autônomas, que justapostas dão um sentido original ao documentário”. (MATTOS, 2004 p. 163) Segundo Siqueira35, o documentário é estruturado em duas partes. A primeira quando Glauber evoca a obra e a pessoa de Di Cavalcanti através das cenas de seu velório, de notícias dos jornais e da imagem da sensualidade do negro em seus quadros e metaforicamente representado por Antonio Pitanga36, imagem da obra de Di, alternadas com a leitura do poema Balada de Di de Vinicius de Morais, narrações de situações que Di e Glauber vivenciaram juntos, como a visita de Roberto Rosselini ao Brasil, e homenagem a outros mortos como JK, Jango e Paulo Pontes. A segunda parte trata do sepultamento

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Jean-Claude Bernardet citado por Mattos, Tetê 2004 p. 158. Servulo Siqueira, Di Cavalcanti e o Documentário. Filme e Cultura, n.34 Jan./Mar., 1980, p 32-33. Citado por Mattos (1997). 35

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Antonio Pitanga é um ator brasileiro, nascido em Salvador, 1939, seu nome verdadeiro é Antonio Luiz Sampaio.


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no Cemitério São João Batista, com a trilha sonora de Jorge Bem com a música Babaraúna, Ponta-de-lança Africano. Neste momento Glauber Rocha chama a vida de volta a Di Cavalcanti, fazendo referência à mítica indígena de que a morte é a passagem para o verdadeiro ser, que será sempre lembrado por sua obra. E encerra o ciclo da mesma forma como ele se iniciou, feliz, glorioso, sensual e generoso. A figura do narrador tem uma importância singular em Di-Glauber. Apesar de boa parte do áudio ter sido gravado no momento da filmagem, a presença do som direto é inexistente. A montagem do áudio é tão aleatória e não linear quanto a montagem das imagens. As músicas e voz em off são determinantes para a construção da narrativa do filme. Em Di-Glauber, o áudio introduz uma mudança radical na forma de se fazer documentário no Brasil. A voz em off, diferente do que acontecia no Documentário Clássico, se aproxima do telespectador, interpreta personagens, intervém na cena, fala do filme, de si mesma e faz comentários pessoais sobre os acontecimentos. Apesar de não existirem referências ao cineasta como narrador do filme, o telespectador não tem dificuldades em identificar que é Glauber Rocha, seja por sua voz ou pela forma como narra os acontecimentos.

Cenas de Di-Glauber, que mostram os diferentes momentos do filme. Na primeira imagem o chocante close-up do rosto de Di Cavalcanti morto, a segunda com Antonio Pitanga representando a sensualidade dos negros presente nos quadros de Di Cavalcanti, e a terceira o cortejo liderado por Glauber RochaImagens retiradas do youtube.

Já nos primeiros planos do filme, a narração em off se refere ao próprio filme. É uma introdução metalinguística do que estaria por vir mais à frente. A primeira narração em off menciona o título do filme como um crédito inicial e em seguida, com uma entonação radiofônica e debochada, é lida a manchete do Jornal do Brasil que se refere às filmagens do velório: “Filmagem causa espanto e irrita filha e amigo”. Essa informação é alternada com instruções do diretor ao fotógrafo “1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9,


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10, 11, 12, e corta! Agora dá um close na cara dele”37, e leitura da matéria que descreve os trajes que o cineasta estava vestindo durante as filmagens. A trilha tem o tom fúnebre de Floresta do Amazonas de Heitor Villa-Lobos. A primeira virada do filme se dá a partir da leitura do poema Balada de Di, que se inicia junto à mudança da trilha para o chorinho Lamento, de Pixinguinha, sobreposta a imagens do ator Antônio Pitanga dançando em frente aos quadros de Di Cavalcanti. Esse segundo bloco de imagens e sons ainda é intercalado a todo o momento com o primeiro. O início da marchinha O teu cabelo não nega, abre espaço para um terceiro momento do filme, onde a voz em off narra as diversas vivências que Glauber Rocha teve juntamente com o pintor em um tom informal e com muita intimidade, descrevendo situações em que eles se encontraram com outras figuras ilustres como Vinicius de Morais e Roberto Rosselini. As imagens variam entre cenas do velório, quadros de Di Cavalcanti, imagens de livros e jornais da época, cenas do próprio Glauber no Museu de Arte Moderna e cenas dos bastidores do documentário, onde se montam os créditos finais. Neste momento Glauber é tão personagem de sua obra quanto Di, confundindo o sujeito e o objeto de seu trabalho. Uma nova virada acontece quando as imagens passam do velório para o enterro, neste momento a narração torna-se ainda mais fragmentada e dionisíaca, as falas são sobre a crítica escrita por Frederico de Morais a respeito da obra de Di Cavalcanti. As falas que se alternam entre a leitura do texto, comentários e críticas irreverentes do próprio texto e da obra de Di pela perspectiva do cineasta, são colocadas de forma com que uma interrompa a outra com entonações diferentes. Ao fundo a música Ponta de Lança Africano, que por vezes também interrompe as falas e transforma completamente o clima da imagem, que torna o enterro num verdadeiro carnaval. Só é possível perceber uma voz diferente na narração nos créditos finais do filme, quando uma voz interpreta o que seria um depoimento de Di Cavalcanti. Mesmo neste momento a voz é interrompida sucessivas vezes pela voz do cineasta que parece estar dirigindo aquela locução. Os créditos são compostos por colagens e nomes

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Trechos do filme Di Glauber (1977).


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escritos a mão em um grande painel em que a câmera passeia procurando pelos nomes até chegar à palavra “FIM”. A confecção desse painel é mostrada durante o filme, reforçando seu caráter metalinguístico e de auto-reflexão. Foi também na década de 1970 que Eduardo Coutinho se descobre como documentarista muito graças a seus anos de Rede Globo. Mais precisamente em 1975, quando começa a trabalhar no programa Globo Repórter. Em meio a ferrenha ditadura, a Rede Globo de Televisão realizava um programa semanal aos moldes de documentário, realizado por cineastas como Eduardo Coutinho, Maurice Capovilla, Jorge Bodanski, Walter Lima Jr., João Batista de Andrade, Hermano Penna e Sílvio Beck. A própria ditadura militar influenciou a produção do Globo Repórter. A liberdade dentro da emissora era maior justamente pela repressão que havia externamente no país. Entre outros aspectos, a sede do Globo Repórter não era a mesma da emissora. A produção tinha menos controle também devido à maneira de gravação, em película reversível, método que exigia que a montagem fosse feita no próprio filme. Mesmo com essas vantagens, a produção nacional do programa ainda era pequena em seu começo, além de ser muito criticada por seus companheiros do Cinema Novo, sendo que para a época, produzir em televisão e especialmente na Rede Globo significava uma cumplicidade com a ditadura. No cinema da década de 1970 os aspectos políticos eram decisivos e nada que a televisão oferecesse estava de acordo com nenhum valor político ou estético que interessava ao cinema brasileiro. Apesar

de

algumas

dificuldades,

Eduardo

Coutinho

se

descobriu

um

documentarista e aprendeu tudo o que deveria durante nove anos de trabalho no Globo Repórter. Foi redator, editor e diretor de vários programas e seis documentários de média metragem, entre eles Seis dias em Ouricuri e Superstição (ambos de 1976), O Pistoleiro de Serra Talhada (1977), Theodorico, Imperador do Sertão (1978), Exu, uma Tragédia Sertaneja (1979) e o Menino de Brodósqui (1980). Já em seu primeiro programa como diretor, Seis dias em Ouricuri (1976), é possível notar que apesar da censura Coutinho já demonstra através da filmagem e da edição, um trabalho autoral. Ainda não existia a figura do repórter no programa, que era narrado em off. Além da censura do conteúdo a ser abordado em geral, também não era permitida a revelação da equipe em enquadramento e nem qualquer palavra do


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diretor, muito menos de sua equipe. É em Theodorico, Imperador do Sertão, ainda no Globo Repórter, que Eduardo Coutinho se define esteticamente como diretor. Em 49 minutos de documentário, pela primeira vez se vê uma narrativa de planos longos, sem nenhuma narração e centrada em um só personagem, o “major” Theodorico Bezerra. O político, então deputado federal no Rio Grande do Norte, era fazendeiro e parte da elite rural brasileira, um líder autoritário, um típico coronel do sertão. A partir deste filme, o cineasta desenvolve o seu cinema. Theodorico figura como o primeiro personagem no rol de tantos outros do cinema de Eduardo Coutinho. O que pode ser visto em comum entre eles é o objetivo de mostrar o personagem sem julgamento prévio, como quem quer entender as razões de tal indivíduo, mas sem necessariamente lhe dar razão. Dentro deste universo é importante também deixar claro que o material visto é um documentário, algo planejado e não a realidade. A partir disso, Coutinho tem uma trajetória fluida entre seus filmes, caminhando sobre vários personagens, sem ter algum padrão específico, porém mantendo sempre a mesma metodologia em seu dispositivo. Para o diretor, o cinema não trata de inspiração, mas sim de trabalho intenso, planejamento e reflexão sobre o mundo e a sociedade. Do Cinema Novo ele apropria o baixo custo para realizar um filme. Através de equipamentos de baixo custo, ele anula a distância entre o realizador e o personagem, colocando também em quadro câmeras e operadores dos demais equipamentos, produtores e ele próprio. Outro aspecto característico de seu cinema é a direção sem roteiros, assim criando uma atmosfera de possibilidades originais e de criação de algo realmente inesperado, sem reproduzir clichês. Por mais que pareça improviso, sua metodologia está presente em todas as etapas de realização. Seus filmes não possuem roteiro por um motivo metodológico, mas nem por isso deixam de ser planejados. O documentário que se utiliza de dispositivos é visto no cinema de Coutinho com a pesquisa do tema, planejamento de produção e do seu próprio método de entrevistar os personagens escolhidos. Esses aspectos se tornam guias de limite para a filmagem. O rigor de Coutinho não é o de engenheiro, mas o de jazzista. Dominam-se as regras da improvisação, mas não as do improviso. (...) Face a face com seu


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personagem, Coutinho vai construindo uma história a dois - a voz e o ouvido comandando em partes iguais a narrativa -, cujo desfecho não há como conhecer de antemão. (SALLES, JOÃO, 2004 Pág. 8)

O documentário não tem o dever de retratar qualquer verdade ou defender politicamente algum tema. Para ele, seus documentários filmam a realidade individual dos personagens. Independentemente de serem filmados na favela, no lixão, no sertão do Brasil ou em um condomínio predial, o que conta para Coutinho é a história do indivíduo, e como essa história dialoga com o todo. A exceção de Eduardo Coutinho nos anos 1960, Cabra Marcado para Morrer, seria um filme de ficção, mas foi interrompido pelo golpe militar, em 1964 e só retomado por Coutinho no final da década de 1970, 17 anos depois de seu início, como um documentário. Cabra Marcado para Morrer seria uma ficção sobre a história real de um assassinato de um líder camponês e já figurava como lenda do cinema brasileiro nos anos 1960 após perseguições aos envolvidos e apreensão de material pelo governo. Foi retomado por um desejo visceral de seu realizador. Assim, Coutinho retornou ao lugar de filmagem para procurar os camponeses que estavam nas imagens de 1964. O filme manipula constantemente o exercício da memória. O material gravado em 1964 foi resgatado mais tarde em copiões. A partir desse material, a intenção de Coutinho para o que veio a ser o produto final se mostrou contar a história dos personagens marginalizados nessa primeira “versão” do filme. A memória dos próprios camponeses é pontuada por uma narração em off durante o filme, feita pelo próprio Coutinho. Um contraste da memória pessoal com a memória coletiva para refletir essa diferença, uma reestruturação do filme feito na década de 1960. E todo esse exercício de memória nada mais é do que um dispositivo para atingir outros níveis de realidade, com a contraposição de cenas do filme de 1960 às imagens documentais do fim da década de 1970. Uma manipulação e uma re-ambientação de uma história adormecida, que deveria ser recriada.


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Cenas do filme Cabra Marcado para Morrer e cenas do copião original do filme de ficção são alternadas às entrevistas do documentário filmado no final da década de 1970.- Imagens retiradas do youtube.

A inserção do realizador no filme não se faz apenas no enquadramento. Há uma inserção dramática, um compartilhamento emocional de Eduardo Coutinho com aqueles camponeses. Era seu desejo voltar ao nordeste e terminar o filme e só ele poderia fazêlo. Na montagem final de Cabra Marcado para Morrer de 1984 são inclusos os copiões de 1964, reportagens da época do filme, fotografias e recortes de jornal, imagens do processo de filmagem em 1984 e também cenas da exibição do filme para a comunidade de camponeses. Dialoga com vários métodos cinematográficos e passa então a ser sobre todo o processo do filme. Um documentário sobre personagens de um filme produzido há décadas. Torna-se um marco no cinema brasileiro. Diante da eterna oposição entre platônicos, partidários das idéias gerais, e aristotélicos, fiéis à realidade única das coisas concretas e singulares, Coutinho não hesita. É um antiplatônico radical, mais até do que um aristotélico. (SALLES, JOÃO 2004, Pág. 9)

Quinze anos depois de Cabra Marcado para Morrer, Santo Forte (1997) foi o responsável por restaurar a carreira do documentarista. O documentário coleta depoimentos religiosos de personagens moradores da favela Vila Parque da Cidade, no bairro da Gávea, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Os 80 minutos de filme são amparados por uma missa celebrada pelo Papa João Paulo II no Aterro do Flamengo, e pela ceia de Natal no dia 24 de dezembro de 1997.

Umbandistas, evangélicos e

católicos imprimem nas lentes de Eduardo Coutinho uma intimidade e ligação com o espiritual e sobrenatural. Foram necessárias duas visitas à locação única do filme. Primeiro foi acompanhada a missa pela televisão, em outubro de 1997, e em dezembro a equipe retorna à favela para recolher outros depoimentos. A idéia para o documentário surgiu de uma pesquisa para uma série educativa para uma televisão do


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Rio de Janeiro. Foi percebido que o tema religião era algo que deixava as pessoas mais confortáveis do que outros temas como sexo e ética. Além disso, Coutinho não viu necessidade de filmar em outras locações, já que a Vila Parque da Cidade apresentava bastante diversidade em termos religiosos. O filme, a gosto de seu diretor, é predominantemente falado e descritivo. É neste filme que Coutinho estabelece seu método documental próprio. O dispositivo de entrevistador e entrevistado, o uso do vídeo e a pesquisa prévia de sua equipe são estabelecidos em sua atuação como documentarista. A palavra “dispositivo” é entendida aqui como procedimento de filmagem. É definida assim por Eduardo Coutinho durante seus projetos. O artista/diretor constrói algo que dispara um movimento não presente ou préexistente no mundo, isto é um dispositivo. É este novo movimento que irá produzir um acontecimento não dominado pelo artista. Sua produção, neste sentido, transita entre um extremo domínio - do dispositivo - e uma larga falta de controle - dos efeitos e eventuais acontecimentos. (MIGLIORIN, 2005.)

Coutinho em Santo Forte percebe que o vídeo é seu melhor aparato de gravação, pois, ao contrário do filme, proporciona mais tempo ao personagem, ao contrário dos 11 minutos de filme que podem interromper seu objeto, não oferecendo o tempo necessário para sua reflexão e desenvolvimento. Era necessário o movimento, o tempo morto. O filme começou em outubro de 1997 com três pesquisadores da equipe de Coutinho juntamente com uma moradora da comunidade. Foram entrevistados cerca de 40 moradores. É fundamental para o cinema de Eduardo Coutinho uma pesquisa prévia para que a produção encontre em seus personagens contadores de histórias. Não entra em questão se sua história é real ou ficção, mas sim se ela é de interesse ao propósito do filme e se ela é bem contada e articulada. Aqui se percebe claramente a influência que o Cinema Verdade exerce no documentário de Eduardo Coutinho. Assim, o diretor só entra em contato com seu entrevistado no momento da entrevista. Este dispositivo tem como objetivo manter um frescor de seu objeto, tendo apenas um relatório prévio de sua equipe sobre o personagem. E é a partir do encontro entre eles e a câmera que Coutinho conduz seu personagem. A partir deste dispositivo, reforçado pela


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aproximação de seu entrevistado, pela necessidade de ouvir que já era utilizada em filmes como Theodorico, o Imperador do Sertão (1975) e Cabra Marcado para Morrer (1984), em Santo Forte esse método se torna mais claro. “É como se o diretor se desse conta, e nesse filme de uma vez por todas, que não há como „dar voz ao outro‟, porque a palavra não é essencialmente 'do outro'” (LINS, 2004, p 108). O recurso do “cinema-conversa” é recorrente na obra do diretor, que procura a espontaneidade e a expressão singular na fala dos indivíduos. Trazendo novas particularidades para o cinema de Coutinho, Edifício Master (2002) propunha um desafio ao tirar do primeiro plano o “acontecimento verbal”, identificado nos personagens. Até então, de acordo com Lins (2004), o diretor privilegiava as pessoas que sabem contar bem as suas histórias, aquelas que contam sobre si com desenvoltura. Além disso, Coutinho escolheu para este trabalho um novo campo social: a classe média. Dessa vez o diretor não tinha nas imagens o apoio jornalístico que conseguia ao tratar da classe baixa. Os pobres eram notícia, a classe média era comum. Segundo ele, a classe média não era representativa, não era nada e não pode mudar nada, ela é uma das estratificações mais impotentes, é um “zero absoluto”38. Ao definir o edifício Master como locação, Coutinho e sua equipe realizaram uma pesquisa no período de três semanas. Sem critérios para a escolha dos entrevistados, decidiram entrevistar todos os moradores que quisessem falar. Daí surgia um problema. Observando os moradores, a equipe duvidou de que os depoimentos seriam interessantes o suficiente para render um filme. O diretor e sua equipe passaram por momentos de hesitações, mas persistiram na ideia. Posteriormente, Eduardo Coutinho teve que lidar com outras dificuldades que surgiram particularmente do embate entre sua obra e o que a televisão apropriou dela ao criar reality shows, além dos programas sensacionalistas e outros que também exploram a exposição da intimidade. Este outro “tratamento do real” batia de frente com seu dispositivo e olhar cinematográfico. Essa era a base de seu trabalho – exposição da intimidade, – principalmente no Edifício Master, ao capturar entrevistas de pessoas reais e suas “existências banais”. A

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Citado por Lins (2004).


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diferença entre o cinema de Coutinho e as produções televisivas nesse âmbito está no fato do diretor escolher e utilizar a pureza das emoções captadas em cada entrevista realizada, dispensando roteiros prévios e a manipulação para a produção de sua obra. Dessa forma, seu cinema é caracterizado também pela profundidade e sensibilidade ao expor a realidade dos entrevistados. (LINS, 2004)

Cenas de Santo forte e Edificio Master – Filmes que demonstram a consolidação dos dispositivos de delimitação do espaço a ser filmado e do “cinema-conversa” de Eduardo Coutinho - Imagens retiradas do youtube.

Em Edifício Máster (2002), Eduardo Coutinho faz os recortes da realidade vivida de cada um dos trinta e sete personagens apresentados no filme. Coutinho defende a ideia de que é impossível filmar o real, uma vez que ele é efêmero, está em constante transformação, e o que é filmado é a interação da câmera e do diretor com a realidade em que está inserido. O diretor afirma que por mais que o objetivo seja a verdade dos fatos, a equipe de produção, no meio em questão, inevitavelmente interfere na realidade. “O documentário que interessa não reflete, nem representa a realidade, e muito menos se submete ao que foi estabelecido por um roteiro. Trata-se antes, da produção de um acontecimento especificamente fílmico, que não preexiste à filmagem”, (LINS 2004, p.12). Dessa forma, a equipe entrava em um universo único a cada apartamento que tomava como ambiente para realizar a entrevista. Coutinho utiliza em Edifício Máster a entrevista como a forma dramática exclusiva, ou seja, propõe ao entrevistado apenas sua exibição à câmera parada, provocando uma cena onde inevitavelmente os entrevistados encenariam sobre si mesmos. A ação diante da câmera é influenciada também através da conversa do personagem com o cineasta, interação entre entrevistado e entrevistador.


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Às vezes você intervém e faz a pergunta boa; às vezes você faz a pergunta errada; às vezes eu não falo e sinto que devia ter falado. Você erra a todo o momento. Erra e acerta. Não há ciência nisso. Às vezes uma pergunta imbecil gera uma resposta absolutamente fantástica. Ou você dubla, o que eu sou contra, ou vai assim mesmo. Agora, o pior de tudo é quando você simplesmente não respeita o silêncio, que podia dar em alguma coisa, porque fica ansioso demais. Mas é muito difícil, pois a pessoa pode estar sofrendo... (Coutinho, citado por Lins, 2004, p. 150).

Em Edifício Máster (2002), Eduardo Coutinho mostra ao público sua equipe de produção e filmagem chegando ao prédio logo no início do filme, através dos registros da câmera de vigilância. Ou seja, ele deixa claro ao espectador que aquilo não é propriamente o registro do real, mas sim uma gravação do encontro de uma equipe de cinema com um determinado ambiente (VIEIRA, 2005). Durante todo o documentário, entre uma entrevista e outra, a equipe aparece agindo. Seu deslocamento é mostrado e o próprio diretor aparece nas imagens. Tanto a objetividade da espera pelas entrevistas quanto o olhar subjetivo do diretor são facilmente percebidos pelo espectador. Quem assiste ao filme é capaz de perceber que o que está sendo feito é uma invasão de privacidade, é claramente um recorte da realidade daquele universo e da vida daquelas pessoas (LINS, 2004). As personagens são utilizadas no filme para questionar o próprio documentário, o que dá a característica de filme auto-reflexivo, geralmente marcante nas obras de Coutinho. Em frente à câmera cada um faz uma performance e, dessa forma, é impossível ter controle da veracidade dos fatos relatados pela personagem, mas é possível refletir sobre eles. Como exemplo, na entrevista da garota de programa Alessandra, a personagem revela ser uma “mentirosa verdadeira”, dizendo ainda que para se mentir bem é preciso acreditar na mentira. Isso levanta questionamentos acerca do gênero documental, assim como o depoimento da última garota entrevistada, Sarita Houli Brumer, que afirma se imaginar ser um nada como pessoa, levando a uma possível reflexão de que “é impossível concluir a vida de um personagem, uma história e o próprio documentário” (VIEIRA, 2005).


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Cenas de Jogo de Cena – Imagens de personagens reais, e atrizes interpretando as personagens reais ou elas mesmas. A segunda imagem é de uma atriz cuja personagem não está no filme - Imagens retiradas do youtube.

Coutinho foi pioneiro ao utilizar o artifício dos dispositivos em documentários. Na sua concepção, a criação de um dispositivo é mais importante que a escolha do próprio tema, mesmo que o artifício não dê a garantia ou qualifique a existência de um filme. Em seu décimo longa-metragem, Coutinho utilizou o meio da publicidade para dar início ao processo de escolha de personagens do filme. Em um jornal da cidade do Rio de Janeiro o diretor publicou um anúncio procurando mulheres interessadas em contar suas histórias de vida. Oitenta e três mulheres deram seus depoimentos e, dessas, vinte e três foram selecionadas, em junho de 2006, e filmadas no Teatro Glauce Rocha. O filme começa com a narração do diretor explicando como se deu esse processo de seleção. Segundo Coutinho, Jogo de Cena (2007) é um documentário “impuro”, uma vez que incorpora atrizes conhecidas pelo grande público atuando como personagens de um documentário. Já no primeiro depoimento, o espectador se depara com uma atriz narrando sua suposta história. Misturando ficção e realidade, os depoimentos são repetidos, fragmentados e intercalados ao longo do documentário, ora com o discurso de mulheres comuns, ora com o discurso das atrizes famosas. As atrizes também foram convidadas a misturar depoimentos pessoais, contando fragmentos de suas próprias vidas, além de encenar, alterar e re-inventar os discursos ditos “reais”, feito pelas mulheres não-atrizes. Assim a narrativa se constrói confundindo o espectador ao julgar fatos como sendo verdade ou mentira (RODRIGUES, 2009). Dessa forma, Eduardo Coutinho em Jogo de Cena reforça sua ideia de que, mesmo nos documentários, o que se vê é uma ficcionalização, uma representação da verdade.


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O que está em discussão é o caráter da representação. Representar está ligado a brincar, jogar - o que aparece claramente em línguas como o inglês (to play), o francês (jouer) e o alemão (spielen). “[...] Neste filme, o jogo a ser jogado inclui pelo menos três camadas de representação: primeiro personagens reais falam de sua própria vida; segundo, estas personagens se tornam modelos a desafiar atrizes; e, por fim, algumas atrizes jogam o jogo de falar de sua vida real.” (COUTINHO, 2007).

Com sua proposta inovadora, Coutinho apostava na fuga dos estereótipos, tanto das personagens não-atrizes quanto das atrizes, e que de alguma maneira pudessem, cada qual à sua maneira e dentro do limite do jogo, se mostrar indivíduos singulares. Algumas atrizes tornaram-se vítimas dessa confusão, como, por exemplo, Andréa Beltrão, que se emocionou e misturou espontaneamente sentimentos reais com os sentimentos interpretados. Já Fernanda Torres modifica o discurso previamente decorado para encenação incluindo experiências pessoais e íntimas, como quando contou que precisou recorrer ao candomblé para conseguir engravidar. Outras atrizes, propositalmente ou não, pareciam não ter decorado o texto. Ao escolher o teatro como cenário durante todo o filme, o diretor brinca ainda mais com as noções de realidade e ficção experimentadas tanto pelas personagens quanto pelos espectadores. A cada quadro aparece uma personagem sentada numa cadeira de frente para Eduardo Coutinho e de costas para a platéia do teatro. Para todas, o mesmo esquema. Assim, cada personagem tem as mesmas regras do jogo. Diante disso o espectador sente o incômodo da incerteza, já que é praticamente impossível identificar o que é real e o que é interpretado. Cada diretor possui “método próprio”, como sugere Labaki (2005), de representar a realidade dentro do documentário. Eduardo Coutinho valoriza as experiências pessoais de seus personagens através das entrevistas e dos dispositivos criando certo controle no acaso. Coutinho propõe a possibilidade de transbordar a subjetividade do objeto, a partir da exploração da individualidade de seu entrevistado. Apesar de não possuir grandes inovações em sua linguagem cinematográfica, inova pela forma como aborda seu objeto e lida com a realidade. Por sua vez o diretor João Moreira Salles, apesar de também ser influenciado pelos movimentos do Cinema Verdade e Direto, se reinventa a cada filme. Suas produções provêm de diferentes referências, o que revela as múltiplas vertentes


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técnicas utilizadas no documentário ao longo da historia (LABAKI, 2005). As primeiras produções do carioca João Salles eram voltadas para TV sendo em sua grande maioria séries e especiais. Em 1987 fundou junto com Walter Salles a produtora VideoFilmes. Em 1998 inicia sua carreira como documentarista que inclui nove filmes. João Salles produziu e co-dirigiu – juntamente com Artur Fontes39 – três episódios da Trilogia Futebol. Essa obra documental integra a série Futebol, produzida para o canal GNT, com a participação de diversos diretores. No episódio sobre o exjogador Paulo César Caju, houve problemas como a falta do entrevistado. A solução foi a utilização de imagens das ligações de celular feitas ao jogador pela produção. Essas seqüências são usadas nos momentos considerados “fracos”, dando significado às pequenas ausências (LINS 2008).

Miguel Pereira (2005) comenta que os acasos,

limitações de produção e imprevistos muitas vezes possibilitam ao diretor criar momentos dinâmicos dentro das narrativas documentais. Isso gera consequentemente uma melhor apresentação de uma personagem ou tema. Em 1999, João Moreira Salles e Kátia Lund co-dirigem: Notícias de uma Guerra Particular. O filme retrata a “guerra” entre criminosos e traficantes com a polícia carioca. É importante observar que o filme é mais do que tiroteios e perseguições, ele faz uma análise sobre a questão da violência no Rio de Janeiro, que sempre foi relacionada ao tráfico de drogas (LINS, 2008). João e Kátia escutaram apenas os envolvidos nos casos: os traficantes, policiais e a comunidade, abordando a realidade de forma diferenciada de muitos documentários, como no Ônibus 174 de José Padilha e Felipe Lacerda, em que os diretores ouviram pessoas com uma perspectiva externa e especializada.

Cenas de Notícias de uma Guerra Particular, Nelson Freire e Entreatos - demonstram a capacidade de 39

Arthur Fontes é diretor e produtor brasileiro.


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João Moreira Salles de experimentar novas linguagens e formas de se relacionar com seu objeto a cada filme que realiza. Imagens retiradas do youtube.

As entrevistas e os enquadramentos demonstram o intervencionismo do diretor e uma presença constante da câmera. A impossibilidade de mudança é o condutor do filme. Esse viés é afirmado no aparecimento dos personagens, sejam esses traficantes, policiais ou moradores dos aglomerados. Todos são reféns da violência, presos e sem possibilidade de fugirem dessa sina (LINS, 2008). Segundo a autora, Notícias de uma Guerra Particular, por expor a violência no Rio de Janeiro e incluir questões fundamentais sobre as drogas, tráfico e contrabando de armas é parâmetro para muitos filmes ficcionais que vieram após ele, como: Cidade de Deus (2002) de Fernando Meireles e Kátia Lund, e Tropa de Elite (2007) de José Padilha. Em Nelson Freire (2003), João Salles privilegia os silêncios, e os intervalos do músico, revelando sutilmente o pensar e agir de Freire. Esse foi o primeiro documentário de João Salles a estrear no cinema. O filme demonstra o artista em suas apresentações e ensaios e paralelamente narra a história do músico desde a época da infância até a fama. Carlos Calil (2005) denomina o pianista como sendo um “sujeito anti-documental”. Freire é reticente, tímido e introspectivo. É exatamente nos olhares e gestos que o diretor encontra a profundidade e densidade, o que torna esse documentário a representação de uma realidade calcada no não-verbal (CALIL, 2005). (...) Estamos diante da performance da solidão, mas não da solidão, porque havia uma câmera ali para filmar essa ausência e para produzir esse efeito do “estar só”. Uma presença para produzir ausência. (EDUARDO, 2007)

Miguel Pereira (2005) aponta a dificuldade de se retratar a política devido a gama de significados e abordagens desse objeto dentro do cinema contemporâneo brasileiro. Em Entreatos (2004), João Salles registra em 240 horas os últimos meses da campanha para presidência do candidato Luiz Inácio Lula da Silva. As filmagens são feitas em espaços físicos diferentes – nos bastidores, nas viagens de avião ou de carro, em quartos de hotéis. Apresentar Lula em cenas apolíticas é uma escolha feita pela direção. Essa característica dá ao filme um caráter mais íntimo, apesar de tratar de um personagem tão conhecido no Brasil. Por essa característica, Entreatos faz com que se


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esqueça de que é um documentário sobre um candidato à presidência, já que o documentário se sustenta na história de um homem, deixando em segundo plano a política (PEREIRA, 2005). João Salles utiliza a desenvoltura e a presença de Lula perante as câmeras para representá-lo como um sujeito carismático, vitorioso, maduro e seguro de sua vocação.

Cenas de Santiago – Uma Reflexão Sobre o Material Bruto, demonstram a auto-reflexão, e o amadurecimento de João Moreira Salles diante ao filme que fez, e que poderia ter feito.- Imagens retiradas do youtube.

O último trabalho documental de João Moreira Salles é Santiago – Uma Reflexão Sobre o Material Bruto (2007), rodado em 1992. Cinco dias de filmagens resultando em nove horas de material retratando um personagem: Santiago, argentino e ex-mordomo da família Salles. Com imagens milimetricamente enquadradas na casa de seu aposentado mordomo, o material é deixado de lado após sua gravação. Em 2005, treze anos depois, João Salles, ao rever o material bruto, decide finalizá-lo. Apoiado na autocrítica o diretor repensa a estrutura e modifica a montagem. Para Lins (2008), o cineasta passa a evidenciar as camadas, os enganos e o não dito. O ideal de transparência é deixado de lado em alguns momentos, e João Salles comenta em off sobre as filmagens: “É difícil saber até onde íamos para (alcançar) o quadro perfeito, da fala perfeita”. Com a nova edição o filme, assim como João Moreira Salles, parece caminhar em encontro a Santiago. O processo do filme é ressaltado e exposto, refletindo a crença de João Salles (MIGLIORIN, 2007). Santiago demonstra que o documentário pode ser construído sobre o outro, e paralelamente, discursar sobre si próprio. Todo documentário encerra duas naturezas distintas. De um lado, é registrado de algo que aconteceu no mundo; de outro lado, é narrativo - uma retórica construída a partir do que foi registrado. Nenhum filme se contenta em ser apenas registrado. (SALLES, JOÃO, 2005, p. 7).


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Filmes produzidos pelo diretor se preocupam com o retrato do cotidiano, dando preferência aos planos-seqüência e à temporalidade das imagens perante a montagem, correspondendo sempre à sensibilidade no tratamento dado aos personagens e à tela. O diretor se diferencia de seus contemporâneos pela sua capacidade de observação, o que é visto raramente no cinema documental brasileiro (LINS, 2008). Migliorin (2007) ressalta que são essas características técnicas que disponibilizam para o espectador um amplo espectro de subjetividades, indo além de um simples retrato de um indivíduo.


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4. O VESTÍGIO DO ENCONTRO: AS MANEIRAS DE FAZER SÃO FORMAS DE PENSAMENTO

A intenção do cinema clássico é demonstrar a realidade, através da captura e aprisionamento desta em um filme. Entretanto, essa apresentação acaba por corresponder a uma reconstrução, uma tentativa de imitar. Nesse momento inicial do cinema, o desejo dos diretores é apresentar os aspectos mecânicos do real. Situações são criadas para a câmera através de ações que narram linearmente e procuram a imitação integral da vida, seja na representação da tribo de Nanook ou no dia a dia de pescaria de Grierson. Grande parte das produções apresenta personagens exóticas e adversas aos homens ocidentais do século XX. É uma realidade formulada em técnica que afirma o real único e presente no imaginário social. Tendo em vista o documentário ao longo da história, o teórico Bill Nichols avalia e busca categorizar essas produções com objetivo de definir vertentes e convenções. É possível perceber a intenção de Nichols, ao dividir o documentário em subgêneros, de fazer um guia para o cineasta que pretende atingir expectativas específicas. O pragmatismo de Nichols em delimitar subgêneros tem propósito, pois o documentário prezava por estabelecer a confirmação de uma busca pré-determinada. Apesar de assumir que tais gêneros não devem ser necessariamente impressos em sua total forma e que também pode haver mais de um gênero presente em um só filme, Nichols define, em ordem cronológica, os gêneros poético, expositivo, participativo, observativo, reflexivo e performático. O modo poético tem como característica a não especificidade de espaço e tempo, explora ritmo e a justaposição e descarta as convenções da montagem em continuidade. Pessoas e objetos têm a mesma importância na composição da cena, tendo não uma visão definida do mundo e sim uma visão abstrata, que “enfatiza mais o estado de ânimo, o tom e o afeto do que as demonstrações de conhecimento ou ações persuasivas” (NICHOLS, 2005, p.138), mostrando assim o mundo de modo poético. O documentário expositivo tem como característica a utilização da “voz de Deus”, quando o narrador é ouvido e jamais é visto, ou da voz autoritária, quando narrador é ouvido e visto. Legendas são utilizadas para argumentar diretamente com o espectador,


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e a imagem desempenha um papel secundário por somente ilustrar, esclarecer, evocar ou contrapor as informações transmitidas verbalmente. Por isso, os filmes devem ter uma construção lógica dentro de uma “estrutura mais retórica ou argumentativa do que estética e poética” (NICHOLS, 2005, p.142) O método participativo pode ser percebido na latente participação dos documentaristas e de como isso era mostrado com obviedade, sem o objetivo de mascarar tal relação. Era possível uma aproximação do realizador com seu objeto de uma maneira antropológica. Os cineastas vivem em campo, entram em cena e se mostram próximos de seus personagens e temas, apresentando-os com intimidade e fazendo de sua presença um elemento crucial para a construção do filme. O subgênero observativo surgiu principalmente devido às câmeras portáteis e gravadores magnéticos lançados nos anos 1960, e se limitava à observação dos cineastas com a gravação da câmera do que estava em frente a eles. Eles filmam a espontaneidade do ambiente, com a menor intervenção possível ou sem nenhuma intervenção explícita. Sem entrevistas, sem música, sem efeitos sonoros, sem legendas, sem reconstituição histórica e sem situações repetidas para a câmera. A realidade do ambiente por si só é o suficiente para a construção fílmica. O cinema documental reflexivo se baseia na interação do realizador com seu público. A todo o momento o objeto é questionado, e esse questionamento do realizador e, por vezes, de seus atores sociais é direcionado aos seus espectadores. “Esses filmes tentam aumentar nossa consciência dos problemas da representação do outro, assim como tentam nos convencer da autenticidade ou da veracidade da própria representação.” (NICHOLS, 2005) O modo performático de documentário pode caracterizar-se como o mais experimental de todos os subgêneros, utilizando a complexidade para questionar e dissertar sobre o conhecimento de signos materiais ou não, que são de conhecimento da sociedade. Objetos materiais ou imagens subjetivas - como, por exemplo, a memória - são tratados de forma abstrata, pela primeira vez sem tanta preocupação com a objetividade,

passando

por

cinematográficos e documentais.

todas

as

técnicas

visuais

de

outros

gêneros


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Porém, o documentário moderno, bem como o contemporâneo, não vê necessidade de se apoiar em tais descrições, pois a prática documental passa por articulações que ultrapassam as definições desses subgêneros de documentário. O Cinema Clássico possui uma estrutura lógica, garantida pela construção naturalista e cronológica. Sua narrativa é resultado dos esquemas sensório-motores, nos quais a ação é responsável pelo movimento dos corpos, isto é, um regime de relações, sendo estas localizáveis e provindas de leis que determinam as sucessões, simultaneidades e permanências. Esta sucessão de acontecimentos tem o objetivo de imitar a linearidade da vida, e fazer com que a realidade seja reconhecida segundo a preexistência do tempo contínuo e linear. Dessa forma, o meio descrito é posto como independente do que o que a câmera ilustra. Após a Segunda Guerra, o desencantamento do pensamento ocidental transforma a visão de mundo de forma que o que era centrado e sólido passa a ser relativo e instável. Esta inquietação gerada pela instabilidade desencadeia novas posturas e teorias em vários campos de pesquisa. Alguns intelectuais e cineastas passam a valorizar mais a busca no outro do que os resultados gerados por essa busca, e com isso, a incerteza do externo passa a ser a razão de ser da própria busca. A partir desses fatos a narrativa e a construção cinematográfica ganham significados que se diferenciam da dualidade clássica entre ficção e realidade. Com isso, a tradição e o cinema conduzido pela ação passam a perder espaço para decomposição de sentido. No Cinema Moderno há uma coexistência entre o objetivo e o subjetivo, pois os limites são gradualmente diluídos e as camadas multiplicadas. Desta maneira as possibilidades de construção de sentido tornam-se amplas, e as certezas

são

paulatinamente

esvaziadas.

Outra

grande

questão

está

na

descentralização do sujeito, já que sua presença é marcada pela incoerência, pela opacidade de motivos e pelas sucessões de lacunas que marcam a presença da personagem, assim como a sua história.

O ponto decisivo é a poeira que se levanta no caminho, a força de cada episódio o que há de revelador em cada instante de vida, (...) o que se fez explorar o engraçamento da narrativa, a perambulação, os impasses, a


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impotência da ação, ativando uma sensibilidade ao fragmento, ao que se esboça, mas não termina. (XAVIER, 2006, p.69)

O Cinema Moderno apresenta mudanças significativas que estimularam o filósofo Gilles Deleuze a desenvolver teorias a partir da relação entre imagem e movimento. Mas o que haveria mudado na estrutura para alterar a visão do real dentro do filme? Deleuze (1990) sugere que a força do tempo relativiza a crença em “um verdadeiro” tornando-o circunstancial, pois as certezas e determinações passam por um processo de dissolução e o que resta são pensamentos, ideias e personagens que se interpelam. Não há uma descompactação entre o real e a ficção, mas sim uma nova forma de diálogo entre esses dois aspectos dentro das narrativas. Dá-se então origem ao conceito de incompossibilidade40, pressupondo que, de um mesmo tempo e espaço, podem surgir infinitas situações sendo todas coexistentes: reais e fictícias. Conseqüentemente, o registro fílmico se torna uma relação de forças, onde não existem verdades nem aparências, são apresentadas apenas perspectivas. Assim, o tempo deixa de ser cronológico, o espaço é desconectado e as relações narrativas e inter-personagens são decompostas. Quebra-se então a lógica e o que vigora em tela é a “anarquia”, já que o possível passa a proceder do impossível. A descrição de todos os aspectos que compõem a realidade adquire uma função ambígua de desconstrução e construção, fazendo com que o real e o imaginário se confundam de tal forma, que não podem mais ser dissociados. Com isso os espaços e as imagens deixam de se organizar conforme as ações e as narrativas deixam de ser uma seqüência de acontecimentos motores. Não há mais mocinho vencendo obstáculos ou derrotando o vilão – o falso assume um papel importante, sendo responsável pela amplitude de significados e pela relativização da fórmula narrativa. Agora a imagem e o tempo se inter-relacionam e variam, criando camadas que pertencem a um campo entre perspectivas. Segundo Deleuze (1990), a potência do falso é a nova estrutura que guia o cinema moderno, e posteriormente, influencia também na realização das obras contemporâneas. 40

“O que pode acontecer ou não acontecer, mas que não é no mesmo mundo: ela acontece num mundo, não acontece em outro, e esses dois mundos são possíveis, mas não “compossíveis” entre si. Ele tem de forjar, portanto, a bela noção de incompossibilidade.” (DELEUZE, 1990. Pág. 160)


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É uma potência do falso que substitui e destrói a forma do verdadeiro, pois ela afirma a simultaneidade de presentes incompossíveis, ou a coexistência de passados não necessariamente verdadeiros, (...) a narração falsificante que lhe corresponde e vai um pouco adiante e coloca no presente diferenças inexplicáveis; no passado, alternativas indecidíveis entre o verdadeiro e o falso. (DELEUZE,1990, p. 161)

O cinema agora é falsificante, anuncia Deleuze. O falso é um novo personagem, diluído e presente nas narrativas. São os sons e imagens provindas deste que dão origens às potências de vida, potências cinematográficas. Mas o que guia esse novo personagem? Deleuze afirma que são as vazões e construções temporais, ou seja, o tempo passa a compreender os sujeitos, que dentro dele se conectam e se modificam. Dessa forma não existe mais julgamento – não se pretende discutir o que é moralmente convencionado, essas questões não fazem parte do centro dos filmes - apenas as existências são consideradas e discutidas, já que as aparências são dadas ao espectador e cabe a ele interpretá-las. Com isso se relativiza o que é certo ou errado, procura-se entender o “ponto de vista”. As potências de imagem se subjugam umas às outras, pois se embatem em um duelo de forças. A partir de cada um desses embates os sujeitos se recolocam e se modificam constantemente. As personas são incertas e falsas, e para se identificarem buscam relações, logo, vão ao encontro do outro e ao mesmo tempo de si mesmas. O sujeito-objeto é proeminente da relação do que a câmera vê e do que a persona vê. A construção gira em torno do que ora é visto, ora é sugestionado. Aqui entra outro fator de construção cinematográfica: o diretor – responsável por visualizar o outro e tentar reconstruí-lo em tela, – guia e transporta a potência do falso através de sua visão. O artista é criador de verdade, pois a verdade não tem de ser alcançada, encontrada nem reproduzida, ela deve ser criada (...) O homem verídico e o falsário fazem parte da mesma cadeia, mas afinal, não são eles que se projetam, se elevam ou se cavam; é o artista, criador de verdade, ali mesmo onde o falso atinge sua potencia última. (DELEUZE, 1990, p.178-179)

Os diretores tentam se distanciar das venerações – o que é apresentado como verdadeiro dentro da sociedade. Dessa forma, se afastam das pressuposições que


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ditam a realidade e, subseqüentemente, como se deve retratá-la. “O ideal de verdade” comenta Deleuze (1990), pode conduzir à procura perante a realidade, mas seguir esse condicionamento de certo e errado ditado pelo cinema clássico não permite o documentarista visualizar a potência do falso. Seria na falsificação que a narrativa encontraria possibilidades de se esbarrar na veracidade dos acontecimentos. “O que se opõe à ficção não é o real, não é a verdade” (DELEUZE,1990, 183). A busca está nos sujeitos e personagens reais e na maneira de se encontrar potências, sendo essas tentativas fugazes de compreender o outro, a si próprio e ao povo. Portanto, o interessante passa a ser o desconhecido “a procura de quem somos e quem filmamos” (DELEUZE,1990, p. 185). A máxima de Rimbaud41 passa a valer: eu é o outro. Esse estranho que se revela através da relação e contato, Eu é o outro é a formação narrativa “simulante” que se constitui e, subsequentemente, se reconstitui. A visão do diretor, o diálogo com o outro, e a visão dessa construção se entrelaçam ao corpo do filme que acaba por marcar uma passagem. Essa se dá quando o personagem real, assim como o diretor, passa de um estado para outro de sujeito e a cada nova construção resulta em um novo estado que se difere do anterior. A personagem se transforma perante o diretor. Esse, por sua vez, fabula e “corresponde” às mudanças, o que desencadeia uma evolução. O registro dessa fronteira e das constantes transformações demonstra a saída da “zona reservada”, já que a persona movida por uma inquietação acaba por abandonar sua construção psicológica para formação de outra. O espaço dessa fronteira marca fortemente o tempo e sua força perante as articulações dos sujeitos. Nesse sentido a riqueza da imagem se encontra entre o início e o fim, perante a passagem. A beleza está sobre algo que termina e algo que começa, no antes e depois, comenta Deleuze (1990). Nesse momento os pensamentos e conceitos se confundem, se completam, se antagonizam e por fim representam o discurso que conduz a realidade. O Documentário Moderno institui a produção de verdades, sendo estas construídas diante da câmera. Essa é a função de fabulação que abre espaço para a potência do falso, o que contribui para o distanciamento do “modelo de real”, permitindo a produção de real. 41

Arthur Rimbaud, poeta francês, nascido em 1854 e falecido em 1891, “Eu é um outro significa a ligação dolorosa entre o eu fraturado e um outro desconhecido, estranho.”


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(...) em primeiro lugar que a personagem deixou der ser real e fictícia, tanto quanto deixou de ser vista objetivamente ou de ver subjetivamente: é uma personagem que vence passagens e fronteiras porque inventa enquanto personagem real, e torna-se tão mais real quanto melhor inventou. (DELEUZE 1990 p.184)

A ficção e a retratação do real começam a se confundir com a Nouvelle Vague, o Neorealismo Italiano e o Cinema Novo, que vão às ruas procurar o cotidiano. O documentário, a partir de Jean Rouch, passa a desenvolver dispositivos e artifícios “mentirosos” e ficcionais para construir a realidade. É a “mentira espontânea” reproduzida e criada pelas personas. O Cinema Direto, por sua vez, flagra as estruturas ficcionais que geram e sustentam o real, seja pela escolha de um ângulo, pela montagem ou pelo recorte do tema retratado. São interferências na captura direta do fato. Por fim, a captura de uma situação real pura se mostra impossível. “(...) O ideal da verdade era a ficção mais profunda do âmago do real” (DELEUZE, 1990, 182). No Brasil, o documentário moderno se constituiu dentro do Cinema Novo, quando curtas e médias metragens passam a abordar o outro marginal, até então inédito na produção nacional. A hibridação de técnicas resulta em uma abordagem diferenciada das obras canadenses, americanas e francesas, pois a discussão se dá criticamente com aplicações políticas e sociais. Os cineastas, já na década de 1970, como Arthur Omar e Glauber Rocha passam a incorporar a heterogeneidade, experimentação e reflexão em seus documentários, e com isso o subjetivo passa a estabelecer a conduta dessas produções, com uma intervenção marcante e presente do diretor. Assim, o resultado da obra é a relação entre câmera, equipe e sujeito. O cinema se inventa e reinventa, entretanto os discursos são apropriados e redirecionados Na contemporaneidade o documentário ultrapassa as percepções de documentar a realidade, desvencilhando-se de antigos conceitos e se reposicionando. Talvez a sua capacidade de se transformar a cada filme seja o seu grande trunfo. Mais uma vez é afirmado o uso da representação como uma realidade alternativa. São essas sobreposições, vistas agora mais nitidamente, que evidenciam o exercício da prática documental como um experimento da realidade. Cada nova sobreposição se mostra outra realidade a ser comparada a outras seguintes. Quais são


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os sujeitos nos quais o documentário está interessado? São as relações humanas e os traços de simplicidade procurados por seus pesquisadores que dão forma ao documentário. O humano dá forma ao documentário. O diálogo entre crenças, gestos, fala, olhar e palavra. E dentre toda essa diversidade nasce um objeto. O resultado pode ser feito de várias maneiras dentro dessas combinações diversas. Estar com o outro, tornar visível um modo de vida sem fazer com que essa aproximação se confunda com um modo de gestão de vida do outro, um modo de inventariar mais uma excentricidade, eis o desafio do documentário. (MIGLIORIN, 2010, p.12)

Onde o silêncio é também uma reação, a dimensão coletiva da linguagem tornase mais do que nunca o medidor da caracterização do documentário (MIGLIORIN, 2010). O “risco do real” é uma expressão de Jean-Louis Comolli (2008) que marca a diferença entre cena e roteiro para pensar sobre a presença ou não de um operador externo. E o próprio risco, o não saber do que se faz um documentário, pode ser o núcleo do próprio. A produção contemporânea se encontra em meio à banalização imagética, que acaba por condicionar o documentário a uma reprodução de fórmulas precárias (COMOLLI, 2008). A sociedade do espetáculo difunde a roteirização e a padronização, que determina inconscientemente a conduta social-político-econômica e age de forma totalitária, adequando silenciosamente os indivíduos através de um discurso “invisível”, que sujeita os corpos, idéias e produções. Essas determinações compactam e condicionam a sociedade, pois a roteirização age como um limitador que impossibilita a criação, engessando-a. O excesso de imagens acaba por conduzir a “performance” das personagens perante a câmera, condição tal que dificulta o trabalho do documentarista. A visão e a relação com o outro deve ser feita com cuidado para que não se torne a representação de clichês, já que a produção de realidade é assim mais complexa. A falta de controle permite a busca e posteriormente o encontro com um real (COMOLLI, 2008). O documentário contemporâneo procura violar o imaginário coletivo, sendo um dos motores de desconstrução das imagens programadas e difundidas pelos meios de comunicação (COMOLLI, 2008). Essa característica resulta da suscetibilidade ao meio,


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que acarreta mudanças perante a produção e realização documental. Durante as gravações as dificuldades, percalços e descobertas transformam a visão, e, consequentemente, a retratação da personagem. O encontro - de corpos e dos olhares - introduz descobertas em aspectos da narrativa. O outro, por ser um campo do desconhecido, permite uma infinidade de abordagens, entretanto, a câmera registra apenas um quadro, um fragmento. Dessa forma, cada obra é o reflexo de um possível segmento/desdobramento e a imagem é consequência do processo de síntese entre diretor, equipe, entrevistado e câmera. De certa forma o documentário é uma redução, dentre as possibilidades, de sua própria construção, o que configura uma nãopresença. A máquina atua como redutora de alteridade, demonstrando uma impressão cinematográfica e descartando as outras (COMOLLI, 2008). O espectador presencia um filme e suas escolhas e, paralelamente, toda sua potencialidade de ser múltiplo. O não dito revela e apresenta um aspecto de ausência, que é incorporada nas obras contemporâneas. Uma máquina e o corpo (pelo menos) partilham uma duração que é feita de interação entre eles. Essa partilha é real (e não virtual). Ela extrai sua “verdade” da própria passagem do tempo, do desgaste partilhado do tempo, provocado pela máquina e, no mesmo instante, registrado por ela, como marcas desse desgaste no corpo filmado. (COMOLLI, 2008, p.219-220)

O acaso e a presença do outro acabam por interferir, em maior ou menor escala, no modo de ser do documentário. Neste sentido o espectador é guiado pela construção da obra que se desenrola a partir de um encontro. Este cria um universo que gira em torno do que o filme é, e o que pressupõem suas ausências. Dualidade essa que ao mesmo tempo limita e amplia as interpretações do espectador, que passa a confiar e a desconfiar da narrativa, personagem, direção e, por vezes, das próprias impressões. O documentário contemporâneo se encontra cada vez mais na abertura, seja essa de interpretações ou significados. A ampliação encontrada nos documentários contemporâneos acaba por relativizar as abordagens para com o outro. A partir disso, documentaristas têm buscado em outras linguagens formas diversas para apresentar um real.

A

experimentação e a hibridação com o vídeo digital, a vídeoarte, dentre outros, renovam


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e diversificam ainda mais as produções, pois a criatividade, aliada aos novos avanços tecnológicos, possibilita um contato diferenciado com a personagem. Esses novos recursos permitem que o diretor se abra para a imersão na procura da imagem do outro, indo ao encontro do registro do mundo e do imaginário. A mobilidade e a proximidade ampliam o papel do outro. As palavras, os gestos, os olhares e o silêncio contribuem para a densidade do filme. O corpo, dessa forma, vira matéria, pois o sujeito é o tema e ao mesmo tempo construtor de sentido. E “a poética do olhar” e as intenções e escolhas do diretor – acabam por redimensionar a obra para além de um registro (FRANÇA, 2007). O “diálogo” entre o sujeito e o realizador por muitas vezes é o que possibilita a transgressão e a transcendência. Logo, existe uma constante busca pela reciprocidade. A apropriação de outras linguagens nas produções brasileiras acaba originando documentários heterogêneos e singulares. Isso se dá no processo de procura para recontar uma situação existente, ou seja, uma constante tradução. Apesar da diversidade de produções documentais, é possível traçar algumas similaridades, o que não caracteriza uma categoria, apenas assonâncias dentre as obras realizadas no país. Pode-se apontar a presença do outro de classe; das entrevistas; a subjetividade; o cotidiano; alteridade; os ensaios; os dispositivos; dentre outros. O dispositivo no documentário funciona como uma espécie de ferramenta ou atributo que tem como objetivo criar um conceito, lógica ou sentido à linguagem documental. De certa forma, isso acaba limitando a liberdade e a naturalidade do documentário em sua essência, já que sua estrutura começa a ser “regrada” por meio de direcionamentos pré definidos. Motivado pelo que se diferencia da procura cotidiana, o realizador submete uma realidade a um risco proposto que apresenta no filme as acidentalidades e as fissuras causas diretamente por um artifício. Para Lins (2008), as decisões do diretor na montagem do material filmado definem a existência ou não existência do dispositivo no documentário. Migliorin (2005) discorda dessa afirmação, e coloca o dispositivo como a razão de ser do processo de filmagem. Para ele a montagem é, de certa forma, deixada de lado, não é mais o método central de produção. A falsificação de uma situação origina a exposição de outra, seja ela de outro


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sujeito, de uma cidade, de uma situação ou encontro. Cada obra é conseqüência de um dispositivo determinado e único. Há obras com um caráter mais ensaístico, que voltam a câmera para a subjetividade do realizador. O ponto de partida geralmente se estabelece através de uma experiência pessoal e, dessa forma, a estrutura se dá segundo uma busca. As relações com o outro são reduzidas, por vezes até extintas, já que um novo sujeito é constituído pelo diretor que é, também, a persona. O diretor retrata e vive a narrativa, de forma que suas experiências e o encontro com a sua própria subjetividade resultam de uma sobreposição que o aproxima do espectador. O auto-entendimento revela elementos da vida pessoal, que criam um “link” com a subjetividade coletiva, conseqüentemente com o limite da esfera privada e o domínio público. O fluxo que parte da intimidade pré-determinada acaba por revelar uma ampla relação com a ficção. Nesse sentido o filme ganha força imagética e dialética, já que se possibilita ir além do superficial e banal. É justamente a tentativa de se reconhecer e entender a própria subjetividade que, por fim, aproxima essas obras. Mas, a busca se dá de formas singulares e muito diversificadas, não sendo possível traçar outro paralelo além da auto-investigação. Alguns filmes procuram presenciar o comum, a repetição de atos inconscientes e alheios ao tempo, constantes presentes no dia-a-dia. Tal exibição do cotidiano propõe uma desconstrução das imagens plásticas e repetitivas que ditam o ritmo frenético da contemporaneidade. O fragmento, o silêncio e o tempo possibilitam a percepção e o estranhamento, gerando uma abertura para outra visualização do mundo. O “movimento imóvel” dentro dos espaços privados demonstra a singularidade e monotonia de pequenos momentos. A formação dessas produções é voltada para a subjetividade e a relação direta com um outro. O interessante ao olhar pode ser pertencente ao dia a dia de um individuo. Essa essência está na sutileza das coisas e na simplicidade do tema e não na abordagem do todo. A abordagem remete à estruturação temporal, a espera conduz as imagens e a percepção se mostra como a resistência aos discursos e à externalização do inconsciente social. As alteridades, sobretudo quando se trata do outro de classe, são traços do cinema brasileiro, desde as produções do cinema moderno. Nas primeiras obras, o


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outro é visto como o objeto sem voz, um registro das mazelas nacionais, um retrato inegavelmente forçado das condições de sua própria marginalização (GUIMARÃES, 2010). Jean-Claude Bernadet (2009) aponta um segundo momento em que há uma mudança de abordagem desse outro, no qual a subjetividade e o discurso são apresentados pelo próprio outro de classe. A personagem passa a expor sua história e experiências, caminhando ao encontro da subjetividade coletiva. Apesar dessa abertura a abordagem dessa alteridade continua sendo muito delicada, já que a presença do diretor pode indesejadamente abafar a voz do outro. A abordagem desse personagem, segundo alguns diretores, com sensibilidade e cuidado, pode resultar em uma rica experiência para o filme. “O sujeito, no filme produz uma fala até então desconhecida, desconstrói uma idéia, transforma sua memória, inventa um corpo” (MIGLIORIN,2010, p.17). A produção documental contemporânea está aberta para o estranho e o desconhecido. Sendo assim, possibilita a cada dia um número maior de filmes, que diferem em abordagens, temas e sensibilidade. A curiosidade e a vontade de se perceber o outro gera no documentário uma constante renovação. A busca de subjetividades e imagens faz com que o cineasta compactue com a câmera e vá ao encontro da riqueza que se encontra no real. A partir disso surge o diálogo de imagens e forças, conseqüência direta das construções do imaginário. Desenvolvidas pelo outro e pelo realizador, através da ficcionalização. Esse processo complexo resulta em uma perspectiva que corresponde a um real criado para o filme.


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5. METODOLOGIA

Este projeto é resultado das incertezas e mudanças que o acompanharam e se intensificaram durante todo o processo de pesquisa. A curiosidade e a vontade de compreender melhor o tema fizeram com que à medida que se explorava o documentário, novas possibilidades de recorte surgissem, de forma mais madura e consciente. Nas primeiras discussões sobre este trabalho, o foco seria o Documentário Dispositivo e sua influência nas produções audiovisuais contemporâneas. Após um período de levantamento teórico, percebeu-se que o tema poderia ser muito mais amplo que aquele proposto inicialmente, o que de fato influenciou e determinou a escolha deste segundo recorte. Não se trata de uma segunda opção, mas sim de uma descoberta que impulsionou e instigou novos olhares a respeito do assunto. O projeto tem como objetivo fazer uma reflexão sobre o documentário e as diferentes articulações da realidade nestas produções. A analogia entre o realizador e o objeto, as disparidades presentes nessa relação, questões como intervenção e omissão nas cenas e a busca pela realidade tornaram-se o objeto de investigação desta pesquisa. Para tanto, o primeiro passo foi fazer uma pesquisa bibliográfica do tema, ou seja, sua fundamentação teórica. De acordo com Gian Danton (2000/2002), a pesquisa realizada pode ser classificada como bibliográfica, por ser constituída de referências como livros, filmes, artigos, entre outros. Ela precede todos os tipos de pesquisa e é o fundamento para qualquer trabalho acadêmico. Partindo do levantamento bibliográfico desenvolveu-se a introdução e o primeiro capítulo, nomeado de Esferas de Recriação de Realidades na História do Cinema. Tais capítulos são essenciais para a introdução do tema e contextualização do leitor, que mergulha na historia do documentário explorando as diversas discussões a respeito de seu surgimento e suas tantas definições desenvolvidas e modificadas ao longo do tempo. Ainda no primeiro capítulo, uma linha histórica é traçada utilizando autores que discutem a articulação do real dentro de filmes que vão desde: A Saída dos operários da Fábrica Lumière (1895), dos Irmãos Lumière e Nanook do Norte (1922), de Robert


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Flaherty até Crônicas de um Verão (1960) de Jean Rouch e Don’t Look Back (1963) de D. A. Pennebaker. Desta forma, pretende-se que o leitor consiga dimensionar o objeto de pesquisa e perceber por onde passarão as discussões propostas neste trabalho. No segundo capítulo, cujo título é Reprodução, Negação e Construção de identidade: diferentes abordagens da realidade no Documentário Brasileiro, traça-se um percurso pelas produções documentais no cinema nacional, partindo de realizadores e filmes que de alguma forma diversificaram sua relação com a realidade e inovaram estéticas e conceitos do gênero documental. Nesse âmbito destacam-se especialmente Arthur Omar e Glauber Rocha pela negação da estética e das regras pré-estabelecidas do documentário clássico, e Eduardo Coutinho e João Moreira Salles por se destacarem no cinema contemporâneo nas experimentações, estudo e refinamento para com a forma de tratar a realidade em seus filmes. O desenvolvimento e contextualização do objeto nesses dois capítulos introduzem questões essenciais para as elaborações deste projeto e foram de fundamental importância para se compreender o tema proposto, a fundo. Porém, o conhecimento da historia não é suficiente para expor e aprofundar o tema de estudo. Então surge a necessidade de um terceiro capítulo com um embasamento mais filosófico sobre o tema, também discutindo a articulação do real e a relação entre o realizador do documentário e o objeto filmado. Além de completar a parte teórica, o quarto capítulo, O vestígio do encontro: as maneiras de fazer são formas de pensamento, é o alicerce para a realização do experimento – e ao mesmo tempo, vai se constituindo juntamente com ele. O experimento, Extracampo: realidades que não podem ser dominadas (ou negligenciadas), por sua vez, é uma forma prática de refletir os conceitos estudados e estava incluso nas intenções deste trabalho desde o início das discussões. Ele tem uma relação orgânica com o desenvolvimento do quarto capítulo, já que o contato com a teoria altera a prática, e a prática aprofunda as análises conhecidas na teoria. É importante lembrar que somente após o desenvolvimento dos primeiros capítulos teóricos foi possível elaborar de forma mais concreta uma proposta de experimentação, intitulado Extracampo: realidades que não podem ser dominadas (ou negligenciadas), que será exposta logo em seguida.


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O experimento acompanhou de forma ainda mais intensa os processos de mudança e amadurecimento iniciado na pesquisa, e teve sua forma alterada de acordo com o desenvolvimento da introdução e dos primeiros capítulos (I e II) deste trabalho. A proposta inicial do experimento, seguindo o primeiro tema sugerido – Documentário Dispositivo – seria a produção de um documentário tendo como base essa tendência do audiovisual contemporâneo (o uso de dispositivos no documentário). Tal proposta não foi desenvolvida, uma vez que este recorte foi substituído. A partir das discussões do novo tema, que analisa os aspectos da realidade no documentário e as relações entre os realizadores e objetos, o experimento passa a ser não apenas o resultado, mas parte fundamental do processo de pesquisa. A proposta é fazer um documentário auto-reflexivo e metalingüístico, de forma que os assuntos tocados na pesquisa ficassem evidenciados durante a produção audiovisual. A abordagem metalingüística foi sugerida de diversas formas, como o acompanhamento de um segundo documentário em processo de produção, ou um documentário que tivesse como objeto os realizadores e teóricos que abordam os temas em estudo. Levando em consideração a dificuldade logística de realização da primeira abordagem, já que seria necessário encontrar um documentário em andamento que fosse adaptável à rotina acadêmica do grupo, e devido a possibilidade de se aprofundar ainda mais nas questões subjetivas de cada realizador e na percepção das questões propostas por estudiosos, optamos pela segunda abordagem. Com essa intenção foi iniciada a produção do experimento simultaneamente com o desenvolvimento do quarto capítulo. As discussões a respeito do trabalho prático sempre traziam novidades e propostas complementares. Desta maneira, isso se tornou a verdadeira razão de ser do experimento: o seu próprio questionamento, e a autorreflexão contida nele. Portanto, optou-se por uma produção como proposta de complemento e, além disso, uma forma de ampliação da pesquisa teórica. Ele consiste em fazer uma conversação entre os entrevistados que discutem o gênero documental, evidenciando a relação do realizador com o objeto e os diferentes aspectos resultantes da busca pela realidade. Outro ponto importante é o artifício para a elaboração do experimento com a utilização de uma terceira câmera, a fim de evidenciar a relação entre os realizadores (grupo) e objetos (entrevistados).


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Baseado nas discussões feitas durante a pesquisa, e observando as limitações e alcances existentes, opta-se por estabelecer como recorte o cenário mineiro, selecionando diretores e teóricos relevantes ao tema para serem entrevistados a respeito de pontos importantes para o trabalho. Há uma tentativa de aplicar, nas entrevistas, parte da teoria estudada – conduzir, intervir, construir uma relação com cada personagem/entrevistado e, principalmente, tentar alcançar o que Deleuze chama de fabulação. Levando em consideração a importância de cada um como grandes destaques na produção audiovisual e que vem transformando o documentário contemporâneo em Minas Gerais, os entrevistados foram os diretores, Helvécio Marins Júnior, Cao Guimarães e Kiko Goiffman. E, como participação especial, considerando seu destaque como pesquisadora e realizadora de documentários, Cláudia Mesquita. Para cada entrevistado foi criado um roteiro de perguntas característico, baseado no conteúdo desenvolvido na pesquisa e nas especificidades dos trabalhos de cada um deles. Posteriormente, na edição, foi viável criar ligações entre as falas. Dessa maneira, estabelecemos as prioridades e organizamos o que julgamos relevante para o experimento. As falas são organizadas de modo que o documentário funcione como uma teia, fazendo com que um assunto ou ação de cada cena possa desencadear a cena seguinte. Assim, as falas e imagens são associadas criando discussões sobre o documentário e as articulações do real. Essa organização facilita a compreensão do espectador e cria uma espécie de enredo a ser seguido e desvendado, mas sem a pretensão de dar respostas absolutas, e sim indicativos para um olhar mais crítico e maduro sobre o tema.


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6. CONCLUSÃO

O desenvolvimento desse projeto se constitui de um longo processo de amadurecimento e perda de inocência. Onde certezas foram sendo minadas e as verdades foram relativizadas. O desencantamento gradativo nos permite visualizar as camadas, a complexidade existente na produção documental que está presente dês de seus primórdios e vai se intensificando e se particularizando com o aumento das produções cinematográficas. A cada resposta encontrada fomentava mais perguntas já que diversidade e as diferentes abordagens ampliavam e deslocavam a nossa compreensão. Viviamos de não encontrar as respostas que queríamos. Um importante passo para este projeto foi estourar esta bolha, e se colocar em fricção com a realidade. Sendo assim o experimento se fez tão importante quanto assistir e ler sobre as diferentes obras do gênero documental. Mais do que um complemento, ou apenas a versão pratica da pesquisa. O experimento nos jogou de volta ao texto de forma mais critica e menos positivista. A cada passo dado a frase do Jean-Rouch fazia mais sentido. o que procurávamos era a Realidade do Cinema, e não a realidade no Cinema. É importante salientar, que este processo não se conclui. O que não quer dizer que não chegamos a diversas conclusões até aqui, parafraseando Ismail Xavier “O ponto decisivo é a poeira que se levanta no caminho, a força de cada episódio”. Para um melhor entendimento sobre o processo cinematográfico buscamos uma contextualização histórica e posteriormente teórica acerca das representações da realidade no cinema. Como afirma Bazin (1991), o cinema surge com a intenção de reproduzir a realidade como ela é, embora em seus primórdios as limitações técnicas, que levaram décadas a serem superadas, como o passar do preto e branco ao colorido e a passagem do mudo ao falado, o deixassem aquém do real. O cinema, por ser capaz de registrar uma imagem com tempo e movimento, já carregava consigo o objetivo de atingir a verossimilhança absoluta.


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Os verdadeiros precursores do cinema, de um cinema que só existiu imaginação de uns dez homens do século XIX, pensam na imitação integral natureza. Logo, todos os aperfeiçoamentos acrescentados pelo cinema podem, paradoxalmente, aproximá-lo de suas origens. O cinema ainda não inventado.” (BAZIN, 1991, p.30-31)

na da só foi

Porém, a partir do início das primeiras produções do que entendemos por documentário clássico, percebe-se que a preocupação deixa de ser a simples busca por uma reprodução mecânica da realidade. Nesse momento surgem as narrativas que procuram representar o real através de uma historia. O diretor passa a ser o responsável por contar algo. A partir desse momento o cinema tenta transmitir fragmentos de subjetividades - já que a intenção documental se dá na não utilização de atores e na não representação via roteiros ou cenários e dessa forma se subjuga ao risco encontrado perante o contato com o outro e o mundo – nesse aspecto a reprodutibilidade mecânica não é suficiente para representar uma realidade totalizante. Assim, podem-se visualizar apenas fragmentos e composições de real. “O tratamento criativo da realidade”, primeiro conceito para o documentário, permanece atual, e pode ser ainda uma das melhores definições do gênero. Deixando as limitações formais de Grierson e reinterpretando apenas o conceito, percebemos que o documentário é: um filme que tem como matéria-prima o real e como ferramenta a criação, o filme nasce a partir do atrito com a própria realidade. Percebemos que a grande questão em relação à mudança do Documentário Clássico ao Moderno e Contemporâneo, além da dissolução cada vez mais profunda, de seus cânones, está em sua pretensão. O Documentário Clássico é encenado e ensaiado porque tem a pretensão de dar respostas, e não de buscá-las. A verdade e os rumos do documentário por muitas vezes estiveram pré-estabelecidos antes de chegar a campo, e as imagens conduziam e ilustravam as intenções do realizador. O Documentário Clássico se coloca na posição de saber absoluto de um determinado assunto, postando as informações como verdades que por muitas vezes não são questionadas. Mas, com as produções modernas, a busca por esta verdade onipotente deixa de ser o mais importante dessas obras, e isso tem relação com a recolocação filosófica do entendimento que temos da própria realidade. Percebe-se que a relativização dos


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conceitos aumenta paralelamente com a multiplicidade de camadas contidas na realidade. O documentário passa a lidar com o incerto, com a fabulação e a mentira. Paulatinamente os limites são dissolvidos e os gêneros documentais e ficcionais passam a se confundir e se sobrepor. Outra importante constatação está na valorização do improviso, do erro e do inesperado. Como afirmou Kiko Goiffman, em nosso experimento Extracampo: realidades que não podem ser dominadas (ou negligenciadas): (...) no momento que se inicia a filmagem de um documentário vão existir 450 coisas pra te tirar de sua questão principal, algumas delas eu descarto, (...) mas a maioria delas me guiam para um caminho diferente do que eu pretendia seguir e meu filme vai mudando no meio do caminho, e tem umas 50 que eu anoto num papel e penso – pô, esse dá um outro filme depois.” (GOIFFMAN, 2011).

Talvez seja possível dizer que o papel do realizador se torne mais fluido e ao mesmo tempo mais necessário. O documentário depende da força que se estabelece na discussão proposta por ele, nas questões levantadas, mesmo que o próprio realizador não esteja apto para resolvê-las. O tema, a ação e as respostas podem ceder lugar à incerteza da relação com o sujeito, à reflexão do espectador e à incerteza que é submetida ao outro, como razão para a existência do filme.

Cenas retiradas do experimento: entrevistas com Cao Guimarães e Kiko Goiffman, através da visão da terceira câmera.

Intuímos também que, em maior ou menor escala, o realizador fala de si mesmo em seu filme. A imagem do outro se torna um reflexo – ainda que desfigurado e fora de foco – daquele que filma. A força do Documentário Contemporâneo pode estar no momento em que há uma simbiose entre os sujeitos que compõem o filme,


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considerando nesse caso, o espectador, o objeto filmado e o realizador como coautores dessa produção. No nosso documentário, Cao Guimarães caracteriza esse esvaziamento de si como a incorporação de uma “entidade”. Surge aí então um terceiro sujeito, que não é o realizador nem mesmo o sujeito filmado, mas sim a personificação da própria relação. O experimento possui uma característica insólita para os documentários, que é a utilização de uma “terceira câmera”42. Esta tem como objetivo evidenciar essa “entidade” sugerida por Cao Guimarães e comprovar aquilo que, no documentário, fica muitas vezes apenas subentendido. Não temos a pretensão de fazer deste artifício (terceira câmera) a sugestão de uma nova estética, ou uma nova forma de fazer documentário. A intenção é apenas tentar explicitar o que se estabeleceu como uma das razões de ser do Documentário Contemporâneo: „a relação entre sujeitos‟. Como um artifício propositalmente experimental, os resultados da terceira câmera se mostraram por vezes bem-sucedidos e por outras, falhos em seu objetivo. Porém, por ser colocada em teste pela realidade, assim como o próprio documentário, a terceira câmera surpreendeu por apresentar alguns efeitos que não eram objetivados no momento de sua concepção. Por fim, todas as formas de documentário apresentam suas limitações éticas, estéticas e filosóficas. O Documentário Contemporâneo assume a sua “incompetência” e propõe questões para reflexão. Assim como os documentaristas contemporâneos, o grupo passou por este mesmo tipo de amadurecimento. A busca por respostas absolutas se mostrou falível a partir do momento que procurávamos pelo método mais eficaz de retratar a realidade. Com isso, nos tornamos mais próximos da constatação de que cada forma de se fazer um filme tem suas limitações e suas forças, e pode extrair diferentes realidades de um mesmo objeto.

42

Por vezes, as dificuldades técnicas fizeram com que as entrevistas fossem realizadas apenas com duas câmeras. Por isso, o termo “terceira câmera” entra nesse projeto mais como um conceito do que por seu significado denotativo, já que muitas vezes a função desta foi exercida por uma “segunda câmera”.


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Cenas retiradas do experimento: entrevistas com Cláudia Mesquita e Helvécio Marins Jr., através da visão da terceira câmera.

A grande questão está na sensibilidade e no percurso trilhado para se conseguir estas respostas. E esta é uma das principais conclusões que tiramos deste estudo: ter a pretensão de encontrar uma resposta única e absoluta para o tema seria uma limitação juvenil do gênero e significaria um regresso à sua evolução conceitual. Como dito por Cláudia Mesquita no documentário que acompanha este estudo, tudo pode (no documentário); as regras e limitações são características individuais de cada filme.


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