Tcc educação, sociedade e direitos no século xxi

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO OESTE DO PARÁ INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE PROGRAMA DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

JOÃO RICARDO SILVA

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DIREITOS NO SÉCULO XXI: o papel dos direitos achados na beira do rio.

Santarém - Pará 2013


JOÃO RICARDO SILVA

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DIREITOS NO SÉCULO XXI: o papel dos direitos achados na beira do rio.

Monografia apresentada ao Programa de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Oeste do Pará, como requisito à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Nirson Medeiros da Silva Neto

Santarém 2013


JOÃO RICARDO SILVA

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DIREITOS NO SÉCULO XXI: o papel dos direitos achados na beira do rio.

Data da Aprovação:

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Nirson Medeiros da Silva Neto (Orientador – UFOPA)

Prof. Dr. Amadeu Farias Cavalcante Júnior (Membro – UFOPA)

Prof. Me. Bruno Alberto Paracampo Mileo (Membro – UFOPA)


Este trabalho é dedicado à minha mãe e a minha doce namorada e amiga Tatiana. Ambas pessoas muito especiais e que me ajudaram e me ajudam muito nessa, as vezes difícil, tarefa que é a vida.


Agradecimentos

Agradeço ao meu orientador que me ajudou nesta difícil jornada e compreendeu a minha, as vezes irracional, lógica de autonomia, mas que ela não se repita daqui para frente.

À minha família: meus tios, em especial ao meu tio Nazio, homem de fibra e força, lutador e trabalhador desse mundo, que com sua inteligência e suor superou as dificuldades de uma vida que em nenhum momento facilita ou facilitou; mas também ao meu tio Nazareno que teve que me aturar sobre seu teto; ao meu pai; à minha mãe que é uma das pessoas mais fantásticas desse mundo, com um amor, uma força de vontade e garra inimagináveis; ao meu irmão, um cara bacana e de muita inteligência; aos meus primos, em especial ao Thiago, que me mostra que mesmo na dificuldade sempre existe criatividade e inteligência.

Aos meus amigos: Dennis Sousa, Felipe Ávila, Hemerson Silva, João Ferreira, Jonathan Rego, Luís Felipe, Moisés Costa e Thomas Edson. Também aos companheiros do Najup Cabano e organização do Festival de Direitos.

À minha musa inspiradora e as vezes minha chatinha, Tatiana. Pelo seu amor, carinho e força de vontade em me aturar.


"Estranho paradoxo vive o direito: de um lado, ele é tratado de modo determinista, linear ou mesmo positivista, a partir de pressupostos que já não se sustentam, de outro, ele apresenta uma complexidade, uma riqueza e uma teia de relações caóticas que o faz renascer, qual fênix, rompendo com as paredes que o limitam e com os conceitos que o empobrecem." (Roberto Aguiar, 2004.)


RESUMO O presente trabalho está fundamentado sobre a crise paradigmática que se abate sobre as ciências sociais, sobre o direito e sobre o ensino jurídico. Se trata de uma crítica teórica ao ensino jurídico no Brasil que busca pensar um Direito Crítico e Libertador, engajado na transformação da sociedade e pensado a partir das necessidades e formulações dos trabalhadores, dos oprimidos e dos povos tradicionais. Neste sentido, é formulado como uma utopia, mas isso não significa algo irrealizável, e sim a possibilidade de realização de algo que não estando no presente concreto nos condiciona como objetivo e meio de realização. A sua base foi a discussão de um Direito Insurgente, o Direito achado na beira do rio, e para isso andou lado a lado com as Teorias Críticas do Direito e com o Pluralismo Jurídico. Explicouse, assim, as novas formas de conceber o conhecimento científico, o conhecimento e ensino do direito, juntamente com uma profunda reflexão sobre o papel que cabe ao jurista e ao estudante de Direitos no mundo atual. Ao longo do percurso a crítica radical ao sistema social capitalista é presente e indica-se como necessidade concreta para se pensar em uma sociedade qualitativamente melhor. Palavras-Chave: crise paradigmática, ensino jurídico, teoria crítica, pluralismo jurídico, direito insurgente.


ABSTRACT This work is based on the paradigmatic crisis befalling the social sciences, on the law and the legal education. It is a theoretical critique of legal education in Brazil seeking a Critical thinking law and Liberator, engaged in the transformation of society and thought from the needs and formulations of workers, the oppressed and traditional peoples. In this sense, it is formulated as a utopia, but it does mean something unattainable, but the possibility of achieving something not being in the present conditions in the concrete aims and means of realization. Its basis was the discussion of a Insurgent law, the law found in the river, and it walked alongside the Critical Theories of Law and the Legal Pluralism. Thus explained them new ways of conceiving scientific knowledge, the knowledge and teaching of law, along with a reflection on the role of the lawyer and student rights in the world today. Along the way the radical critique of capitalist social system is present and is indicated as concrete need to think of a qualitatively better society. Key words: paradigmatic crisis, legal education, critical theory, legal pluralism, insurgent right.


Sumário INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 1. CIÊNCIA E DIREITO. ......................................................................................... 14 1.1. Sobre a ciência. .......................................................................................... 14 1.2. Sobre o Direito. .......................................................................................... 17 2. A EDUCAÇÃO E O ENSINO JURÍDICO............................................................ 24 2.1. A educação. ................................................................................................ 24 2.2. O ensino jurídico. ....................................................................................... 27 3. SOCIEDADE PARA ALÉM DO CAPITALISMO. ............................................... 30 4. ALTERNATIVA AO ENSINO JURÍDICO. .......................................................... 36 4.1. Teoria Crítica do Direito. ............................................................................ 37 4.2. Pluralismo jurídico. .................................................................................... 39 4.3. Direitos achados na beira do rio. .............................................................. 41 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 46 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 50


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INTRODUÇÃO

A presente monografia está pautada na constatação da crise pela qual passa o ensino jurídico do país. Acreditamos que a formação de hoje não traz a possibilidade de entendimento da realidade social na qual está inserido o fenômeno jurídico. No geral as escolas de direito apenas procuram adequar seus cursos à formação de profissionais para o mercado de trabalho e muitas vezes nem conseguem tal intento, já que o mercado está cada vez mais dinâmico e complexo. Tal crise é realçada por Machado (2009, p. 4) que diz: Realmente, são vários os aspectos de crise que atingem o atual modelo de ensino jurídico praticado no país, como, por exemplo, o ensino essencialmente formalista, centrado apenas no estudo de códigos e das formalidades legais; o ensino excessivamente tecnicista, resumido no estudo das técnicas jurídicas de interpretação e aplicação dos textos legais sem qualquer articulação com os domínios da ética e da política; o predomínio incontrastável da ideologia positivista; o ensino completamente esvaziado de conteúdo social e humanístico; a baixa qualidade técnica da maioria dos cursos jurídicos; a proliferação desordenada desses cursos sem nenhum controle eficiente sobre a qualidade dos mesmos; o predomínio de uma didática superada e autoritária, centrada exclusivamente na aula-conferência e na abordagem de conteúdos programáticos aleatoriamente definidos etc.

A forma tradicional de ensino dos Direitos1 se concentra sobre uma definição normativa da conduta social, excluindo da análise da norma a realidade concreta à qual ela se refere, reduzindo a ciência do direito à mera descrição de enunciados linguísticos, em outras palavras, o Direito que se ensina hoje é preocupado, quase que exclusivamente, com o estudo da norma, não sendo importante ao estudante a realidade concreta geradora da legislação, pois tal tipo de análise não estaria comtemplada na Ciência do Direito. O que acaba ocorrendo aqui é o entendimento de que tal ciência só adquire status enquanto ciência quando entroniza um conhecimento relativamente puro e neutro. Todavia, como nos fala Harvey (2005), este tipo de conhecimento, aparentemente neutro, natural ou até óbvio, esconde a capacidade de ser, de fato, meio instrumental de preservação do poder político e obstáculo a transformação

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Por hora sublinharemos que não há que se falar, concretamente, no Direito, senão nos Direitos. Em uma mesma sociedade existe diversas e distintas formas de normatividade jurídica, o que nos impõe pensar em um pluralismo jurídico e numa compreensão mais abrangente dos Direitos.


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social. Esse é um dos elementos que nos adverte da necessidade de discutirmos e problematizarmos a educação jurídica no Brasil para então pensarmos quais os possíveis caminhos que podemos tomar de modo que o ensino jurídico e a universidade do século XXI não sejam apenas fantoches cujo ventríloquo é o mercado capitalista.2 Desta forma foi preciso pôr algumas coisas em questão a fim de entendermos o imperativo de estudarmos a realidade social a qual a norma está inserida. Devemos problematizar questões como: o que vem sendo ensinado nas universidades atualmente? Qual modelo de universidade temos hoje e qual queremos para o futuro? Que tipo de educação é capaz de pensar a realidade? Qual tipo de sociedade proporcionará a possibilidade das mudanças para a realidade injusta que presenciamos cotidianamente? No desenvolvimento de respostas aos referidos questionamentos foi necessário problematizar os papéis que a educação, o ensino jurídico e os Direitos vêm exercendo dentro da nossa sociedade, definindo assim a que propósitos eles têm servido. Para dar conta das demandas que propomos acima, trilhamos caminhos difíceis, mas que não poderiam ser atalhados. Assim, no primeiro capítulo fizemos uma breve abordagem sobre ciência e sobre os Direitos. No segundo capítulo adentramos na problemática da educação e do ensino jurídico e a partir dessa base pudemos, no terceiro capítulo, pensar na sociedade para além do capitalismo3. No quarto capítulo discutimos a alternativa ao ensino jurídico, colocando uma nova forma de pensar os direitos e explicando a teoria crítica do direto e o pluralismo jurídico para, enfim, chegarmos aos direitos achados na beira do rio. Ao se fazer todas essas incursões realizamos uma revisão bibliográfica. Já quanto à forma de análise utilizou-se o método dialético. Método este que procura reconhecer as contradições e mediações concretas que envolvem a realidade social, que é mais rica do que nosso conhecimento sobre ela, buscando estudá-la na sua efetiva totalidade e complexidade. Assim, não analisamos o todo negando suas

“A universidade do século XXI terá de levar às últimas consequências as potencialidades da universidade tradicional, negá-la e reconstruir-se.” (PAZELLO, 2013) 3 Voltaremos a esse ponto mais adiante, porém, já de antemão, deve ficar claro que a alternativa de mudança possível para uma formação jurídica mais responsável só se dará na luta contra o sistema social capitalista, tendo em vista o entendimento de que a cultura jurídica atual não pode ser modificada sem se modificar as representações uniformizadas - senso comum jurídico – que são transmitidas e internalizadas em relação ao âmbito da formação social que temos. 2


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partes, nem tampouco apenas as partes abstraídas do todo, mas compreendemos as contradições entre as partes e também a união entre elas. Ao longo deste trabalho utilizamos de uma teoria crítica que pensa o pluralismo jurídico e o direito insurgente. Essa teoria discute e questiona a racionalidade e a pretensão de cientificidade do Direito vigente e propõe novos métodos de ensino e de pesquisa que dirigem à desmistificação e à tomada de consciência dos operadores jurídicos. O saber crítico pressupõe que o conhecimento é historicamente produzido, o que impossibilita a sua neutralidade e objetividade absoluta na produção científica.

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Desta forma, a teoria que desenvolvemos para

pensar o campo jurídico não parte apenas de uma crítica interna do discurso científico, mas de um exame do mesmo inserido na realidade. As balizas teóricas desta pesquisa, por advirem da especificidade da Sociologia e da Filosofia do Direito, esquivam de um apreciação mais tecno-formalista, quer ao nível do Direito Privado oficial, quer ao do Direito Público dogmático (WOLKMER, 2005). Dito isto, urge resgatar o sentido de utopia proposto por Michael Löwy em sua obra “Ideologias e Ciência Social: elementos para uma análise marxista”, o qual servirá de baliza para a compreensão de todo o nosso trabalho. O ilustre autor define utopia como aquelas ideias, representações e teorias que aspiram a uma outra realidade, uma realidade ainda inexistente, mas que não é irrealizável. É sim uma utopia no sentido crítico ou de negação da ordem social existente e orientando-se para a ruptura com esta, tendo de tal modo uma função subversiva, uma função crítica e, em alguns casos, uma função revolucionária (LÖWY, 1991). Este sentido de uma utopia aqui é mais fundamental do que se pode crer inicialmente, já que ela não é apenas um fim, não é só o objetivo a ser alcançado, é ela própria a orientadora do processo. Isso significa que para termos uma sociedade melhor é indispensável que o ser humano tenha consciência do objetivo de transformá-la, em outras palavras, uma sociedade qualitativamente diferente é possível, contudo não decorre do acaso das necessidades (OLIVEIRA, 2011).

Como destaca Wolkmer (2005): “Os primórdios de uma Teoria Crítica encontram toda sua fundamentação na tradição idealista que remonta ao criticismo kantiano, passando pela dialética hegeliana, pelo materialismo histórico marxista e pelo subjetivismo psicanalítico freudiano.” Para maior aprofundamento da temática, observar: Wolkmer (2009. pp. 17-33). Mas, como vai ficar claro ao longo do texto, a teoria crítica discutida aqui tem um claro embasamento teórico marxista na medida em que concebe o direito a partir de um modelo de conflito que enfatiza as contradições sociais e o antagonismo de interesses existente na formação capitalista e, por conseguinte, na superestrutura jurídica dessas formações. 4


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Enfim, nosso trabalho se firma em uma compreensão crítica do ensino dos Direitos com o objetivo de traçar uma compreensão não dogmática, abrindo horizonte para que a formação dos estudantes da ciência jurídica seja uma formação responsável e comprometida com a problemática do seu tempo.5 Vislumbramos em uma nova formação dos estudantes de Direitos – que se baseie numa visão pluralista, democrática e antidogmática - uma possibilidade real utópica para se conseguir mudanças sociais de emancipação. Por isso, a ideia de educação jurídica proposta aqui desempenha uma função política e ideológica, devendo ser encarada como proposta compromissada com a realidade social e voltada para a construção de uma sociedade progressivamente melhor.

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Neste ponto é importante deixar claro que não se trata de converter ninguém, não se trata de implantar um plano pronto e acabado em que as pessoas devem ser transformadas sem reflexão; pelo contrário, se trata de um convite a essa reflexão, de uma busca de democratização dos meios decisórios e emancipatórios para termos alternativas de existência, trata-se de construir opções viáveis. Também não há ingenuidade em acreditar que algo mudará se apenas poucos estiverem comprometidos. Uma mudança radical deve envolver o maior número possível de pessoas, afinal, como nos ensina Mészáros (2008, p. 86): “[...] não se pode vencer uma força social poderosa pela ação fragmentada de indivíduos isolados.”


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1. CIÊNCIA E DIREITO.

1.1. Sobre a ciência.

O conhecimento científico é uma das formas específicas do ato de conhecer, se distinguindo, por exemplo, da filosofia e do senso comum. Segundo Borda (1981), a ciência é um produto cultural do intelecto humano respondendo a necessidades coletivas concretas e também aos escopos particulares determinados pelas classes sociais dominantes em períodos históricos precisos. Já para Marques Neto (2001, p. 55), o termo ciência se refere ao conjunto de procedimentos teóricos e metodológicos que visam à criação do saber científico, ou seja, à produção de teorias científicas, as quais resultam de um trabalho de construção e retificação de conceitos. Mas não é só isso, ciência também é a aplicação prática e concreta dessas teorias elaboradas. É importante ressaltar que é característica essencial da ciência trabalhar com o objeto do conhecimento, ou seja, o objeto construído, e não diretamente com o objeto real. Isso não significa que o cientista não trabalhe a realidade ou que ela não exista, mas que as abstrações científicas não são a realidade em si e sim construções mentais e conceituais, ou seja, moldura científica da realidade idealizada a nível cognitivo. Pode-se concluir do acima exposto que as teorias científicas não são reflexo do real, tal qual um espelho, mas que na realidade esse tipo de conhecimento, como qualquer conhecimento, é sempre uma aproximação, algo retificável. Exatamente neste sentido é que nos explica Marques Neto (2001. p. 48), quando afirma que o conhecimento científico “não constitui simples cópia, ainda que sofisticada, do real, mas uma assimilação deste às estruturas teóricas que sobre ele agem e o transformam.” De forma breve, podemos dizer que o conhecimento científico condiciona a realidade enquanto é condicionado por ela, o que, ao nosso ver, se trata de um aspecto dialético da produção da ciência.6 Dialeticidade no sentido de que é uma relação de ida e volta que envolve o todo complexo, pois a produção científica, como

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Haja vista que nosso entendimento é de que a dialética não é apenas um método científico, mas a própria constituição da realidade.


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construção teórica voltada para a realidade, modifica a sociedade enquanto é condicionada pelas condições concretas em que se produz. Como parte integrante do todo, a ciência, não pode ser entendida sem sua relação de interconectividade com os outros elementos do real. As ciências constituem sistemas teóricos resultantes de um processo de construção não só da teoria, mas também do método e do objeto, ou seja, o próprio método e o próprio objeto do conhecimento científico são uma construção teórica do cientista. Para a captação do real, ele utiliza um referencial teórico, é deste que se tira o método. Isso implica uma escolha a partir de premissas já dadas, condicionadas histórico e socialmente, sendo assim, toda pesquisa científica é sempre uma pesquisa direcionada e nunca neutra ou pura.7 Na realidade, as ciências não trazem verdades absolutas e incontestáveis e tampouco são atividades neutras. Como dito antes, o pesquisador ao iniciar seu procedimento de investigação já fez uma escolha dos aspectos da realidade que considera importantes de serem estudados e pesquisados, o que significa uma valoração do objeto. Aliás, como nos explica Kosic (1976. p. 13): A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é a de um abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente, porém, a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce a sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista a consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais.

O ponto de destaque é a maneira contundente com que as visões sociais de mundo, as ideologias e as utopias das classes sociais, condicionam o processo de conhecimento da sociedade, tornando a objetividade nas ciências sociais um problema muito mais evidente e questionável do que nas ciências da natureza.8 Porém, o que foi dito até agora não pode colocar em dúvida a possibilidade de conhecimento, afinal, acredita-se, junto com Löwy (2009), que mesmo sendo o ato

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Marques Neto (2001, p. 59) nos aclara dizendo que: "De fato, um cientista absolutamente neutro sequer iniciaria um trabalho de pesquisa, porque não seria capaz de ao menos escolher o que pesquisar, visto que essa escolha já implica numa valoração do objeto.” 8 Como nos informa Löwy (2009, p. 112): “O marxismo foi a primeira corrente a colocar o problema do condicionamento histórico e social do pensamento e a ‘desmascarar’ as ideologias de classe por detrás do discurso pretensamente neutro e objetivo dos economistas e outros cientistas sociais.”.


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cognitivo condicionado pelo social isto não significa a ausência de conhecimento, mas sua ‘particularização’, parcialidade, seus limites de validade. Por isso, não são os valores ideológicos e políticos determinantes absolutos da produção das teorias científicas. Isso se deve ao fato de que os instrumentos dos quais se serve a ciência são rigorosos - não obstante retificáveis comportando avaliar não só a coerência lógica de suas proposições teóricas como também o ajustamento destas às realidades que tentam explicar (MARQUES NETO 2001). Assim, quanto mais a ciência se questionar e se preocupar com os seus resultados, e quanto menos ela aceitar como ponto final as suas teses e menos for dogmática, mais essa ciência poderá se aproximar de um entendimento mais verdadeiro do objeto de seu estudo. Entende-se, deste modo, que a necessidade da ciência não está no sentido de que ela traz verdades absolutas e será a panaceia de todos os males, mas que sendo uma forma racional de ordenação da realidade nos permite não só a explicação desta última, como também operar a sua transformação.9 A ciência é importante para que nossa compreensão vá além da prática utilitária imediata, haja vista que, como nos fala Kosic (1976), essa prática imediata que dá origem ao senso comum, põe o ser humano em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e até manejá-las, contudo não proporciona uma maior compreensão delas e da realidade. Por outro lado, podemos dizer que o conhecimento científico, ao nos dar essa compreensão da natureza e de nós mesmos, se torna um elemento necessário à transformação consciente da realidade. Sobre esse aspecto, os marcos científicos que utilizamos no atual trabalho apontam para essa práxis transformadora. Afinal nunca pode ser demais acentuar que as ciências são um produto social e, nessa perspectiva, a produção científica há de ser necessariamente uma atividade engajada, empenhada com a problemática que a realidade social contém, e não uma brincadeira de diletantes que se entregam ao saber pelo saber, alienados do processo de transformação da história que a ciência ajuda a operar (MARQUES NETO, 2001). De outro modo podemos explicar que, fazendo parte do todo social, os estudiosos e cientistas tem efetivamente influência e ajudam a operar, conscientemente ou inconscientemente, a constante e irrefreável

A advertência que colocamos neste ponto é que: “O fundamento racional da pesquisa científica não está isento de contradições e muito menos de características irracionais, como a intuição e o sentimento ideológico” (COELHO, 1991, p. 219). 9


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transformação da realidade, resta que reconhecendo essa característica não fiquem os cientistas alheios ao processo ao qual estão inseridos. Assim, trabalhamos com o entendimento de que a ciência deve não só ser uma via possível de transformações sociais, como deve efetivamente buscar essas transformações. Não se trata, é claro, de uma predestinação natural e absoluta. Como uma construção social que é, a ciência não pode se reconhecer como algo absoluto e de significações a priori, mas deve se reconhecer como algo que é, sendo, em outras palavras, não pode ignorar que está em transformação e que só adquire significação pelos sentidos culturais do desenvolvimento histórico e social, ou ainda, pelos sentidos que damos a ela dentro da práxis teleológica humana. Não podemos finalizar esse tópico sem alertar para a necessidade da interdisciplinaridade, afinal, diante da riqueza da realidade e de sua extrema complexidade, nenhuma ciência dispõe de referencial teórico que lhe autorize adentrar em todos os seus aspectos. Por isso, entendemos ser imperativo que as pesquisas possam se desenvolver com natureza interdisciplinar, colocando cientistas de várias especialidades em articulação para explicar, à luz de enfoques teóricos combinados de duas ou mais disciplinas científicas, os aspectos comuns da realidade.

1.2.

Sobre o Direito.

O Direito é um fenômeno histórico-social complexo e de múltiplas dimensões, integrado por fatores sociais, políticos, econômicos, culturais e normativos. Não é correto, assim, chegar a um conceito de Direito válido para todas as épocas e sociedades, haja vista que seria necessariamente um conceito ahistórico, meramente formal e abstrato. É propriamente neste sentido que Pachukanis (1988, p. 22) nos avisa que: “[...] um conceito tão complexo como o Direito não pode ser captado exaustivamente por meio de uma definição obtida conforme as regras da lógica escolástica, per genus e per differentiam specificam.” Um tipo de definição do Direito que não considerar sua historicidade não poderá compreender o fenômeno jurídico no seu verdadeiro movimento, perdendo toda a riqueza das suas interações e das interconexões com o todo ao qual faz parte. Desta forma, não pode o fenômeno jurídico ser explicado por ele mesmo, pois o seu


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entendimento está vinculado às condições materiais das quais surge e se desenvolve, como bem salienta Marx (2008, p. 47): [...] as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essa relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições estas que HEGEL, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII, compreendia sob o nome de ‘sociedade civil’.

Neste sentido, “aquilo a que chamamos de direito é um fenômeno complexo e total, o qual não pode ser reduzido a uma de suas dimensões fáticas” (PAZELLO, 2010. p. 108). Aliás, conforme nos explica Lyra Filho (2006), nossas tentativas de definir o Direito, ou seja, quando buscamos o que ele é, estamos antes perguntando o que ele vem a ser, pois o seu conteúdo e sua forma de manifestação concreta são fatores que incessantemente se transformam dentro do mundo histórico e social. O que deve ficar claro para que não haja uma confusão de sentidos é que Direito e Ciência do Direito não são a mesma coisa. Direito se refere ao fenômeno histórico e social complexo, já a ciência do Direito é uma entre as várias ciências e tem como objeto de conhecimento o fenômeno jurídico. Podemos dizer assim que as escolas jurídicas não devem ser chamadas de escolas/universidade/faculdades de Direito, mas de ciências jurídicas. Como nos ensina Marques Neto (2001, p. 187): O fenômeno jurídico é a matéria-prima com que trabalha o cientista do Direito. Mas o objeto de estudo deste, como o de qualquer outro cientista, nunca é o fato bruto, a ser simplesmente apreendido, e sim o objeto de conhecimento, construído em função do sistema teórico da ciência do Direito.

É importante destacar que, como histórico e social, o fenômeno jurídico não pode negligenciar o seu caráter mutável, como também não pode pregar a sua neutralidade. Assim, mesmo que, ao modo dos positivistas, enxerguemos o Direito enquanto lei, não poderemos reconhecer qualquer norma jurídica como neutra, já que, indiscutivelmente, as leis estão inseridas em uma determinada sociedade e serão aplicadas em relação a sujeitos concretos. Na verdade, e por exemplo, o conteúdo de uma lei pode ser visto como justo em um país desenvolvido e ser tomado como injusto em um país de capitalismo tardio, não havendo assim qualquer tipo de neutralidade que se possa averiguar a priori e independente da realidade concreta, principalmente quando se tratar de uma


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realidade econômica excludente e muitas vezes não garantidora dos direitos básicos, como é o caso da nossa sociedade brasileira e latino-americana.10 Neste sentido, Agostinho Ramalho afirmando ser predicado da ciência do Direito, assim como das outras ciências, o caráter retificável dos conceitos (por se tratar de uma construção teórica), nos fala sobre as consequências de uma abordagem dogmática pois: Ignora-se, dessa maneira, o mais importante: que a elaboração teórica do Direito, como de qualquer outra ciência, resulta de um processo de construção e retificação de conceitos; que as normas jurídicas, também construídas, decorrem da opção por uma entre várias alternativas permitidas pela formulação teórica; que, tanto na elaboração das teorias como na construção das normas e na aplicação destas à realidade social, há todo um direcionamento ideológico que deve ser permanentemente submetido a crítica; que as leis foram feitas para a sociedade, e não a sociedade para as leis, de modo que a eficácia destas só pode ser medida, em última instância, por sua adequação à realidade social; que, por isso mesmo, as leis, embora devam ser cumpridas durante sua vigência, não podem prescindir de ser submetidas constantemente a questionamentos críticos que as renovem e lhes deem vida. (MARQUES NETO, 2001, p. 211)

Corriqueiramente reconhecemos que, na realidade concreta, não somos totalmente livres e nem todos iguais. Reconhecer as desigualdades e as diferenças é um papel importante de uma teoria jurídica que pense um direito conectado com o real. Porém, algumas teorias jurídicas acabam negligenciando sua característica concreta e formulando teorias idealista. Como nos exemplifica Pachukanis (1988, p 72): Depois de ter caído numa dependência de escravidão diante das relações econômicas que nascem atrás de si sob a forma da lei do valor, o sujeito econômico recebe, por assim dizer, como compensação, porém agora enquanto sujeito jurídico, um presente singular: uma vontade juridicamente presumida que o torna absolutamente livre e igual entre os outros proprietários de mercadoria.

Aqui ficam as lições de Wolkmer (2005): “Ao contrário das condições sociais, materiais e culturais reinantes nos países centrais do Primeiro Mundo, nas sociedades latino-americanas, as demandas e as lutas históricas têm como objetivo a implementação de direitos em função das necessidades de sobrevivência e subsistência da vida. Por isso, em tais sociedades, marcadas por um cenário de dominação política, espoliação econômica e desigualdades sociais, nada mais natural que configurar a pluralidade permanente de conflitos, contradições e demandas por direitos. Direitos calcados em necessárias prerrogativas de liberdade e segurança (tradição de governos autoritários, violência urbana, criminalidade, acesso à justiça, etc.), de participação política e democratização da vida comunitária (restrições burocráticas, poder econômico dirigente e o papel da mídia na condução dos processos eleitoral-participativos) e, finalmente, de direitos básicos de subsistência e de melhoria de qualidade de vida.” 10


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O que o supra citado autor quer nos dizer é que na sociedade capitalista, com sua pretensão unidimensional, a dimensão da liberdade foi eliminada. Contudo, não se tratando de uma eliminação confessa, foi a própria liberdade que converteu-se em instrumento de dominação. Desta forma, acreditar na neutralidade do jurídico, enquanto sistema desvinculado dos outros fatores sociais (inclusive desvinculado da desigualdade material), é uma falsa compreensão da realidade, pois a sociedade democrática se torna autoritária não na medida que tira nossos direitos civis e políticos, mas na medida em que a eleição se torna apenas o modo de reconhecer e legitimar os padrões estabelecidos dentro da ordem dominante injusta.11 Outro ponto importante é que os problemas da realidade não serão suprimidos única e exclusivamente por via das relações jurídicas, ou seja, não é o Direito, solipsisticamente, que nos levará a um novo tipo de realidade, aliás, as próprias formas jurídicas são moldadas pela estrutura social material. 12 É aí que está o grande problema da crise do Direito tradicional, que, ao não reconhecer e estudar o fundamento social do fenômeno jurídico, descarta toda e qualquer possibilidade de compreender a realidade concreta e dar respostas que efetivamente contribuam com os problemas sociais. Como afirma Wolkmer (2005): A crise portanto, no âmbito do Direito, significa o esgotamento e a contradição do paradigma teórico-prático liberal-individualista que não consegue mais dar respostas aos novos problemas emergentes, favorecendo, com isso, formas diferenciadas que ainda carecem de um conhecimento adequado.

Mas tal crise do Direito se refere mais especificamente a crise do paradigma monista, que é uma concepção consolidada ao longo da modernidade, segundo a qual o Estado é o centro único do poder e o detentor do monopólio de produção das normas jurídicas. Além do mais, os defensores do monismo jurídico pregam a autossuficiência do ordenamento jurídico. Para eles o direito é válido por si mesmo, assim não depende de nenhuma referência a valores morais ou políticos e também independe dos limites e insuficiências das instituições estatais.13

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Um exemplo, é que enquanto somos livres para trabalharmos no que quisermos, a exigência de emprego para todos é impossível de ser cumprida pelo sistema, que necessita de um exército industrial de reserva para regular o valor dos salários (OLIVEIRA, 2011). 12 Aqui também se trata de uma relação dialética, ou seja, as formas jurídicas também agem moldando a estrutura social. 13 Assim, segundo Carvalho (2010, p. 15): “Em termos concretos, isso significa que para o jurista – no âmbito do direito penal, por exemplo – importa apenas se determinado crime é formal ou material ou, ainda, se admite tentativa ou se pode ou não ser consumado por uma conduta omissiva. Pouco


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Na verdade o que a tese da autossuficiência do Direito ignora é que, como fenômeno histórico e social, ele também está condicionado pela sociedade do seu tempo. De fato, em cada momento e em cada parte, as instituições jurídicas têm refletido, ideologicamente, fragmentos parcelados, montagens e representações míticas que revelam a retórica normativa, o senso comum legislativo e o ritualismo dos procedimentos judiciais (WOLKMER, 2003). Conforme Carvalho (2010), para Boaventura Santos14 existe em nossa sociedade uma pluralidade de ordens jurídicas, acompanhadas por uma pluralidade de formas de poder e conhecimento. Esses espaços onde se estruturam formas de Direito aliadas a formas de saber e poder são: a) espaço doméstico; b) espaço da produção; c) espaço do mercado; d) espaço da comunidade; d) espaço da cidadania; e e) espaço mundial. Acontece que no capitalismo como sistema predominante apenas um desses espaços ganhou notoriedade no âmbito das discussões jurídicas e políticas, o espaço da cidadania. Este espaço privilegiado foi reconhecido como jurídico e político por excelência e os outros foram relegados a um segundo plano, isso não significa que os outros espaços não tenham se desenvolvido ou que não tenham importância, as vezes até central, para o Capitalismo, o que ocorre é que o espaço da cidadania foi tido como o lugar primordial para se pensar em mudanças e em democratização da sociedade. Desta forma, houve uma democratização e incorporação de uma série de princípios éticos e humanitários ao espaço da cidadania enquanto outros espaços estruturais continuaram sendo regidos por formas jurídicas muitas vezes autoritárias e despóticas. Assim, por exemplo, de nada adianta leis como a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) se, no espaço doméstico, as condições familiares continuam sendo regidas pelo patriarcado. A par disso, ainda segundo Carvalho (2010), a proposta do autor lusitano, Boaventura Santos, é uma “repolitização da vida social, de modo que a democracia

interessa o caráter seletivo do sistema penal ou o fato de que a defensoria pública não possui estrutura para oferecer serviços adequados aos seus assistidos ou, ainda, o fato de a polícia não respeitar as garantias constitucionais quando realiza diligências em bairros periféricos. Problemas como esses, segundo o esquema positivista, estão além do direito, pois envolvem uma análise empírica e valorativa, de maneira que não devem ser objeto da ciência jurídica.” 14 Para mais informações conferir: SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001. v. 1.


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não se restrinja ao espaço da cidadania, mas venha articulada com a democratização no âmbito dos demais espaços estruturais”. Para nós isso tem um significado tremendo, pois se de um lado pensar os espaços de articulação do saber/poder é entender que o Direito não pode estar preso à uma interpretação unívoca que considera a realidade como unidimensional, de outro, diante da complexidade e totalidade do real, não podemos pensar o direito abstraído da base material da qual faz parte, como se fossemos seres exteriores ao mundo. Por isso, e indo além, o ponto fundamental é que não adianta só o entendimento de que precisamos fazer um permanente confronto entre a norma vigente e o seu conteúdo social, mas sim que tal confrontação só terá sentido se a construção do conhecimento científico não estiver apartado dos espaços onde a sociedade se realiza de maneira multifacética. A aplicação do direito, então, deve estar articulada com a base material da sociedade, sensível aos problemas reais e comprometido com sua transformação democrática. Nas palavras de Roberto Lyra Filho (2006, p. 86): (...) Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e inacabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas.

Os Direitos, que são essencialmente sociais, devem ser pensados e trabalhados a partir das necessidades sociais concretas e em interação com elas, não de ideias a priori, desvinculadas da realidade. Ao falar do pluralismo jurídico Wolkmer (2005) expõe a importância da vinculação a essas necessidades: A hipótese nuclear da proposta é a de que a ineficácia do modelo de legalidade liberal-individualista favorece, na atualidade, toda uma ampla discussão para se repensar os fundamentos, o objeto e as fontes de produção jurídica. Ademais, a condição primeira para a materialidade efetiva de um processo de mudança, em sociedades emergentes, instáveis e conflituosas implica, necessariamente, a reorganização democrática da sociedade civil, a transformação do Estado Nacional e a redefinição de uma ordem normativa identificada com as carências e as necessidades cotidianas de novos sujeitos coletivos. Para além das formas jurídicas, positivas e dogmaticamente instituídas, herdadas do processo de colonização, torna-se imperioso reconhecer a existência de outras manifestações normativas informais, não derivadas dos canais estatais, mas emergentes de lutas, conflitos e das flutuações de um processo histórico-social participativo em constante reafirmação. (grifos nossos).


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O Direito é mais amplo do que a lei, já que esta é apenas uma expressão daquele, e se desenvolve no social com diversas formas de manifestação. Aliás, no plano político, o direito reduzido à lei serve apenas como uma instrumentalidade do poder. A edificação de um novo paradigma de ensino do direito que venha enfatizar mais diretamente as prioridades da sociedade envolve a articulação de um projeto pedagógico desmistificador, emancipatório e popular.


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2.

A EDUCAÇÃO E O ENSINO JURÍDICO.

2.1. A educação.

Em pleno século XXI ainda se faz presente uma ideia de educação que afirma ser o ensino um simples processo de transmissão de conhecimentos em que ao professor cabe apenas ensinar e ao aluno apenas aprender. É claro que uma educação assim é uma grave violação à autonomia dos educandos. Uma verdadeira aprendizagem deve trazer condições para que estes últimos se transformem em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo (FREIRE, 1996). A propósito da educação reducionista Marques Neto (2001, p. 209) nos avisa que: Tal entendimento acerca da atividade de ensino, infelizmente ainda muito generalizado, traduz claramente toda uma concepção autoritária do processo educacional, cuja prática tem consistido sobretudo na imposição ao aluno de determinados conhecimentos que ele deve docilmente aceitar e assimilar, sem maiores participações no processo mesmo de elaboração desses conhecimentos e principalmente sem um questionamento mais profundo que ponha em xeque a validade dos ensinamentos que lhe são ministrados, o fundo ideológico subjacente a esses ensinamentos e o porquê de serem esses e não outros os conhecimentos transmitidos.

Essa educação, enquanto simples acúmulo de conhecimentos, gera uma redução do aluno ao de um simples espectador passivo, desinteressado dos comandos que lhe vão sendo gradualmente ministrados. Em certo ponto a curiosidade dos educandos corre o risco de ser “castrada”, como nos adverte Aguiar (2004) quando fala que o ensino em geral e também o ensino jurídico, em particular, têm tido uma tendência a apresentar verdades prontas, soluções pré-formalizadas, receitas tópicas a partir de situações-problema e de principiologias cristalizadas. Estas prescrições acabam contribuindo para matar a curiosidade e inabilitar os estudantes, e mesmo os professores, para o enfrentamento do mundo tal como nos aparece. Uma educação que somente desenvolve e ensina prescrições, soluções prontas e verdades absolutas, não capacitará para o confrontamento dos problemas concretos. Por isso, o que se questiona é o fato de que o sistema educacional, em moldes reducionistas, não quer que pensemos os problemas sociais e a situação


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opressora, pelo contrário, quer apenas moldar nossa mentalidade e nos “ajustar” a uma sociedade injusta, ou seja, esse tipo de educação serve como ferramenta de reprodução de uma estrutura valorativa que contribui para perpetuar uma concepção de mundo baseada no lucro, na competição e no individualismo. Sobre a concepção do mundo específica do sistema mercantil é que nos fala Wolkmer (2009, p.2): A moderna cultura liberal-burguesa e a expansão material do capitalismo produziram uma forma específica de racionalização do mundo. Essa racionalização, enquanto princípio organizativo, define-se como racionalidade instrumental positiva que não liberta, mas reprime, aliena e coisifica o homem.

Dentro do atual sistema social a função da educação formal15 tem sido a de validar a exploração do trabalho como mercadoria, fazendo as vezes de método de “interiorização” da lógica existente, ou seja, induz os educandos à aceitação passiva de conhecimentos legitimadores de um modo de entender e reproduzir o mundo. Como excelentemente nos fala Mészáros (2008, p. 35): A educação institucionalizada, especialmente nos últimos cento e cinquenta anos, serviu – no seu todo – o propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão do sistema capitalista mas também o de gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhum tipo de alternativa à gestão da sociedade ou na forma "internacionalizada" (i.e. aceite pelos indivíduos "educados" devidamente) ou num ambiente de dominação estrutural hierárquica e de subordinação reforçada implacavelmente.

A educação tradicional que ainda hoje podemos constatar na maioria das escolas deste país, é uma educação da narração e do sujeito, ou seja, uma educação centrada no sujeito educador e na sua narração de verdades estáticas e praticamente esvaziadas de conteúdo social. O professor então é o depositador de conhecimentos e o aluno o espaço vazio a ser preenchido. É a esse modelo que Freire (2005) chama de “educação bancária”. O saber, para este tipo de ensino, é uma doação dos que se julgam sábios aos que estes julgam nada saber. Ignora-se assim o caráter

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Mas não só a educação formal tem importância aqui, como nos elucida Mészáros (2008, p. 43), pois a educação regular está estritamente integrada na totalidade das determinações gerais do capital. Determinações estas que também afetam profundamente cada âmbito particular com alguma influência na educação, e de forma nenhuma apenas as instituições educacionais formais. Aliás deve ficar claro que a educação formal não é a força ideologicamente primária que consolida o sistema do capital; tampouco ela é capaz de, por si só, fornecer uma alternativa emancipatória radical.


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permanente da educação, o que significa dizer que não existem seres educados e não educados, pois estamos todos nos educando. Existem graus de educação, mas estes não são absolutos. Por isso que Fiori (2005. p. 17) tem toda razão ao dizer que: Em regime de dominação de consciências, em que os que mais trabalham menos podem dizer a sua palavra e em que multidões imensas nem sequer tem condições para trabalhar, os dominadores mantêm o monopólio da palavra, com que mistificam, massificam e dominam. Nessa situação, os dominados, para dizerem a sua palavra, têm que lutar para tomá-la. Aprender a tomá-la dos que a detém e a recusam aos demais é um difícil, mas imprescindível aprendizado – é a “pedagogia do oprimido”.

Para pensar a “pedagogia do oprimido” é fundamental a visão dialética ao nos mostrar que a educação é mais que isso, nas palavras de Freire (1996, p. 22): “[...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. É necessária uma “humanização” da educação, através de um projeto a serviço da libertação, com sujeitos ativos e criativos que possuam uma concepção de mundo, de si mesmos e da cultura. Deste modo, não se trata de uma simples transferência de conhecimentos. Educação é conscientização e depoimento de vida, através dela podemos construir, libertar e reconhecer que a história é um campo aberto de possibilidades. Uma educação libertadora tem como função transformar o trabalhador em um agente político, que pensa, que age e que usa a palavra como arma (JINKINGS, 2008). Uma educação para além da educação bancária deve, portanto, andar de mãos dadas com a luta por uma transformação radical do atual modelo econômico e político hegemônico. Isso significa que para repensar a educação não se pode ficar atrelado a comandos sociais mistificadores. Toda prática pedagógica deve ser dialógica, pois, como já foi dito, toda educação deve valorizar os saberes de todos os envolvidos, o que traz a possibilidade de uma troca entre educandos e educadores, visando uma construção coletiva do conhecimento. Um bom exemplo para compreensão do tema é colocado por Sader (2008) ao dizer que a diferença entre explicar e entender pode dar conta da diferença entre acumulação de conhecimentos e compreensão do mundo. Assim, para ele, explicar é reproduzir o discurso midiático, receber informações que apenas são acumuladas e memorizadas, pois quase sempre somos capazes de explicar o que vemos na


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televisão ou nos jornais, porém, pouco conseguimos entender o significado de tais coisas, ou seja, entender é desalienar-se, é decifrar, é decodificar, é ter uma concepção crítica, é não apenas sabermos explicar o que vimos ou ouvimos, mas acima de tudo compreender o significado das coisas, dos acontecimentos, etc.

2.2. O ensino jurídico.

Na visão de Machado (2009), o ensino jurídico no Brasil está perdendo sua excelência científica e até mesmo sua qualidade técnica. Para o referido autor, várias causas contribuiriam para o referido rebaixamento do ensino jurídico no país, entre elas: massificação do ensino, ausência de programa de formação docente, crise do direito, baixo nível do ensino secundário e etc. Porém, a causa estrutural que é condicionadora principal do processo de empobrecimento jurídico é o modelo normativo e tecnicista de transmissão do saber jurídico, considerado o único paradigma do ensino do direito. O ensino jurídico atual, como toda educação formal, está subordinado a lógica inerente ao sistema social e por isso se faz necessário o conhecimento e o estudo das suas configurações sociais. Essa compreensão da lógica subordinadora da educação ao sistema capitalista ainda se torna mais preocupante ser tivermos em mente que: “No reino do capital, a educação é, ela mesma, uma mercadoria” (SADER, 2008. p. 16). Assim, dentro de uma sociedade subordinada à lex mecatoria e diante das exigências de presteza e eficácia impostas pela dinâmica do mercado, as técnicas de decisão e os esquemas de eliminação de conflitos, por suas agilidades e eficiências, sobrepujaram qualquer tipo de avaliação crítica questionadora dos fundamentos do direito e da realidade social, pois esta aparece como verdadeiro obstáculo ao progresso econômico. O saber jurídico ensinado tem sido baseado no paradigma epistemológico normativista-positivista, fechando-se na dogmática jurídica e desenvolvido segundo um método unidisciplinar. Assim, obedecendo uma racionalidade formal, o direito é visto independentemente da sua base material e histórica, sendo definido como compartimentos estanques e separado do todo social. No dizer de Machado (2009, p. 56):


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O pensamento formalista é mesmo a ideologia jurídica hegemônica no ensino do direito e não concebe o jurídico na sua totalidade sociopolítica, impedindo que as escolas de direito possam funcionar como loci para a discussão dos problemas sociais enquanto fatos jurídicos ontologizados substancialmente na base material da sociedade.

É aí que se encontra o verdadeiro divórcio entre o jurista, de formação formalista, e o meio social onde ele atua. Por outras palavras, podemos dizer que ao construir o seu conhecimento jurídico, formulando o Direito como coeso e simétrico, o estudante de direito não consegue usá-lo de maneira a interpretar a realidade concreta, já que não adequa a sua simetria lógica das normas ao entendimento da realidade conflitiva e desigual. Como nos leciona Warat (2010, p. 41): As escolas de Direito não preparam os graduandos, futuros profissionais do Direito, para enfrentarem os conflitos sociais de sociedades complexas como a nossa. Assim, temos essa Justiça porque o estudante de Direito, já na sua formação, internaliza hábitos que lhes marcam seu corpo como se fosse neutro, quando deveria ser o contrário.

De fato, como nos afirma Machado (2009), o que tem reinado no ensino jurídico é o autoritarismo didático transmitido por meio da aula-conferência centrada no professor e poucas vezes questionadas nos seus fundamentos pelos alunos. Desse modo, por meio de uma dinâmica autoritária, são repassados, como neutros, conteúdos que estão intimamente ligados às classes dominantes e ao mercado. Por isso, concordamos plenamente com Agostinho Ramalho Marques Neto quando afirma que a necessidade primordial do ensino jurídico é procurar libertar-se, juntamente com à ciência do Direito, de toda uma carga dogmática que o aliena. O meio disponível para tal intento é a formação de uma consciência livre e crítica. Só assim há a possibilidade de o jurista participar ativamente do processo de desenvolvimento integral comprometendo-se com as realidades e aspirações da sociedade e lutando pela construção de um mundo livre e igualitário, onde reinem a justiça e a paz (MARQUES NETO, 2001). Em outras palavras, o problema que deve ser realmente levado a sério é o da própria concepção do direito que se ensina, concepção que está intimamente engendrada no modo de produção da vida social. É neste sentido que Mészáros (2008, p. 35) nos instrui de qual mudança educacional precisamos:


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É por isso que hoje o sentido da mudança educacional radical não pode ser senão o rasgar da camisa de força da lógica incorrigível do sistema: perseguir de modo planejado e consistente uma estratégia de rompimento do controle exercido pelo capital, com todos os meios disponíveis, bem como com todos os meios ainda a ser inventados, e que tenham o mesmo espírito.

A maneira decisiva de enfrentar a questão é repensar o ensino jurídico a partir de sua base, pois as soluções não podem ser formais; elas devem ser essenciais, devendo abarcar a totalidade das práticas educacionais da sociedade estabelecida. Como nos esclarece Machado (2009, p. 55): A relação saber/poder evidencia que o ensino do direito não se resume apenas a um problema setorizado e de ordem meramente educacional. Tratase, na verdade, de uma problemática cuja compreensão está vinculada a “questões políticas, à legitimação do poder e à democratização das estruturas socioeconômicas”.

Dito de outro modo, pouco ou nada adianta a reforma de currículos ou programas sem que haja uma modificação da base social sobre as quais estão assentadas as práticas educacionais.


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3.

SOCIEDADE PARA ALÉM DO CAPITALISMO.

Cada época, em sua totalidade, enquanto base estrutural comum, cria limites que restringem as mudanças metodológicas e as transformações teóricas à uma acomodação aos seus horizontes, ou seja, a situação dada de uma época histórica, condiciona, nos limites de suas possibilidades, as perspectivas da ciência e do conhecimento, dando um certo caminho possível para o desenvolvimento destes. Por isso, existe um lugar comum nas teorias dominantes, que partem das aparências reais para construir seus modelos científicos e dificilmente conseguem sair do arquétipo capitalista ao qual estão inseridas. Nas palavras de Mészáros: [...] os parâmetros metodológicos fundamentais das épocas históricas são circunscritos pelos limites estruturais últimos de sua força dominante de controle sociometabólico e, como tal, são definidos segundo as potencialidades (e, evidentemente, também de acordo com as limitações) inerentes ao modo dominante de atividade produtiva e à correspondente distribuição do produto social total.

Em razão disso, para ir além dos problemas paradigmáticos de nossa época, hoje mais do que nunca, precisamos pensar em uma reorganização de conjunto de todo o modo de produção da vida social. Segundo Santos (2010) o Capitalismo é constituído por duas contradições essenciais que são: a) o poder social e político do capital sobre o trabalho e a tendência do capital para as crises de sobreprodução; e b) a tendência do capital em destruir suas próprias condições de produção sempre que confrontado por uma crise de custos. Desta forma o capital tende a se apropriar de forma autodestrutiva tanto da força de trabalho quanto da natureza. É neste sentido que pensamos em uma sociedade que seja fundada em critérios exteriores ao mercado capitalista. Como nos fala Löwy (2005), é imperativo que nossa sociedade esteja fundada em uma nova base social em que predomine o “ser” sobre o “ter”, isto é, da realização pessoal, pelas atividades culturais, lúdicas, eróticas, esportivas, artísticas, políticas, em vez do desejo de acumulação ao infinito de bens e produtos (esse desejo é induzido pela ideologia burguesa e pela publicidade, e nada indica que é uma “natureza humana eterna”).


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Se, de um lado, nossas propostas de ampliar os moldes estruturais, que norteiam nossas possibilidades sociais de conhecimento, apontam para o fim do sistema burguês como força dominante do “metabolismo” social, por outro, devemos deixar claro que precisamos de uma mudança qualitativa do desenvolvimento não só por motivos científicos ou teóricos por si sós. Um exemplo das necessidades reais motivadoras de se pensar para fora do atual sistema, é o colossal desperdício dos recursos que se funda na produção em grande escala de produtos inúteis ou nocivos, quando, segundo pensamos, a produção social deveriam ser direcionada para a satisfação das necessidades autênticas, que estão diretamente relacionadas a saneamento, alimentação, moradia, roupas, meio ambiente equilibrado (que são necessidades reais da população, não necessariamente “pagáveis”). Vivemos em um sistema social marcado por paradoxos em praticamente todas as suas esferas,16 nas palavras de Santos (2010, p. 43): “As irracionalidades parecem racionalizadas pela mera repetição”. Porém, diante deste panorama não podemos deixar que a máquina ideológica capitalista nos envolva, como vítimas, nas suas teias engendradas na própria forma de produção e reprodução do sistema, já que para os seus ideólogos o fim da história foi proclamado 17 e a ideia do empreendedorismo é propagada determinando que a “alternativa” possível é esquecer todo e qualquer tipo de utopia para além do capital e apenas acreditar nas promessas vazias nunca cumpridas pelo nosso próprio algoz.18 Se ainda não conseguimos modificar o modo de internalização historicamente prevalente, nossas colocações servem como forma de combater algumas das ideias que ainda permanecem generalizadas nos dias atuais. Uma 16

Como exemplos: os milhões de pessoas que morrem de fome todos os dias mesmo que o sistema mundial produza alimentos suficientes para alimentar toda a população (ZIEGLER, 2013); os bilhões de trabalhadores que tem que trabalhar incansavelmente horas a fio e dia a dia para garantirem a sua sobrevivência enquanto alguns milhares de afortunados tem mais do que precisam e vivem alheios ao trabalho; o grande mercado capitalista mundial que a par de ser um sistema de livre mercado é subordinado a uma porção de empresas que em grupo controlam a economia do mundo todo (CARMONA, 2012). 17 Sobre o fim da história o autor norte-americano Francis Fukuyama, professor de Economia Política Internacional, escreveu um livro intitulado “O Fim da História e o Último Homem”, que proclama uma teoria que defende o fim da história com o advento da democracia liberal capitalista. Durante mais de 300 páginas, Fukuyama, fazendo uso do pensamento filosófico-político de um conjunto de autores históricos como Platão, Hegel, Marx, tenta demonstrar que nos aproximamos, como sociedade global, do fim da história, não no sentido do fim da linha histórica, mas sim na perspectiva de que, como sociedade, não conseguiremos alcançar um patamar de desenvolvimento superior àquele que conseguimos com as democracias liberais capitalistas que têm dominado a forma de governo no mundo, com particular ênfase no pós queda das ditaduras de esquerda e de direita no mundo. 18 Aliás como nos alerta Mészáros (2008, p. 27): “[...] o capital é irreformável porque pela sua própria natureza, como totalidade reguladora sistêmica, é totalmente incorrigível.”


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dessas ideias é a opinião de que o ser humano é mal por natureza, invejoso, ganancioso e egoísta, aliás, sempre foi assim e sempre será. Visão que contém um horizonte ideológico, um conjunto das concepções de mundo ligadas a uma posição social, ou seja, uma visão social de mundo.19 Carcanholo (2008, p. 10) ao falar da perspectivas do neoliberais afirma: Graças a uma concepção metafísica, consideram que o ser humano é, por sua própria natureza transcendental, um ser egoísta e que o capitalismo é a forma mais perfeita de organização da sociedade, forma na qual o homem realizaria a sua essência, o egoísmo. Para eles, a humanidade teve história, mas já não mais a terá. O capitalismo é a realização do paraíso na terra e, por isso, a história chegou ao seu fim. Os males e as misérias que observamos nos dias de hoje na humanidade, em certos espaços, não são o resultado desse sistema econômico e social, mas da sua ausência. Os que defendem essa perspectiva são os neoliberais. É verdade que há muito de hipocrisia nesse pensamento e seus defensores mais cínicos chegam até a admitir e a sustentar que a pobreza é uma necessidade do sistema, na medida em que o risco que ela representa, para cada um, é o motor a garantir que o ser humano desenvolva todo o seu potencial produtivo.

Para muitos, a visão neoliberal acima colocada é uma verdade que se constata no dia-a-dia, isso em parte se justifica porque os mecanismos ideológicos de dominação, a integração da classe trabalhadora ao mercado consumidor, a difusão cultural, são alguns dos aspectos que corroboram para a perda de autonomia dos indivíduos (OLIVEIRA, 2011). A fonte maior de erro dos que compactuam com o pensamento neoliberal é não perceber que estão situados em uma determinada percepção da realidade e que são condicionados pelo modo de produção da vida social.

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Não está na essência do homem ser invejoso, ganancioso ou egoísta; isso

se realiza no plano histórico, econômico e social, em contextos determinados de relações sociais. Na realidade não é possível captar princípios eternos supostamente existentes no interior de nós mesmos, ou revelados por alguma divindade, ou ainda intrínsecos à chamada ordem natural. O que nas palavras de Löwy (2009, p. 16) circunscreve “[...] um conjunto orgânico, articulado e estruturado de valores, representações, ideias e orientações cognitivas, internamente unificado por uma perspectiva determinada, por um certo ponto de vista socialmente condicionado.” Aliás, é um juízo que corresponde não somente aos interesses materiais de classe mas também à situação social. como bem colocado por Sánchez Vázquez (2007, p. 31) o homem “[...] encontra-se imerso em uma rede de relações sociais e enraizado em um determinado terreno histórico. Sua própria cotidianidade está condicionada histórica e socialmente, e o mesmo se pode dizer da visão que tem da própria atividade prática”. 20 “As determinações estruturais objetivas da “normalidade” da vida cotidiana capitalista realizaram com êxito o restante [da educação], a “educação” contínua das pessoas no espírito de tomar como dado o ethos social dominante, internalizando “consensualmente”, com isso, a proclamada inalterabilidade da ordem natural estabelecida.” (MÉSZÁROS, 2008, p. 81). 19


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Acreditamos que há uma certa “cegueira branca” para uma grande parcela da sociedade e um exemplo disso é que muitas vezes esses defensores do sistema capitalista atribuem aos críticos da sociedade atual o epíteto de utópicos, e o falam em um sentido pejorativo, mesmo que curiosamente, para eles, acreditar que o capitalismo pode ser melhorado e “humanizado”, como muitas vezes é pregado, não é visto como uma forma de utopia. Ao pensar em uma sociedade para além do sistema social capitalista, na verdade, o que queremos é que a sociedade seja pensada tendo em vista os seres humanos concretos e a preservação da natureza, por isso que defendemos, junto com Jinkings (2008, p. 9), que “pensar a sociedade tendo como parâmetro o ser humano exige a superação da lógica desumanizadora do capital, que tem no individualismo, no lucro e na competição seus fundamentos.” Neste sentido, um pensamento conservador de manutenção do status quo nega a dinâmica da história humana enquanto campo em construção21, que não é alguma força mística externa, e intervenção de uma espantosa pluralidade de seres humanos no processo histórico real.

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Aliás, a dinâmica da história é normalmente negada por aqueles que tem a necessidade de manter o status quo, como o mito da acumulação primitiva, da qual Marx nos mostra a ironia da visão predominante: "A acumulação primitiva desempenha na economia política quase o mesmo papel que o pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e por isso o pecado abateu-se sobre a espécie humana. Pretende-se explicar a origem da acumulação por meio de uma anedota ocorrida num passado distante. Havia outrora, em tempos muito remotos, duas espécies de gente: uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo frugal, e uma população constituída de vadios, trapalhões que gastavam mais do que tinham. A lenda teológica conta nos que o homem foi condenado a comer o pão com o suor do seu rosto. Mas a lenda econômica explica-nos o motivo porque existem pessoas que escapam a esse mandamento divino. … Aconteceu que a elite foi acumulando riquezas e a população vadia acabou por ficar sem ter outra coisa para vender além da própria pele. Temos aí o pecado original da economia. Por causa dele, a grande massa é pobre e, apesar de se esfalfar, só tem para vender a própria força de trabalho, enquanto cresce continuamente a riqueza de poucos, embora esses poucos tenham cessado de trabalhar há muito. Tal infantilidade insípida nos é pregada todos os dias para a defesa da propriedade. … Na história real, é um fato notório que a conquista, a escravização, o roubo, o assassinato, em resumo, a força, desempenha o maior papel. Nos delicados anais da economia política, o idílico reina desde tempos imemoriais. … Como matéria de fato, os métodos da acumulação primitiva são tudo menos idílicos. … O proletariado criado pela separação dos bandos de servos feudais e pela expropriação forçada dos solos às pessoas, este proletariado 'livre' [vogelfrei, i.e., 'livre como um pássaro'] não podia ser absorvido pelas manufaturas nascentes tão depressa como foi atirado ao mundo. Por outro lado, estes homens, repentinamente arrancados do seu modo de vida habitual, não podiam adaptar-se repentinamente à disciplina da sua nova condição. Eles foram, em massa, transformados em pedintes, ladrões e vagabundos, em parte por inclinação, na maioria dos casos devido ao stress das circunstâncias. Portanto no final do século XV e durante todo o século XVI, por toda a Europa ocidental [foi instituída] uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da presente classe trabalhadora foram punidos pela sua transformação forçada em vagabundos e pobres. A legislação tratava-os como criminosos 'voluntários', e assumia que dependia da sua boa vontade continuarem a trabalhar sob as anteriores condições que de fato já não existiam. …Dentre os pobres fugitivos, acerca dos quais Thomas More diz que foram forçados a roubar, '72.000 grandes e pequenos ladrões foram mortos' no reinado de Henrique VIII.” (Karl Marx, apud MÉSÁROS, 2008, p. 37-38).


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Como bem coloca Freire (2005), a realidade social objetiva, não existe por acaso, é o produto da ação dos homens e desta forma também não se transforma por acaso. Por isso, diante de uma realidade que parece ter se voltado contra os homens, pois os condiciona, a sua transformação de “opressora” em “não opressora” é uma tarefa histórica, e como tal, tarefa do ser humano. É através de uma estruturação radical das nossas condições de existência que também ultrapassaremos as formas de pensamento pessimistas. Como nos informa Mészáros (2008, p. 60): Mas precisamente porque estamos preocupados com um processo histórico, imposto não por uma agência exterior mítica de predestinação metafísica (caracterizada como a inelutável "condição humana"), nem sem dúvida por uma "natureza humana" imutável – o modo como muitas vezes este problema é tendenciosamente descrito, – mas pelo próprio trabalho, é possível ultrapassar a alienação através de uma reestruturação radical das nossas condições de existência há muito estabelecidas, e por conseguinte "toda a nossa maneira de ser".

O ser humano é um ser incompleto, mas como ser real, que faz parte de um meio social e de uma realidade concreta, estar alheio as necessidades humanas e as injustiças sociais, não pode ser desculpada pela sua incompletude, afinal, não é uma simples escolha ideológica, mas principalmente uma escolha real. Opção justa ou injusta não na medida em que se compactua com nossa ideologia individuais, mas em relação a concretude do todo social histórico.22 Assim, os atos sociais humanos são tomadas de posição. Estejam as pessoas conscientes ou não da sua historicidade e sociabilidade, agir ou quedar-se inerte é uma escolha. Opção que tem reflexos no real, que por dentro de uma historicidade e concretude de seres reais significa estar ou não ao lado dos vencidos, dos oprimidos e dos injustiçados. Neste sentido toda a tentativa de alhear-se da luta por um mundo melhor, toda tentativa de ignorar as lutas sociais e todas as expectativas de individualismo são tomar o “lado” dos opressores. A pergunta que ainda pode surgir é a de que se a ciência não traz uma verdade absoluta e se a realidade não pode ser compreendida em todas as suas dimensões e nem se pode tirar conclusões absolutamente válidas, como então dizer que o ponto de vista até aqui colocado é mesmo correto? Essa resposta não é simples “Ora, o ideal de justiça não é absoluto e imutável, preexistente ao próprio homem, mas algo que se foi consolidando no decorrer da História, mediante o acúmulo de experiências vividas pelos seres humanos dentro das condições concretas de sua existência social.” (MARQUES NETO, 2001, p. 204). 22


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e de certa forma já foi colocada e debatida no tópico sobre ciência 23, porém, o que podemos enfatizar é que a complexidade de compreensão da realidade não retira sua característica como realidade concreta, ou seja, não é porque o ato cognitivo seja complexo e multifacetado que não haja conhecimento possível. A impossibilidade de um método que seja a fonte exata e absoluta do conhecimento não implica a inexistência de métodos melhores para se compreender a realidade e métodos absolutamente

ultrapassados,

ou

parcialmente

ultrapassados.

Aliás,

uma

relativização absoluta da ciência e do conhecimento não leva em consideração a realidade histórica e o acúmulo de conhecimentos24 que temos ao longo de milhares de anos. Desconhecer a história é ignorar o conhecimento e acreditar que tudo que se fala é abstração. Nossa condição de seres histórico-sociais e por isso inconclusos, não nos faz determinados de antemão, o que acontece é que as relações econômicas desiguais entre os seres humanos, a divisão social, privilegia uma camada da sociedade em prejuízo das demais, evitando a nossa realização enquanto seres de potencialidades.25 É por isso que precisamos pensar em um “humanismo social”, isto é, a efetivação da sociedade como humanidade, sendo para isso superação da divisão e da opressão social existentes. A consumação das potencialidades humanas aparecem como utópica face ao existente, mas não deve ser vista como impossibilidade, e sim como guia para sua realização. Por tudo que foi colocado, resta claro que precisamos ir além do capitalismo e para isso é necessário que busquemos o entendimento do ser humano como sujeito histórico e que tenhamos em mente o acúmulo social da humanidade e não apenas a história contada pelos vencedores, pelas elites dominantes - uma história que já encerra um horizonte ideológico -, mas a história dos vencidos, dos oprimidos, dos trabalhadores, que também não é neutra ou pura, mas que não pode ser menosprezada como geralmente tem sido feito.

23

Mesmo que o pensamento seja condicionado pelo social isto não significa a ausência de conhecimento, contudo sua ‘particularização’, parcialidade, seus limites de validade. 24 Não queremos dizer aqui que um conhecimento novo é apenas a junção de velhos conhecimentos, nem que se expressa sempre como uma continuidade, já que os conhecimentos novos muitas vezes são uma ruptura com os conhecimentos consolidados. O que queremos dizer é que os conhecimentos não nascem do zero. 25 “O capitalismo é a desrealização da essência humana, na medida em que os homens não desenvolvem suas potencialidades. O caráter alienado do trabalho e da própria sociedade humana contribui para tal desrealização.” (OLIVEIRA, 2011. p. 65)


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4.

ALTERNATIVA AO ENSINO JURÍDICO.

A complexidade da sociedade capitalista industrial, definida por um desenvolvimento contínuo e acelerado, abarcada por desajustes sociais decorrentes do súbito deslocamento de grandes massas populares do campo para a cidade, tem formado conflitos que não são mais abrangidos pela despreparada máquina judiciária e seu monismo jurídico. Como nos adverte Wolkmer (2005), o saber jurídico tradicional está em crise, já que as aflições e os imperativos do atual estágio da modernidade deixaram de ser mediados pelas verdades metafísicas e racionais que apoiaram durante séculos as formas de saber e de pensamento dominantes, dentre elas o normativopositivismo jurídico. Por isso, é imprescindível a recuperação da dimensão axiológica do direito e de sua ciência, bem como do conteúdo social da função do jurista. 26 Entendemos que uma nova forma de pensar os Direitos passa pela via da interpretação dialética, alargando-se o foco da educação jurídica para abranger as necessidades coletivas, inclusive as normas não-estatais de classe e grupos espoliados e oprimidos que emergem na sociedade civil. Aí está a importância da dialética, pois ao pensar a ciência do Direito não como uma simples cópia de qualquer realidade e sim como um sistema estruturado de proposições teóricas, dá aos sujeitos conscientes, munidos destas informações, a capacidade de voltando-se para o real assimilá-lo e transformá-lo, ou seja, construindo-o e retificando-o. É por isso que a dialética incomoda tanto, segundo nos fala Marques Neto (2001, p. 131-132): Ela não se satisfaz com considerar as normas jurídicas como algo dado, porque sabe que elas são construídas. E quer saber que critérios científicos e axiológicos presidiram essa construção; a que interesses estão servindo; e que tipo de compromisso efetivamente traduzem. Ela indaga, questiona, põe em xeque os princípios mesmos que regem a ordem jurídica; critica-os e, criticando, constrói, renova, retifica, humaniza.

26

É importante destacar que a ciência jurídica estudada nas universidades atuais também está diretamente relacionada a valores, mesmo que não se reconheça assim, já que nenhuma dimensão do espaço social está isenta deles, porém a interação valorativa construída nelas está imbricada com a visão social dominante, já que são instituições afastadas da luta do povo.


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Desta forma, abordaremos nos tópicos seguintes a teoria crítica do direito, o pluralismo jurídico e a construção do que denominamos o Direito Achado na Beira do Rio, tudo ao sabor da dialética.

4.1. Teoria Crítica do Direito.

De fato, o modo como o direito vem sendo tradicionalmente desenvolvido necessita ser repensado e modificado. Como nos diz Machado (2009), precisamos de uma profunda reforma do ensino jurídico, com uma consequente revisão dos projetos pedagógicos e dos conteúdos programáticos das disciplinas que compõem as grades curriculares, bem como a adoção de uma didática libertária e de fisionomia dialógica. O que ocorre é que o ensino do direito, atualmente, não se mostra disposto a realizar uma revisão e transformação da sua metodologia. Por isso, tem surgido alguns agrupamentos de juristas que comungam de visões críticas e desenvolvem teorias à margem da teoria monista dominante. Tais grupos entendem que diante do esgotamento dos paradigmas tradicionais do direito é preciso se colocar em cheque a epistemologia normativo-positivista, que tem se afirmado como única via na interpretação da ciência do direito.27 Nas palavras de Wolkmer (2009, p. 5): [...] pode-se conceituar teoria crítica como o instrumental pedagógico operante (teórico-prático) que permite a sujeitos inertes e mitificados uma tomada de consciência, desencadeando processos que conduzem à formação de agentes sociais possuidores de uma concepção de mundo racionalizada, antidogmática, participativa e transformadora. Trata-se de proposta que não parte de abstrações, de um a priori dado, da elaboração mental pura e simples, mas da experiência histórico-concreta, da prática cotidiana insurgente, dos conflitos e das interações sociais e das necessidades humanas essenciais.

Acerca desses agrupamentos de visões críticas nos fala Machado (2009, p. 27): “No âmbito do ensino e da teoria do direito, sobretudo em faculdades e institutos onde as cadeiras crítico-teóricas estão sob orientação de professores com pensamento de tendência progressista, já é possível identificar movimentos críticos, que compõem, por assim dizer, a corrente crítica do direito, tais como o movimento do ‘direito achado na rua’ (Unb) coordenado pelo professor José Geraldo de Souza Júnior; a Nova Escola Jurídica Brasileira, de Roberto Lyra Filho; o ‘direito insurgente’ (Rio de Janeiro); o ‘uso alternativo do direito’ (Rio Grande do Sul); Núcleo de Estudos de Direito Alternativo (NEDA) da Unesp de Franca e outros movimentos cujas desinências revelam sempre o caráter contestatório dos mesmos, como é o caso ainda dos movimentos críticos que falam num ‘uso democrático do direito’, no ‘direito natural de combate’ ou no ‘direito achado na luta’ etc.” 27


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De nossa parte, acreditamos que dentro de um sistema social que se mostra excludente e antidemocrático é fundamental a proposição de outros modelos para o direito e para a ciência jurídica, modelos flexíveis e pluralistas, comprometidos com a transformação da realidade. É imperativo romper com o forte conteúdo ideológico, quer do empirismo, quer do idealismo, e abrir caminho para uma elaboração científica não propriamente “purificada de toda ideologia”, como querem os positivistas, mas com um substrato ideológico que, por ser também constantemente submetido à crítica, não se faz incompatível com a natureza das explicações científicas. Desta maneira, uma nova forma de pensar o direito não pode seguir apartada da compreensão do político, pois como nos alerta Sánchez Vázquez (2007, p. 34): A despolitização cria, assim, um imenso vazio nas consciências que só pode ser útil à classe dominante que o preenche com atos, preconceitos, hábitos, lugares comuns e preocupações que, enfim, contribuem para manter a ordem social vigente.

Considerar os Direitos como dimensões não políticas, como pensa uma grande esfera da sociedade, só pode contribuir para a exclusão dos operadores dos jurídicos, assim como do resto da população, da participação consciente na solução dos problemas econômicos, políticos e sociais, fundamentais. Tal atitude só pode ser benéfica para uma minoria que, ao gosto apenas nos seus interesses particulares, usa a via da mistificação política para, sozinha, se encarregar das tomadas de decisões. Para fugir dessa armadilha é que a crítica ao direito deve ser levada à cabo, pois, como nos diz Wolkmer (2005): A intenção da Teoria Crítica consiste em definir um projeto que possibilite a mudança da sociedade em função de um novo tipo de “sujeito histórico”. Trata-se da emancipação do homem de sua condição de alienado, de sua reconciliação com a natureza não-repressora e com o processo histórico por ele moldado. A Teoria Crítica tem o mérito de demonstrar até que ponto os indivíduos estão coisificados e moldados pelos determinismos históricos, mas que nem sempre estão cientes das inculcações hegemônicas e das falácias ilusórias do mundo oficial. A Teoria Crítica provoca a autoconsciência dos atores sociais que estão em desvantagem e que sofrem as injustiças por parte dos setores dominantes, dos grupos ou das elites privilegiadas. Neste sentido, ideologicamente a Teoria Crítica tem uma formalização positiva na medida em que se torna processo adequado ao esclarecimento e à emancipação, indo ao encontro dos anseios, dos interesses e das necessidades dos realmente oprimidos.


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Segundo Pazello (2013), o conjunto de teorias críticas do direito deu à luz a várias posturas teórico-práticas, que ele classifica em: plurais, alternativas e insurgentes. Para o referido autor, a vertente plural se identifica com o positivismo de combate, a partir do que se difunde técnicas jurídicas e discursos hegemônicos para levar às últimas consequências sua fraseologia democrática e coletivista; já o uso alternativo do direito incide na formulação de uma nova hermenêutica jurídica, fazendo com que a técnica não só aprofunde o que diz, mas que diga mais do que se costuma dizer; e o terceiro viés, o direito insurgente, se funda na percepção do intuito de instauração de um contradireito ou o encontro com direitos outros para além do oficial, tendo por grande contribuição demonstrar os severos limites de uma atuação estatalista (ainda que isto não signifique, necessariamente, rejeição plena do estado), bem como apontar os obstáculos intrínsecos às relações sociais burguesas. Para finalizar podemos dizer, junto com Machado (2009), que a proposta da teoria crítica, em termos gerais, é pensar em como orientar as atitudes práticoteóricas dos juristas e estudantes para um uso democrático do direito, partindo-se de uma hermenêutica que, sem descartar a exegese da lei razoavelmente vinculada a determinados padrões de legalidade, possa-se, contudo, realizar uma interpretação que ultrapassa a ordem normativa vigente para captar-lhe o sentido valorativo e suas funções de promoção social e progressista, orientados pelo critério da inclusão social, com a finalidade de fazer do direito um dos instrumentos de transformação sociopolítica, econômica e cultural.

4.2.

Pluralismo jurídico.

Segundo Carvalho (2010), a história do pluralismo jurídico no Brasil se inicia a partir da pesquisa de doutorado de Boaventura de Sousa Santos, realizada em uma favela do Rio de Janeiro, na década de 1970. Desde então, tal teoria tem tido diversas repercussões e “pode-se dizer que os caminhos (e os descaminhos) do pluralismo jurídico confundem-se com o próprio desenvolvimento e afirmação da sociologia do direito e da crítica jurídica no país” (CARVALHO, 2010, p. 13). As teorias pluralistas, em contraposição ao monismo jurídico, reconhecem que o direito tem múltiplas fontes, ou seja, manifestações legítimas de juridicidade fora


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do Estado.28 Assim, não há apenas uma, mas diversas ordens jurídicas regulamentando as práticas sociais. Também reconhecem o direito como produto de relações sociais e, por isso, interconectado com a política, moral, religião, cultura etc. Um conceito de pluralismo jurídico pode ser encontrado em Wolkmer (2009, p. 189), que o conceitua como: "a multiplicidade de práticas existentes num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais." Segundo Ribas (2010), a proposta de Antônio Carlos Wolkmer de um pluralismo jurídico, que este último denomina comunitário e participativo, é uma redefinição do espaço público para a construção de uma nova cultura jurídica pela ação participativa de sujeitos insurgentes, das novas formas de legalidade enquanto expressão de interculturalidade. De fato, é impossível ao Estado ser a única fonte de direitos, e isso é ainda mais óbvio em países do chamado capitalismo tardio, em que o Estado, muitas vezes, não consegue ao menos garantir os direitos básicos dos cidadãos e onde as pessoas reiteradamente, ao se sentirem distanciadas do Poder Judiciário, acabam por desenvolver seus próprios mecanismos de resolução de conflito. 29 Neste viés, o pluralismo jurídico é antes uma situação fática do que uma construção teórica e está relacionado com a prática social das experiências concretas de juridicidade e, no que se refere a abordagem teórica, seus pensadores se propõem a refletir sobre essas experiências concretas e sobre as consequências e críticas que elas ensejam ao sistema do monismo jurídico e ao estado moderno (ALBERNAZ; WOLKMER, 2010). Mas o cuidado que devemos tomar no trato do pluralismo jurídico é o de identificar que mesmo esse direito paralelo ao oficial muitas vezes é um subproduto do direito capitalista e contaminado por idênticos valores. Aliás, porque são frutos das necessidades existenciais, materiais e culturais, não significa que esses direitos paralelos aos estatais são sempre direitos para liberdade (como temos buscado aqui),

Segundo Barbato Jr (2010, p. 225): “Fontes capazes de gerar obrigações e impor condutas são produzidas reiteradamente em determinados segmentos do tecido social e mostram-se de tal sorte ubíquas que seria impossível fechar os olhos para acontecimentos que delas defluem. Trata-se de fontes não encontradas na esfera do direito estatal.” 29 O direito enquanto emaranhado de normas técnicas assume um forma quase mística ao cidadão comum. Poucos sabem do jurídico, também falta muita informação de como devem bater à porta do poder judiciário. Além do que, na maioria das vezes, as demandas levadas ao judiciário são tão demoradas e caras que é fácil acreditar que é um caminho inviável. 28


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um exemplo é o pluralismo jurídico que se constata nas favelas afetadas pelo narcotráfico.30 Outro exemplo de pluralismo não identificado com o viés libertador é o que podemos chamar de Projeto Conservador de Pluralismo, que é de caráter liberal e atomístico, consagrando uma estrutura privada de indivíduos isolados, mobilizados para alcançar seus intentos econômicos exclusivos. Assim, como nos informa Albernaz e Wolkmer (2010), neste tipo de pluralismo a ênfase se dá sobre processos como a globalização e a acumulação de capital, a desregulação estatal, a formação de blocos econômicos, as políticas de privatização, a flexibilização do trabalho, etc. Por hora, o que queremos destacar é que diante da insuficiência do paradigma monista, de tradição liberal e estatalista, em dar respostas as problemas sociais complexos, sobressai-se o pluralismo jurídico como meio de repensar e incorporar os novos padrões de referência e legitimação, por um horizonte pluralista, interdisciplinar e transcultural. É esse o tipo adotado aqui, ou seja, um projeto edificado nas bases de práticas sociais insurgentes e autônomas, que veem na satisfação das necessidades humanas o seu “carro chefe”, por isso, pensa-se em uma reorganização, desconcentração e descentralização do espaço público no intento de multiplicar os seus locais de decisão, construção de conhecimentos e seu caráter democrático.

4.3.

Direitos achados na beira do rio.

Se com a modernidade houve um esgotamento e uma limitação dos modelos culturais, normativos e instrumentais que justificaram o mundo da vida. É a partir destes marcos que existe a exigência de se pensar ou repensar padrões alternativos de referência e legitimação31. “[...] os grupos de traficantes que se tornaram poderosos impõem à comunidade seu próprio código, definindo que forma de violência é permitida e quem pode praticá-la. A percepção dos favelados – na verdade, da maioria da classe operária – de que para eles a Justiça formal não funciona, levou uma parcela dessa população a aceitar um sistema de justiça alternativo.” (LEEDS, 1998, p. 243 apud BARBATO JR, 2010, p. 229). 31 Wolkmer (2000, p. 87-88 apud BARBATO JR, 2010, p. 236) pondera que a legitimidade “implica uma noção substantiva e ético-política, cuja existencialidade move-se no espaço de crenças, convicções e princípios valorativos. Sua força não repousa nas normas e nos preceitos jurídicos, mas no interesse e na vontade ideológica dos integrantes majoritários de uma dada organização social. Enquanto conceituação material, legitimidade condiz com uma situação, atitude, decisão ou comportamento 30


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O Direito Achado na Beira do Rio é proposto aqui como o espaço alternativo de construção de direitos e tem como referência o Direito Achado na Rua, movimento nascido na década de 1980 e capitaneado pela UNB. Assim, este espaço teórico se justifica pela necessidade de trazer um tratamento desmistificador ao pensamento jurídico. O que se quer é a abertura de um campo de possibilidades na interpretação das normas jurídicas fundado em uma concepção crítica do direito e interconectada com a luta do povo32, ou seja, construindo junto com ele. A ideia de Direitos Achados na Beira do Rio nasceu a partir do Festival de Direitos, evento que foi uma iniciativa de um alguns estudantes do campus de Santarém – Pará, da então Universidade Federal do Pará (UFPA), junto com a coordenação do Professor Doutor Luiz Otávio Pereira. De início o evento foi pensado como sendo uma espécie de sátira da universidade que tínhamos, conservadora e tradicional, mas não era a única ideia, almejávamos também um local onde os Direitos pudessem ser ampla e criticamente discutidos não só pela comunidade acadêmica, mas também pela sociedade civil e pelos diversos movimentos sociais. Surge então o primeiro Festival de Direitos que ocorreu em novembro de 2008, com o tema “A transversalidade dos direitos e a insurgência de novos direitos no século XXI”, o segundo, em 2009, trouxe o tema “Outros Direitos são possíveis? Resistências, Aporias e Paradoxos Políticos”, porém este foi o último Festival coordenado pelo professor Luiz Otávio. De 2010 em diante o Festival passou a ter no protagonismo estudantil sua principal e fundamental força. Passou a ser organizado pelo Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Cabano (Najup Cabano), gerido essencialmente por estudantes que agora faziam parte do quatro discente da recém formada Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA)33.

inerente ou não ao poder, cuja especificidade é marcada pelo equilíbrio entre a ação dos indivíduos e os valores sociais, ou seja, a prática da obediência transformada em adesão é assegurada por um consenso valorativo livremente manifestado sem que se faça obrigatório o uso da força.” 32 “Segundo Dussel, povo é a categoria estritamente política que engloba a unidade de todos os movimentos, classes e setores explorados. O povo estabelece uma fratura na comunidade política, são os insatisfeitos em suas necessidades pela opressão e exclusão. É o oposto às elites, às oligarquias, às classes dirigentes de um sistema político.” (RIBAS, 2010, p. 83). 33 Primeira universidade pública federal sediada no interior da Amazônia, foi criada pela Lei nº 12.085, de 5 de novembro de 2009, a partir da incorporação das unidades da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) em Santarém - Pará.


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O primeiro Festival organizado pelo Najup Cabano recebeu o tema: “Por um Direito Achado na Beira do Rio” (2010). No ano seguinte o Festival trouxe à baila o tema: “Direito, Poder e Opressão nos (Des)caminhos da Amazônia” (2011). Em 2012 e 2013 o evento retoma “por um direito achado na beira do rio” agora como subtítulo dos temas “Sujeitos Coletivos de Direito e os Limites da Democracia: por um Direito Achado na Beira do Rio” (2012) e “Por que estudar Direito hoje? Por um Direito achado na beira do rio” (2013). Neste viés, o presente trabalho é uma tentativa de pensar e contribuir para a construção de um modelo que é um uma aproximação da ideia do Direito Achado na Rua, que, na conceituação dada por Sousa Júnior (2008, p. 5) é: [...] expressão criada por Roberto Lyra Filho ... cujo objetivo é caracterizar uma concepção de Direito que emerge, transformadora, dos espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática.

Entende-se assim que é a rua (o espaço público) o lugar legítimo para a construção e reconstrução do direito inserido na sociedade, e neste mesmo sentido, ou semelhante, o debate e construção de um Direito Achado na Beira do Rio colocase como uma proposta de se pensar a universidade no interior da Amazônia a partir dos espaços públicos comunitários e tendo como sujeitos os trabalhadores, a população ribeirinha, as populações tradicionais e os povos da Amazônia. É, assim, uma proposta que entende a universidade como lugar onde se deva produzir um ensino crítico e transformador, partindo-se de uma pesquisa socialmente referenciada e uma extensão popular com a finalidade de promover a transformação social. Desse modo, se une ao povo para fazer a partir dele e junto com ele os novos marcos a partir dos quais devemos pensar os direitos, a realidade e a própria ciência. Insere-se na linha do pluralismo jurídico crítico de aspecto emancipatório, desenvolvendo uma crítica de perspectiva dialética. Partindo do método históricocrítico, apresentamos uma proposta de hermenêutica que deve ir além do procedimento passivo e formal, tomando uma feição material e criativa, permitindo uma postura de abertura visando o reconhecimento da práxis social de


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reinterpretação, de reconcepção do direito e em busca da construção legítima de uma organização social de liberdade. Como nos referenda Sousa Júnior (2008, p. 5), porém ao falar do direito achado na rua: Esta proposta está imbuída de um claro humanismo, pois toma o protagonismo dos sujeitos enquanto disposição para quebrar as algemas que os aprisionam nas opressões e espoliações como condição de desalienação e de possibilidade de transformarem seus destinos e suas próprias experiências em direção histórica emancipadora, como tarefa que não se realiza isoladamente, mas em conjunto, de modo solidário.

O que queremos destacar é que a cidadania e a participação popular deverão ser a base para o desenvolvimento de uma estratégia pedagógica para a consecução de direitos e de modificações das atuais condições opressoras. Ressaltase também que para pensarmos na construção de uma universidade popular, o protagonismo estudantil e a vinculação com as classes populares são aspectos fundamentais (PAZELLO, 2013). É essencial que não só o povo vá a universidade, mas que principalmente a universidade vá ao povo, não para levar cidadania, conhecimento ou construir para ele, mas para fazer cidadania com ele, ou seja, construir conjuntamente e produzir novas formas de pensar a partir de suas perspectivas e necessidades. Neste sentido é que reivindicamos a concepção de educação de Freire (2005, p. 78), pois: [...] a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação “bancária”, mas um ato cognoscente.

Os estudantes devem conhecer as demandas da população, vivendo suas esperanças, lutando ao seu lado e construindo ciência a partir desta interação. É assim que florescerão novos conhecimentos, que surgidos do povo e dos estudantes na luta organizada e definida conforme a ideia de transformação e socialização de vidas, fogem daquelas noções predeterminadas. A universidade deve destruir-se enquanto instituição oficinal de produção de ciência e dar ao povo a possibilidade de ser o real local de construção democrática de novos conhecimentos emancipadores.34

É no mesmo sentido que entendo a fala de Pazello (2013) ao dizer: “A universidade insurgente sintetiza a transição de dentro da ordem para a sua exterioridade e, portanto, sintetiza a própria extinção 34


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É devido a isso que defendemos que uma Universidade Popular deve construir-se enquanto forma de transformação da sociedade, não em gabinetes ou em salas de aulas (de uma universidade distante da luta do povo), mas na própria interação com a realidade. Tomará, então, partido na luta por uma sociedade melhor e suas construções científicas não serão teorias apartadas da realidade, mas a própria interpretação autêntica da realidade enquanto se busca mudanças para os problemas reais e vivos. É claro que não se trata de incorporação do senso comum, de modo irreflexivo, mas de uma (re)organização e uma coletivização dos espaços democráticos. O que se deseja é a abertura das condições para que o povo mesmo seja o sujeito da sua própria emancipação, que será construída na luta consciente pela mudança das condições existentes. Afinal, como nos coloca Löwy (2009, p. 188): “[...] é senão por uma atitude partidária e politicamente engajada que a teoria pode atingir a verdade objetiva – uma proposição dialética que supera as vulgaridades analíticas do positivismo pretensamente ‘livre de julgamentos de valor’”.

da universidade e potencialidade de se pensar em uma nova formação prático-teórica para a humanidade.”


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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Recebemos estímulos de uma realidade complexa e contraditória que é formada, e deformada, por um sistema social específico, fruto de relações históricas e sociais determinadas, desta forma nunca é fácil ter uma visão para além dos horizontes que nos é dado, ainda mais quando, no sistema de educação formal, o “ensino” é muitas vezes “castrador”. No ensino do Direito que temos hoje, dentro das escolas jurídicas, há uma série de deficiências que, em regra, não possibilita aos estudantes uma formação que realmente possa transformá-los em sujeitos conscientes da complexidade do seu tempo. O que tem se desenvolvido é apenas a ideologização para um conjunto de visões sociais de mundo que aparentemente é neutro e que seria o único possível. É aí que tem importância o estudo crítico do direito, desnudando a pretensa neutralidade axiológica do positivismo e tecnicismo e nos mostrando que nossos caminhos são feitos de escolhas e que não escolher conscientemente é escolher inconscientemente, o que em linguagem mais técnica equivaleria a um erro culposo. Por isso, propomos um ensino do Direito que não pode ficar alheio ao povo e não só isso, deve procurar também por novas possibilidades de direitos e sociabilidades para além dos critérios estatais, ou seja, as novas formas de juridicidades não podem ser encontradas nos tribunais, nas cátedras ou na cabeça de alguns sábios, e sim na própria conscientização coletiva e na luta por condições de vida melhores para os que pouco ou nada tem. A visão crítica que indicamos aqui, considerando a nossa realidade, são o que denominamos de Direitos Achados na Beira do Rio, ideia não tão original no nome, mas que se pauta na originalidade da abordagem de construção de um novo ensino do Direito, pois para se fazer uma mudança radical, na condição atual, nos é exigido uma intervenção consciente não só na educação jurídica ou mesmo na educação como um todo, mas em todos os domínios e em todos os níveis da nossa existência social. Acreditamos que a possibilidade de uma mudança significativa só pode ocorrer em alicerces sociais diferentes, onde homens e mulheres possam se desenvolver como seres éticos, políticos e emancipados. Ignorar a base social dada e tentar mudanças apenas a nível das superestruturas é não levar em conta a interconexão dialética de todas as dimensões da realidade e, desta forma, as novas


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tentativas de construção do ensino jurídico não podem se furtar de conjugar essas transformações. Por certo não conseguiremos mudar de forma permanente a situação vivida se não levarmos em conta esses problemas colocados. Porém, dentro da multifacetada, complexa e contraditória realidade não se pode falar em soluções, mas em possibilidades. A proposta de Direitos Achados na Beira do Rio não se coloca como a salvação do mundo, nem tampouco deseja identificar todas as formas de juridicidades existentes, e sim como ideia possível para se pensar em caminhos alternativos e plurais. Entende-se que precisamos de bases sociais diferentes para se pensar em uma mudança qualitativa da realidade e que é fundamental a contribuição permanente da educação ao processo de transformação conscientemente dirigido. Deste entendimento retira-se que somente com uma concepção ampla de educação é que podemos ajudar a fazer uma transformação legitimamente radical e construir alavancas que irrompam a lógica mistificadora do capital, mas não se deve iludir com a ideia de que a crítica, de per si, mudará a realidade, afinal, em última análise, são os seres humanos concretos, e não as ideais abstratas que fazem as revoluções. Não é suficiente que o pensamento procure se realizar, é necessário que a própria realidade deva, igualmente, compelir ao pensamento. O que deve ficar claro é a insuficiência de pensarmos em mudanças no direito sem pensarmos em mudanças nas outras dimensões sociais. Como a realidade social é histórica e por isso mutável, a tarefa primordial do homem é, então, a intervenção efetiva continuada no processo social em andamento por meio da atividade dos indivíduos sociais conscientes dos desafios que têm de confrontar. Em outras palavras, temos uma realidade concreta que nos condiciona, muitas vezes de forma negativa, o primeiro passo é reconhecer o condicionamento social, e então modificar essa realidade, para que, através da mudança e por meio dela, pois este processo de desconstrução do dado e construção do novo é um campo de conhecimento por excelência, possamos construir os valores e os conteúdos que farão parte da sociedade do futuro. É só através da prática, do trabalho, da luta e da interação do próprio ser humano com seu meio e com os outros, que ele se forma, aprende, que ele se torna “humano”. Nossos sentidos são o carro chefe desta transformação, sem eles não poderíamos nada, nosso corpo e suas funções biológicas fazem parte desta


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construção, trazendo possibilidades de sensações e conhecimentos, e, por isso, o fator principal na construção do ser é a relação concreta com o meio social e com os outros seres, pois não existe um ser humano fora da história, a-histórico e universal, portanto não existe uma essência humana imutável. Da mesma forma, não existe um direito universal, aliás, o sentido que damos às coisas sociais são sempre um produto da história e das interações humanas, ao ponto de podermos dizer que não existe sentido nas coisas consideradas em si mesmas. Não é tarde para lembrar que estar ou não ao lado dos oprimidos é uma escolha concreta, ética ou antiética, justa ou injusta na medida em que fecha ou abre os horizontes de constituição de uma sociedade qualitativamente melhor. Mas não se trata de uma justiça em um sentido abstrato, mas em um sentido concreto e histórico, concretude e historicidade interpretada conforme os conhecimentos conquistados durante o processo de transformação da sociedade. Querer conservar o “status quo” é lutar, consciente ou inconscientemente, ao lado de quem oprime, é compactuar com as injustiças sociais diárias. Do mesmo modo, a pretensão à neutralidade, dentro das características concretas da nossa sociedade, e dentro da historicidade que estamos inseridos, é estar ao lado dos mais fortes, das elites, é compactuar com o sofrimento do povo e com as injustiças sociais. A possibilidade de (re)interpretação do direito está, com toda certeza, calcada em valores como a esperança, o amor, a fraternidade, a igualdade, a liberdade, a solidariedade, o compromisso, mas nada disso apenas em um sentido formal. Não é com valores absolutos e desligados da realidade vivida que construiremos uma teoria crítica capaz de romper com o as teorias tradicionais e obsoletas, e sim com valores construídos, experimentados, enriquecidos e compreendidos na própria luta por uma sociedade melhor. Como estudantes e juristas, devemos acordar o direito do “sono” dogmático, mas não só isso, devemos romper o véu místico da neutralidade axiológica. Não para que nos digam o que ele é, mas para que o “pintemos” das nossas cores, que o “pintemos” de negro, de mulato, de índio, de branco, de pardo, de homem, de mulher, de travesti, de hétero e homossexuais, que o “pintemos” com a nossa luta, com liberdade, com amor, enfim, com realidade da maneira como ela é vivida. Mas para isso não podemos continuar divinizando o direito estatal em detrimento de todos os outros, pois é notória a existência de várias formas de


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normatividade que extrapolam o âmbito legalista e que podem, em muitos casos, ser alternativas viáveis para pensarmos possibilidades que realmente deem respostas aos problemas sociais. Também não é nossa intenção colocar a ciência acima de qualquer suspeita, pois um culto à ciência, distanciada das lutas sociais, só tem favorecido as classes que estão no poder. Temos que colocar a ciência no seu devido lugar, ao lado povo, lá é onde ela pode buscar saídas para a crise de paradigmas que a assola. Não é nossa pretensão afirmar que trará verdades absolutas, porém, só assim, ela poderá realmente cumprir a sua função de transformação que deve ter. Juntos, povo e ciência, podem desenvolver-se mutuamente. Com o povo consciente, porque ele próprio participa do processo de construção de conhecimentos, pode-se então falar no florescimento de uma nova democracia, desta vez verdadeira porque construída por quem detém de direito o poder e mais legítima porque pautada conscientemente em direitos que realmente se identificam com a maioria da sociedade. Não podemos viver em um sistema social que vê na livre mão do mercado, no lucro, na acumulação infinita de capital, na concorrência e na exploração do trabalho a chave de sua racionalidade, pois essa escolha é ignorar todas as potencialidades científicas, criativas, afetivas, racionais e sensitivas do ser humano. Construir um sistema a partir da democracia, da socialização dos conhecimentos e pautado em valores humanos fundamentais, igualitários, fraternos e preocupados com a natureza, não é apenas uma utopia de poucos, é um imperativo. É neste sentido que desenvolvemos a ideia dos Direitos achados na Beira do Rio, como uma proposta para que os operadores jurídicos repensem criticamente o ensino do Direito e construam alternativas essencialmente emancipatórias que abram as portas para as mudanças no todo social.


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