Revista Proesia - Final

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1 INTRODUÇÃO No primeiro semestre de 2016, nas aulas da disciplina Literatura Portuguesa III, CCE, UFSC, o Professor Stélio Furlan nos presenteou com alguns desafios, dentre eles o da elaboração de uma revista. Edna Domênica Merola e Jéssica Perdigão, as editoras, até então separadas por algumas gerações, reuniram-se para a tarefa de unir textos de autores que escrevessem a partir desse "território onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta." (COUTO, Mia). Dessa leitura nasceu Proesia: prosa (poética) e poesia contemporânea ‒ u m recorte antológico de lindos textos dos escritores: Inês Pedroso, Mia Couto; Sophia Andresen; Manoel de Barros; Cecília Meirelles; Guimarães Rosas. Proesia tem por epígrafe: “A arte é o combate contra o totalitarismo, contra a barbárie, a massificação e a desumanização das pessoas.” (PEDROSA, 2015). Proesia tem por mote que a introdução ao ensino da literatura na escola é um trabalho pedagógico com vertentes técnicas e éticas. Tecnicamente estará voltado para as múltiplas formas da arte (poesia, prosa, teatro, música, artes plásticas). Eticamente, a arte será compreendida como “partilha da paixão alheia" e criação d o sentimento de pertença.

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2 INÊS PEDROSA Inês Margarida Pereira Pedrosa nasceu em 15/8/1962, na cidade de Coimbra (Portugal). É autora de vários romances. Ressaltamos as publicações que podem ser destinadas às atividades em sala de aula, destinadas a estimular o gosto pela leitura. Contos: Desnorte, 2016 e os infantis: A Menina Que Roubava Gargalhadas, 2002, com desenhos de Júlio Pomar e Mais Ninguém Tem, 1991, com ilustrações de Jorge Colombo. Em entrevista a Diogo da Costa Leal in Jornal de Notícias (edição de 07/03/2015), Inês Pedrosa falou sobre a arte, a escrita e a compaixão como formas de combate à desumanização e a solidão. Para a autora: “A arte é o combate contra o totalitarismo, contra a barbárie, a massificação e a desumanização das pessoas.” Inês Pedrosa entende por “compaixão”: a “partilha da paixão alheia.” Considera “importante saber que um escritor nunca poderá ter todas as experiências do mundo”. Prefere “a compaixão como alimento da imaginação, do que a experiência como mãe de todas as coisas”. Considera que a “imaginação vem do pensamento”. Pensa “que a arte, e o romance, que é a síntese de um tempo, é uma encenação de um tempo através de personagens e de linguagem que nos leva a esse pensamento.” “A escrita é destruir a solidão, a nossa e a dos outros. Nós escrevemos sozinhos, mas só se escreve um romance [...] porque se está muito misturado com as entranhas do mundo. É um ato solitário e ao mesmo tempo não. Quando se desdobra em personagens, deixa-se de estar só. Entra-se num mundo paralelo, mas muito real. Toda a escrita é esse combate de solidão da morte.” Inês Pedrosa explica que a “prosa tem poesia, pode é ser mais seca [...], porque a história o pede e cada universo pede uma linguagem específica, de uma voz que será sempre a mesma, mas não dispensa a poesia. Também há muita poesia narrativa. [...] Não há poesia sem prosa, nem prosa sem poesia. A poesia vive de uma cintilação que depois é trabalhada. A prosa é um trabalho contínuo. A poesia será uma corrida de cem metros, e a prosa de ficção uma maratona. Se pensarmos nos Lusíadas ou na Divina Comédia de Dante, por exemplo, são poemas épicos, narrativos. Hoje não há poemas épicos, mas há poemas grandes. 03


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2 Trecho do livro A Menina que roubava gargalhadas Laura era uma menina que gostava de gargalhadas e não tinha medo de nada. Sempre que via alguém rir, ia a correr roubar-lhe o riso. Abria os olhos com muita força até ficarem cheios de lágrimas, fazia "uh-uh" e deixava a outra pessoa a chorar, porque as lágrimas são tão contagiosas como o sarampo. Depois acabava por ficar muito aborrecida com o barulho do choro que interrompia todas as brincadeiras. É sabido que, enquanto se chora, não se pode fazer mais nada; a rir, mesmo que se tenha de parar um bocadinho para respirar, pode-se fazer tudo, incluindo desenhar (até porque um desenho tremido fica logo parecido com um desenho animado). A técnica que Laura usava para roubar o riso aos meninos da idade dela era ainda mais fácil. Bastava emprestar-lhe um brinquedo qualquer ‒ Laura tinha tantos brinquedos que já não ligava a nenhum ‒ e tirar-lho das mãos logo a seguir, de repente. Se o menino insistisse em pegar outra vez no brinquedo, Laura partia-o. E depois, ficava sem saber o que fazer com aquelas gargalhadas só dela. Fartava-se de rir sozinha.

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2 Resenha do livro A Menina que roubava Gargalhadas A protagonista da história ‒Laura ‒ é uma menina que gosta de rir e rouba gargalhadas de crianças e até de adultos para ficar com os risos só para ela. No início da história, Laura mora num lugar onde as pessoas passam a vida a suspirar, apesar de terem o que necessitavam para viver. Durante um folguedo no jardim, Laura viu um buraco numa árvore e entrou por ele. Saiu num lugar escuro por onde caminhou até uma floresta onde tudo era enorme e onde habitavam vários animais. A menina sentiu medo e cantava para espantá-lo. Quando entardecia, começou a gritar para chamar os pais. A Lua aproximou-se dela e contou-lhe a história de Kuat e Laê ‒ os irmãos: Sol e Lua ‒ para acalmar seu medo, já que o dia sempre volta. A Lua pediu-lhe que dormisse e ensinou-a, em sonhos, a falar a língua dos meninos da floresta Amazônica, onde se encontrava. Ao acordar, no dia seguinte, conheceu crianças de cabelos negros e olhos amendoados que usavam pulseiras coloridas. Laura não conseguiu roubar as gargalhadas daquelas crianças. Deram para Laura frutas de cores e formas variadas. Durante o dia brincaram com os coloridos peixes do lago. Mas à noite Laura voltou a chorar de saudades dos pais. Pediu aos meninos que a ajudassem a encontrar o caminho de volta. Os meninos disseram-lhe que teria que procurar uma árvore com uma escada tão comprida que quando ela chegasse já seria velha. Laura chorou tanto que encheu o lago. Do fundo dele apareceu o Gênio das Lágrimas que a advertiu dizendo que roubar gargalhadas era o mesmo que espalhar tristeza. Laura decidiu procurar a escada que a levaria de volta. Recebeu um beijo mágico da Lua, dormiu por três dias e três noites. Quando acordou, viu os pais que lhe sorriam. Percebeu que já não precisava roubar gargalhadas, pois estava num lugar feliz.

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3 MIA COUTO Para gostar de ler Mia Couto é necessário aventurar-se na diversidade: de palavras e de representações culturais. Foi numa dessas aventuras que acabei imergindo em dois textos deliciosamente densos: O Medo e o Escuro e Nas Águas do Tempo. A primeira é uma fábula que narra um ritual de passagem. A segunda conta um lindo mito sobre a transcendência. Ambas são pura poesia, ainda que em prosa. Para começar a gostar de ler algo, vale saber quem é o autor. Mia Couto, membro correspondente da Academia Brasileira de Letras, considera-se um "contador de histórias". Nasceu em 1955, na Beira, em Moçambique. O autor assim fala sobre ele: “eu nasci junto ao mar, numa cidade a que eu chamo de “água natal” porque a cidade era inundada nas marés vivas, eu tinha o meu riachinho privado que era a nossa rua que transbordava sazonalmente.” (COUTO. Prefácio de Estórias Abensonhadas). É um dos principais escritores africanos em atividade. Seu romance Terra Sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007, o prêmio União Latina de Literaturas Românicas. A Companhia das Letras vem publicando toda a sua obra. Segundo Mia Couto, “repensar o pensamento é transformar o universo em pluriverso. Vivemos em estado de guerra com a alteridade. O pensamento é organizado em fronteiras que é um termo de guerra. Fronteira vem de ‘front’, frente de batalha. Precisamos questionar o mundo, já que estamos sem aldeia. Temos de desobedecer para alcançar o paraíso. Precisamos de novas fábulas para reconciliar com o que vive dentro de nós. Não é da luz do sol que nós nascemos. Carecemos do nascer da Terra.” (COUTO, Entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ahb9bEoNZaU&nohtml5=False). Ainda segundo Mia Couto, “há quem tenha medo que o medo acabe. Não há muros que separam os que têm medo dos que não têm medo”. Em nome da segurança nacional foram colocados no poder os ditadores mais sanguinários de toda a história. A fome será sem dúvida a maior causa de insegurança mundial.” (COUTO. Entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wSnsmM_3xrY&nohtml5=False). 05


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3 O Gato e o Escuro é um livro para crianças? Questionado sobre se escreve para crianças, Mia Couto respondeu: “Quando escrevo não vejo os destinatários. Estou em diálogo com os meus personagens interiores. Alguns desses personagens poderão ser crianças, pedaços de infância que sobrevivem em mim. Mas não há nenhuma preocupação de alinhar o que faço com as características de certo tipo de público. No dia em que pensasse nisso deixava de escrever.”. O Gato e o Escuro toca aquilo que é talvez mais profundo num ser que descobre o mundo e os seus perigos: o medo. O temor do escuro é algo muito comum na infância. A sugestão é vencer o medo por via da palavra. Quando convertermos o escuro e a morte numa história criada pela nossa própria palavra, então é mais fácil não ser vencido pelo medo. No texto de Mia Couto, o Escuro não é uma entidade fantasmagórica: é um personagem que sofre porque todos têm medo dele. A humanização dele é algo que instiga os leitores a repensarem a ordem do mundo. O escuro é o que vem de fora do circuito eurocêntrico, é a pobreza, a fome, o outro. O medo do escuro é o medo das "ideias escuras que temos sobre o escuro"... No livro O Medo e o Escuro, Mia Couto inventou os substantivos: Pintalgato, trespassagem, noitidão, antecoisa. E os adjetivos: ataratonto, sobrancelhado. Criou os verbos: namoriscando, arco-iriscando, pirilampiscavam, despersianar, tiquetaqueava. Essas palavras foram criadas unindo duas já existentes, cito o trecho no qual consta a palavra Pintalgato: Vejam meus filhos, o gatinho preto, sentado no cimo desta história. Pois ele nem sempre foi dessa cor. Conta a mãe dele que antes tinha sido amarelo, às malhas e às pintas. Tanto que lhe chamavam o Pintalgato. A palavra pintalgato remete a pintassilgo + gato, ou ainda, a pintagol+ gato. O pintassilgo, além de seu canto característico, imita o canto de outras aves. O pintagol é uma ave híbrida mistura de canário com pintassilgo. Portanto, Pintalgato remete à imitação, ao hibridismo e à alteridade. 06


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Cito o trecho no qual consta a palavra tiquetaqueava: Quando regressava de sua desobediência, olhou as patas adianteiras e se assustou. Estavam pretas, mais que o breu. Escondeu-se num canto, mais enrolado que o pangolim. Não queria ser visto em flagrante escuridão. Mesmo assim, no dia seguinte, ele insistiu na brincadeira. E passou mesmo todo inteiro para o lado de além da claridade. À medida que avançava, seu coração tiquetaqueava. Temia o castigo. Tiquetaqueava é uma formação por amálgama: pode ser entendida como uma pequena “estória”. A onomatopeia que refere ao som do relógio é transformada num verbo: na ação de apropriar-se do tempo, de incorporar o medo do momento ou do medo pela transgressão. Cito o trecho no qual consta a palavra: arco-iriscando: Quando despertou, viu que as suas costas estavam das cores todas da luz. Metade de seu corpo brilhava, arco-iriscando. Afinal? O substantivo composto arco-íris foi transformado num verbo no gerúndio, passando a indicar a ação contínua de construir a própria luminosidade ou identidade. Em O Gato e o Escuro, a prosa de Mia Couto é poética, como se pode ler em: "Aconteceu assim: o gatinho gostava passear-se nessa linha onde o dia faz fronteira com a noite. Faz de conta o pôr do sol fosse um muro. Faz mais de conta ainda os pés felpudos pisassem o poente." Nesse trecho a linha do horizonte comparece como fronteira entre o dia e a noite. A palavra muro (presente no texto de Mia Couto) é usada por Baumann para referir à preocupação com a segurança na contemporaneidade e à crença de que erguer muros é suficiente para se defender do outro. Para Mia Couto, a solução contra a violência é a erradicação da fome do planeta. Em O Gato e o Escuro, o poente é o limiar, a zona fronteiriça entre o dia (sol, razão) e a noite (lua, intuição). É nessa zona limiar (ou de passagem) que se dá a criação do novo e da emancipação. "Porque o Pintalgato chegava ao poente e espreitava o lado de lá. Namoriscando o proibido, seus olhos pirilampiscavam." O Gato e o Escuro pode ser visto como um desenho dessa linha onde nasce a utopia.

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O segundo livro a comentar: Estórias Abensonhadas emergem de Moçambique após a guerra que durou quase trinta anos. As estórias emanam da reconstrução via literatura e do resgate das tradições culturais pelas vias da ficção. No título, ocorre amálgama: fusão de abençoadas com sonhadas. O vocábulo “fronteira” refere ao passado de guerra, mas também à busca da conexão entre o "eu" e os “outros”. No prefácio, pode-se ler: Estas estórias falam desse território aonde nos vamos refazendo e vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada. Desse território onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta. Glossário de Estórias Abensonhadas CANGANHIÇAVA: aportuguesamento da expressão local canganhiça, que significa enganar, ludibriar. Citação de O adivinhador das mortes — Então me faz favor explicar: que dia eu, afinal, morri? — Ontem à noite. O senhor, em verdade, é um recém-falecido. Adabo se embrumou. Fora o sonho? Pode a morte suceder em terras enevoadas do sonho? Nunca ouvira. Mentira, devia ser mentira do adivinho. O fulano canganhiçava. CONCHO: canoa, pequena embarcação. Citação de Nas águas do tempo Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado. Arquétipo da Alteridade: conexão entre o "eu" e os “outros’”. MAKA: zanga, conflito. Citação de O adivinhador das mortes A zanga de Adabo não sabia se havia de rir. Acabou por levedar a maka: — Está bom. Então se estou morto, como você adianta, não posso pagar consulta. Vou embora assim mesmo.

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3 MAMANAS: termo com que se designam as mulheres casadas no Sul de Moçambique. Citação de Pranto de coqueiro — Esta ventania não vai autorizar nenhum barco. Me sento ali, milvagaroso para mostrar que não tenho opinião. Desembrulho os bolinhos que comprei faz pouco às mamanas do mercado. Um miúdo se aproxima. Penso: lá vem mais um pedinchorar. Mas não, a criança se guarda para além da mendigável distância. Já meus dentes se preparam para o sabor quando o miúdo se arregala, subindo o grito na garganta: — Senhor, não come esse bolo! MUENE: autoridade tradicional. Citação de Lenda de Namarói — As mulheres têm uma parte vermelha: é dela que sai o fogo. Então, o muene que chefiava os homens mandou que fossem buscar o fogo e lho entregassem intacto. E dois atravessaram o rio para cumprir a ordem. Mas eles desconseguiram: as chamas se entornavam, esvaídas. O fogo não tinha competência de atravessar o rio. MUTI: tradicional aglomerado de casas de um mesmo grupo familiar, nas zonas rurais de Moçambique. Citação de O Adeus da sombra Chegamos pouco depois ao lugar da curandeira. Ficamos sentados na entrada do muti, conforme os pedidos da licença. Em boa casa africana o dia transcorre fora da casa, no pátio. Por ali rondam crianças, ciscam galinhas. Nãozinha demora a chegar. Por fim, dá aparecimento. NENECAR: no sentido original significa trazer uma criança às costas; utilizado aqui como adormecer, embalar. Citação de Pranto de Coqueiro — É para quê esse fruto? — É para mandar analisar lá no Hospital. Antes que eu debitasse lógica, ele contrapôs: aquele sangue sabe-se lá em que veias andara brincando? Sabe-se lá se era matéria adoecida ou, antes, adoesida? E voltou a embrulhar o fruto com carinhos que só a filhos se destinam. E se afastou, embalando em canção de nenecar. Seria esse meninar de Suleimane, quase eu juro, mas me pareceu escutar um lamento vindo do coco, um chorar da terra, em mágoa de ser mulher. PETROMAX: candeeiro a petróleo. Citação de O Caximbo (cachimbo) de Felisberto — Se vou sair daqui tenho que levar todas essas árvores. O nacional funcionário economizou paciência e lhe disse que, mais semana, eles voltariam para o carregarem, nem que fosse à bruta força. E foram. No dia sequente, o homem pôs-se a desenterrar as árvores, escavando pelas raízes. Começou pela árvore sagrada do seu quintal. Trabalhou fundo: lá aonde ia covando já se desabria um escuro total. Para dar seguimentos na fundura passou a levar um petromax, desses que trouxera do Johnne. E tempo após tempo, se demorou nesse serviço. 09


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3 TCHOVA-XITADUMA: expressão com que, no Sul de Moçambique, se designam as carroças de tração humana. Traduzindo à letra: empurra, que há-de pegar”. Citação de O calcanhar de Virigílio Nunca mais ela terá que carregar o peso dele. Esta é a derradeira transportação do seu corpo. Todo dinheiro ela gastara no funeral. O carro era despesa demasiada. Assim, se arrumou o caixão em tchova-xitaduma. As tábuas não uniam bem e a luz, às fatias, deixava entrever, dentro, o deitado corpo. O caixão fora feito de emendas. Hortência juntou mesa, cadeira e caixotes. Montoou aquela madeira para lhe dar aquele escuro destino. O carpinteiro do bairro, Virigílio Prego, não cobrou mão de obra. TCHOVAR: empurrar. Citação de O perfume Vamos ao baile, sim. Você não costumava dançar, antes? — E os meninos? — Já organizei com o vizinho, não se preocupa. E foram. Justino ainda teve que tchovar a carrinha. Ela, como sempre, desceu para ajudar. Mas o marido recusou: desta vez, não. Ele sozinho empurrava, onde é que se vira? XIPEFO: lamparina a petróleo. Citação de As flores de Novidade Muitas noites além, a família repadeceu os acontecimentos. Jonasse não se encontrava. O mineiro esburacava a terra, em turno noturno. Em casa, a mãe ainda deixou seus olhos sobrarem na copa da luz do xipefo. Costurava tecido nenhum, roupinhas para um filho que, conforme o sabido, nunca haveria de vir. A poética de Mia Couto, em O Gato e o Escuro e Estórias Abensonhadas traz o pluriverso (ou universo plural) à baila. Assim os elementos Água, Terra, Fogo e Ar são presentes a exemplo de Nas Águas do Tempo (água e terra: pântano); O Gato e o Escuro (terra e ar); Lenda de Namarói (fogo). A construção de neologismos (brincriações) é o próprio estado lúdico de criação pela linguagem. A poesia é presente para narrar a morte em Nas águas do Tempo assim como é presente para narrar o ritual de passagem ou ingresso no mundo 'adulto'. Trata-se de um desaguar que é choro de nascimento, mas também desaguar do rio da vida para o mar da infinitude. Trata-se de uma construção circular "rio acima" e "rio abaixo" que revela o ciclo da vida.

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Mind Mapping por Edna Domenica Merola

Resenha: O Último Voo do Flamingo. (MEROLA, 2016) “O Último voo do Flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência ‒ a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.” (COUTO, 2005, p 224). O Último voo do Flamingo é um romance cuja narrativa envolve explosões súbitas de militares da ONU e outros estranhos acontecimentos, em Tizangara ‒ vilarejo imaginário ao sul de Moçambique. Estevão Jonas administrador da cidade é casado com Dona Ermelinda. O filho dela é surpreendido pelo policial Sulplício caçando elefante (ilegalmente). A primeira dama defende o filho e acusa Sulplício de ser contra o país. Ele se torna um banido e vai viver à margem da vila, enquanto a mãe e o filho permanecem no vilarejo. O filho preserva o afeto paterno e relembra, já adulto, dum bote que fora do pai e ao qual dera o nome de “barco-íris”. Esse termo inventado por Mia Couto pelo processo de amálgama ilustra a natureza poética do romance.

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3 Sulplício é pai do tradutor de Tizangara que vai acompanhar um estrangeiro encarregado de emitir um relatório para ONU sobre os estranhos acontecimentos. Com a chegada do relator o pai volta à vila. A mãe já morrera, enquanto o pai se exilara na praia de Inhamudzi. A mãe é um símbolo da esperança da reconstrução do país. O pai simboliza o suplício pelo qual o povo de Moçambique passou, principalmente os habitantes do sul do país. O romance inicia com cenas cada vez mais engraçadas até chegar à sátira. Em meio a uma solene inspeção feita por autoridades locais e representantes da ONU um cabrito é atropelado e agoniza. As falas dos ilustres são permeadas pelo balido do animal. “Com o embate, um chifre saltou com tal ímpeto que veio esbarrar no adjunto Chupanga. O homem pegou no desirmanado corno e entregou-o ao administrador.” Como o cabrito fosse do administrador, Chupanga lhe entregou o chifre e disse que era dele. A prostituta Ana Deusqueira foi chamada para reconhecer “o todo pela parte” ou o órgão sexual que havia explodido e disse não ser de ninguém da cidade. Diz ao italiano da ONU: “Esse homem aí era do sexo maisculino.”. O italiano hospeda-se num hotel cujo nome é “Pensão Martelo Jonas” e cujo nome antigo fora “Pensão Martelo Proletário”. A citação fica no limite entre o cômico e a crítica. A partir da chegada à pensão o tom do discurso se torna sério: “Chegamos, enfim, à pensão. Na fachada havia ainda vestígios dos tiros. Buraco de tiro é como ferrugem: nunca envelhece. Aquelas ocavidades pareciam recém-recentes, até faziam estremecer, tal a impressão que a guerra ainda estivesse viva.”. As descrições dos personagens são feitas de forma gradativa ou conforme o desenrolar dos fatos, corroborando o enunciado pelo “ditado Tizangara”: “O mundo não é o que existe, mas o que acontece.” Por exemplo, o personagem inicialmente descrito como “um tal Massimo Risi, um italiano, homem sem gerais patentes. Seria esse que iria estacionar uns tempos em Tizangara”. (COUTO, 2005, p 23), posteriormente, é descrito pelo mesmo narrador personagem como: “Eu seguia atrás, respeitosamente. No enquanto, observava o estrangeiro: como a alma dele se via pelas suas traseiras! Os europeus, quando caminham, parecem pedir licença ao mundo. Pisam o chão com delicadeza, mas, estranhamente, produzem muito barulho.”. (COUTO, 2005, p 35). Na pensão, Massimo tem encontros noturnos com Temporina uma personagem fantástica (bruxa ou fada) e ao matar uma louva-deus (Hortênsia) fica sabendo que e outros insetos são antepassados que visitam seus entes queridos. Massimo vai à casa de Hortênsia que é tia de um moço doente e de Temporina. Tia e sobrinha são solteironas. A casa coberta pelo mato lembra uma árvore. Temporina diz a Massimo que na mesma casa habitam os vivos e os mortos. E que há “três vilas com seus respectivos nomes ‒ Tizangara-terra, Tizangara-céu, Tizangara-água.”. Pode-se perceber que a cosmovisão do povo é fundamentada nos elementos, mas Temporina descarta o fogo. Na lenda de Namaroi (COUTO) pode-se depreender que na tradição cultural moçambicana o fogo é associado à procriação.

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3 Temporina ensina Massimo a andar, já que “saberpisar neste chão é assunto de vida ou morte.” Ela o instrui assim: “pise como quem ama, pise como se fosse sobre o peito de uma mulher”. (COUTO, 2005, p 68). O administrador distrital Estevão Jonas que chegara a dar a ambulância da cidade para o enteado trabalhar como transportador (ato imoral) passa a sentir as mãos queimarem e escreve ao ministro: " O povo é a concha que nos abriga. Mas pode, repentemente, tornar-se no fogo que nos vai queimar. Até me dá arrepio pensar nisso, eu que já senti as mãos queimarem-se. Essa luta, Excelência, é da vida e da morte e vice-versamente."(COUTO, 2005, p 96). O feiticeiro Andorinho é consultado e adverte “quando caminhar olhe bem onde pisa.” Sobre a explosão dos estrangeiros, o feiticeiro responde que o consultor da ONU deve perguntar aos mortos e não aos vivos. E fecha sua fala: “que eu viva mais que o pangolim que cai do céu sempre que chove.” O padre e a prostituta, cada um a sua vez foram incriminados pelas explosões. Mas afinal a mulher do administrador descobre que o marido e o filho dela foram os mandantes das explosões para angariar verbas estrangeiras para a desminagem. Ao ser descoberto o administrador manda romper a barragem da represa para que não fiquem vestígios de seus crimes que envolviam as verbas da desminagem e as mortes de pessoas que explodiram para provar que ainda havia minas 'armadas', mesmo após a guerra. Sulplício pede que o filho chegue à barragem antes do administrador Estevão Jonas. Organizam um grupo para tal aprisionar os mandantes, encontram Chupanga, mas poupam sua vida. A catástofre é provocada e a cidade se locomove no vazio como uma jangada no mar. Sem ser visto, o personagem narrador segue o pai (Sulplício) até a margem do Rio Madzima: lugar sagrado. Presencia a cena do pai pendurando os próprios ossos numa árvore. O consultor da ONU Massimo Risi chega ao lugar. Os três dormiram ao relento. O narrador acordou e deparou-se com um abismo enorme e que fez sumir tudo. Avisou o seu pai que indaga por seus ossos. Vão buscá-los. O pai se evade, após recuperar os ossos. Massimo quer registrar o desaparecimento de tudo, mas não há como mensurar algo que não tem mais chão. Pega a folha do relatório e faz um pássaro de papel que atira no abismo. No final, o narrador passa sua esperança ao italiano: a de que o voo do flamingo faz o sol voltar a brilhar depois de um período de trevas e opressão.

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Desenho: galeria de Personagens de O último voo do flamingo.

Em O último Voo do Flamingo, Mia Couto criou um narrador-personagem que é o tradutor de Tizangara. No entanto, há momentos em que o “tradutor” ouve histórias, ao invés de contá-las. Nas situações narradas por outros personagens, o narrador está presente e ouve essas narrativas, ou seja, desloca-se para o papel de narratário ou substituto do leitor. Esse complementar do narrador – é um “artifício retórico, uma forma de controlar e complicar as respostas do leitor real, que permanece fora do texto.” (LODGE. 2011. P. 90). A narrativa literária criada torna-se dialógica já que o ser narrativo é potencialmente provedor da busca de identidade pelo diálogo. A seguir, trecho narrado pela (falecida) mãe do Tradutor de Tizangara.

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3 Rezava: havia um lugar onde o tempo não tinha inventado a noite. Era sempre dia. Até que, certa vez, o flamingo disse: ‒ Hoje farei meu último voo! As aves, desavisadas, murcharam. Tristes, contudo, não chorara. Tristeza de pássaro não inventou lágrima. Dizem: lágrima dos pássaros se guarda lá onde fica a chuva que nunca cai. Ao aviso do flamingo, todas as aves se juntaram. Haveria uma assembleia para se conversar o assunto. Enquanto o flamingo não chegava, se escutavam os pios em rodopios. Se acreditava em tais ditos? Podia-se e não. Fosse ou não fosse, todos se demandavam: ‒ Mas vai voar para onde? ‒ Para um sítio onde não há nenhum lugar. O pernalta, enfim, chegou e explicou ‒ que havia dois céus, um de cá, voável, e um outro, o céu das estrelas, inviável para voação. Ele queria passar essa fronteira. ‒ Por que essa viagem tão sem regresso? O flamingo desvalorizava seu feito: ‒ Ora aquilo é longe, mas não é distante. Depois ele foi internando-se nas árvores sombrosas do mangal. Demorou. Só apareceu quando a paciência dos outros já envelhecia. Os bichos de asa se concentraram na clareira do pântano. E todos olharam o flamingo como se descobrissem, apenas então, a sua total beleza. Vinha altivo, todo por cima da sua altura. Os outros, em fila, se despediam. Um ainda pediu que ele desfizesse o anúncio. ‒ Por favor, não vá! ‒ Tenho que ir! A avestruz se interpôs e lhe disse: ‒ Veja, eu nunca voei, carrego as asas como duas saudades. E, no entanto, só piso felicidades. ‒ Não posso, me cansei de viver num só corpo. E falou. Queria ir onde não há sombra, nem mapa. Lá onde tudo é luz. Mas nunca chega a ser dia. Nesse outro mundo ele iria dormir, dormir como um deserto, esquecer que sabia voar, ignorar a arte de pousar sobre a terra. ‒ Não quero pousar mais. Só repousar. E olhou para cima. O céu parecia baixo, rasteiro. O azul desse céu era tão intenso que se vertia líquido, nos olhos dos bichos. Então o flamingo se lançou, arco e flecha se crisparam em seu corpo. E ei-lo, eleito, elegante, se despindo do peso. Assim, visto em voo, dir-se-ia que o céu se vertebrara e a nuvem, adiante, não era a própria luz que voava. E o pássaro ia desfolhando, asa em asa, as transparentes páginas do céu. Mais um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu que o horizonte se vemelhava. Transitava de azul para tons escuros, roxos e liliáceos. Tudo se passando como se um incêndio. Nascia, assim, o primeiro poente. Quando o flamingo se extinguiu, a noite se estreou naquela terra. (COUTO, 2005. P 113-115).

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3 Glossário de O Último Voo do Flamingo (COUTO, 2005, pp 221-222). Canhoeiro: árvore fruta nkanhu de se extrai a bebida usada em cerimônias tradicionais do Sul de Moçambique. Nome científico: Sclerocarya birrea. “Nos intervalos da machamba, nos sentávamos, eu e minha mãe, sob a brisa do canhoeiro”. (COUTO, 2005, p 47). Chanfuta: árvore (nome científico: Atzelia quanzensis). Chimuanzi: língua falada em Tizangara. “Estava tão cheio com sono que, no princípio, falou em chimuanzi”. (COUTO, 2005, p 75). Concho: canoa, pequena embarcação. Halakavuma: pangolim, mamífero coberto de escamas que se alimenta de formigas. Em muitas regiões de África se acredita que o pangolim habita os céus, descendo à terra para transmitir aos chefes tradicionais as novidades sobre o futuro. "Vamos não fica aí, entremetido, envergonahdo, parece o halakavuma. Konone: árvore (nome científico: Terminalea sericea). “Se anichava rente ao chão e acariciava a termiteira. Depois, se erguia e apontavapara além de uns frondosos konones.” (COUTO, 2005, p 52). Kufa mbalame: mata o pássaro (expressão da língua xi-sena). “Meu pai corria e mandava: ‒ Kufa mbalame!” Machamba: terreno agrícola. “Nos meses devidos eu ajudava minha mãe na machamba”. (COUTO, 2005, p 47). Masuíti: corruptela de sweet (doce, em inglês). “com maltas de crianças lhe perseguindo e mendigando doces. ‒ Masuíti, patrão. Masuíti.” (COUTO, 2005, p 35). Matumi: árvore da floresta ribeirinha (nome científico: Preonatia sp.). Mbolo: testículos (em xi-sena). (COUTO, 2005, p 123). Muchém: térmite. “Não ia muito longe. Ali, junto a um enorme morro de muchém, ele parava”. (COUTO, 2005, p 52).

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3 Ngoma: tambor (em várias línguas de Moçambique). “ Na realidade os ngomas tinham barulhado toda a noite, num pãodemônio.”(COUTO, 2005, p 74). Nhenhenhar-se: engasgar-se. “O motor nhenhenhou-se em tentativas sucessivamente frustradas.” (COUTO, 2005, p 31). Nyanga: feiticeiro. A seguir o sacerdote [...] foi ter com o nyanga que ele chamava de ‘colega’. (COUTO, 2005, p 123). Quizumba: hiena. Estremeci de medo: não saltara eu da boca da quizumba para entrar na garganta do leão? (COUTO, 2005, p 109). Quizumbar: farejar como uma hiena. “Ermelinda [...] dorme com os ouvidos de fora, quizumbando, sempre à espreita (COUTO, 2005, p 73). Satanhoco: malandro. "‒ Vá, meu filho, se apresse a evitar essa tragédia. Vá à barragem, antes que esse satanhoco lá chegue." Sura: aguardente. "Junto com o portador desta carta seguem os cabritos que me pediu e alguns garrafões de sura." Tchovar: empurrar. “O representante do mundo, de janelas fechadas, esperava certamente uma mão generosa para tchovar a viatura.” (COUTO, 2005, p 31). Ufa: farinha de milho. Se escutavam apenas os dedos emagrecendo a farinha, molhando e remolhando a ufa no caril de peixe seco. Xicuembo: espírito feiticeiro. “Juntávamos juras, sagrados xicuembos: que eu lhe iria visitar no momento em que ela se estivesse despedindo de viver.” (COUTO, 2005, p 48). Xidakwa: bêbedo. "Lhe digo, por descargo de inconsciência: me converti num trejeitoso, pareço um daqueles xidakwas sem destino." Zuezuado: de zuezué, tontura (em algumas línguas de Moçambique). O italiano ainda estava zuezuado. (COUTO, 2005, p 103).

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3 ADENDO I: Trecho inicial do livro: Fui eu que transcrevi, em português visível, as falas que daqui se seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue, como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É o preço de ter presenciado tais sucedências. Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga. [...] preciso livrar-me dessas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima. Estávamos nos primeiros anos do pós-guerra e tudo aprecia correr bem, contrariando as gerais expectativas de que as violências não iriam nunca parar. Já tinham chegado os soldados das Nações Unidas que vinham vigiar o processo de paz. Chegavam com a insolência de qualquer militar. Eles, coitados, acreditavam ser donos de fronteiras, capazes de fabricar concórdias. Tudo começou com eles, os capacetes azuis. Explodiram. Sim, é o que aconteceu a esses soldados. Simplesmente, começaram a explodir. Hoje, um. Amanhã mais outro. Até somarem, todos descontados, a quantia de cinco falecidos. Agora, pergunto: explodiram na inteira realidade? Diz-se, em falta de verbo. Porque de um explodido sempre resta alguma sombra de substância. No caso, nem resto, nem fatia. Em feito e desfeito, nunca restou nada de seu original formato. Os soldados da paz morreram? Foram mortos? Deixo-vos na procura da resposta, ao longo destas páginas. (Assinado: O tradutor de Tizangara) 1 UM SEXO AVULTADO E AVULSO

O mundo não é o que existe, mas o que acontece. Dito de Tizangara

Nu e cru, eis o fato: apareceu um pênis decepado, em plena Estrada Nacional, à entrada da vila de Tizangara. Era um sexo avulso e avultado. Os habitantes relampejaram-se em face do achado. Vieram todos, de todo lado. Uma roda de gente se engordou em redor da coisa. Também eu me cheguei, parado nas fileiras mais traseiras, mais posto que exposto. Avisado estou: atrás é onde melhor se vê e menos se é visto. Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos espreitam, mas poucos descem a buscá-la. Na nossa vila, acontecimento era coisa que nunca sucedia. Em Tizangara só os fatos são sobrenaturais. E contra fatos tudo são argumentos. Por isso, tudo acorreu, ninguém arredou. E foi o inteiro dia, uma roda curiosa, cozinhando rumores. Vocabuliam-se dúvidas, instantaneavam-se ordens:

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3 ‒ Alguém que apanhe... a coisa, antes que ela seja atropelada. ‒ Atropelada ou atropilada? ‒ Coitado, o gajo ficou manco central! A gentania se agitava, bazarinhando. Estava-se naquele aparvalhamento quando alguém avistou, suspenso no céu, um boné azul. ‒ Olhem, lá, no cimo da árvore! Era um desses bonés dos soldados das Nações Unidas. Pendurado num galho, balançava na vontade das brisas. No instante que se confirmou a identidade da boina foi como navalha golpeando a murmuração. E logo-logo a multidão se irresponsabilizou. Não valia a pena empernar na confusão. E a gente se dispersou, imediata, comentando que nada acontecera, até admiravam tanto o que nunca haviam visto. E desfalavam: ‒ Agora é que vem aí chuva de molhar vento. ‒ Sim, é melhor voltarmos às vidas. ‒ Se emborem, pá! E destroçaram, todos destrocados. Sobre o asfalto quente ficou o apêndice órfão. No ramo seco restou o chapéu missionário, plenamente só no meio das aragens. Azul em fundo azul. Sobrei para ali, sozinho, com um estranho pressentimento. Em minha alma, um espinho me magoava. Eu, a dizer, retirava o fel do vinagre. Aquilo não era ainda o sucedimento, mas os preparativos de sua chegada. Quando o silêncio clareia é que se escutam os escuros presságios. Foi nesse momento que me surpreendeu a voz, esbaforida: ‒ Está ser chamado! ‒ Chamado, eu? Eu conhecia mais que bem o mensageiro: era Chupanga, o adjunto do administrador. Homem mucoso, subserviente - um engraxa-botas. Como todo o agradista: submisso com os grandes, arrogante com os pequenos. O fulano me fingia desconhecer, ocupado em suas superiores aparências. Ainda tentei um aperto de mão, mas logo ele foi atalhando o tempo. O burro, na companhia do leão, já não cumprimenta o cavalo. ‒ Não é você que fala afluentemente as outras línguas? ‒ Falo umas línguas, sim. ‒ Línguas locais ou mundiais? ‒ Umas e outras. Umas, de estrada. Outras, de corta-mato. O mensageiro bateu os tacões das botas, moda os militares. Esse ruído, singelo que era, me soou como um aviso. Parecia um anjo escapando pelos arredores dos ares. E, realmente, era. Os anjos é que vêem o que não se passa. No exacto desse momento, começavam os primeiros problemas, esquinas onde o meu destino se haveria de labirintoar. Fora de mim, a voz de Chupanga insistia: ‒ Está ser chamado por Sua Excelência.

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3 Sua Excelência era o administrador. Ordem daquelas não se duvida. Ouvimos, calamos e fazemos de conta que, calados, obedecemos. Nem vale a pena invocar ousadia. Existe um alguém a quem primeiro nascem os dentes e só depois os lábios? Quanto mais um lugar é pequenito, maior é o tamanho da obediência. Foi assim que, momentos depois, desemboquei direito e directo na sede da administração. Era o mesmo edifício dos tempos coloniais, já depurado de espíritos. O casarão tinha sido tratado pelos feiticeiros, consoante as crenças. A voz de comando se abreviou, de afiados cantos: ‒ Entre, meu amigo. Precisamos de seus serviços. Estêvão Jonas, o administrador da vila, ocupava a inteira largura da porta. A preocupação pingava-lhe no rosto. Um lenço branco ia e vinha a lhe enxugar a testa. Um gerador enchia tudo de ruído e o administrador teve que forçar a voz: ‒ Entre, meu camarada... isto é, meu amigo. Entrei. Dentro havia mais fresco. No tecto, uma ventoinha espanejava o ar. Eu sabia, como todos na vila: o administrador Jonas tinha desviado o gerador do hospital para seus mais privados serviços. Dona Ermelinda, sua esposa, tinha vazado os equipamentos públicos das enfermarias: geleiras, fogão, camas. Até saíra num jornal da capital que aquilo era abuso do poder. Jonas ria-se: ele não abusava; os outros é que não detinham poderes nenhuns. E repetia o ditado: cabrito come onde está amarrado. ‒ Mandei-lhe chamar porque precisamos de uma acção mais que imediata. O administrador até enrugava a voz. Com razão e motivo: uma delegação oficial devia estar prestes a chegar. Vinha investigar o caso do sexo decepado. Haviam de vir os do governo de dentro, mais os do governo de fora. Até das Nações Unidas viriam. Vinham investigar o caso do sexo decepado. E os outros casos que envolviam os capacetes azuis desaparecidos. Nunca a vila de Tizangara tinha recebido tais altas individualidades. A voz do administrador Estêvão Jonas tremia quando apontou para mim e disse: ‒ Pois você fica, de imediato, nomeado tradutor oficial. ‒ Tradutor? Mas para que língua? ‒ Isso não interessa nada. Qualquer governo prezável tem seus tradutores. Você é o meu tradutor particular. Está compreender? Não entendia, mas aprendera que, em Tizangara, nada necessita de entendimento. Ainda pigarreei para sugerir minhas objecções. Foi quando deu entrada Dona Ermelinda, a respectiva do administrador. Ela se fazia conhecer como "a Primeira Dama". Olhou-me como se eu não chegasse sequer a ser gente. E falou, prestando grandes favores ao mundo: ‒ Dizem que vem um italiano e que vai ficar aqui a fazer a investigação. Você fala italiano? ‒ Eu não. ‒ Óptimo. Porque os italianos nunca falam italiano. ‒ Mas, desculpe, senhor administrador, traduzo para qual língua? ‒ Inglês, alemão. Uma qualquer, desenrasca-se.

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3 A administratriz de novo se interpôs, deixando invisível o esposo. Falava ajeitando o turbante e sacudindo as longas túnicas. Ermelinda clamava que eram vestes típicas de África. Mas nós éramos africanos, de carne e alma, e jamais havíamos visto tais indumentárias. No momento, ela reiterava: ‒ O que eu quero, em tanto que Ermelinda, é que eles fiquem a saber que nós, em Tizangara, temos tradução simultânea. Remexeu nos dedos, ajeitando os enfeites. Ela exibia mais anéis que Saturno. Virando-se para o marido, quis saber se tinham mandado chamar a cultura. ‒ A cultura? ‒ Sim, os grupos de dança. ‒ Eles não hão-de aceitar vir. Sem pagamento não aceitam. ‒ Mas será que nesta terra já ninguém faz nada só por vontade do amor? A Primeira Dama mais quis saber: se o povo ainda se concentrava na estrada. Porque ela pretendia realizar uma visita oficial ao local da ocorrência. O marido, incomodado, perguntou: ‒ Vai ver aquilo, Ermelinda? ‒ Vou. ‒ Sabe que coisa está ali, desfalecida, no meio da estrada? ‒ Sei. ‒ Eu não acho bem, uma mulher com o seu estatuto... com aquela gente toda a ver. ‒Vou, mas não como Ermelinda. Desloco-me oficialmente em tanto que Primeira Dama. E, entretanto, mande tirar aquela gentalha dali. ‒ Mas como é que posso dispersar as massas? ‒ Eu já não disse para você comprar as sirenes? Lá, na Nação, os chefes não andam com sirene? E saiu, com portes de rainha. No limiar da porta sacudiu as madeixas, fazendo tilintar os ouros, multiplicados em vistosos colares no vasto colo.

ADENDO II: P 215-220:

‒ Os meus ossos? Árvore: nem sombra, nem sombra. Os ossos tinham-se ido no vazio. Como a inteira paisagem, a casa, a vila, a estrada, tudo engolido pelo vácuo. Que se passara ? Um homem faz um grande buraco, sim. Muitos homens fazem um buraco muito enorme. Uma cova daquela dimensão, porém , aquilo era obra da sobrenatureza. Chamamos o italiano que se inacreditou: o país inteiro desaparecera? Sim, a nação fora engolida nesse vácuo. Face a última berma do mundo, perante a maior fenda que ele jamais vira, Massimo Risi se boquiabria. ‒ Os meus relatórios !!? Onde estão os meus files? [...] Restou um silêncio. Depois, o italiano foi ao saco em que se almofadara e de lá retirou um papel e uma caneta e, ordenadamente, rabiscou umas bem alinhadas frases. Espreitei sobre o ombro triste dele e li o que ele estava escrevendo. Logo surgia o gordo título: “Último Relatório”. E mais ele anotava, em total:

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3 Sua Excelência O Secretário-Geral das Nações Unidas: Cumpre-me o doloroso dever de reportar o desaparecimento total de um país em estranhas e pouco explicáveis circunstâncias. Tenho consciência que o presente relatório conduzirá à minha demissão dos quadros de consultores da ONU, mas não tenho alternativa senão relatar a realidade com que confronto: que todo este imenso país se eclipsou, como que por golpe de magia. Não há território, nem gente, o próprio chão se evaporou num imenso abismo. Escrevo na margem desse mundo, junto do último sobrevivente dessa nação. O italiano parou, caneta trêmula apontando o precipício que se abria a seus pés. E me pediu: ‒ Espreite lá, outra vez. ‒ Já espreitei mil vezes. ‒ E não vê nada? ‒ Nada. ‒ Viu bem lá no fundo? ‒ É que nem fundo não há. O melhor é espreitar o senhor. ‒ Não consigo. Sofro de tonturas. O italiano acabou por se sentar na margem do abismo. Peto, passavam andorinhas, riscando o céu sem se aventurarem nesse céu subterrâneo, mais recente que o próprio dia. ‒ Que vamos fazer?‒ perguntei. ‒ Vamos esperar. A voz dele era calma, como se vinda de antiga sabedoria. ‒ Esperar por quem? ‒ Esperar por outro barco ‒ e, após uma pausa, se corrigiu: ‒ Esperar por outro voo do flamingo. Há-de-vir um outro. Ele puxou da folha do relatório que acabara de redigir para as Nações Unidas. Fazia o quê? Dobrava e cruzava as dobras. Fazia um pássaro de papel. Esmerou no acabamento, e depois levantou-se e o lançou sobre o abismo. O papel rodopiou no ar e planou, pairando quase fluvialmente sobre a ausência de chão. Foi descendo lento, como se temesse o destino das profundezas. Massimo sorria, em rito de infância. Me sentei, a seu lado. Pela primeira vez, senti o italiano como um irmão nascido na mesma terra. Ele me olhou, parecendo me ler por dentro, adivinhando meus receios. Há-de-vir um outro. ‒ repetiu. Aceitei a sua palavra como de um mais velho. Face à neblina, nessa espera, me perguntei se a viagem em que tinha embarcado meu pai não teria sido o último voo do flamingo. Ainda assim, me deixei quieto, sentado. Na espera de um outro tempo. Até que escutei a canção de minha mãe, essa que ela entoava para que os flamingos empurrassem o sol do outro lado do mundo.

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4 SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN Sophia de Mello Breyner Andresen [1919 -2004] uma das mais importantes poetas portuguesas do século XX. Ela é autora dos títulos: O nome das coisas (1977), Poesia (1944), O Dia do Mar (1947), Coral (1950), No Tempo Dividido (1954), Mar Novo (1958), O Cristo Cigano (1961), Livro Sexto (1962), Geografia (1967), Dual (1972), Navegações (1983), Ilhas (1989), Musa (1994) O Búzio de Cós (1998). A MENINA DO MAR foi publicado pela primeira vez em 1958. A história é ficcional: um menino mora na praia e ouve uma estranha gargalhada que veio de baixo d’água. Segue o barulho e vê uma menina pequena e de cabelos azuis que dança com um polvo, um caranguejo e um peixe. O menino faz amizade com ela. Ensinam mutuamente as especificidades de seus lugares: a terra e o mar. O menino ensina par ela o que é a saudade: a paisagem que era marrom como a terra antes da chegada da Menina do Mar torna-se azul. Texto de A Menina do Mar (Sophia de Mello Breyner Andresen) Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar. Tinha uma porta, sete janelas e uma varanda de madeira pintada de verde. Em roda da casa havia um jardim de areia onde cresciam lírios brancos e uma planta que dava flores brancas, amarelas e roxas. Nessa casa morava um rapazito que passava os dias a brincar na praia. Era uma praia muito grande e quase deserta onde havia rochedos maravilhosos. Mas durante a maré alta os rochedos estavam cobertos de água. Só se viam as ondas que vinham crescendo do longe até quebrarem na areia com barulho de palmas. Mas na maré vazia as rochas apareciam cobertas de limo, de búzios, de anêmonas, de lapas, de algas e de ouriços. Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas. Havia pedras de todas as cores e feitios, pequeninas e macias, polidas pelas ondas. E a água do mar era transparente e fria. Às vezes passava um peixe, mas tão rápido que mal se via. Dizia-se «Vai ali um peixe» e já não se via nada. Mas as vinagreiras passavam devagar, majestosamente, abrindo e fechando o seu manto roxo. E os caranguejos corriam por todos os lados com uma cara furiosa e um ar muito apressado.

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4 O rapazinho da casa branca adorava as rochas. Adorava o verde das algas, o cheiro da maresia, a frescura transparente das águas. E por isso tinha imensa pena de não ser um peixe para poder ir até ao fundo do mar sem se afogar. E tinha inveja das algas que balouçavam ao sabor das correntes com um ar tão leve e feliz. Em Setembro veio o equinócio. Vieram marés vivas, ventanias, nevoeiros, chuvas, temporais. As marés altas varriam a praia e subiam até à duna. Certa noite, as ondas gritaram tanto, uivaram tanto, bateram e quebraram-se com tanta força na praia, que, no seu quarto caiado da casa branca, o rapazinho esteve até altas horas sem dormir. As portadas das janelas batiam. As madeiras do chão estalavam como madeiras de mastros. Parecia que as ondas iam cercar a casa e que o mar ia devorar o Mundo. E o rapazito pensava que, lá fora, na escuridão da noite, se travava uma imensa batalha em que o mar, o céu e o vento se combatiam. Mas por fim, cansado de escutar, adormeceu embalado pelo temporal. De manhã quando acordou estava tudo calmo. A batalha tinha acabado. Já não se ouviam os gemidos do vento, nem gritos do mar, mas só um doce murmúrio de ondas pequeninas. E o rapazinho saltou da cama, foi à janela e viu uma manhã linda de sol brilhante, céu azul e mar azul. Estava maré vaza. Pôs o fato de banho e foi para a praia a correr. Tudo estava tão claro e sossegado que ele pensou que o temporal da véspera tinha sido um sonho. Mas não tinha sido um sonho. A praia estava coberta de espumas deixadas pelas ondas da tempestade. Eram fileiras e fileiras de espiava que tremiam à menor aragem. Pareciam castelos fantásticos, brancos, mas cheios de reflexos de mil cores. O rapaz quis tocar-lhes, mas mal punha neles as suas mãos os castelos trêmulos desfaziam-se. Então foi brincar para as rochas. Começou por seguir um fio de água muito claro entre dois grandes rochedos escuros, cobertos de búzios. O rio ia dar a uma grande poça de água onde o rapazinho tomou banho e nadou muito tempo. Depois do banho continuou o seu caminho através das rochas. Ia andando para o sul da praia que era um deserto para onde nunca ninguém ia. A maré estava muito baixa e a manhã estava linda. As algas pareciam mais verdes do que nunca e o mar tinha reflexos lilases. O rapazinho sentia-se tão feliz que às vezes punha-se a dançar em cima dos rochedos. De vez em quando encontrava uma poça boa e tomava outro banho Quando ia já no décimo banho, lembrou-se que deviam ser horas de voltar para casa. Saiu da água e deitou-se numa rocha a apanhar sol. «Tenho que ir para casa», pensava ele, mas não lhe apetecia nada ir-se embora. E, enquanto assim estava deitado, com a cara encostada às algas, aconteceu de repente uma coisa extraordinária: ouviu uma gargalhada muito esquisita, parecia um pouco uma gargalhada de ópera dada por uma voz de «baixo»: depois ouviu uma segunda gargalhada ainda mais esquisita, uma gargalhada pequenina, seca que parecia uma tosse: em seguida uma terceira gargalhada, que era como se alguém dentro de água fizesse «glu, glu». Mas o mais extraordinário de tudo foi a quarta gargalhada: era como uma gargalhada humana, mas muito mais pequenina, muito mais fina e muito mais clara. Ele nunca tinha ouvido uma voz tão clara: era como se a água ou o vidro se rissem.

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4 Com muito cuidado para não fazer barulho levantou-se e pôs-se a espreitar escondido entre duas pedras. E viu um grande polvo a rir, um caranguejo a rir, um peixe a rir e uma menina muito pequenina a rir também. A menina, que devia medir um palmo de altura, tinha cabelos verdes, olhos roxos e um vestido feito de algas encarnadas. E estavam os quatro numa poça de água muito limpa e transparente toda rodeada de anêmonas. E nadavam e riam. ‒ Oh! Oh! Oh! ‒ ria o polvo. ‒ Que! Que! Que! ‒ ria o caranguejo. ‒ Glu! Glu! Glu! ‒ ria o peixe. Ah! Ah! Ah! ‒ ria a menina. Depois pararam de rir e a menina disse: ‒ Agora quero dançar. Então, num instante, o polvo, o caranguejo e o peixe transformaram-se numa orquestra. O peixe, com as suas barbatanas, batia palmas na água. O caranguejo subiu para uma rocha e com as suas tenazes começou a tocar castanholas. O polvo trepou para cima dos rochedos e esticando muito sete dos seus oito braços prendeu-os pelas pontas com as suas ventosas na pedra e, com o braço que tinha ficado livre, começou a tocar guitarra nos seus sete braços. Depois pôs-se a cantar. Então a menina saiu da água, subiu para uma rocha e principiou a dançar. E a água junto dos seus pés ia e vinha e bailava também. Escondido, atrás do rochedo, o rapaz, imóvel e, calado, olhava. Quando a cantiga e a dança acabaram, o polvo pegou na menina e com os seus oito braços muito escuros pôs-se a embalá-la. ‒ Vem aí a maré alta, são horas de nos irmos embora - disse o caranguejo. ‒ Vamos - disse o polvo. Chamaram o peixe e puseram-se os quatro a caminho. O peixe ia à frente a nadar com a menina ao lado, depois vinha o polvo e no fim o caranguejo, sempre com um ar muito desconfiado e furioso. Foram indo por entre as areias e as rochas, até que chegaram a uma grata para onde entraram os quatro. O rapaz quis ir atrás deles, mas a entrada da gruta era muito pequena e ele não cabia. E como a maré estava a subir, teve que se ir embora, pois se ali ficasse morria afogado. Foi para casa muito espantado com o que tinha visto e durante esse dia não pensou noutra coisa. Na manhã seguinte mal acordou foi a correr para a praia. Foi pelo caminho da véspera, tornou a esconder-se atrás das duas pedras, espreitou e ouviu as mesmas gargalhadas da véspera. A menina, o caranguejo, o polvo e o peixe estavam a fazer uma roda dentro de água. Estavam divertidíssimos. O rapaz, louco de curiosidade, não conseguiu ficar quieto mais tempo. Deu um salto e agarrou a menina. Ai, ai, ai! Que desgraça! Gritava ela. O polvo, o caranguejo e o peixe tinham desaparecido, aterrorizados, num abrir e fechar de olhos.

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4 Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe, acudam-me, salvem-me – gritava a Menina do mar. Então o polvo, o caranguejo e o peixe, apesar de estarem cheios de medo, saíram detrás das algas onde se tinham escondido, e começaram a tentar salvar a Menina. Faziam o podiam: o polvo trepava pelas pernas do rapaz, o caranguejo com as suas tenazes belisca-lhe os pés, o peixe mordia-lhe nas canelas. Mas o rapaz era maior e tinha mais força, deu-lhes alguns pontapés e fugiu para longe com a Menina do mar que continuava a chamar: ‒ Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe! ‒ Não grites, não chores, não te assustes – dizia o rapaz. Eu não te faço mal nenhum. Eu sei que me vais fazer mal. Que mal é que eu hei de fazer a uma menina tão pequenina e tão bonita? ‒ Vais-me fritar ‒ disse a Menina do mar. E pôs-se outra vez a chorar e a gritar: ‒ Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe! ‒ Eu fritar-te! Para quê? Que ideia tão esquisita! ‒ disse o rapaz espantadíssimo. Os peixes dizem que os homens fritam tudo quanto apanham. O rapaz pôs-se a rir e disse: ‒ Isso são os pescadores. Os pescadores é que apanham os peixes para os fritar. Mas eu não sou pescador e tu não és um peixe. Não te quero fritar nem te quero fazer mal nenhum. Só te quero ver bem, porque nunca na minha vida vi uma menina tão pequeno e tão bonita. E quero que me contes quem tu és, como é que vives, o que e que fazes aqui no mar e como é que te chamas. Então ela parou de gritar, limpou as lágrimas, penteou e alisou os cabelos com os dedos das mãos a fazerem de pente, e disse: ‒ Vamos sentar-nos os dois naquele rochedo e eu conto-te tudo. ‒ Prometes que não foges? ‒ Prometo. Sentaram-se os dois um em frente do outro e a menina contou: ‒ Eu sou uma menina do mar. Chamo-me Menina do Mar e não tenho outro nome. Não sei onde nasci. Um dia uma gaivota trouxe-me no bico para esta praia. Pôs-me numa rocha na maré vaza e o polvo, o caranguejo e o peixe tomaram conta de mim. Vivemos os quatro numa gruta muito bonita. O polvo arruma a casa, alisa a areia, vai buscar a comida. É de nós todos o que trabalha mais, porque tem muitos braços. O caranguejo é o cozinheiro. Faz caldo verde com limos, sorvetes de espuma, e salada de algas, sopa de tartaruga, caviar e muitas outras receitas. É um grande cozinheiro. Quando a comida está pronta o polvo põe a mesa. A toalha é uma alga branca e os pratos são conchas. Depois, à noite, o polvo faz a minha cama com algas muito verdes e muito macias. Mas o costureira dos meus vestidos é o caranguejo.

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4 E é também o meu ourives: ele é que faz os meus colares de búzios, de corais e de pérolas. O peixe não faz nada porque não tem mãos, nem braços com ventosas como o polvo, nem braços com tenazes como o caranguejo. Só tem barbatanas e as barbatanas servem só para nadar. Mas é o meu melhor amigo. Como não tem braços nunca me põe de castigo. É com ele que eu brinco. Quando a maré está vazia brincamos nas rochas, quando está maré alta damos passeios no fundo do mar. Tu nunca foste ao fundo do mar e não sabes como lá tudo é bonito. Há florestas de algas, jardins de anêmonas, prados de conchas. Há cavalos marinhos suspensos água com um ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores. Há grutas misteriosas, azuis-escuras, roxas, verdes e há planícies sem fim de areia branca, lisa. Tu és da terra e se fosses ao fundo do mar morrias afogado. Mas eu sou uma menina do mar. Posso respirar dentro da água como os peixes e posso respirar fora da água como os homens. E posso passear pelo mar todo e fazer tudo quanto eu quero e ninguém me faz mal porque eu sou a bailarina da Grande Raia. E a Grande Raia é a dona destes mares. É enorme, tão grande que é capaz de engolir um barco com dez homens dentro. Tem cara de má e come homens e peixes e está sempre com fome. A mim não me come porque diz que eu sou pequena de mais e não sirvo para comer, só sirvo para dançar. E a Raia gosta muito de me ver dançar. Quando ela dá uma festa convida os tubarões e as baleias e sentam-se todos no fundo do mar e eu danço em frente deles até de madrugada. E quando a Raia está triste ou mal disposta eu também tenho que dançar para a distrair. Por isso sou a bailarina do mar e faço tudo quanto eu quero e todos gostam de mim. Mas eu não gosto nada da Raia e tenho medo dela. Ela detesta os homens e também não gosta dos peixes. Até as baleias têm medo dela. Mas eu posso andar à vontade no mar e ninguém me come e ninguém me faz mal porque eu sou a bailarina da Raia. E agora que já contei a minha história leva-me outra vez para o pé dos meus amigos que devem estar aflitíssimos. O rapaz pegou na Menina do Mar com muito cuidado na palma da mão e levou-a outra vez para o sítio de onde a tinha trazido. O polvo, o caranguejo e o peixe lá estavam os três a chorar abraçados. ‒ Estou aqui - gritou a Menina do Mar. O polvo, o caranguejo e o peixe, mal a viram, pararam de chorar e atiraram-se os três como cães aos pés do rapaz e começaram outra vez a mordê-lo e a picá-lo. O polvo com os seus oito braços chicoteava-lhe as pernas. ‒ Estejam quietos, parem, não lhe façam mal, ele é meu amigo e não me vai fritar ‒ gritou-lhes a Menina do Mar. O polvo, o caranguejo e o peixe interromperam a pancadaria, espantadíssimos com estas palavras. O rapaz baixou-se e pôs a menina na água ao pé dos seus três amigos, que davam saltos de alegria e muitas gargalhadas. Pediu à Menina do Mar, ao polvo, ao caranguejo e ao peixe para voltarem no dia seguinte à mesma hora àquele mesmo sítio. ‒ Tenho tanta curiosidade da Terra – disse a Menina, - amanhã, quando vieres, traz-me uma coisa da terra. E assim ficou combinado. 27


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4 No dia seguinte, logo de manhã. o rapaz foi ao seu jardim e colheu uma rosa encarnada muito perfumada. Foi para a praia e procurou o lugar da véspera. ‒ Bom-dia, bom-dia, bom-dia - disseram a Menina, o polvo, o caranguejo e o peixe. ‒ Bom-dia ‒ disse o rapaz. E ajoelhou-se na água, em frente da Menina do Mar. ‒ Trago-te aqui uma flor da terra ‒ disse; chama-se uma rosa. E linda, é linda - disse a Menina do Mar, dando palmas de alegria e correndo e saltando em roda da rosa. ‒ Respira o seu cheiro para veres como é perfumada. A Menina pôs a sua cabeça dentro do cálice da rosa e respirou longamente. Depois levantou a cabeça e disse suspirando: ‒ É um perfume maravilhoso. No mar não há nenhum perfume assim. Mas estou tonta e um bocadinho triste. As coisas da terra são esquisitas. São diferentes das coisas do mar. No mar há monstros e perigos, mas as coisas bonitas são alegres. Na terra há tristeza dentro das coisas bonitas. ‒ Isso é por causa da saudade ‒ disse o rapaz. ‒ Mas o que é a saudade? ‒ perguntou a Menina do Mar. ‒ A saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora. ‒ Ai! - suspirou a Menina do Mar olhando para a Terra. Por que é que me mostraste a rosa? Agora estou com vontade de chorar. O rapaz atirou fora a rosa e disse: ‒ Esquece-te da rosa e vamos brincar. E foram os cinco, o rapaz, a Menina, o polvo, o caranguejo e o peixe pelos carreirinhos de água, rindo e brincando durante a manhã toda. Até que a maré começou a subir e o rapaz teve que se ir embora. No dia seguinte, de manhã, tornaram a encontrar-se todos no sítio do costume. ‒ Bom-dia ‒ disse a Menina. ‒ O que é que me trouxeste hoje? O rapaz pegou na Menina do Mar, sentou-a numa rocha e ajoelhou-se a seu lado. ‒ Trouxe-te isto ‒ disse. ‒ E uma caixa de fósforos. ‒ Não é muito bonito ‒ disse a Menina. ‒ Não; mas tem lá dentro uma coisa maravilhosa, linda e alegre que se chama o fogo. Vais ver. E o rapaz abriu a caixa e acendeu um fósforo. A Menina deu palmas de alegria e pediu para tocar no fogo. ‒ Isso ‒ disse o rapaz ‒ é impossível. O fogo é alegre, mas queima. ‒ É um sol pequenino ‒ disse a Menina do Mar. ‒ Sim ‒ disse o rapaz ‒ mas não se lhe pode tocar. E o rapaz soprou o fósforo e o fogo apagou-se. ‒Tu és bruxo ‒ disse a Menina ‒ sopras e as coisas desaparecem. ‒ Não sou bruxo. O fogo é assim. Enquanto é pequeno qualquer sopro o apaga. Mas depois de crescido pode devorar florestas e cidades.

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4 ‒Então o fogo e pior do que a Raia? ‒ perguntou ‒ a Menina. ‒ É conforme. Enquanto o fogo é pequeno e tem juízo é o maior amigo do homem: aquece-o no Inverno, cozinha-lhe a comida, alumia-o durante a noite. Mas quando o fogo cresce de mais, zanga-se, enlouquece e fica mais ávido, mais cruel e mais perigoso do que todos os animais ferozes. ‒ As coisas da terra são esquisitas e diferentes ‒ disse a Menina do Mar. Conta-me mais coisas da terra. Então sentaram-se os dois dentro de água e o rapaz contou-lhe como era a sua casa e o seu jardim e como eram as cidades e os campos, as florestas e as estradas. ‒Ah! Como eu gostava de ver isso tudo ‒ disse a Menina cheia de curiosidade. ‒ Vem comigo ‒ disse o rapaz ‒ eu levo-te à terra e mostro-te coisas lindas. ‒ Não posso porque sou uma Menina do Mar. O mar é a minha terra. Tu se vieres para o mar afogas-te. E eu se for para a terra seco. Não posso estar muito tempo fora de água. Fora de água fico como as algas na maré vaza, que ficam todas enrugados e secas. Se eu saísse do mar, ao fim de algumas horas ficava igual a um farrapo de roupa velha ou a um papel de jornal, destes que às vezes há nas praias e que têm um ar tão triste e infeliz de coisa que já não serve e que foi deitada fora e que já ninguém quer. ‒ Que pena que eu tenho de não te poder mostrar a terra! – disse o rapaz. ‒ E eu que pena tenho de não te poder levar comigo ao fundo do mar para te mostrar as florestas de algas, as grutas de corais e os jardins de anêmonas! E nessa manhã o rapaz e a Menina, enquanto nadavam na água, iam contando um ao outro as histórias do mar e as histórias da terra. Até que a maré subiu e despediram-se. No dia seguinte o rapaz chegou à praia, sentou-se ao lado da Menina do Mar e disse: ‒Hoje trago-te uma coisa da terra que é bonita e tem lá dentro alegria. Chama-se vinho. Quem bebe fica cheio de alegria. Enquanto dizia isto o rapaz pousou no ar um copo cheio de vinho. Era um daqueles copos muito pequenos que servem para beber licores. A Menina do Mar segurou o copo com as duas mãos e olhou o vinho cheia de curiosidade, respirando o seu perfume. ‒ É muito encarnado e muito perfumado ‒ disse ela. ‒ Conta-me o que é o vinho. ‒ Na terra ‒ respondeu o rapaz - há uma planta que se chama videira. No Inverno parece morta e seca. Mas na Primavera enche-se de folhas e no Verão enche-se de frutos que se chamam uvas e que crescem em cachos. E no Outono os homens colhem os cachos de uvas e põem-nos em grandes tanques de pedra onde os pisam até que o seu sumo escorra. E a esse sumo dos frutos da videira que chamamos o vinho. Esta é a história do vinho, mas o seu sabor não o sei contar. Bebe se queres saber como é.

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4 E a Menina bebeu o vinho, riu-se e disse: ‒ É bom e é alegre. Agora já sei o que é a terra. Agora já sei o que é o sabor da Primavera, do Verão e do Outono. Já sei o que é o sabor dos frutos. Já sei o que é a frescura das árvores. Já sei como é o calor duma montanha ao sol. Leva-me a ver a terra. Eu quero ir ver a terra. Há tantas coisas que eu não sei. O mar é uma prisão transparente e gelada. No mar não há Primavera nem Outono. No mar o tempo não morre. As anêmonas estão sempre em flor e a espuma é sempre branca. Leva-me a ver a terra. ‒ Tenho uma ideia - disse o rapaz. ‒ Amanhã trago um balde e encho-o com água do mar e algas. E tu pões-te dentro do balde para não secares e eu levo-te comigo a ver a terra. ‒ Está bem ‒ disse a Menina. ‒ Amanhã vou contigo dentro do balde de água. E vou ver a tua casa e vou ver o teu jardim e vou ver passar os comboios: e vou ver a noite numa cidade cheia de luzes, de gente e de carros. E vou ver os animais da terra, os cães, os cavalos, os gatos: e vou ver as montanhas, as florestas e todas as coisas que me contaste. E assim o rapaz e a Menina do Mar passaram o resto da manhã a fazer planos para a aventura do dia seguinte. Até que a maré subiu e o rapaz foi-se embora. No outro dia o rapaz veio para as rochas com o balde. Vinha muito alegre, entusiasmado com o seu projeto, cantando e dando saltos. Mas quando chegou à poça de água encontrou a Menina do Mar com um ar muito desesperado e o polvo, o caranguejo e o peixe todos três com cara de caso. ‒ Bom-dia ‒ disse o rapaz. Trago aqui o balde. Vamos embora depressa. ‒ Eu não posso ir ‒ disse a Menina do Mar. E desatou a chorar como uma fonte. ‒ Mas por quê? ‒ perguntou o rapaz. ‒ Por causa dos búzios. Os búzios têm muito bom ouvido, ouvem tudo, são os ouvidos do mar. E ouviram as nossas conversas e foram contá-las à Raia que ficou furiosa e agora eu já não posso ir contigo. ‒ Mas a Raia não está aqui. Mete-te dentro do balde e vamos embora depressa. ‒ É impossível ‒ disse a Menina do Mar. A Raia ordenou aos polvos que não me deixassem passar. As rochas estão cheias de polvos escondidos que nós não vemos, mas que nos veem e espiam cada um dos nossos gestos. Tenho que te dizer adeus para sempre. Amanhã já não volto aqui porque a Raia, para me castigar de eu ter querido fugir, decidiu que esta noite ao nascer da Lua eu serei levada pelos polvos, para uma praia distante, que eu não sei como se chama, nem onde fica. E nunca mais nos poderemos encontrar. ‒ Vamos experimentar fugir ‒ disse o rapaz. Eu com as minhas duas pernas corro mais do que os polvos com os seus oito braços, que nem são braços nem são pernas. E, tendo dito isto, pôs a Menina do Mar dentro do balde e pôs-se a correr. Mas, no mesmo instante, as rochas cobriram-se de polvos. Para qualquer lado que ele olhasse só via polvos. Procurou uma aberta por onde passar, mas não havia nenhuma. Em sua roda os polvos tinham feito um círculo fechado. E ele estava no meio do círculo e não podia fugir. Então tentou saltar por cima dos polvos, mas logo dezenas de tentáculos lhe ataram as pernas.

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4 ‒ Larga-me, larga-me - dizia a Menina do Mar. Larga-me senão matam-te. - Não, não te largo - respondeu o rapaz. Mas já os polvos lhe envolviam a cintura e o peito, lhe prendiam os ombros, lhe atavam os pulsos e ele caiu nas rochas sem poder fazer nenhum gesto. Mas a sua mão ainda não tinha largado o balde. Até que um polvo se enrolou à roda do seu pescoço e o foi apertando lentamente. Então o rapaz viu o céu ficar preto, deixou de ouvir o barulho das ondas e esqueceu-se de tudo. Estava desmaiado. Acordou com a água a bater-lhe na cara. A maré tinha subido e as ondas já quase cobriam a rocha onde ele estava caído. Levantou-se e todo o seu corpo ainda lhe doía, coberto de marcas deixadas pelas ventosas dos polvos. Foi para casa devagar. Passaram dias e dias. O rapaz voltou muitas vezes às rochas, mas nunca mais viu a Menina nem os seus três amigos. Era como se tudo tivesse sido um sonho. Até que chegou o Inverno. O tempo estava frio, o mar cinzento e chovia quase todos os dias. E numa manhã de nevoeiro o rapaz sentou-se na praia a pensar na Menina do Mar. E enquanto assim estava viu uma gaivota que vinha do mar alto com uma coisa no bico. Era uma coisa brilhante que refletia luz e o rapaz pensou que devia ser um peixe. Mas a gaivota chegou junto dele, deu urna volta no ar e deixou cair a coisa na areia. O rapaz apanhou-a e viu que era um frasco cheio duma água muito clara e luminoso. ‒ Bom-dia, bom-dia ‒ disse a gaivota. ‒ Bom-dia, bom-dia ‒ respondeu o rapaz. Donde é que vens e porque é que me dás este frasco? ‒ Venho da parte da Menina do Mar ‒ disse a gaivota. Ela manda-te dizer que já sabe o que é a saudade. E pediu-me para te perguntar se queres ir ter com ela ao fundo do mar. ‒ Quero, quero ‒ disse o rapaz. Mas como é que eu hei de ir ao fundo do mar sem me afogar? ‒ O frasco que te dei tem dentro suco de anêmonas e suco de plantas mágicas. Se beberes agora este filtro passarás a ser como a Menina do Mar. Poderás viver dentro da água como os peixes e fora da água como os homens. ‒ Vou beber já ‒ disse o rapaz. E bebeu o filtro. Então viu tudo à sua roda tornar-se mais vivo e mais brilhante. Sentiu-se alegre, feliz, contente como um peixe. Era como se alguma coisa nos seus movimentos tivesse ficado mais livre, mais forte, mais fresca e mais leve. ‒ Ali no mar ‒ disse a gaivota ‒ está um golfinho à tua espera para te ensinar o caminho. O rapaz olhou e viu um grande golfinho preto e brilhante dando saltos atrás da arrebentação das ondas. Então disse: ‒ Adeus, adeus, gaivota. Obrigado, obrigado. E correu para as ondas e nadou até ao golfinho. ‒ Agarra-te à minha cauda ‒ disse o golfinho. E foram os dois pelo mar fora. Nadaram muitos dias e muitas noites através de calmarias e tempestades.

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4 Atravessaram o mar dos Sargaços e viram os peixes voadores. E viram as grandes baleias que atiram repuxos de água para o céu e viram os grandes vapores que deixam atrás de si colunas de fumo suspensas no ar. E viram os icebergues majestosos e brancos na solidão do oceano. E nadaram ao lado dos veleiros que corriam velozes esticados no vento. E os marinheiros gritavam de espanto quando viam um rapaz agarrado à cauda dum golfinho. Mas eles mergulhavam e desciam ao fundo do mar para não serem pescados. Aí estavam os antigos navios naufragados com os seus cofres carregados de ouro e os seus mastros quebrados cobertos de anêmonas e conchas. Depois de nadarem sessenta dias e sessenta noites chegaram a uma ilha rodeada de corais. O golfinho deu a volta à ilha e por fim parou em frente duma gruta e disse: ‒ É aqui: entra na gruta e encontrarás a Menina do Mar. ‒ Adeus, adeus, golfinho. Obrigado, obrigado. A gruta era toda de coral e o seu chão era de areia branca e fina. Tinha em frente um jardim de anêmonas azuis. O rapaz entrou na gruta e espreitou. A Menina, o polvo, o caranguejo e o peixe estavam a brincar com conchinhas. Estavam quietos, tristes e calados. De vez em quando a Menina suspirava. ‒ Estou aqui! Cheguei! Sou eu! ‒ gritou o rapaz. Todos se voltaram para ele. Houve um momento de grande confusão. Todos se abraçaram, todos riam, todos gritavam. A Menina do Mar dançava, batia palmas e ria com gargalhadas claras como a água. O polvo fazia o pino. O caranguejo dava cambalhotas e o peixe dava saltos mortais. Depois de todas estas habilidades ficaram um pouco mais calmos. Então a Menina do Mar sentou-se no ombro do rapaz e disse: ‒ Estou tão feliz, tão feliz, tão feliz! Pensei que nunca mais te ia ver. Sem ti o mar, apesar de todas as suas anêmonas, parecia triste e vazio. E eu passava os dias inteiros a suspirar. E não sabia o que havia de fazer. Até que um dia o Rei do Mar deu uma grande festa. Convidou muitas baleias, muitos tubarões e muitos peixes importantes. E mandou-me ir ao palácio para eu dançar na festa. No fim do banquete chegou a altura da minha dança e eu entrei na gruta onde o Rei do Mar estava com os seus convidados, sentado no seu trono de nácar, rodeado de cavalos-marinhos. Então os búzios começaram a cantar uma cantiga antiquíssima que foi inventada no principio do Mundo. Mas eu estava muito triste e por isso dancei muito mal. ‒ Porque é que estás a dançar tão mal? ‒ perguntou o Rei do Mar. ‒ Porque estou cheia de saudades ‒ respondi eu. ‒ Saudades? ‒ disse o Rei do Mar. Que história é essa? E perguntou ao polvo, ao caranguejo e ao peixe o que tinha acontecido. Eles contaram-lhe tudo. Então o Rei do Mar teve pena da minha tristeza e teve pena de ver uma bailarina que já não sabia dançar. E disse: No dia seguinte de manhã eu voltei ao palácio. E o Rei do Mar sentou-me no seu ombro e subiu comigo à tona das águas. Chamou uma gaivota, deu-lhe o frasco com o filtro das anêmonas e mandou-a ir à tua procura. E foi assim que eu consegui que tu voltasses.

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4 ‒ Agora nunca mais nos separamos ‒ disse o rapaz. ‒ Agora vais ser forte como um polvo. ‒ Agora vais ser sábio como um caranguejo ‒ disse o caranguejo. ‒ Agora vais ser feliz como um peixe ‒ disse o peixe. ‒ Agora a tua terra é o Mar ‒ disse a Menina do Mar. E foram os cinco através de florestas, areais e grutas. No dia seguinte houve outra festa no Palácio do Rei. A Menina do Mar dançou toda a noite e as baleias, os tubarões as tartarugas e todos os peixes diziam: ‒ Nunca vimos dançar tão bem. E o Rei do Mar estava sentado no seu trono de nácar, rodeado de cavalos marinhos, e o seu manto de púrpura nas águas. Dádiva Límpido reflexo na lâmina líquida do instante passas e ficas como um verso Tu não és um dia que se diz com umas incertas letras comuns mas uma palavra quente anima passas e ficas como um verso e quando a realidade plausível se curtocircuita num átimo de segundo quando um sonho parece infiltrado de fel e a cidade o grotesco espelho do sublime passas e ficas como verso nítido reflexo na pele líquida do instante fluidos vaivéns do gozo sincero e textual e a calma que agora invento é um élan longo silêncio audível sussurro marítimo murmúrio cristalino que escorre para fora do tempo e para dentro da vida STÉLIO FURLAN. Coordenador da graduação. Titulação: Doutorado. Área de atuação: Literatura Portuguesa.

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5 MANOEL DE BARROS

Manoel de Barros nasceu em Cuiabá (MT), em 1916. Faleceu em 1914, e Campo Grande (MS). Em 1937 com o livro Poemas Concebidos sem Pecado. Sua obra mais conhecida é o Livro sobre Nada, publicado em 1996.

Cronologicamente vinculado à Geração de 45, mas formalmente ao Modernismo brasileiro, Manoel de Barros criou um universo próprio — subvertendo a sintaxe e criando construções que não respeitam as normas da língua padrão —, marcado, sobretudo, por neologismos e sinestesias, sendo, inclusive, comparado a Guimarães Rosa. Em 1986, o poeta Carlos Drummond de Andrade declarou que Manoel de Barros era o maior poeta brasileiro vivo. Antonio Houaiss, um dos mais importantes filólogos e críticos brasileiros escreveu: “A poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade. Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo. Tenho por sua obra a mais alta admiração e muito amor”. Recebeu os prêmios: Jabuti (1990); Associação Paulista dos Críticos de Arte (2004); Grande Prêmio Sophia de Mello Breyner Andresen (2009). O livro sobre nada É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez. Tudo que não invento é falso. Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira. Tem mais presença em mim o que me falta. Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário. Sou muito preparado de conflitos. Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou. O meu amanhecer vai ser de noite. Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção. O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo. Meu avesso é mais visível do que um poste. 34


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5 Sábio é o que adivinha. Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições. A inércia é meu ato principal. Não saio de dentro de mim nem pra pescar. Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore. Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma. Peixe não tem honras nem horizontes. Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia. Eu queria ser lido pelas pedras.

O apanhador de desperdícios Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.

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6 CECÍLIA MEIRELES

Cecília Benevides de Carvalho Meireles ‒ escritora, professora e jornalista‒ nasceu no Rio de Janeiro, em 7 de novembro de 1901, e faleceu, em 1963, na mesma cidade.

Em 1910, ao concluir o Ensino Fundamental I, recebeu das mãos de Olavo Bilac, inspetor da Escola Municipal Estácio de Sá, uma Medalha de Ouro Olavo Bilac, pelo desempenho escolar. Ela já demonstrava paixão por livros, chegando a escrever seus primeiros versos. Em 1917, aos dezesseis anos de idade, formou-se na Escola Normal do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, onde teve como professores o historiador Basílio de Magalhães, a escritora infantil Alexina Magalhães Pinto e o poeta Osório Duque-Estrada. Após publicar o primeiro livro, em 1922, casa-se com o artista plástico português Fernando Correia Dias e passa a ter contato com o movimento poético em Portugal, do qual Fernando Pessoa fazia parte. Cecília Meirelles escreveu vários livros e participou dos movimentos literários parnasianismo, simbolismo e modernismo. É considerada uma das maiores poetisas do Brasil. O cantor e compositor brasileiro Raimundo Fagner gravou algumas músicas tendo seus poemas como base, a exemplo de Motivo: Eu canto, porque o instante existe E a minha vida está completa Não sou alegre nem sou triste, sou poeta Não sou alegre nem sou triste, sou poeta Irmão das coisas fugidias Não sinto gozo nem tormento Atravesso noites e dias no vento Se desmorono ou se edifico Se permaneço ou me desfaço Não sei se fico ou passo 36


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6 Eu sei que eu canto e a canção é tudo Tem sangue eterno a asa ritmada E um dia eu sei que estarei mudo, mais nada.

Ou isto ou aquilo Ou se tem chuva e não se tem sol ou se tem sol e não se tem chuva! Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva! Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares. É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares! Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo e vivo escolhendo o dia inteiro! Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranqüilo. Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.

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6 O menino azul O menino quer um burrinho para passear. Um burrinho manso, que não corra nem pule, mas que saiba conversar. O menino quer um burrinho que saiba dizer o nome dos rios, das montanhas, das flores, — de tudo o que aparecer. O menino quer um burrinho que saiba inventar histórias bonitas com pessoas e bichos e com barquinhos no mar. E os dois sairão pelo mundo que é como um jardim apenas mais largo e talvez mais comprido e que não tenha fim. (Quem souber de um burrinho desses, pode escrever para a Ruas das Casas, Número das Portas, ao Menino Azul que não sabe ler.) Sonhos da menina A flor com que a menina sonha está no sonho? ou na fronha? Sonho risonho: O vento sozinho no seu carrinho. De que tamanho seria o rebanho? A vizinha apanha a sombrinha

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6 de teia de aranha Na lua há um ninho de passarinho. A lua com que a menina sonha é o linho do sonho ou a lua da fronha? Leilão de jardim Quem me compra um jardim com flores? borboletas de muitas cores, lavadeiras e passarinhos, ovos verdes e azuis nos ninhos? Quem me compra este caracol? Quem me compra um raio de sol? Um lagarto entre o muro e a hera, uma estátua da Primavera? Quem me compra este formigueiro? E este sapo, que é jardineiro? E a cigarra e a sua canção? E o grilinho dentro do chão?

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7 GUIMARÃES ROSAS

Guimarães Rosas ‒ Escritor modernista, médico, diplomata ‒ nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo (MG); faleceu em 19 de novembro de 1967 (59 anos), no Rio de Janeiro (RJ). Escreveu romances e contos. Conhecido como o autor de Grande Sertão: Veredas. Recebeu o Prêmio Machado de Assis, em1961, e o Prêmio Jabuti, em 1993.

Foi o terceiro ocupante da cadeira 2 da Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito em 6 de agosto de 1963. São suas obras: Magma (1936); Sagarana (1946); Com o Vaqueiro Mariano (1947); Corpo de Baile: Noites do Sertão (1956); Grande Sertão: Veredas (1956); Primeiras Estórias (1962); Campo Geral (1964); Tutaméia – Terceiras Estórias (1967); Estas Estórias (1969: póstumo); Ave, Palavra (1970: póstumo); Antes das Primeiras Estórias (2011: póstumo). O conto Pirlimpsiquice traz em seu nome: Pirlimpimpim‒ o pó de faz de conta presente na ficção de Monteiro Lobato ‒ e psique que significa “espírito”, “mente”. No conto, o narrador-personagem, já adulto, narra um episódio transcorrido no tempo prazeroso da infância, repleto de aventuras e de invencionices, como a da arte de representar. O conto se reporta ao limite entre o real e a imaginação. É a história de várias crianças que ensaiam, com afinco, a peça Os Filhos do Dr. Famoso, para ser apresentada na escola. Mas quando chega a hora o Ataualpa um dos “atores” principais viaja porque tem um parente que está para morrer e deverá despedir-se. O narrador ‒ que era o ponto ‒ assume o lugar de Ataualpa. Ao iniciar, percebem que a peça devia ser aberta por um poema conhecido só pelo Ataualpa. O narrador fica parado e é vaiado.

Zé Boné, que iria participar num papel sem fala, começa a encenar uma peça de autoria de um dos garotos (Gamboa). A partir daí, os meninos passam a improvisar e conquistam o respeito da plateia. Mergulhados na improvisação, não sabem quando devem parar aquela encenação tão prazerosa.

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7 O narrador reflete e explica o que sucedeu: “Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar?” A representação dos atores termina quando o narrador-personagem se joga do palco. O fim da representação é também o fim da história contada sobre a peça. O narrador-personagem afirma que o mundo acabou, mas depois há a seguinte afirmação: “Ao menos, o daquela noite.” Já que haverá sempre mundos a serem recriados pelo escritor como se seu discurso fosse o “pirlimpimpim” que nos fizessem transpor o limiar da realidade para“ transviver” o mundo pela palavra. Segue o link “para áudio” do conto gravado na TV UNISINOS: https://www.youtube.com/watch?v=-iirJeixn0M

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