O barulho que vinha do sotão

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O barulho que vinha do sotĂŁo Pedro Sena



O barulho que vinha do sotão Hoje pela manhã sai contrariado de casa e fui direto

para a delegacia prestar uma queixa. O boletim de ocorrência constou que a luz do sol não embebeu meus olhos ao amanhecer, simplesmente porque não entrou em meu quarto. Obviamente o insensível funcionário achou estranho o fato: minha janela fora roubada

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durante a noite! Perdoei o indivíduo, afinal ele não tinha culpa de nada, nem obrigação de imaginar tal possibilidade e gravidade do problema. Não dá para acreditar numa coisa dessas. Querem nos privar até dos raios do sol passarem por nossa janela e trazer a manhã às casas, acordar os dorminhocos, lembrar que antes fora noite e tantas coisas mais. Nesse dia não fui para o jornal e aproveitei para resolver algumas pendências pela rua. Voltei para casa à boquinha da noite. Estava exausto. Raul, meu cachorro, veio me receber com a cara mais sonsa de quem estava aprontando alguma coisa,

“ô nego, traz a peteca, traz...”

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e ele se abanava todo. Raul era um cachorro latino de raça latina. Adorava brincar de peteca com as crianças do bairro. Um dia, ele ganhou dez partidas seguidas e foi o tricampeão da temporada – jogos veraneios de inverno. Fui tomar um banho, dar um tempo, descansar. Eu tinha que escrever mais dois contos para no dia seguinte serem publicados no jornal. Então me sentei no sofá, programei o despertador para que em vinte minutos eu começasse a produzir. Então percebi que eu não estava conseguindo cochilar. Ajeitei-me de um lado, de outro, tomei vergonha e me deitei como gente, mas de nada adiantou. A princípio eu não estava entendendo nada, pois se eu estava tão cansado, como não dormir? Só depois é que eu consegui não entender mais nada. Fui procurar Raul, mas nem precisou, ele já vinha com seu olhar questionador “que está acontecendo?”, e notei que estava também inquieto. Eu não sabia por que estava tudo tão estranho. Então fomos averiguar a casa, eu para um lado, Raul para a peteca brincar... Eu entendi, afinal ele estava bem aflito com a situação. Rodei por toda a casa, nem alma penada, peluda, nada, nem um ruído sequer. Então encontrei o problema. O único lugar onde não fora inspecionar foi o sótão.

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Mesmo quando todos estavam dormindo em silêncio, desde mim, Raul, grilos até peteca, fora sempre habitual, durante o dia todo, todos os dias, horas e quebrados, entoar pela casa um barulho que vinha do sótão.



Desde quando me mudei para esta casa percebi o barulho. A princípio fiquei com medo e não fui olhar o que era, depois, Raul e eu ficamos curiosos, mas com um medinho ainda. Então curiosos, com medo e ansiedade, passamos a conviver com o barulho fazendo parte de nossas vidas. E agora essa? O barulho que vem do sótão não estava vindo! Na noite passada roubaram minha janela, agora isso? “Raul, você foi ao sótão?”, que disparate, não podia ser ele, estava tão aflito quanto eu, “desculpa nêgo...”. Pensei em ir ao sótão pela primeira vez, mas recuei. Se eu fosse, o sótão não seria mais o mesmo. Só que agora o barulho não estava vindo, então ele não era mais o mesmo. “Meu Deus, o que está acontecendo?”. Chamei Raul para que me acompanhasse e fossemos ao sótão. Subimos devagar as escadas para não romper com o silêncio e estacamos a uns metros da porta. Eu não tinha mais unhas para roer. Então notei uma estranha serenidade no rosto de Raul. De repente ele começou a brincar eufórico com a peteca, “Raul, volta, não vai pra ai!”, ele não me escutava de tão ensandecido de alegria. Peteca pra lá, peteca pra cá, Raul malucode-alegre, peteca pra cá, eu com medo, peteca pra lá, o sótão sem barulho vindo e a peteca saiu correndo para o sótão e Raul atrás, “não Raul, volta!”, ele não me

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escutou, talvez porque já deixei a peteca cair, então a porta se abriu, peteca pra cá, Raul extasiado, peteca adentrou, Raul adentrou. Eu não sabia se corria ou se ficava. Então me aproximei da porta, “Raul, cadê você, volta nêgo, traz a peteca, traz...”, e foi então que Raul respondeu e uma linda luz barulhenta rompeu com o silêncio e pude ver através da porta várias crianças, raios de sol e Raul! “Raul, vem pra cá!”, a luz ficou mais forte e mais quente e eu, muito tomado pelo medo, queria ir e queria ficar, mas achei que tinha que escolher e então saí correndo e a luz veio atrás de mim até onde pode e eu me tranquei. Agora, peteca pra lá, trancado, sem medo, sem sol, sem Raul, sem peteca...

“Sou homem depois desse falimento?”

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