Jefferson Bessa - Água fria

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Água Fria

ÁGUA FRIA

JEFFERSON BESSA



ÁGUA FRIA

JEFFERSON BESSA

2017


Água Fria

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1. DESTRABALHAR ................................................................ 6 2. PEDIR É TODA A MINHA VONTADE ................................. 10 3. CRESCE UM BARRACO AQUI ............................................ 11 4. OLHOS-PORTA.................................................................. 12 5. SEM OS PÉS ...................................................................... 14 6. CONCEDERAM UM EMPREGO ......................................... 16 7. FARPAS ............................................................................. 18 8. ERA UM CASAL MUITO FINO ........................................... 19 9. EU UM BARRACO SUSPENSO ........................................... 21 10. A VELHICE ATRAVESSA ..................................................... 25 11. HOJE ME DERAM DE LEMBRANÇA .................................. 27 12. ONDE FOI QUE EU VIM PARAR? ...................................... 28 13. OS OLHOS COMEÇARAM A PENAR .................................. 30 14. A DOR PESADA ................................................................. 32 15. MANCHA .......................................................................... 34 16. SALDO ANUAL .................................................................. 36 17. SE BUSCASSE NOS FATOS DE MINHA VIDA ..................... 37 18. SEMPRE ME PEDEM, PEDEM QUALQUER COISA ............. 38 19. LIQUIDAR ......................................................................... 41 20. AS CIDADES E OS RIOS ..................................................... 43 21. LINHAS ENGUIÇADAS ....................................................... 45 22. ÁGUA FRIA ....................................................................... 47 23. A QUEM PEDIR? ............................................................... 49 24. VISTA DA CIDADE ............................................................. 51 25. FUNGOS ........................................................................... 53

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1. DESTRABALHAR

deve trabalhar - ouço desde criança. deve trabalhar todos os dias, oito horas ou mais tempo na hora extra. mas extra é o próprio trabalho, os dias querem me trabalhar para agora ficar aqui trabalhado. mas basta destrabalhar para ver que esta vida é hora extra porque o extra dos dias sempre nos quer trabalhar para viver no serviço das horas.

poderão pensar que sou vagabundo mas o que fazer com quem vive em extremos e só entende duas afirmações: "trabalho, por isso não sou vagabundo" e "vagabundeio, por isso não sou trabalhador".

digo que não sou nem um nem outro, pois ser trabalhador ou vagabundo se assemelham. não participo do cristianismo de gravatas e trapos nem da dignidade laborativa de caridade nem da mendicância invejosa de querer o adoçante alheio 6


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nem das vantagens de liquidações comerciais para dar felicidades liquidadas.

quando destrabalho me despeço do tempo medido me despeço da riqueza e da pobreza. me despeço de facilidades de felicidades e tristezas. Sou este que destrabalha porque não fico nem rico nem pobre, portanto não preciso enriquecer ou roubar.

encerrado na cidade, uma vez ouvi de um homem que falava de trabalho como obrigação. mas obrigar ou pedir obrigado é brigar com alguém. para ele a obrigação abriga para mim a obrigação extrai briga. digo briga, pois pergunto: para que e para quem se trabalha? não fico só em dependências interrogativas quando destrabalho. me dizem para ter cuidado, pois posso ser preso, mas na cidade estamos presos às obrigações. os vagabundos estão presos, porque querem dos trabalhadores. os trabalhadores estão presos, porque querem o trabalho dos vagabundos. 7


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ricos e pobres estão nesta mesma cidade e se avizinham. tudo isso tem a aparência de natural e, ao mesmo tempo, tudo passa como entretenimento.

um dia desse veio um mendigo me pedir me obrigava a lhe dar uma esmola. em seguida, um outro me obrigava a comprar, pois dizia que estava a trabalho. ora veja, mendigo mesmo não obriga a receber esmola. lhe disse que era um trabalhador vestido de mendigo e ao outro disse que nenhum trabalho obriga a ninguém comprar.

o destrabalho vive com pouco para quê ter mais do que necessito? ou ter além do que posso ter? me cobrarão cuidado, pois "mente vazia é oficina do diabo" querem me colocar o diabo para me obrigar para me fazer pensar que não valho nada. para eles não valho mesmo, porque o diabo na minha mente vazia brinca.

agora, atenção, muita atenção, não com o diabo mas com quem quer te trabalhar o trabalho. 8


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todos os diabos vêm de lá. querem me preencher de medos, de intimações, me acham muito vazio.

vivo com pouco e gosto de conversar e ouvir quem destrabalha. nos juntamos lá na esquina - não para futilidades. lá vem minha vizinha, vem sempre muito lenta teremos muito destrabalho não precisamos de nada além do que temos. ela chega e a conversa também segue lenta ali vamos destrabalhando.

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2. PEDIR É TODA MINHA VONTADE

pedir é toda a minha vontade e caminha vestida de mendigo pelas ruas segue pedindo. minha vontade é a vantagem de acordar a pena dos outros

conseguir um cigarro ver numa moeda a piedade um olhar de pena ouvir o som pedir. ontem pedi um cigarro. ao vê-lo nas minhas mãos todo o meu desejo se preencheu. devo ser um dos melhores pedintes, igual a mim deve ser difícil encontrar. por aí se vê apenas roupas de mendigo mas poucos se preenchem disto como eu. talvez seja eu um pedinte nato. todos querem ser, mas poucos podem receber a doação sentindo que ser pedinte satisfaz plenamente a alma 10


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3. CRESCE UM BARRACO AQUI

cresce um barraco aqui: fora de mim em quarto aqui dentro em colina

é visto como o que se vê: o barraco cresce de uma tábua da alma tangível de madeira

e mais: decresce despregado, é que de queda cresce aqui e um tijolo se desmantela

será ele do quarto da alma ou do quarto daquele barraco: materiais de pedra e além

cresce ainda um prego aqui e lá caindo em crescente sustenta e crava o barraco

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4. OLHOS-PORTA

meus olhos acordaram feito dobradiças abriram num canto de porta enguiçada. estes olhos esquecidos de lançar óleo lubrificante começaram a ver por ouvir ranger a abertura.

me tragam o lubrificante pois não há lágrima! quem trará aos meus olhos o verniz de ver? as retinas se soltaram - o pino das dobradiças! que viço, que líquido, que água pode umedecer?

me tragam um alicate, acabem com o rangido pois ainda se abrem arranhando, quase ruindo. sinto meus olhos-porta, estão despencando quem colocou a ferrugem impedindo de abrir?

espero que não me tragam lubrificante de cegar. e se - como quem frita pela décima quinta vez me trouxerem óleo de cozinha reutilizado pela décima quinta vez? meus olhos cegarão de vez, eles já estão ruindo.

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então, me tragam sabão para esfregar e inserir nas entranhas dos olhos. Vão arder de limpar! às vezes tenho surtos de vida sanitária! no entanto, não, aqui não se pede sanidade.

e se me trouxerem uma água para além d'água!? mas a minha vizinha sã me trouxe água sanitária. os olhos ficarão piores do que acordaram o barulho ficará ainda mais cego e insuportável

não me tragam mais nada, me deixem emperrado nas dobradiças dos olhos que me trouxeram. não deveria ter pedido, tenho a mania de pedir. triste pedir, pois alimenta o ranger das dobradiças

não me tragam nada, pois já me trouxeram o enguiço dos meus olhos antes de acordar. eu, rangendo, me perdi ao pedir - vejam só aquilo que me trouxeram bem antes e longe

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5. SEM OS PÉS

há muito acordo sem os pés mas nunca me vi sem eles mas hoje a manhã ardeu sequer andei até a porta. retiraram minhas pernas como quem extrai ouro. as veias crescem de novo como as sementes lentas. mas ainda não vejo as pernas, mas logo serão retiradas e agora meus pés doem sem os ter nesta manhã. doem as pernas sem elas como se ainda as tivesse. caminho sem caminhar passo sem ter um passo. a andança pelas ladeiras é o cansaço de me levarem. 14


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sem pernas me deixaram assim acordei nesta manhã talvez um dia me devolvam, sonhei hoje no fim de tarde - quase noite - com as pernas. a firmeza da noite começava. mas ao acordar era manhã a dor nas pernas ainda existia sem elas as sentia e as via. elas me ficam por extração

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6. CONCEDERAM UM EMPREGO

I

me concederam um emprego nele não me emprego nem ele a mim se emprega

somamos juntos um tempo vago não o vago que se emprega mas o solto que há no preso

me concederam um emprego sem emprego nem martelo não há elo e nem poderia haver

nem um prego na parede se prende quando se prende está frouxo quando frouxo trepida na ferrugem

II

o que se vê dos dias é o calendário 16


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chegar dia cinco ou dia primeiro o que se espera dos dias é o pagamento

sem me empregar recebo os dias pagando o recebimento da ninharia recebendo o pagamento da punição

nada se faz do resgate do vago tempo reparo assim dos dias que se fazem às mãos recebo a pendência mensal

não sei, mas levo às escondidas em algum bolso da minha calça um sorriso a isso e um desemprego

mas o que foi mesmo que roubei?

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7. FARPAS

foi apenas alisar a madeira da porta mas o liso se encrespou no dedo. o tempo sem data encravou farpas, aqui inchaços constantes na carne. nem médico, curandeiro ou alicate nem pasta de bicarbonato de sódio, a farpa profunda se perdeu no dedo.

foi em casa, esta hora sempre perfura. esta farpa crônica dói como o além. dizem das dores decadentes e sombrias, mas nunca senti as dores dos impérios de lisas texturas decaírem em áspero. pensei que pudesse alisar a madeira mas esta antiga inflamação persiste.

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8. SIM, ERA UM CASAL E MUITO FINO

sim, era um casal e muito fino mas se via: sempre voltava à loja era uma daquelas lojas pra rico era um casal que olha e esnoba

mas voltavam com as caixas e saíam com outras diferentes o casal e outros têm uma rixa pensei - coisa de rico exigente

depois soube: vinham trocar mas não podiam, passou a garantia. isso sempre acontecia, era azar: descolava o salto, o solado saía

compravam ali seus outros sapatos daí comecei a imaginar na duração como relógio dentro dos calçados um calendário no cadarço, por que não?

comecei a imaginar o casal 19


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rico, comprava o melhor da loja mal sabiam: levavam o mais banal mas na etiqueta confiava a senhora

não sabiam: era feito de papelão, material igual aos sapatos de pobre imagina o casal cheio de senão queria os mais caros, um deslumbre

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9. EU UM BARRACO SUSPENSO

agora deram pra me olhar eu um barraco suspenso no morro de qualquer cidade. visto de todos os lados sou uma porta que mal abre já caída se quiser fechar

sob vento sob chuva sob sol e sob olhares eu aqui tão sob, tão sub eu um barraco em linhas de tábuas e letras e tosco

um dia desses cai de vez ou melhor, eu mesmo armo aqui um barraco eu vou quebrar o barraco pra fazer cair de vez

eu um barraco no asfalto faço linhas sem engenho 21


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sem arquiteto, bem torto por pouco não desabo

se falar mais alto cai de um só vez, sem esforço. sem esforço, sem polidez esses versos são tábuas mal cortadas, mal serradas

eu um barraco na cobertura de frente pro mar de fios e telefones e carros-carroças. tudo capengando em belezas de quem só age pra comprar

ah, sou mesmo é um barraco! muitos são os barracos por aí. pregos soltos e enferrujados que até pra soltar os bichos tropeça e se desmonta

se alguém chegar pra exibir tudo isso na tevê, já sei. eu que sempre vivi de má fama 22


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não fará diferença alguma. vou xingar, blasfemar, vou chegar bêbado, vou gargalhar

tão fraco e tolo sob telhas entre tijolo e madeiras velhas. agora me inventaram pros olhos exóticos; e são de um bondade de tirar algumas fotografias para me guardar na máquina

fazem pra cá viagens doentes para ver outro enfermo eu e outro - viagem de bobo em aventuras de fotografar a sua e minha desventura

lembrança mórbida de quem na memória já é um enfermo. gente falsa; gente que se diz de alteridade e de caridade

deveriam dar um trato nos olhos nessas manias de guardar. 23


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pro espaço essa gente toda! eu um barraco que não habita mas que dura assim enferrujado

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10. A VELHICE ATRAVESSA

esta velhice dos mais velhos envelhece minha resistência, pensa até quando vou escrever sem que a idade não seja abalada sem que um pouco me dê rasteira

existem os jovens que são jovens pouco ontem e muito amanhã mas tão pouco se vive neste afã, só se tem o que faz de si em si limitação por ser uma paragem

mas aqui a velhice atravessa chega na juventude de ser velha ou na velhice de ser jovem: ontem de hoje ou amanhã de ontem ou amanhã no hoje de anteontem

por isso escrevo de me apoiar por entre os braços de levantar estas mãos cansadas de jovem 25


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tão leves de caminhar antigas são passos lentos de novo andar

em gestos rápidos de velho saber o que se vê do novo envelhece na audição do velho em nascimento. a tarde desta manhã me anoitece passo e esqueço a idade em sorriso

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11. HOJE ME DERAM DE LEMBRANÇA

hoje me deram de lembrança poder me ver assim esperando por muito da esperança saber viram o ponto final da espera

o que se pode saber da espera? de tanto esperar me esqueci. mas sempre alguém me lembra é quando me armam uma cilada:

de que vale esperar desesperado se quem me disse zomba de ver? nele me vejo nesse pobre real diz que esperarei nesta espera

esquecido, caminho lentamente às vezes me sento, me levanto. quando dizem, querem me assentar espero demais, ainda me dizem

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12. ONDE FOI QUE EU VIM PARAR? onde foi que eu vim parar? me largaram nesta terra nesta em que só se tem pés e passos que saem para estar em outra terra

nem se vê simples o solo pois antes do chão se vê o céu. Mas deste nada brota, nada rebenta, nada rasga e mantiveram os pés no céu

deste dia pra cá se perdeu o azul, o marrom, o lilás. por isso aqui me pergunto onde foi que eu vim parar? nesta terra sem terra alguma neste céu que é outra coisa

desses olhares à distância ao meu redor me cerquei me prendi e aqui parei. 28


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de tanto ouvir ao longe fico e imagino outra terra cansado do que não existe

dizem que me aborreço desta terra, de estar aqui. nada disso, nada disso! esgotado de ter que sair dela - disto estou cansado de olhos que olham pra lá

às vezes me põem algemas estas de rejeição e ojeriza e fico em linhas cáusticas. sem dar por isso me deixo às vezes ir para esta noite pobre, cheia de sono pesado

daí olho para o chão e sorrio e vejo que devo retirar o céu. não o céu azul acima de mim mas este que roubou o chão que leva ao "onde vim parar?" no qual eles insistem em pisar 29


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13. OS OLHOS COMEÇARAM A PENAR às vezes as coisas no homem dão assim para penar. e na pena de pensar e de pensar penando os olhos começaram a penar como uma vizinha um mendigo, uma montanha como pena esta cidade. de tanto olhar acabei nesta pena com um sorriso no canto da boca (se fosse em branco como é o branco não teria pena daquela folha. mas numa folha impressa cada pena é a letra da folha. se fosse folha de poema mas é folha de jornal. se fosse folha de árvore jamais teria pena mas essa pena é quase quase uma pena de ave 30


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que na doença perdeu as penas) às vezes as coisas no homem dão assim para penar. como aquele que um dia esqueceu o leve da pena do pássaro para dar à pena da composição o seu grande espírito que, arrebatado, sentiu dor e deu à pena a forma de bico se viu feito um pássaro mas, sem voo, escreveu a doença do sentido pena

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14. A DOR PESADA

agora já não sei quem sofre mais: se sou eu ou é a minha vizinha. ela quis me colocar na balança, quis comparar quem sofre mais

mania de ser mais em tudo que faz ela toda só é dores, só calafrios e minha boca assim calada e fria sente nos ouvidos os sofrimentos

e como dói estar na dor ouvinte! uma dor impaciente e irritada. mas a vejo já sofrida só de pensar em subir no prato da dor da balança

que pesar é o peso das infecções de minha vizinha! sem o peso leve da pena, vive no penar da sensação doída de existir

que prazer de dor terá em ser mais 32


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no mais pesar da balança ofendida? talvez o prazer da dor na dolorida medida de sentir mais pena de si

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15. MANCHA

I

mancha de tamanho médio ferimento castanho, visto no lado amarelo da maçã

madura, de pouco vermelho passou o tempo sem pecado pois na pele rugosa bem vive

vê-la apenas é pouco, mais: tocá-la e desligar significados mordê-la e nos deixar dentro

II

e a mancha que no início se mostrou muito evidente como uma pancada no olho?

é o primeiro sinal do maduro? 34


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ou a grande onda de um marinheiro de primeira viagem?

quem viaja nĂŁo tem escolha leva e traz no rosto a mancha castanha, vermelha, amarela

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16. SALDO ANUAL

sim, a economia do país cresce mas nas contas que fizemos grande parte vem das maravilhas, das ilhas, das filhas, das meninas. mas também dos meninos, dos físicos, dos ares afrodisíacos. sim, nas contas que fizemos o afro que se lê em afrodisíaco provém das rendas de Afrodite. não, no balanço dessas contas tivemos de fazer a retificação: o afro somado ao tempo nos dá o resultado de que afro deve ser calculado com africano, assim, o saldo se afasta dos gregos. para chegarmos ao verdadeiro saldo: temos que somar o gringo mais o povo que para ele vem rindo mais as correntes que nos prendem. sim, a economia do país cresce. (2012) 36


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17. SE BUSCASSE NOS FATOS DA MINHA VIDA

se buscasse nos fatos da minha vida, da minha biografia nada teria o que pôr em versos. escreveria talvez um quarteto um terceto, um dístico com os nomes da rua em que morei, mas em mim o que são nomes de rua? se buscasse nos dias de semana quem sou ou fui ou faço escreveria dois versos ou nem um.

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18. SEMPRE ME PEDEM, ME PEDEM QUALQUER COISA

sempre me pedem pedem qualquer coisa me pedem os conhecidos e os desconhecidos os necessitados e os não necessitados os ricos e os pobres: os ricos me pedem um serviço pronto os pobres, um trabalho, uma moeda

sempre me pedem me pedem até mesmo para pedir a Deus. mas onde estará o altar? ah, persistem em andar pela cidade dos joelhos acimentados cidade ajoelhada a um templo que mal se vê bem longe no alto de um morro

mas do chão grande e suja se ergue a mão do mendigo e saem dos guichês mãos cobradoras os funcionários me cobram as entradas não os conheço pelo rosto 38


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mas os conheço precisamente pela mão que não se diferencia da mão pedinte a casamentos (são mãos exigentes de recibo!)

em meio a tantos pedidos me torno a partir de agora um pedinte - um desses grandes pedintes. quando alguém vier me pedir para ouvir para falar, para gargalhar, para comer ou comparecer direi que, nesse mundo constituído de petições, todos deverão esperar. pode ser até mesmo um mandado institucional também deverá esperar, pois espero aqui a resposta de um pedido acabei de pedir às coisas uma palavra um verso uma rima um poema 39


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nesses momentos tenho uma concepção uma grande unidade de ideia influenciado pelas moças de escritório quem em linguagem burocrata dizem “qual seria a sua solicitação, senhor?” por influência, isso caberia numa única sentença seria a pura essência ao largo das aparências: quando chegar a hora de ouvir um pedido compreenderei “a vida é uma solicitação”!

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19. LIQUIDAR

me tenho como comprado numa loja

me tenho como vendido em liquidação

serei lucro ou prejuízo nesta cidade estocado nesta caixa abafado?

nessas horas me aniquilo feito líquido, desfeito em queima de estoque

me compro por tão barato me dou por tão vendido me dou por visível em vitrine me vendo praticamente de graça a quem quiser

digo olá 41


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a quem me segurar como as alças de uma sacola

a verdade é que não sou lucro ou prejuízo, no ajuste de contas sou mero saldo do que fazem de mim

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20. AS CIDADES E OS RIOS

existem rios nas cidades mas não são rios não passam não seguem estagnados por isso, a cidade não passa vive extensa num estacionamento do tamanho dela mesma sem o tempo dos rios nada escoa a cidade não passa as pessoas param (estranhas de nome, as cidades não fluem essas fluminenses e outras não fluem de que nos vale 43


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um Rio em nome escrito se travada em letra sua palavra não escoa pois feito poça parou sem sua água?) passamos sobre rios e pontes mas sob os olhos nenhum rio nos passa. ninguém passa por uma cidade se antes um rio por ela não passar

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21. LINHAS ENGUIÇADAS

começou a ler o poema mas dele nada ouvia continuou a ler apenas com os olhos e sem ver eram linhas enguiçadas

leitura de ficar de lado tudo pela metade, meia palavra, meia narina. seguiu de lado ao ler nada se ouvia, sem odor

esfriou, tudo se esfriou como imagem de jornal o poema se foi esvaindo ver de gente pela metade de quem não esquece de si

coisa de gente que esfria como prato bem gelado só sente cheiro resfriado 45


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esquecido de desentupir lido no mais ou menos

neste seu silêncio de ler leva o poema a derreter acreditou em silenciar a palavra lida murchou nela não escreve nem fala

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22. ÁGUA FRIA

levei um banho de água fria como se chovesse há séculos, como a chuva que veio do mar e deixou um pouco de brasa, pois a fogueira logo foi levada e, sem o fogo, apenas abrasou.

o dia estava quente, era solar, pouco solar, pois a brasa exige tempo, mas começava a estalar, se ouvia e refletia sua centelha. a lenha ainda seria melhorada, mas levei um banho de água fria

antes mesmo de se ver acender a fogueira, voltei à antiga brasa. brasa que com a água se fez lama. e no ar o odor de fogueira apagada, na terra as cinzas viviam fumaça, e a água obstruía os caminhos.

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senti a água fria em dia quente o arcaico banho apagou a brasa. dela devem ter feito um brasão também arcaico. Foi quando vi a fria água escorrendo no corpo: era medrosa, presa em conserva

se guardou e ainda se guarda esta água num braseiro úmido. mantida com gelos e gosmas ela inflama por não ter chama, sua brasa ao chamar se apaga para dar um banho de água fria.

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23. A QUEM PEDIR?

A quem pedir se todos já me pedem?

A quem pedir se Deus já está com quem pede? A quem pedir se com quem pede se põe o poente E no poente se põem as línguas pedintes?

A quem pedir? Como ainda dizer pedir? Deixamos de ser pedintes natos Não se tem mais o pedir

(Ainda assim ter o pedir por não pedir: me despeço e me desrespeço pois ainda que não peça é quando peço no despedir)

Quem diz "Peça" acerta se pensa que esta peça enferrujou, desparafusou, desimplorou

Mas já não há pedir nem despedir porque não se tem a quem o que pedir

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O pedido ainda ao longe me pede mas no poente o vi deitado horizonte

Agora ando ando me despedindo despedido do pedido

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Água Fria

24. VISTA DA CIDADE os olhos correm em velocidade móveis seguem, imóveis ficam

os olhos correm vendo os imóveis mas dentro e fora tudo é paragem

a velocidade imposta e crescente ao caminho pelos barrancos passamos

esbarrando nos barracos tudo ascende a terra plana se nivela aos altos do morro

minha mente aos poucos se desmantela pois falta martelo, nem posso pendurá-la

tudo balança no ar, tudo balança na alma os prédios trepidam, as árvores caem

os olhos para fora das madeiras são pregos os braços, madeiras dependuradas ao vento

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a luz piscou e a energia faltarรก em instantes ah, mas jรก me falta energia para continuar!

tentei seguir, mas tudo cresce descendendo em grande velocidade o poema se acabou

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25. FUNGOS

os fungos se fundaram de vez, se fundiram aos outros fundos e agora se vive de fungar os dias ruidosos aos profundos ouvidos

os fungos são muito fundos: nas entranhas, nos recursos nas contas furtadas na carência das palavras nos papéis dos burocratas nas histórias dos triunfos nos arcos triunfais fungados

aqui se fungam os tempos, as horas e na unha o fungo se edifica pois se funde ao resfriado do ser e das almas vitoriosas

(um lenço, por favor, para assoar! e para a unha infectada, por favor, 53


Água Fria

pasta de erva ou esmalte para sair desta furna.

que praga este fungo enfurnado em tudo! fungo sem data! quem se lembra de onde veio? depressa, tragam fungicida!

a vizinha me trouxe um remédio. o fungo desapareceu por uns dias, mas do que adiantou se provocou irritação?

um lenço, por favor, para assoar! e para a unha infectada, por favor, um enlevo esmaltado para esta mentalidade daninha)

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