[ASSIS, Machado de] Casa Velha

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CAPÍTULO X Estava recolhendo tudo, quando dei por falta de uma nota tomada naquele dia; não era fácil reproduzir a nota, pois não a havia tirado de uma só página nem de um só livro, mas de muitos livros diferentes. O caso aborreceu-me; procurei o papel atabalhoadamente; depois recomecei com cuidado. Abria os livros com que trabalhara nesse dia, um por um, mas não achava nada. Vim achar a nota, depois, ao pé da grade da janela, prestes a cair. Entre os livros que folheei, procurando, achava-se um relatório manuscrito, que eu lera apenas em parte, não o tendo feito na que continha tão-somente a transcrição de documentos públicos. Pegando no livro pela lombada, e agitando-o para fazer cair a nota, se ali estivesse, vi que efetivamente caía um papelinho. Vinha dobrado, e vi logo que era por letra do ex-ministro. Podia ser alguma cousa interessante, para os meus fins. Era um trecho de bilhete a alguma mulher, cujo nome não estava ali, e referia-se a uma criança, com palavras de tristeza. Podiam ser outros amores; podiam ser os próprios amores da mãe de Lalau. Hesitei em guardar o papel, e cheguei a pô-lo dentro das folhas do relatório; mas tornei a tirá-lo, e guardei-o comigo. Reli-o em casa; dizia esse trecho do bilhete, que provavelmente nunca foi acabado nem remetido: Tenha confiança em mim, e ouça o que lhe digo. Não faca baralho, sossegue e não fale sempre no meu nome. Venha cá o menos que puder; e não pense mais no anjinho. Deus é bom. Não achava nada que me explicasse cousa nenhuma; mas insisti em guardá-lo. De noite pensei que o bilhote podia relacionar-se com a família da Lalau; e, como nunca tivesse dito à tia desta o motivo que a separara da Casa Velha, resolvi pedir-lhe uma conferência, e contá-lo. Pedi-lhe a conferência no dia seguinte, e obtive-a no outro, muito cedo, enquanto Lalau dormia. Não hesitei em ir logo ao fim. Contei-lhe tudo, menos o amor da sobrinha e do filho de D. Antônia, que ela, antes, fingia ignorar. D. Mafalda ouviu-me pasmada, curiosa, querendo por fim que lhe dissesse se D. Antônia ficara irritada com a descoberta. —Não, perdoou tudo. — Então por que houve logo esta separação? Hesitei na resposta. — Entendo, disse ela, entendo. Vi que sabia tudo; mas não se consternou por isso. Ao contrário, disse-me alegremente que, se não era mais que essa a causa da separação, tudo estava remediado. — Conto-lhe tudo, disse-me ela no fim de alguns instantes. Não diria nada em outras circunstâncias, nem sei mesmo se diria alguma cousa a outra pessoa. D. Mafalda confirmou os amores da cunhada; mas o ex-ministro via-a pela primeira vez, quando eles vieram da roga, tinha Lalau três meses. Não era absolutamente o pai da menina. Compreende-se o meu alvoroço: pedi-lhe todas as circunstâncias de que se lembrasse, e ela referiu-as todas. e todas eram a confirmação da notícia que acabava de dar; datas, pessoas, acidentes, nada discordava da mesma versão. Ela própria apelou para os apontamentos da freguesia onde nascera, a menina, e para as pessoas do lugar, que me diriam isto mesmo. Pela minha parte, não queria outra cousa, senão o desaparecimento do obstáculo e a felicidade das duas criaturas. De repente, lembrou-me do trecho do bilhete que tinha comigo, e disse-lhe que, em todo caso, mal se podia explicar a crença em que estava D. Antônia; havia por força uma criança.

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