Artaud, Antonin. Linguagem e vida

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LINGUAGEM E VIDA

lher de cabelos brancos. Escondido na esquina de uma rua, o clérigo vê a carruagem passar e a segue, correndo rapidamente. A carruagem chega diante de uma igreja. O oficial e a mulher, descendo, entram na igreja, dirigem-se ao confessionário. Ambos entram no confessionário. Mas, nesse momento, o clérigo salta, atira-se sobre o oficial. O rosto do oficial racha, abre, desabrocha; o clérigo já não tem mais nos braços um oficial, mas um padre. Parece que a mulher de cabelos brancos também percebe o padre, mas numa outra postura e vai se ver, numa sucessão de doses, a cabeça do padre melosa, acolhedora, quando ela aparece aos olhos da mulher, e rude, amarga, terrível, quando ela observa o clérigo. A noite cai com uma violência espantosa. O clérigo levanta o padre nos braços e o atira; e ao seu redor, a atmosfera torna-se absoluta. Ele dá por si no cume de uma montanha; em superposição, a seus pés, entrelaçamentos de rios e planícies. O padre se desvencilha do clérigo como se fosse uma bala, como uma rolha que explode e cai vertiginosamente no espaço. A mulher e o clérigo rezam no confessionário. A cabeça do clérigo balança como uma folha e de repente parece que alguma coisa começa a falar dentro dele. Ele arregaça as mangas docemente, ironicamente, e dá três batidas leves na parede do confessionário. A mulher levanta-se. Então o clérigo dá um soco e abre a porta exaltado. A mulher está diante dele e olha-o. Ele se atira sobre ela e arranca sua blusa, como se quisesse dilacerar seus seios. Mas em lugar deles há uma couraça de conchas. Ele arranca a couraça e a agita no ar, onde ela cintila. Sacode-a freneticamente no ar e a cena muda e mostra um salão de baile. Casais entram; uns misteriosamente e na ponta dos pés; outros extremamente apressados. Os lustres parecem seguir os movimentos dos casais. Todas as mulheres estão vestidas sumariamente, mostram as pernas, empinam o seio e têm os cabelos curtos. Um casal real entra: o oficial e a mulher de agora há pouco. Acomodam-se sobre um estrado. Os casais estão corajosamente abraçados. Num canto, um homem sozinho no meio de um grande espaço vazio. Ele tem na mão uma concha, cuja visão o absorve estranhamente. Percebe-se nele, pouco a pouco, o clérigo. Mas, derrubando tudo à sua passagem, eis o mesmo clérigo que entra levando na mão a couraça com a qual brincava há pouco de modo tão frenético. Levanta a couraça no ar como se quisesse esbofetear com ela um casal. Mas nesse instante todos os casais imobilizam-se, a mulher de cabelos brancos e o oficial desfazem-se no ar e esta mesma mulher reaparece no outro extremo da sala, na arcada de uma porta que acaba de se abrir. Esta aparição parece aterrorizar o clérigo. Ele deixa cair a couraça que expele, ao se despedaçar, uma chama gigantesca. Depois, como se estivesse possuído por um sentimento de imprevisto pudor, faz menção de se cobrir com suas roupas. Mas, à medida que segura as bordas do hábito para colocá-las sobre as coxas, parece que essas bordas alongam-se e formam um imenso caminho de noite3. O clérigo e a mulher correm loucamente na noite. 3. Algumas páginas da decupagem do roteiro de A Concha e o Clérigo foram fornecidas a nós pelo Sr. Alain Virmaux, que conseguiu recuperá-las durante pesquisas ligadas ao cinema surrealista. A


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