Tijucas - Olhares de uma história

olhares de uma história

Felipe Martins Harianna Stukio Leticia Duarte Marcos Garcia Rafaela Bez Fotografia da capa: Rafaela Bez Fotografia da contracapa: Leticia Duarte Illustrações: Jéssica Marini

Tijucas -

olhares de uma história é

dedicado à memória histórica da cidade de

Curitiba.

ÍNDICE

Prefácio....................................................................6 Tijucas, o gigante da Boca Maldita.................................7 Uma

vida de

Tijucas...................................................17

“Comandante da escolta”.............................................29 “Esse

cara sou eu”.....................................................38

A

mãezona do

O

que o

A

dama de disco do sul do país.....................................78

Pelos “A

2209...................................................52

Tijucas

uniu, ninguém separa............................66

caminhos da

África............................................90

costura do império

“Meu

Nardelli”.................................103

mundo acaba na porta”......................................113

PREFÁCIO

P

roduzimos um livro que pudesse demonstrar a essência do jornalismo: contar histórias. Aliás, escolhemos ser jornalistas porque queríamos aprender a contá-las. No decorrer do nosso amadurecimento, percebemos que isso não se aprende, você – apenas – conta; além disso, que a melhor maneira de fazer isso é do seu jeito, na sua particularidade.

Escrever um livro sobre o Edifício e Galeria Tijucas não era algo que já havíamos pensado em fazer. Mas ainda bem que arriscamos.

Durante a produção deste material, nos vimos repletos por novidades e surpresas. No entanto, a cada passo, novas descobertas e realizações se consolidavam e nossas expectativas eram alimentadas a cada instante.

A proposta não era apenas entrevistar personagens, mas participar – nem que fosse por alguns dias – do seu cotidiano. Um prédio, antes para nós desconhecido – com pessoas que, talvez cruzassem nosso dia a dia e não percebêssemos –, que pretendíamos contar a história, hoje também conta a nossa.

Fazer parte do cotidiano do Edifício e Galeria Tijucas foi a grande aventura e escrever sua história foi a recompensa; o que auxiliou no nosso crescimento e modo de ver o mundo. Com isso, aprendemos a observar, cuidar e acima de tudo, procurar a essência e a vida das coisas – mesmo onde elas parecem não existir.

Os autores

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Tijucas, o gigante da boca maldita Leticia Duarte

C

hegar ao Edifício e Galeria Tijucas é fácil. Se você utilizar o transporte público, existem mais de 100 pontos de ônibus na região em que o prédio fica localizado: Praça Ruy Barbosa, Praça Zacarias, Praça Osório, Praça Carlos Gomes e a Praça Tiradentes.

Descendo em qualquer um desses locais, que ficam no centro de Curitiba, em cinco minutos você chega à famosa Boca Maldita e também ao Edifício e Galeria Tijucas.

Mas antes de falar do Tijucas, deixa eu te contar um pouco sobre a história da Boca: em 1920, o local – onde

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hoje fica o calçadão da Rua XV – era conhecido como a Cinelândia Curitibana. No início, Curitiba contava com sete cinemas e, em cinco décadas, esse número aumentou para 17 – o que era muito para época –, todos operando ininterruptamente.

Para que você possa se localizar, vou explicar onde ficavam os “Cines” mais famosos e também o que seus espaços viraram hoje: o Cine Morgenau começou em 1919 – teve cerca de três endereços ao longo dos anos – e hoje fica na Rua Conselheiro Laurindo, exibindo apenas produções da indústria pornográfica. O Cine Glória, inaugurado em 1963, localizava-se na Praça Tiradentes, já o Cine Avenida, inaugurado em 1929, deu lugar ao atual Palácio Avenida.

O Edifício Tijucas situa-se entre os antigos Cine Odeon e Cine Ópera, na Avenida Luiz Xavier. Mas esses foram apenas alguns cinemas da cidade. Até a metade dos anos 70, eles eram famosos; no entanto, a partir dos anos 80 e, principalmente devido ao intenso crescimento do centro da cidade, entraram em decadência. *** O Calçadão da Rua XV – ou Calçadão da Rua das Flores – foi construído em 1972, poucos anos antes do declínio da Cinelândia; possui cerca de 800 metros, começando na Praça Osório e terminando na Praça Santos Andrade, sendo a primeira grande via pública exclusiva para pedestres do Brasil. O nome, “Rua das Flores”, se dá pela quantidade de canteiros de flores que existem em toda a sua extensão.

Logo que se passa pela Praça Osório, inicia-se a tão falada Boca Maldita, a qual foi fundada em 1956 – antes mesmo do calçadão – e oficializada em dezembro

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de 1966. Era lá, na Boca, que os Cavalheiros da Boca Maldita se reuniam para conversas descontraídas e debates políticos.

O local já foi palco de diversos acontecimentos históricos como a campanha das Diretas Já. Além disso, diversas manifestações de cunho filantrópico-cultural também ocorrem no local. Sobre essas, falarei mais adiante.

Para quem não sabe, todo centro de Curitiba está sobre o Rio Ivo, que começa na Boca Maldita, passa pela Praça Zacarias e pela Praça Carlos Gomes até desaguar no Rio Belém. O Rio Ivo começou a ser canalizado na década de 1920 e 1930 – já que as chuvas eram mais frequentes na cidade, provocando alagamentos –, mas sua canalização só foi finalizada em 1971. No dia da inauguração, dizem que houve até uma festa. *** E é na Boca Maldita, por onde passa o Rio Ivo, que o Edifício e Galeria Tijucas está localizado. No início, o terreno do prédio pertencia à Santa Casa de Misericórdia, sendo, logo depois, cedido à Construtora Excelsior, de Ney Leprevost. O prédio é da década de 1950 e foi construído em etapas: primeiro, a ala comercial, que é dividida em dois blocos. O primeiro bloco é voltado à Avenida Luiz Xavier – que é a menor avenida do mundo – e possui 12 andares, sendo terminado em 1958; o segundo bloco, voltado a Alameda Doutor Carlos de Carvalho, possui 20 andares e foi finalizado em 1970.

Ou seja, de 1950 a 1970, o Tijucas já viu de tudo: o auge e a decadência da Cinelândia; o início da Boca Maldita; os debates dos Cavaleiros da Boca e também a pavimentação do calçadão da XV. Em 1972, o prédio

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também ganhou a ala residencial, dando fim a obra.

Ao total, são 30 andares: doze comerciais e dezoito residenciais, tendo quase 600 apartamentos e lojas.

Em 64 anos de história, dá para imaginar quantas coisas já não aconteceram nesse prédio? *** Cada andar é composto por nove apartamentos e cada um tem um tamanho. Os que terminam com os números 1 e 2, ficam de frente a Boca Maldita e possuem sacadas, sendo maiores. Os aptos terminados em 8 e 9 são os menores e os demais variam o tamanho.

Quando Ney Leprevost ganhou o terreno das freiras da Santa Casa, lá em 1950, ele fez um acordo com as religiosas da Santa Casa. Elas possuem, até hoje, cerca de vinte apartamentos no prédio. Após o acordo, Leprevost e um tal de Nagib Chede, que era seu amigo, fizeram um trato: Chede disponibilizaria as fundações de ferro para a reforma do prédio e ganharia, em troca, o espaço aéreo da construção.

Devido a este trato, todo o prédio possui fundação de ferro que dizem ter uma fama de inabalável. Falam por aí que as fundações são tão fortes que nem se o prédio implodisse iriam conseguir “tirar ele do mapa”.

Apenas boatos. Aliás, muitas coisas sobre este prédio são boatos, mas isso, também contarei mais para frente.

A Construtora Excelsior Ltda, que idealizou e construiu o prédio, faliu em 1965, antes mesmo de terminar a obra da parte comercial. Como a família Leprevost havia se comprometido com a construção do edifício até o final, a empresa finalizou a obra, mesmo em falência.

O Tijucas conta com cerca de 280 moradores: tem gente que comprou o apartamento na planta e está

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lá até hoje; tem migrantes e imigrantes, estudantes, idosos, jovens, adultos, negros, brancos, descendentes de japoneses, italianos, alemães, etc. O prédio é uma grande mistura de culturas.

Na parte comercial você também pode encontrar de tudo: nas 416 lojas têm desde as tradicionais alfaiatarias – que estão lá desde o começo da história – até estúdios de tatuagens; consultórios médicos – das mais diversas especialidades –; produtoras de vídeos; salão de beleza; revendedores de cosméticos e escritórios de advocacia e design.

O prédio, todos os dias, recebe uma grande diversidade de pessoas, identidades dos mais diversos tipos e uma quantidade de histórias que tentarei contar agora. Aqui, no Tijucas, têm desde lendas, assassinatos e suicídios; sede de uma televisão, pessoas famosas e outros infinitos relatos e curiosidades. *** O nome, Tijucas, possui duas versões: uns dizem que é uma homenagem indireta a “Ney”, – um herói de guerra, francês, que se estabeleceu em Tijucas do Sul, no interior do Paraná – e outros que significa “Pântano Assombrado” – em Tupi-Guarani –; uma vez que, muito antes de ser construído o prédio, o terreno era um pântano.

O edifício é construído por lendas, e uma das mais famosas é a da mulher de vermelho, a qual possui duas versões. Nos anos 70, morava no 20º andar, um alfaiate e sua mulher. A esposa tinha graves problemas psicológicos e surtos constantes, chegando a falar sozinha pelos corredores. Certa vez, a mulher, vestindo apenas uma camisola vermelha, teve uma alucinação e

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se jogou do prédio. Há boatos que, até hoje, é possível ouvir os sussurros dela.

A outra versão é que uma mulher, que havia se mudado com o marido para o Tijucas, não era feliz morando em Curitiba e, por conta disso, se matou. Ela também estava com um vestido vermelho. Dizem que ela fica no beiral das janelas, convidando as pessoas a se jogarem e incentivando àqueles com pensamentos suicidas, a matarem-se.

Outra lenda é a do Alfaiate Lobisomem: conta-se que um dos porteiros do turno da noite estava chegando para começar seu trabalho quando viu, perto da lixeira das Lojas Americanas, um animal gigante, mexendo-se dentro do lixo.

O porteiro achou o bicho estranho, mas assumiu que fosse apenas um cachorro revirando o lixo, apesar de ser muito grande. Quando notou, o tal ‘cachorro’ havia saído correndo e entrado na galeria. O homem, então, seguiu a criatura estranha, quando, surpreso, viu que o animal havia subido as escadas do prédio. Instigado, o porteiro perguntou a um colega se ele havia visto aquilo.

Acredita-se que aquele animal misterioso era um alfaiate-lobisomem, já que em noites de sua cheia encontravam nas lixeiras pedaços de tecido cobertos de sangue e fitas métricas.

As próximas lendas que irei contar até que possuem um fundo de verdade. Na primeira história, dizem pelos corredores que alguns jovens costumavam correr com lambretas por dentro da galeria, apostando entre eles quem conseguiria passar por ela sem raspar os espelhos retrovisores nas paredes. Por esse motivo, as grades foram colocadas nas entradas.

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Essa história é verídica; a lenda mesmo, na verdade, conta que certa noite, um policial irritou-se e foi atrás nos meninos, atirando em um deles. O menino morreu e, falam que até hoje, dá para ouvir a lambreta passando de madrugada pela galeria. Além disso, que o vento forte que sempre passa por lá é, na verdade, o menino da lambreta.

Há também o Homem-Aranha do Tijucas: dois rapazes, um deles morador do 26º andar, levaram duas acompanhantes para o apartamento. No momento de realizar o pagamento das moças, houve um desentendimento e as meninas começaram a reivindicar seus direitos. Quando o dono do apartamento percebeu que a situação havia saído do controle, ele decidiu sair de fininho; no entanto, ao invés de sair pela porta – como qualquer pessoa faria –, o jovem resolveu sair pela janela.

Os moradores contam que o homem desceu do 26º até o 21º andar pelo lado de fora do prédio. Como se não bastasse, o rapaz teria entrado em um dos apartamentos através da janela – após quebrá-la –, tomado um whisky e um banho – além de vestir as roupas de um desconhecido – e dormido por aproximadamente duas horas.

Quando acordou e foi sair, desta vez pela porta que dá acesso ao elevador, o homem – em um instante de azar – teria encontrado seus vizinhos, preocupados com o barulho que teria vindo de dentro do apartamento.

Ao ser questionado, ele não soube o que fazer. O caso foi levado à síndica, a história sendo desvendada e o morador foi banido de morar no edifício.

A maioria são lendas, depende de você – e da sua imaginação –, acreditar. Mas aproveitando que estou

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falando de mistérios do Tijucas, falam por aí que também houve suicídios e assassinatos no prédio; no entanto, isso eu não vou contar, pois quem sabe algum dos personagens não te fala nos próximos capítulos. *** Agora, vou parar de falar em desgraças, lendas e fantasias. O Tijucas não é feito só disso. O prédio também foi muito importante para a história da comunicação paranaense. Em pouco menos de um ano de inauguração, o Tijucas foi sede da Rádio Independência, em outubro de 1960. Logo após, veio a televisão.

Lembram do Nagib Chede? O que concedeu os ferros para a construção do prédio? Então, ele instalou os estúdios para primeira televisão do Sul do Brasil, no conjunto do 21º andar do Tijucas. O Canal 12 – Rede Paranaense, teve sua primeira sede no Tijucas. Devido aos estúdios da TV, muitos artistas e pessoas famosas passaram pelo prédio, o que causava grande tumulto na entrada da galeria, pois queriam chegar perto dos ídolos.

Essa foi a época de ouro do Tijucas: possuía estúdios de televisão, que deram grande prestígio ao prédio; era reconhecido como reduto dos alfaiates, por ser o centro comercial com maior quantidade de alfaiates do Brasil – sendo que alguns estão lá até hoje – e também viver diversos outros acontecimentos que ajudaram a formar sua grandiosidade. *** Conforme eu tinha dito no comecinho deste capítulo, nesses 64 anos de história, o Tijucas já presenciou

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várias manifestações na Boca Maldita. A maior delas mudou a história do Paraná e também do Brasil. No dia 12 de janeiro de 1984, em Curitiba, acontecia o primeiro comício das Diretas Já. O Paraná foi o pioneiro e a Boca Maldita foi o palco do início das reivindicações sobre o direito ao voto direto. Na Boca Maldita, também ocorreu um discurso de Getúlio Vargas em 1950, quando o mesmo era candidato, pela segunda vez, a presidência.

Desde aquela época, diversas manifestações, passeatas, protestos e intervenções artísticas e culturais começaram a ganhar força no espaço da Boca, como por exemplo, a Corrente Cultural. O local também é ambiente de trabalho de diversos artistas e interventor na criação de alguns grupos. Todos já devem ter ouvido falar nos “Cavalheiros da Boca” – comentei sobre eles lá no começo também –, um grupo de homens que encontravam-se para conversar e debater sobre diversos assuntos como política, religião, economia e futebol. Nenhuma mulher podia entrar na “confraria”, como eles mesmos chamavam. *** Poderia ficar horas escrevendo sobre tudo o que acontece no Tijucas e nos seus arredores, mas vou deixar vocês descobrirem por si só. O prédio é um pouco apagado pela correria do dia a dia, passando despercebido aos olhos. Mas se você permitir que eu te dê uma dica, aqui vai: tire um dia para observar o prédio e sua imponência. Tome um cafezinho, ouça as histórias, sente no banco e converse com os velhinhos da Boca. Tenho certeza que você vai encontrar algum morador ou comerciante disposto a te contar alguma história ou apenas conversar sobre as novidades desse

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mundo.

Esses tempos, li em um jornal: “O Tijucas pode não ter vida, mas ninguém pode dizer que não há vida no Tijucas”. Portanto, eu espero que nos próximos capítulos deste livro você se encante com as vidas que existem por lá, afinal: “O Tijucas pode não ser o coração de Curitiba, mas está bem perto dele”.

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Uma vida de Tijucas Rafaela Bez

D

esde que iniciei minhas visitas ao Edifício Tijucas, não foram poucos que me disseram que eu teria de conhecer o apartamento 1809. Nele, supostamente eu encontraria a história completa do Edifício. Obviamente, quis visita-lo.

Mas antes, queria saber quem era o dono – ou dona – daquele espaço. Algumas opiniões incentivavam-me à conhece-lo; outras, nem tanto.

– Olha, se você quer conhecer o prédio desde o início, vá lá! O papo vai ser bom. – informou-me uma

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velha senhora – baixinha, com o cabelo escuro e cheia de sacolas nas mãos – que passava pelos corredores da Galeria.

– “Vishe”, nem vale a pena, hein. – disse-me o síndico.

Entre diversas opiniões, resolvi ir até o 18º andar do prédio e desbravar o local que tanto me foi dito. Jovens e velhos, comerciantes e moradores: todos sabiam quem estaria naquele apartamento. Poucos sabiam sua história.

Eu disse ao porteiro: – Gostaria de ir ao apartamento 1809.

Ele respondera: – Você tem horário marcado? Porque ela é chata!

Tudo bem, descobri que quem lá morava era uma mulher. Jovem ou senhora? Pelo que me foi dito, creio que não tinha pouca idade, já que “conhecia todas as histórias do prédio”.

Não tinha horário marcado, mas resolvi arriscar. Subi pelo elevador e procurei o apartamento tão famoso.

Não surpresa, avistei ao final do corredor uma porta trabalhada em madeira – aliás, de todas que vi no prédio, era a única distinta –; molduras diferenciadas e uma numeração com detalhes cor de ouro. Confesso que estava com receio do que me esperava, mas o que mais poderia ouvir? A não ser um grande não.

Toquei a campainha e aguardei por alguns segundos.

– Quem é que está aí?

– Boa tarde, meu nome é Rafaela e eu gostaria de conversar um pouco com a senhora.

A porta é, então, aberta silenciosamente e por trás dela, um olhar receoso me recebe: cabelos grisalhos – que não escondiam seus 80 anos de idade –, mas muito

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bem cuidados; um pouco rechonchuda, apesar de sua altura esconder, e olhos profundos, que conversavam diretamente com os meus; como se tivessem algo importante para dizer. O andar lento que me acompanhou até a sala e a serenidade de seus gestos foram minhas primeiras impressões de dona Caetana de Almeida.

Quando adentrei seu apartamento, senti-me um pouco angustiada – talvez pela minha mania de limpeza e organização – com a grande quantidade de retalhos e papéis pelo chão, no sofá, sobre as prateleiras, na mesa, na cama, enfim, por todos os lugares. A sala era coberta por bugigangas, anjinhos de porcelana, imagens de santos, papéis, linhas de costura e outros tantos objetos que não pude visualizar em meio a tudo aquilo. Entretanto, não poderia demonstrar minha ansiedade em querer colocar tudo no lugar. Estava lá para conhecer a senhora que, em tese, teria muitas histórias para me contar.

– Olá, menina, em que posso ajuda-la?

Muito receptiva, ofereceu-me uma cadeira para sentar e depois se sentou à minha frente, com um olhar de que estaria disposta a dialogar.

Expliquei o que me levara até ali e ela, sem que eu terminasse, logo disse: – Pode perguntar tudo que quiser, não tenho nada para esconder!

O alívio veio à tona, afinal, aquela que tantos outros me disseram que seria uma contadora de histórias – pois tinha propriedade para contá-las – se propôs a “abrir o livro”. *** Nascida em uma família abastada – que tinha até mesmo escravos – nas Minas Gerais, Caetana de Almeida

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cresceu rodeada por nove irmãos. Fazendas e grandes plantações de café enriqueciam a família mineira, a qual a senhora Almeida deixou assim que acabara a Segunda Guerra Mundial.

Veio para Curitiba para entregar à Igreja Católica seus votos de compromisso. A Congregação das Irmãs de São José Chambéry foi a nova casa de Caetana durante sua juventude, enquanto trabalhava como enfermeira.

Após alguns anos, Caetana percebeu que a religiosidade não precisara de votos, mas de vivência cristã. No entanto, essa visão não foi construída de bom grado.

– As irmãs davam-me casa e trabalho. Um belo dia, então, disseram-me que não teriam mais serviço para mim, fazendo com que eu me ausentasse da Congregação. Foi difícil, elas queriam que eu assinasse uma carta dizendo que não estava obedecendo às ordens. Mentira! Eu estava.

Caetana lutou durante anos até que as freiras enviassem uma carta ao Vaticano afirmando que eram elas que haviam a retirado do convento.

– Eu não ia assinar algo que não fosse verdade. Elas não me quiseram mais, não fui eu quem quis sair – afirmou-me, com tom de indignação.

Formada em Enfermagem, Filosofia e, mais tarde, em Administração de empresas, Dona Caetana entregou sua vida ao serviço. Nunca casou, nem mesmo teve filhos. Na verdade, nunca tivera um namorado. Sou obrigada então, por questão de educação, a chama-la – dentro desse relato escrito – de senhorita.

– Mas eles [os homens] viviam me procurando, hein! – comenta Caetana, um pouco orgulhosa; complementando que é “apaixonada por Cristo”.

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Caetana viveu grande parte de seus 80 anos servindo não só à Deus, como a mesma diz, mas também aos pobres e doentes. Para contextualiza-lo da história, comparo Caetana com uma velha amiga dela: Zilda Arns, a qual teve um importante papel na questão da doação aos mais vulneráveis. Caetana, por sua vez, é da mesma maneira que Zilda. Apesar de atuar como enfermeira, fazia – e ainda faz – questão de doar parte do seu tempo a quem mais precisasse de cuidados. *** O que me levou até Dona Caetana foi o conhecimento dos moradores sobre ela. Com mais de 160 apartamentos e centenas de moradores, é impressionante o fato de grande parte a conhecer ou, pelo menos, saber quem é ela.

Essa questão me chamou a atenção: como pudera tantas pessoas falarem com propriedade sobre essa mulher que, pela minha breve e fria primeira impressão, não passara de uma senhora (ou senhorita) que vive sua velhice costurando cobertas aos moradores de rua?

A resposta é direta: Caetana, durante mais de 30 anos, dedicou sua rotina ao cuidado e zelo do Edifício Tijucas. Com pouco mais de 10 anos da inauguração da ala residencial do prédio, ela colocou-se à disposição e exerceu o papel de síndica do mesmo. No entanto, dessa última parte falarei mais adiante.

Minha vontade, enquanto responsável por escrever sua história, era ficar horas conversando com Caetana.

E foi o que fiz. Tanto que, ao escrever esse relato, me deparei com a dificuldade em demonstrar tudo que ouvi e vivi. Tantas palavras, gestos, descobertas, surpresas e curiosidades, muitas vezes, barraram-me; pois gostaria

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de colocar absolutamente tudo aqui, neste pedaço de papel. Bem, impossível. Atento-me, então, aos detalhes.

Caetana iniciou sua história com o Tijucas já no primeiro ano de fundação do prédio residencial. Seu pai, segundo ela, pagou barato pelo apartamento – na época, alguns cruzeiros, hoje, pouco mais de 30 mil reais. Legítimo mineiro, não se contentou apenas com um, então, anos depois, comprou o apartamento ao lado, emendando tudo e fazendo uma só casa.

– Papai era mineiro e mineiro gosta é de casarão.

Quando vim morar para cá, ele já achava que a casa era pequena para mim. Então, alguns anos depois, com a vinda das minhas irmãs, ele comprou outro e nós emendamos. Papai era exagerado!

Funcionária da Santa Casa de Misericórdia, no início, viu no Tijucas um ambiente que lhe proporcionava comodidade e facilidade de locomoção. Entretanto, ao passar dos anos, a conveniência em morar no prédio deu espaço ao sentimento de pertencimento e a paixão pelo local. Isso, não escrevo como mero exagero de expressões, são sentimentos que presenciei ao conviver com Caetana.

Queria utilizar essa frase ao final dessa história, mas de que adianta? Se até lá você já terá percebido que o Edifício Tijucas criou a personalidade de Caetana.

– Morar no Tijucas foi maravilhoso. Convivi com pessoas incríveis e tive ótimas experiências. Acho que ele ajudou a ser quem eu sou, de verdade.

Há mais de 40 anos como moradora do local, Caetana ainda lembra do primeiro dia. Mudou-se na mesma data que seu vizinho Chacon – o Roberto Carlos curitibano, segundo ele mesmo.

– Gosto de lembrar daquele tempo. O primeiro dia

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então, nem se fala. Até esses dias mesmo, Chacon me ligou e disse: “Caetana, vamos jantar juntos”? Não entendi o porquê. “Ô, mulher, hoje fazem 40 anos que nos mudamos pra cá”. Fiquei assustada, meu Deus, como o tempo voou. Eu era enfermeira, né? Então vivia dando injeções no pessoal do prédio. Um dia, a Débora, filha do Chacon, estava doente e eu precisava aplicar nela algumas injeções. Acredita que ela corria de mim?

– conta Caetana. *** Dona Caetana tinha todos os benefícios e regalias oferecidas pela família, mas preferiu trabalhar. E trabalhar duro, já que “não conseguia ficar parada”.

Trabalhou como enfermeira em diversos hospitais, mas não só à enfermagem destinava seu suor. Na França, por exemplo, trabalhou como babá, já que sua irmã não tinha com quem deixar o filho.

– Onde precisassem, eu iria. Fui assim a vida inteira, sempre gostei de ajudar. Hoje, velha, se pudesse faria tudo igual antes. Porém, as pernas não me ajudam mais.

Creio que deve ser o trabalho que cansou as articulações de Caetana. As pernas estão bambas, assim como os pés fracos. O coração e o restante, em perfeito estado. Se “as pernas a ajudassem”, certamente seria a mesma mulher prestativa de 20 anos atrás.

Percebo que durante nossas longas conversas, Dona Caetana mostra-se contente e instigada a me contar suas histórias. Não para de falar um minuto se quer. Sempre que me propunha a visitá-la, ela alegrava-se. Reparei então na senhorita que a mim se apresentava: pele enrugada, roupas rasgadas – mesmo que a rechonchuda

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aposentadoria a deixasse em situação confortável – e a televisão como sua companheira. Senti-me obrigada a ouvi-la, mesmo que sua memória já não soubesse mais distinguir os assuntos que havíamos conversado. A memória de seus 80 anos estava a prejudicando. Creio que ouvi, não menos que três vezes, a história de sua vinda à Curitiba. Não interrompia, apenas escutava – muito atenta.

Caetana, além de muito trabalhadora, soube aproveitar a vida. Não foi daquelas que morriam pelo trabalho e não usufruíam do bem estar. Como diz Paulo Freire, “o trabalho dignifica o Homem”, porém, ele não é tudo. Caetana viajou pelo mundo todo diversas vezes e encantou-se pelos lugares mais diversos.

– Eu tinha férias todos os anos e eram férias de um mês. Eu sempre tive dinheiro e nada nunca me faltou.

Tive sorte, viu “fia”? Então eu viajava com minhas amigas. Nisso, eu acabei conhecendo boa parte do mundo – comenta Caetana, muito satisfeita.

Isso me levou a perguntar em qual lugar do Planeta ela moraria. A resposta foi Tóquio, no Japão, pois “lá é tudo organizado, bonitinho, arrumadinho e tem ordens”.

Percebi então uma mulher conservadora, a qual não tinha descoberto até então. *** Com mais de 30 anos na administração do prédio, ela acabou sendo considerada a “Fidel Castro do Tijucas”, pois segundo vários moradores que perguntei, ela era muito rígida e firme.

– Eu era bem boazinha, viu? Fui muito respeitada e nunca tive problemas com ninguém enquanto síndica. – diz, contrariando o que ouvi das demais pessoas.

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Ninguém ou quase ninguém? Contradizendo-se, ela relata que dentro do prédio há um grupo de senhoras que a odeiam. O motivo não me foi dito, já que Caetana é uma senhorita que, nitidamente, gosta de passar uma boa imagem. Prefere esconder os defeitos e transpassar a ideia de “mil maravilhas”. Respeitei, já que essa é sua personalidade, mas percebi que é era um traço de uma personalidade conservadora, a qual “tinha escravos, mas tratava eles muito bem”, de acordo com ela.

Quando comecei a compreender o prédio, percebi uma áurea de suspense no local. Todos preferem ocultar o que acontece lá dentro, exceto alguns, que não se inibem – como o casal Caio e Camila, que tive a oportunidade de conhecer. Caetana é aquela que prefere camuflar. Da mesma forma que, na maioria das vezes, somente cita bons acontecimentos de sua vida, ao retratar o prédio, o mesmo ocorre. Aquilo me instigava. Não é possível que em mais de 50 anos de história – desde sua fundação – somente vibrações positivas por lá passaram.

Aos poucos, descobri sobre os suicídios, tentativas de assassinato, brigas e problemas que ocorreram.

– Olha, teve uma vez que a mulher pagou um policial para vir matar o marido. O policial bebeu antes e veio mesmo, acredita? Ela queria se separar do homem e os pais não deixavam, então ela resolveu mata-lo. Quando o policial chegou, o homem não estava em casa, então arrombou a porta. Eu era síndica, foi um sufoco.

Felizmente, o assassino de aluguel nada encontrou no apartamento e desceu correndo pelas escadas, sendo encontrado no térreo.

– Minha nossa, e a mulher ainda dizia: “é verdade, mandei matar mesmo” – diz, expressivamente indignada

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e comovida com a situação que passou.

Os suicídios também ocorreram, tanto que, durante muitos anos, o prédio ficou conhecido como um reduto de casos. Mesmo essa informação sendo demonstrada pela mídia, Caetana se reprimia e sentia-se incomodada ao contar. Aos meus olhos, parecia vergonhoso para ela o fato de sua casa, sua morada, narrar acontecimentos ruins, como uma sensação de culpa ou falta de cuidado.

– Se quer saber, vou te contar de alguns que me lembro: uma vez uma mulher se jogou do seu apartamento porque havia descoberto que tinha câncer.

Ela caiu sobre um cinema que estava sendo reformado, cheio de escombros e entulhos. Foi numa quinta-feira santa. Fiquei muito triste.

Outros casos também aconteceram, como uma moça que apenas deixou sua bolsa nas escadas do Edifício, abriu a janela – não sei se de um dos apartamentos ou do próprio corredor – e pulou, caindo sobre um fusca.

Até hoje, ninguém sabe quem era ela.

– Teve outro também, mas esse até hoje não me conformo pois não foi um suicídio. Jogaram um rapaz pela janela e durante todos esses anos mentiram, dizendo que ele se matou. Na verdade, ele foi “jogado” por um colega de apartamento, que mora aqui até hoje.

Outras situações cômicas e inesperadas também são contadas por Caetana, como, por exemplo, a vez em que uma senhora denunciou o prédio, alegando que sua casa estava sendo inundada. Na realidade, segundo Caetana, a mulher era louca.

- Ela saía de calcinha pelos corredores e armava o maior berreiro. Doida mesmo! Uma vez, fui convidada a prestar depoimento porque ela denunciou o prédio.

Então, lá cheguei e disse aos policiais: “vocês estão

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cegos? Não veem que ela é louca?”. A partir daí, como conhecia todo mundo da enfermagem, mediei para que ela tivesse tratamento psicológico. Deu tudo certo e hoje ela está bem melhor.

Depois de muitas tentativas de perguntas sobre os moradores do prédio – os quais, até então, Caetana somente vangloriava –, ela me conta que teve alguns problemas – pequenos, de acordo com ela. Como o Tijucas foi habitado, em grande parte, por jovens moradores, os quais mudavam-se para Curitiba em busca de emprego e estudo, muitas festas foram feitas nele.

– Várias vezes eu tinha que bater na porta para fazerem menos barulho. Mas eles me respeitavam porque eu era muito querida por todos – cita, sem nenhum tom de humildade.

Experimentei tocar no boato de que havia prostitutas no Tijucas há alguns anos, porém, sem ao menos indaga-la sobre, ela disse, um pouco enfurecida: - Isso é balela! Coisas que as pessoas inventam para ficar fofocando.

No mesmo momento, ela relata que já houve alguns casos e que foram resolvidos com diálogo. Apenas isso.

No entanto, gostaria de confirmar, ou não, os boatos de que a polícia havia interferido e que as moças tiveram que fazer uma lista com nomes de pessoas que poderiam visitar seus apartamentos. Nada me foi dito. *** Caetana é uma senhorita de muita fibra. Me admira alguém tão ativo, que dedicou parte da vida na rotina intensa do cotidiano e hoje observa os acontecimentos do alto de sua janela, ser tão confiante e feliz.

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– Se eu ainda tiver cabeça boa, posso voltar a estudar né? Estou velha, mas não estou morta.

Mesmo impossibilitava de caminhar pelos corredores do prédio, como tanto fazia – para buscar problemas e resolvê-los, ou socorrer algum vizinho que precisara de ajuda –, hoje ela ainda é a mesma Caetana.

A memória, mesmo enfraquecida, não esquece dos momentos vividos dentro do prédio, os quais, segundo a mesma, ajudaram-na a crescer. O Tijucas, para Caetana, não é mais um prédio da Boca Maldita, ele é o seu prédio, ele é o grandioso Tijucas, a sua casa.

– Um espaço pode ajudar a construir alguém né, e o Tijucas também me construiu. Eu amo esse lugar.

Mesmo apaixonada pela grandeza de Tóquio e pelos encantos internacionais que conheceu ao longo da vida – França, Estados Unidos, Itália, Jerusalém, Espanha, África, Grécia, Coréia do Norte, entre outros –, ela preferiu e ainda prefere a imponência do Tijucas, que ela fez questão de ajudar a “erguer”.

Caetana, senhorita doce e misteriosa, – mas muito aberta ao que lhe convém – é um retrato de uma bela história. Não há como falar de Tijucas sem falar de Caetana, assim como não há como conhecer Caetana, sem conhecer o Tijucas. Redundante talvez seja, mas é o chavão que resume esse relato.

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“Comandante da escolta” Felipe Martins

N

o apartamento 1504 do Edifício Tijucas, o tempo parece não passar. Mas só parece: os dois relógios ‘cuco’ – o terceiro está encomendado, deve chegar em breve –, mais velhos que o próprio dono, não deixam ninguém esquecer que horas são. Horas, aliás, que passaram voando quando me surgiu a oportunidade de finalmente conhecer o morador daquele apartamento.

Enquanto a água fervia no fogão, em uma pequena cozinha – quase escondida em um dos cantos do simpático apartamento –, observava, além dos relógios, a decoração daquele ambiente aconchegante, mesmo

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que ligeiramente apertado.

As paredes da sala expõem quadros decorativos, além de alguns pratos comemorativos da principal viagem ao Egito. O corredor é uma verdadeira galeria de fotos, onde a memória está registrada e estabelecida. Lá estão os familiares próximos, residentes em Prudentópolis, interior do Paraná. Mas estão também alguns figurões de gerações passadas, de onde veio o sangue alemão da região do Rio Volga. A mais curiosa integrante da família, porém, está retratada em um quadro maior do que os outros.

Tica do Rocio Pires, por longos anos, foi a única companhia de Jauri Conrado Rodrigues, que há 40 anos reside no 15° andar da ala residencial. Era uma companheira fiel, mesmo com as rotineiras saídas todas as noites.

– A Tica era minha companhia. Mas era uma gata meio chata, me pedia toda noite para dar uma volta. Aí tinha que abrir a porta pra ela poder andar pelo corredor e observar o movimento.

A descrição implicante veio com o riso de quem sente falta do animal. Infelizmente, o Criador quis que animais vivessem apenas tempo suficiente para deixar saudades. Tica faleceu recentemente, deixando o antigo companheiro saudoso.

– Quando a Tica morreu, achei justo que ela merecesse uma despedida digna. Foi sepultada e enterrada como fazemos com pessoas importantes para nós. E também ganhou um espaço único na parede da sala, cuidando de mim e da casa.

Tica se foi, mas os animais parecem gostar da companhia de Jauri, que é retribuída de forma carinhosa.

Diariamente, corvos sobrevoam o imponente edifício

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no centro da cidade, e Jauri saúda os visitantes com ‘mimos’.

– Todo dia, antes do almoço, eu vou ao açougue e compro pedaços de carne. Quando vejo os pássaros passando pela janela, já sei que é hora da fome. Aí deixo os pedaços no parapeito da janela. Sem demora, um ou outro corvo pousa por aqui para fazer um lanche.

Enquanto contava dos inusitados visitantes, ouviu a água fervente transbordar. Logo correu para desligar o fogo, mas sem se desligar da história. Voltou com duas xícaras de café. Convidou-me à mesa, cheia de papéis, mas longe do que é a escrivaninha, onde está o computador – aprendeu recentemente a operar a máquina, que é o principal meio de comunicação com os amigos. Em meio à toda papelada, estão documentos importantes, que relatam a principal das histórias que Jauri tem para contar. *** Em julho de 1958, após ter servido o exército por dois anos em Ponta Grossa, Jauri – ou Cabo Conrado, como ficaria conhecido a partir de então – retornou ao exército como voluntário. Novamente exerceria um cargo militar, como parte de um contingente que embarcaria para o Oriente Médio, como Forças de Paz da ONU. O anúncio havia aparecido num jornal, e Cabo Conrado logo resolveu convidar outros colegas militares.

– Chamei outros dez amigos lá de Prudentópolis que também eram militares. Na hora de embarcar pra Curitiba, só estava eu e mais um. Depois de alguns dias de preparação, tomamos as vacinas e embarcamos em Paranaguá.

O navio partiu nos primeiros dias de agosto de 1958,

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com escalas no Rio de Janeiro e em Recife, antes de alcançar o Atlântico. Os dias a bordo do transporte marinho, no entanto, não agradaram tanto assim.

– Navio da Marinha de Guerra não é turismo.

Pegamos duas tempestades e a comida era horrível, meu estômago nunca acostumou.

O ponto alto da viagem do Cabo Conrado foram as duas cerimônias realizadas em alto mar. Ao sair de Recife e cruzar a linha do Equador, a tripulação realizou a tradicional Festa de Netuno – celebração que marca a travessia entre os hemisférios, comum entre marinheiros.

– Foi um momento memorável. Apesar de algo simples, foi bastante significativo, e teve também, mesmo que de forma mais simples e sem desfiles, a celebração do Sete de Setembro.

Se nas paradas do feriado da independência – realizadas nas grandes avenidas das principais cidades do Brasil – não falta pompa e protocolos, não seria diferente em um agrupamento militar.

– A ordem do dia foi dada logo cedo, e todos subiram ao convés uniformizados, com os uniformes de gala.

A bandeira foi hasteada e entoamos o Hino, mesmo distantes da pátria.

E a distância era realmente grande naquele momento.

No dia seguinte, o navio atracava em Port Sayd, no Egito, trazendo o 4º contingente do Batalhão Suez.

Como parte das forças de paz da ONU, os soldados do Batalhão Suez atuaram na Faixa de Gaza como observadores. Não se envolviam diretamente no duradouro conflito entre árabes e israelenses, mas tomavam conta das fronteiras entre os dois países.

Por 15 meses, Cabo Conrado foi responsável pela

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segurança de bases da ONU e carregamentos de trem que saíam do Canal Suez em direção aos campos de refugiados de Rafah e Khan Younis, na Faixa de Gaza.

Confessa ter brigado com um ou outro árabe durante a breve passagem pela Palestina, mas orgulha-se de não precisar usar da força durante as rondas.

– Não tivemos que disparar contra ninguém por lá. Às vezes atirávamos pra cima gritando ‘yallah, yallah’.

Era a forma que tínhamos para assustar os árabes.

A maior realização em terras do Oriente Médio, entretanto, era o reconhecimento ao encerrar as transmissões de rádio, após cada sucesso na segurança das cargas.

– Sempre que o trem chegava em segurança, eu passava o rádio e encerrava dizendo “Cabo Conrado, comandante da escolta”, e ficava muito contente em assinar como comandante!

No último mês do ano seguinte, o grupo de paranaenses seria substituído pelo 6° contingente, formado por militares mineiros. Ao embarcar de volta para o Brasil, Cabo Conrado deixava no oriente memórias de bons dias. Os amigos boinas azuis (como se denominam os soldados da ONU), as tardes de folga em Beirute e Damasco, a passagem pela Via Dolorosa em Jerusalém... A partir de agora, eram lembranças na memória de Jauri, que retornava com o sentimento de missão cumprida. Anos depois ainda viria o principal e mais merecido reconhecimento. *** Apesar da fama de ‘durão’, que o acompanhou depois da expedição, Cabo Conrado é sereno. Tem a fala calma e em bom tom, sempre com movimentos leves. O

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olhar é tranquilo, como de quem pode realmente ser considerado um pacificador. Lida bem com as pessoas, caso as mesmas não trabalhem em telemarketing.

– Alô? De onde falam? Da GVT? Jauri teve seu momento de relembrar histórias brevemente interrompido pelo toque do telefone, embora não parecesse realmente aborrecido com isso.

– Ah, é atendente de telemarketing? Então vá pra puta que pariu!

A aura de pessoa pacífica estava prestes a ser quebrada; toda a impressão inicial de serenidade e passividade por um fio... Até que abriu um simpático sorriso.

– Não é que eu não goste deles... Mas assim eles não ligam de novo. Pelo menos não hoje!

A forma calma de agir às vezes é interrompida pela autoridade e personalidade dos tempos de milícia No Tijucas, Jauri já foi vice síndico em uma gestão de Itamar – o atual síndico –, e mantém bom relacionamento com os moradores mais antigos. Com maestria e experiência de quem se especializou em conflitos maiores, resolve problemas com facilidade.

– O Itamar é muito calmo, às vezes precisa falar com firmeza. Acho que nós nos completamos, somos uma boa dupla. Quando ele viaja, raramente temos problemas, mas quando tem, vou até lá e resolvo na conversa. Tá certo que às vezes preciso dar uns gritos, mas sou tranquilo.

Jauri é extremamente pacato e religioso. Além de uma extensa lista de pessoas por quem ora diariamente – sempre antes de amanhecer o dia –, guarda na memória (e no museu do batalhão) a Bíblia, trazida da Terra Santa, e sempre mantém a masbaha (espécie de

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rosário da religião islâmica) por perto – ganhou de um dos amigos feitos na Palestina. Reserva as manhãs de domingo para ir aos cultos na Igreja Batista e as noites de segunda-feira para o encontro de homens da Igreja, os quais considera como uma segunda família.

Também divide o tempo e a atenção cuidando da Associação Batalhão Suez do Paraná. O grupo reúne os veteranos dos vários contingentes que foram enviados ao Oriente Médio como forças emergenciais da ONU. Além de mantenedor do site, Jauri é presidente da associação, e cede a casa como sede física – ou pelo menos para onde as pessoas ligam e mandam correspondências quando querem entrar em contato.

Ser um boina azul me pareceu ser um verdadeiro orgulho que Cabo Conrado carrega, e não esconde: rapidamente trouxe várias fotos, documentos, e correu no quarto para vestir a famosa boina – diz ele que os pequenos furos foram causados por estilhaços de granada. Trouxe, por último – junto com as fotos do último desfile de Sete de Setembro, quando desfilou em carro aberto portando a bandeira do Brasil –, um convite para a celebração do Dia das Nações Unidas e da fundação do Monumentos dos Soldados da Paz. Toda a pompa e orgulho de Jauri pela posição que Cabo Conrado tem não são exageros. Em 1988, já visando o fim da Guerra Fria e a polarização do mundo, o Instituto Nobel outorgou o Prêmio Novel da Paz às Forças de Manutenção da Paz da ONU, que atuaram em diversos países e situações de conflito internacional desde o ano de 1948. Entre as armadas da ONU, estão os soldados enviados ao Egito como observadores – e, entre os muitos agrupamentos do Batalhão Suez, está o 4° contingente, do Cabo Conrado.

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Mesmo que o Prêmio Nobel de Jauri seja um segredo ainda a ser descoberto, não é difícil entender o porquê de ter recebido o título de pacificador. O semblante sério de uma personalidade brincalhona se diverte ao lembrar das abordagens aos vizinhos por som alto, que são rotineiras no Edifício Tijucas. Embora passível de multa, a conversa amigável costuma resolver. Jauri se lembrou de sempre ter que usar apenas a diplomacia, ao pedir, por favor, que o respeito aos outros moradores fosse mantido.

– O barulho é uma das poucas coisas que realmente incomodam por aqui. Nem com cachorro temos problemas, mesmo que alguns moradores saiam e deixem o pobre do animalzinho chorando. Mas ainda assim, não é tão ruim quanto quem acha que pode ouvir qualquer música em qualquer altura.

Como mencionei antes, Jauri se mostrou prático e diplomático nas várias vezes que necessitou resolver problemas. Porém, como a personalidade sugere, algumas situações foram resolvidas de formas mais criativas e cômicas. Por um tempo, teve um grupo de garotas jovens como vizinhas. Contou que as meninas tinham o hábito de fumar. Não pareceu tão aborrecido com o cigarro como quando contou o verdadeiro incômodo: às vezes, as vizinhas relaxavam fumando maconha.

– Aproveitei que a antiga dona do apartamento havia se suicidado uns anos antes, e comentei com elas que havia uma mulher de branco que vivia vagando pelo corredor, querendo voltar pro apartamento.

As meninas nunca voltaram a incomodar, por mais que a dama de branco fosse apenas uma invenção de Jauri. Porém, de fato a vizinha havia se matado –

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um dos muitos casos ocorridos no prédio. Neste, em específico, contou que, no dia em que uma pessoa havia tirado a própria vida, os boatos que corriam eram de que uma mulher do 15° andar havia caído da janela.

Jauri chegou na hora do almoço, e se desesperou ao pensar que pudesse ser a faxineira, que estaria limpando os vidros naquele dia. Infelizmente, a vizinha, já desgostada da vida e de tanto brigar com o marido, pôs fim à própria existência. Mas os vidros foram limpos: não era a faxineira.

E Jauri, que já esteve em meio à uma guerra e passou por perigos reais, não sente medo das lendas que ele mesmo criou: recebe visitantes com o sorriso aberto, de casa sempre arrumada, e logo corre para passar um café. Eu, felizmente, fui um dos sortudos. Além do café, saí do apartamento 1504 com a certeza de que teria alguém orando diariamente por mim, e com a amizade de um Nobel da Paz.

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“Esse cara sou eu” Harianna Stukio

E

stou na porta do elevador do primeiro arranhacéu da cidade de Curitiba; converso com o ascensorista sobre diversos temas, enquanto o elevador não desce do 30° andar, local que ele insiste em permanecer parado. Em nossa volta, dezenas de pessoas apressadas, correndo para irem para suas casas, possivelmente voltando do trabalho. Era fim de tarde.

Para puxar assunto, ou até mesmo ver se encontro algo interessante o bastante para escrever essa história, pergunto para o porteiro sobre seu tempo de serviço

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prestado àquele prédio; ou sobre o que ele poderia me dizer de interessante sobre o Tijucas – talvez pudesse me render uma boa história. Fiz diversas perguntas, mas esqueci de perguntar seu nome. Ele, o simpático ascensorista, me diz que conhece todo mundo daquele lugar, e que a maioria são amigos, afinal, são mais de dez anos dedicados àquele Edifício.

Pergunto, então, sobre o Chacon, aquele senhor que perambula pela Rua XV, transvestido de Roberto Carlos.

Eu ainda não o conhecia pessoalmente e estava curiosa para ver esse personagem tão peculiar da Boca Maldita.

O ascensorista, rindo, me responde: - O quê? O “seu” Chacon? Claro que conheço. Todo mundo conhece! Eu acho que todos que moram nesse prédio têm pelo menos uma foto dele em casa.

Falando baixo, como se estivesse me confessando algum segredo, ele continua: – Sabe o que é? O “seu” Chacon fica no elevador aqui da Galeria distribuindo umas fotos dele.

Confesso que achei muito engraçado e pensei que fosse brincadeira, ou algum tipo de exagero. Mas nem tive muito tempo de pensar a respeito, pois logo fui interrompida por um grito: – Ô seu Chacon, a menina aqui tá atrás do senhor!

Quando olho para trás, dentro de uma pequena loja de bolos da Galeria – localizada exatamente em frente ao elevador –, está ele, o Chacon; acompanhado por uma mulher. Ambos riam bastante. De repente, aquela pessoa que eu nunca tinha visto na minha vida – para falar a verdade, faziam poucos meses que eu havia descoberto sua existência – estava vindo em minha direção, com um sorriso no rosto e os braços abertos para me dar um abraço apertado.

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*** Confesso que entrei em um, quase, estado de choque. Fiquei alguns segundos sem entender o que estava acontecendo.

Em um segundo eu estava: conversando com um ascensorista; esperando o elevador para que eu pudesse subir até um andar qualquer – esperando que, na sorte, eu encontrasse alguma pessoa interessante ou uma história – e, de repente, tudo mudou e eu me vi abraçando uma pessoa que eu nunca havia visto.

Essa pessoa, portanto, era um simpático senhor, vestido com uma calça jeans e uma camiseta branca - fazia frio, isso explica a sua jaqueta azul, peça que completava seu estilo “Roberto Carlos”. Seus cabelos estavam bagunçados e sua boca cheia – e suja – de bolo.

– Não precisa se assustar. Eu não sou o Roberto Carlos verdadeiro.

Pois bem, em momento algum achei que fosse.

Apenas sorri.

Antes que me apresentasse – ou abrisse a boca para pronunciar uma palavra –, ele pediu licença e foi se despedir da sua amiga, com quem estava tomando um café. Ambos estavam animados, conversando alto e rindo muito, pareciam amigos de infância. A senhora, muito bem vestida e elegante, com unhas e maquiagem impecáveis, se despediu e seguiu seu caminho.

Eu, meio atordoada com aquilo que acabara de acontecer e me sentindo em um universo paralelo, onde nada – absolutamente nada – estava fazendo sentido, continuei lá, parada, com Chacon em minha frente, mexendo com todas as pessoas que ali passavam e entregando pequenas fotos dele mesmo.

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Com calma, me apresentei. Falei meu nome e minhas intenções. Quando Chacon ouviu que eu estava o procurando para conversarmos sobre o Tijucas, logo se animou. Me chamou para entrar e tomar um café em sua casa; um lindo apartamento no vigésimo nono andar do Edifício, com vista privilegiada de Curitiba, e principalmente da Boca Maldita.

Fiquei com receio de entrar no começo, afinal eu, até então, não sabia quem era aquele homem. Além também da primeira impressão, que não foi muito “convencional”. Entretanto, aceitei.

Enquanto entrávamos no elevador, disse-me: – Sabe essa moça que estava conversando comigo?

Que eu estava tomando café e fiquei horas conversando? Óbvio que eu sabia, afinal, eu acabara de ver; além do clima de amizade entre eles, que chamou minha intenção: – Então, eu não sei quem é ela. Mas ela jura que me conhece.

Fiquei sem entender. Mas achei aquilo cômico.

Entro em seu apartamento meio sem jeito e não familiarizada, sem saber como agir ou como iniciar uma conversa. Mas isso não durou mais que cinco segundos; logo Chacon se encarregou de ser a pessoa mais hospitaleira que já conheci.

– Você gosta de chocolate branco? O que você come?

Você gosta de beber café?

Mal consegui responder e ele já estava abrindo um ovo de páscoa de chocolate branco, inteirinho para mim. “Obrigada pelo chocolate. Eu aceito uma água”, provavelmente, umas das poucas palavras que iria dizer nas próximas horas, afinal, sem que perguntasse, Chacon insistia em contar sobre sua vida.

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*** Ao terceiro dia do mês de julho de 1941, em uma madrugada fria, na pequena estação da cidade de Mallet (interior do Paraná), um trem passou pontualmente às 3h30; a locomotiva apitou, anunciando o nascimento do pequeno “Rei”, Chacon.

Luiz Carlos Chacon Junior (ou só Chacon, como prefere ser chamado), diz que, em frente à casa onde morava existia um pinheiro. Árvore bonita e imponente, que exibia sua beleza natural desde muito antes do nascimento do reizinho de Mallet. Atualmente, segundo Chacon, estão construindo uma praça para a árvore.

– É uma pena que não estejam fazendo a praça em minha homenagem, conta Chacon, com certo tom de graça.

– Eu imagino um filme sobre mim que começa assim: o trem passa, levantando uma nuvem de fumaça e neblina e, logo em seguida, ouve-se um choro de criança. O meu choro.

Chacon emenda esse pré-roteiro de filme, já pronto em sua cabeça há alguns anos, ao o seu sonho de, quem sabe algum dia, deixar de ser o rei da XV e passar a ser estrela de cinema.

“Esse cara” morou em todas as estações ferroviárias do Paraná devido a profissão de seu pai, que já foi de tudo nessa vida: de caminhoneiro à guarda-chaves de estações; de telegrafista à agente de estação ferroviária.

Profissão essa que ele fez questão de ensinar para os oito filhos que teve, inclusive para o próprio Chacon, que preferiu contrariar o pai e seguir sua veia artística.

Atualmente, Luiz Carlos, nome que poucas pessoas conhecem, reside em um apartamento no Edifício Tijucas, onde mora há mais de 40 anos. Chacon habita

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o vigésimo nono andar do prédio de trinta andares. E em tom de brincadeira, faz-me uma confissão: – Vou te contar um segredo. Eu só gosto de morar aqui em cima porque todos os dias pela manhã, eu saio na sacada e converso direto com Deus. Como eu estou mais perto dele, minhas orações são atendidas na hora, quase que imediatamente. *** Chacon se mudou para o Tijucas ainda solteiro; e hoje, vive com sua esposa e companheira, com quem convive há mais de 30 anos. Foi também no prédio que ele criou sua única filha – seu grande orgulho, como ele gosta de frisar –, Débora, que divide o apartamento de dois quartos com os pais até hoje.

O apartamento da família é pequeno, mas muito bem decorado, e tem detalhes que ele, o Chacon, faz questão de explicar: como o quadro que o próprio pintou.

– Esse quadro é um palhaço na diagonal.

Foi o que me disse sobre um quadro abstrato que, para meu entendimento, era uma sequência de triângulos de diversas cores, como alaranjado, vermelho e branco.

O fundo do quadro possuí diversos tons de azul, cor preferida do rei, e também do Chacon.

Os traços são um pouco tortos e as linhas são coloridas; há também um círculo branco; tudo perdido na grande tela de mais ou menos 1m por 1,5m, mas bem harmônica aos olhos. Porém, confesso que, se ele não tivesse explicado sua obra de arte a mim, jamais compreenderia aquilo como um “palhaço na diagonal”.

Também faz parte da decoração de sua casa diversos objetos miúdos, muito bem distribuídos na prateleira de madeira – feita por Chacon, que costuma ocupar suas

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horas vagas na confecção de alguns objetos decorativos de sua casa. No entanto, o que realmente se destaca, é o Deus Ganesha. O elefante, de aproximadamente 10 cm de altura, montado em um pequeno rato – com uma grande barriga e quatro braços humanos –, tem grande significado para o dono da casa. Ganesha é considerado o mestre do intelecto e da sabedoria do mundo, e foi trazido por dona Valquíria, esposa de Chacon, em uma viajem que ela fez à Índia.

Em meio a uma espécie de altar, no centro de sua sala, o Ganesha colorido divide espaço com santos da Igreja Católica, fotografias do próprio Chacon e sua família e alguns objetos de origem asiática, que não consegui decifrar o que eram, muito menos tive tempo de perguntar, afinal, Chacon adora contar histórias e perto dele o silêncio é desconhecido.

Tudo na residência é motivo de orgulho, mas o local que fica em maior exposição – e acaba se tornando ponto turístico para as visitas – é a parede coberta com fotos dele e seus amigos famosos: Roberto Carlos, Ivete Sangalo e Ratinho são alguns dos nomes. Entretanto, apesar de tantas celebridades em sua vida, seus olhos lacrimejam quando o assunto é sua pequena estrela,pequena mesmo - sua filha.

A socorrista por formação, Débora, – de 29 anos e um pouco menos de 1,5 metros de altura – ainda mora com seus pais e, só de pensar que, algum dia, ela deixará o “ninho”, é possível sentir um tom de tristeza em Chacon.

Ao perguntar a Débora o que ele achava sobre o pai “famoso”, a garota é só elogios.

– Meu pai é um bom pai e, além de tudo, é um palhaço, pois...

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– Ei, eu sou um ótimo pai, até comprei uma calça pra ela!

Nesse momento, ouço risos da filha, que não consegue esconder o orgulho que sente do pai “famoso”.

Débora conta que seu pai é engraçado e, independentemente de onde esteja, sempre faz os outros rirem.

– Ele é assim em todos os lugares – disse ela.

Embora seja o “Rei” – ou somente o sósia –, no apartamento 2902 do Tijucas, a verdadeira rainha é Débora, que curiosamente divide o quarto com sua mãe. Não com seus pais, apenas com sua mãe! No lar de Chacon é assim: as meninas no quarto maior e ele no quartinho, sozinho. Só ele, o guarda-roupas, uma televisão de 14 polegadas, um espelho – com várias fotografias penduradas –, muitos livros (grande parte sobre maçonaria ou televisão), diversos itens decorativos nas paredes – a maioria que o próprio fez –, e claro, a bela vista de Curitiba que Chacon tem, mesmo quando deitado em sua cama.

Quanto ao fato de não dormir no mesmo quarto que sua esposa, ele explica que esse é um costume norteamericano que ele importou e incorporou em sua vida.

– Os norte-americanos são assim. Não dividem o quarto com as esposas! Eu acho que assim preservamos nossa intimidade.

Mas, espera aí, intimidade? Com a esposa? Chacon dá risada e meio sem jeito, explica: – Sabe aqueles barulhos que a gente faz a noite?

Quando está dormindo? Eu prefiro que a Valquíria não escute”.

Um costume excêntrico, para um cara mais excêntrico ainda.

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Conforme minhas visitas em sua casa se tornaram frequentes, criamos uma quase amizade; acredito que fui entrando cada vez mais em sua vida, talvez como uma amiga. O cara que, até então, era um completo desconhecido – que eu havia visto pela primeira vez com a boca suja de bolo –, acabou se tornando uma pessoa muito agradável, com quem eu passava horas conversando.

Com sua permissão, abri seu guarda-roupas e eis uma surpresa que até era esperada por mim: suas roupas são predominantemente azuis e brancas. Chacon leva realmente a sério sua identidade de Roberto Carlos curitibano e imita até mesmo os costumes do Rei – decorrentes da sua doença de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). *** Sobre a história com sua “Amada Amante”, Valquíria, tudo começou quando ela trabalhava em uma relojoaria.

– Eu passei em frente à loja e ela estava subindo as escadas de minissaia. Eu fiquei encantado. Dei um disco para ela, acho que era Beatles, e ela retribuiu-me com um cinzeiro. Eu não fumo, mas tenho guardado até hoje. É difícil manter uma conversa linear com Chacon, sejam por suas histórias improváveis, lembranças da infância, – que surgem em sua mente repentinamente – ou pelas pessoas que entram em seu apartamento durante o dia pedindo emprego, ajuda ou só querendo conversar. Cercado de amigos, o telefone do Chacon não para de tocar, e quase sempre é alguém da imprensa.

– Aqui em casa é assim. Toda hora a imprensa me liga para saber se está tendo alguma pauta por ai. Eles

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sabem que onde tem gente eu vou estar perto.

Confesso que quando estive em sua casa pela primeira vez e ouvi tal afirmação pensei que fosse exagero de Chacon, algo que é comum nesse senhor de cabelos brancos e alma de criança. Muitas vezes, conversar com Chacon é o mesmo que falar com um menino de oito anos de idade, talvez seja esse o segredo de sua alegria e jovialidade.

Muito extrovertido e nada humilde, Chacon sonha em ter um programa na televisão, mesmo sem um gênero ainda definido. Um talk show, um show de calouros, qualquer um desses serve. Ele também quer gravar um comercial de televisão e aparecer em um outdoor.

– Eu sou que nem o Roberto Carlos. Só faço essas coisas se for convidado. Sou bem chato. Infelizmente ainda não houve nenhum convite formal.

E eu acredito que nem informal.

Mesmo não tendo a face, os trejeitos, muito menos a voz do Rei, Chacon é conhecido por ser o Roberto Carlos de Curitiba e ainda jura, de pés juntos, que é amigo íntimo do ídolo – ou até mesmo “um amigo de fé, um irmão camarada”.

– Na verdade, quando o RC está fazendo shows em Curitiba, ele nos recebe nos bastidores - diz sua filha.

A confirmação de tal história? As mais de 300 mini fotografias que Chacon imprimiu dele com o Rei, sua esposa e filha. Embora tenha o costume de sair pelas ruas da Boca Maldita e pelos elevadores do Tijucas distribuindo suas próprias fotos, Chacon revela que essa, de sua família com o Rei, é especial. Segundo ele, só a compartilha com pouquíssimas pessoas e eu fui uma das felizardas!

Chacon gosta muito de números e tudo para ele vira

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estatística. Quando perguntado sobre a quantidade de fotos que ele já distribuiu pelas cidades onde passa, a reposta foi: “ih, mais de três Maracanãs lotados!”.

Não sei se a afirmação é verdadeira, mas vendo aquele senhor falar isso de maneira tão séria, foi engraçado e quase nada crível.

Devo dizer também que essas fotografias não foram os únicos presentes que ganhei. Além dos inúmeros chocolates, dois livros (um deles explicando sobre a Maçonaria, crença de Chacon. E outro sobre artes gráficas). Ah, e claro, não poderia faltar o CD do Roberto Carlos, autografado pelo Roberto Carlos de Curitiba.

“Para a querida Harianna”, escreveu no encarte, ao lado de um rostinho feliz, podendo ser até mesmo um autorretrato do próprio que, mesmo quando viu a morte de perto, não desanimou. *** Há alguns anos, Chacon teve Leucemia Linfóide Crônica (LLC). A descoberta da doença foi por acaso.

Em uma manhã de um dia qualquer, Chacon fez aquilo que faz diariamente: acordou – por volta das 7h30 da manhã –, fez exercícios físicos em sua sacada e desceu para tomar café da manhã na Boca Maldita.

Nesse dia, encontrou um amigo seu, médico, que estranhou sua aparência – um pouco amarelada –, dizendo que o mesmo deveria fazer alguns exames.

– Não estou amarelo. Eu sou amarelo. Igual ao Roberto Carlos – disse Chacon.

Depois de algum tempo, ele decidiu consultar um médico e fazer os tais exames; sendo diagnosticado com leucemia, a qual foi decorrente de uma anemia profunda. Sem perder a graça, muito menos o bom

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humor, Chacon disse-me que quando recebeu a notícia, agiu com naturalidade e quis começar seu tratamento na mesma hora. Literalmente, no mesmo dia! Mas, óbvio, assim não o foi permitido. Foram 12 ou 15 sessões de quimioterapia – nem o próprio Chacon tem certeza da quantidade de sessões, pois como ele gosta de dizer: “o que passou, passou”.

Durante o período que passou no hospital, Chacon fez amizades com médicos, enfermeiras e outros pacientes.

Para relaxar do estresse que eras as quimioterapias, conta que brincava com as enfermeiras: – Eu dizia para elas, “se você acertar a minha veia na primeira agulhada, eu te dou duas passagens de ida e volta para a Disneylândia. Ou pra Matinhos, você que escolhe”. Teve algumas enfermeiras que acertaram, mas como eu não tinha assinado nada, não precisei pagar, não é mesmo?! *** Em meio a um café e outro, Chacon dispara uma frase inesperada: – Eu sempre ligo para o meu grande amigo no dia do seu aniversário. E ele sempre me atende super bem.

Fala Chacon, referindo-se ao Roberto Carlos.

Ele, que sempre admirou as roupas que Roberto Carlos usava, conta como iniciou a fama de RC curitibano, mesmo não tendo nenhuma semelhança com o verdadeiro Rei. Um dia, quando estava tomando café da manhã, em uma viagem que fez à Telêmaco Borba, a esposa de seu amigo pediu para que Chacon passasse a ela o pote de manteiga. Assim que ele fez o movimento, “a mulher disse que eu havia feito um movimento igual ao do

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Roberto Carlos e que parecia que era ele, o Rei, na sua frente”. No mesmo dia, em meio a um passeio turístico pela cidade, o operador do teleférico teria dito a Chacon que ele se parecia muito algum famoso. Mesmo sem saber decifrar quem era.

– E foi aí que virei sósia do Roberto!

Hoje, aposentado do Ministério do Trabalho, Chacon diz ser uma jornalista de renome e reconhecimento nacional e interacional; “Eu tenho as duas carteirinhas” – disse. Como fiquei curiosa com tal afirmação, resolvi perguntar se ele se graduou em jornalismo ou se trabalhou em algum veículo de imprensa. Chacon, então, me explica que durante no período em que trabalhava no Ministério do Trabalho, exercia a função de comunicador social, mesmo sem uma graduação específica em comunicação.

– Naquele tempo, não era como hoje. Para ser jornalista eu não precisava ser formado, bastava apresentar alguma matéria que eu tivesse feito ao sindicato de jornalistas e pronto. Eles me davam a carteirinha que me habilitavam a trabalhar assim.

E foi isso que Chacon conseguiu: as carteirinhas que o tornam apto a trabalhar nesse meio. Inclusive, foi assim que fez tantos contatos. Atualmente, ele trabalha quase voluntariamente para todos os meios de comunicação curitibanos, sempre avisando-os de pautas, marcando entrevistas e buscando personagens.

Seu dia a dia não tem nada de extraordinário. Ele aproveita a aposentadoria e seu tempo livre para ocupar-se com visitas aos amigos e filantropia.

Chacon também frequenta lojas maçônicas há mais de 40 anos, mas gosta de dizer que sua religião é a católica.

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– As pessoas acham que maçonaria é religião, mas não é!

Explica-me que na loja em que frequenta, existem pessoas de diversas religiões que se reúnem para fazer o bem às outras pessoas, independentemente de crença.

– Maçonaria é uma sociedade que ensina a ser fiel e educado. Ela nos inicia na filantropia. Hoje, a maçonaria é, primeiramente, acreditar em Deus – não importa a religião –, depois, ajudar o próximo. *** Muito exagerado, desde as vestimentas, trejeitos e, até mesmo, sentimentos, Chacon contou-me que o pior dia de sua vida foi a noite em que ele sonhou que estava se mudando de Tijucas.

– Olha, eu não saio daqui nem em sonho. Gosto tanto daqui que quero comprar o apartamento ao lado para fazer uma casa maior.

“Esse cara”, o Chacon, faz apresentações em eventos e locais públicos para todo tipo de gente.

– Não tenho preconceito com ninguém. Desde o engraxate até o cara mais bem sucedido, pra mim todo mundo é igual.

Afinal, Chacon é assim, “cabeça de homem e coração de menino, tendo seu coração como uma casa, sempre de portas abertas”.

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A mãezona do 2209 Leticia Duarte

Q

uando fiz um curso profissionalizante no centro de Curitiba, em 2011, sempre passei pela Boca Maldita para chegar até o local. No entanto, nunca havia reparado naquele único prédio da Boca. Vai ver era por que eu sempre estava atrasa? Não sei. Agora estou, acredito que pela primeira vez, indo para a Boca Maldita para conhecer, de fato, aquele espaço que nunca havia prestado muita atenção.

Eu sempre soube qual era a Galeria Tijucas, – fica de frente para o McDonald’s, onde eu sempre comprava uma casquinha mista –, mas nunca tinha ido lá. Avisei ao porteiro em qual andar iria e subi até o vigésimo

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segundo. O elevador era antigo e os corredores eram extensos, não sendo possível ver o seu final. O apartamento em que eu iria, o 2209, ficava ao lado do elevador. Quando cheguei, toquei a campainha e uma senhora que aparentava ter pouco mais de 60 anos abriu a porta, me convidando a entrar. À primeira vista, o apartamento é bem organizado.

Sala de estar, sala de jantar e cozinha são em apenas um ambiente. A sala de estar possui um sofá de três lugares e várias almofadas coloridas no chão; de frente para o sofá, uma estante com vários objetos de decoração: porta-retratos, pedras decorativas e alguns ratinhos de cerâmica. Na sala de jantar há uma mesa de oito lugares – algo que achei curioso, e até um pouco estranho, foi um rato de plástico pendurado em cima da mesa – e um armário com uma televisão. A cozinha é pequena com apenas o necessário: fogão, geladeira, alguns armários pequenos e pia. O apartamento ainda possui dois quartos e um banheiro/lavanderia.

Aquele era o apartamento de Ludineti Picelli.

Uma senhora de 65 anos – como havia suposto –, aproximadamente 1,65 de altura, cabelos castanhos na altura do pescoço, com uma simpatia que contagia e que descobri que, assim como eu, era uma típica libriana, mas isso eu explico mais pra frente. Contei que estava lá para ouvir histórias que remetessem ao espaço em que ela morava, o Tijucas.

– Ai menina, você vai realizar o meu sonho! Faz vinte anos que moro aqui e sempre que falam do prédio são sempre as mesmas histórias. Tudo sobre fantasmas, mitos e essas coisas! Que bom que você vai mostrar o que esse prédio realmente é!

Muito animada com a minha iniciativa, Ludineti

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conta-me que sempre comentava com as pessoas que o prédio é um local agradável de morar, mas a mídia insiste em contar só sobre seu passado. Seu ânimo por saber que eu iria escrever sua história – e também a história do prédio –, me instigou em saber como ela chegou à Curitiba.

– Eu sou de Maringá, né? Meu ex-marido era radialista lá na cidade; eu e meus filhos sempre tivemos de tudo, nunca passamos necessidade. Mas eu não estava satisfeita com aquela vida, sabe? Teve uma vez que o meu marido chegou em casa com um peixe enrolado no jornal. Quando eu desembrulhei o peixe, vi que no jornal tinha um anuncio do concurso do Tribunal de Justiça do Paraná, que acabava naquele dia. Aí eu falei pra minha irmã e pra minha cunhada fazerem o concurso, mas elas não quiseram. Eu, curiosa do jeito que sou, me inscrevi e estudei pro concurso escondida do meu marido.

Pensei naquela mulher, com quase 40 anos, que – aparentemente – não estava satisfeita com a vida que tinha. Questionei-a como fizera para estudar sozinha; mesmo cuidando dos filhos e do marido.

– Ai menina, naquela época não era normal uma mulher da minha idade querer ter sua própria vida, sabe? Como eu conhecia bastante gente por causa do meu marido, eu consegui os materiais para estudar; um foi dando um caderno aqui ou deu um livro ali. Ai eu estudava de tarde, enquanto meu marido trabalhava, aí quando ele voltava do trabalho eu escondia o material embaixo do colchão.

E não é que ela, escondida, fez o concurso e passou em segundo lugar? Ludineti resolve, então, divorciar-se do marido e seguir seu caminho. Iniciou seu trabalho –

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que durou três anos – em Maringá até ser transferida para Curitiba.

– Eu fiquei meio assustada de ir trabalhar na capital.

Mas eu fui. Peguei meus filhos e vim.

Fiquei curiosa em saber como a família de Ludineti reagiu após a mesma ter se mudado para Curitiba. Sua irmã, Ludimeri, muito prestativa, me contou como a decisão de Ludi – apelido que é chamada por todos e que ouso aqui, nessa história, também escrever – afetou a família Picelli.

– Quando minha irmã decidiu ir morar em Curitiba ficamos apreensivos e preocupados. Pois uma cidade grande é sempre mais difícil de encarar. É o desconhecido falando mais alto. Mas Ludineti é uma mulher de pulso forte, de fibra e batalhadora nos seus ideais. *** No início de sua chegada à capital, Ludi ficou hospedada em um prédio que o Tribunal disponibilizava para as pessoas que estavam em transição pela cidade, mas como ela só poderia ficar apenas 15 dias no local, precisou procurar um ambiente para morar.

– Fui caminhar pelo centro para descobrir as coisas que tinham aqui. Eu tinha visto no mapa uma tal de Avenida Luiz Xavier; andei esse centro inteiro e não achava a tal rua. Quando me mostraram, foi aí que eu vi o prédio.

Acredito que uma das coisas que mais me identifiquei com Ludineti, além da personalidade do mesmo signo – ambas somos librianas, de apenas cinco dias de diferença –, foi que ela parece estar bastante feliz com quem ela é, algo que procuro sempre por em mente.

Pelas nossas conversas, Ludineti me mostrou ser uma

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pessoa bastante convicta do que quer – algo não muito comum entre os librianos, já que somos conhecidos como o signo da indecisão. Após se mudar para Curitiba, pediram para que ela voltasse para Maringá três vezes.

Ela não aceitou. Nitidamente, a paixão pela cidade foi instantânea.

Após tantos anos em Curitiba, Ludineti só saiu do Tijucas quando precisou de um apartamento maior, mas não conseguiu ficar muito tempo longe.

– Eu fiquei aqui do lado. Interagia e vinha sempre pra cá. Não parecia nem que eu tinha saído. Quando me ligaram e disseram que havia um apartamento livre, não pensei duas vezes e voltei.

Para Ludi, o Tijucas é um Edifício atípico: você pode encontrar pessoas de diversos lugares do mundo; classes sociais e culturas diferentes. E são essas diferenças que, para ela, fazem do prédio um lugar tão gostoso de morar.

– Aqui tem um astral de coisas boas. Isso aqui foi à base do meu futuro, foi o começo da minha vida.

Me levou até a janela de sua sala para mostrar a vista que possui da cidade. De lá é possível ver o Palácio Avenida, a Biblioteca Pública do Paraná, a Praça Tiradentes e a Rua das Flores.

– O prédio recebe toda essa carga de informação que tem no centro. A gente não precisa nem descer, você ouve pela janela aquilo que o município inteiro queria saber. A gente tem ao vivo aqui. Sabe o que eu gosto de fazer? De gravar, aqui da minha janela, a apresentação de natal do Palácio Avenida. *** Quando chegou a Curitiba, as pessoas falavam para

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Ludi que ela morava em um prédio com fama ruim, o qual tinha insegurança, fantasmas e as pessoas se matavam.

– Nunca aconteceu nada de estranho aqui e olhe que eu moro aqui há 20 anos! Também nunca entrou uma pessoa estranha aqui em casa; os porteiros são ótimos, mesmo a situação deles não sendo a melhor: eles não têm uma cadeira para ficarem sentados, não tem nada.

Mas são todos muito queridos com a gente, sabem de tudo da nossa vida e dos nossos filhos.

Por falar em filhos e em porteiros, dos quatro filhos de Ludineti, tive a oportunidade de conversar com o mais novo, o Ary. Conversar com ele foi difícil, pois é bastante atarefado com a faculdade, com o trabalho e um filho pequeno.

– Eu tinha deixado o teu recado, mas a vida aqui em casa está tão corrida que acho que ele esqueceu!

Mas por e-mail é certeza que ele te responde rapidinho – disse Aline, sua esposa, a qual me atendeu nas – diversas – vezes que entrei em contato.

Quando finalmente consegui contato, perguntei como foi a experiência de se mudar para a capital ainda criança.

– O primeiro choque foi o frio, mas mesmo assim eu adorei. Tudo era novo: o cheiro, as pessoas, a grandiosidade da capital. Isso tudo me cativou! O Tijucas foi o primeiro prédio que eu morei com mais de sete andares, então imagina né? Morando no 26º andar era pura adrenalina; a vista do prédio era um espetáculo à parte.

O que mais me chamou a atenção durante a conversa com Ary foram as peripécias feitas quando era adolescente. Por exemplo: quando voltava de

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madrugada das festinhas, como ele mesmo disse, Ary gostava de provocar o Chico – porteiro na época – apertando o botão do alarme do Edifício.

– E ele, para me castigar, desligava o elevador enquanto eu estava no ‘paredão’. Essa era a hora em que eu quase chorava.

Ary também se lembra das vezes em que tentou subir no apartamento com algumas ‘amigas’ e o porteiro, sob influência da mãe, “me queimava para meninas”, segundo ele.

– Ele falava: “Sua mãe sabe que você está subindo com esta menina no apartamento dela”? Imagina isso pra um adolescente?

No entanto, entre as histórias que mais me chamaram atenção e que me fizeram perceber a amizade que Ludineti tem com seus vizinhos, foi a vez em que seu filho ficou doente e quem cuidou dele foi Caetana, antiga síndica do prédio.

– Ela me deu dez injeções! – conta.

Quando Ludineti soube que Ary havia me contado essa história, caiu em risos.

– O menino pegou trauma da Caetana nesse dia.

Aqui no prédio, a Caetana sempre ajudava todo mundo.

Teve uma vez que eu caí na rua, perto de casa; entrei na Galeria, meio mancando, e sem que nem ao menos entrasse no meu apartamento, a Caetana já estava batendo aqui na porta. *** Enquanto olhava para Curitiba, com a vista da janela da sala de Ludineti, perguntei sobre o prédio e pedi para que ela o descrevesse em uma palavra. “Imponente”, disse ela.

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– Ele está desvalorizado, mas está melhorando!

A melhora estava acontecendo somente agora, segundo ela, porque Caetana, – antiga síndica – já estava há muito tempo na administração e também por causa da idade não acompanhava as mudanças que tinham que ser feitas.

- Quando o Itamar [atual síndico] assumiu como síndico, isso daqui era uma bagunça! Tinha gente de tudo quanto é jeito! Tinha maconheiro, prostituta, gente que não prestava mesmo! Ai eu saí batendo de porta em porta, nos 200 apartamentos que tem aqui.

Peguei nome do dono do apartamento, quantidade de pessoas que moravam e se o apartamento era próprio, alugado ou se tinha inquilino. Passei tudo pro Itamar! Ai ele deu uma arrumada. Botou quem incomodava para fora e agora aqui está uma paz.

Ao mesmo tempo em que acha a diversidade existente no prédio boa, há também um lado mais conservador de Ludi. A meu ver, isso é uma característica de librianos, que prezam pela paz, justiça e desprezam confrontos. *** Apesar do desenvolvimento que aconteceu na região da Boca Maldita em vinte anos, a tradição de sentar no banco da Boca para conversar, ou então tomar um café, ainda continua.

Já se passavam quase duas horas de nossa conversa, que era iluminada por uma tarde ensolarada, – mas com um vento gelado, típico clima curitibano –, quando Ludineti me convidou para descermos até o Café da Boca e tomarmos um cappuccino.

Quando fui pagar a conta, aquela simpática senhora interrompeu minha ação e alegou que eu era visita,

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portanto, não pagaria. Aceitei o agrado.

Dando continuidade à nossa conversa, quis saber mais sobre seus filhos, afinal, aparentava ser daquelas “mãezonas corujas”.

– São quatro filhos né? Tem a Marcela, de 49 anos, que é terapeuta; a Maricele, de 46 anos, que é dona de casa; a Mauren de 39 anos, é educadora e o Ary trabalha no shopping... acho que é estoquista que fala.

Ludi fala dos filhos com bastante orgulho, as dificuldades que aparentemente passou não foram um problema quanto à educação e criação dos filhos. Ludi me parece ser a mãe que sempre batalhou para dar tudo que os filhos precisavam, não deixando que nada faltasse para eles. Não só para os filhos, mas para toda a sua família.

Ludineti disse que várias pessoas já moraram com ela. Tentei conversar pessoalmente com sua sobrinha, Emília. Apesar de estar ocupada com a faculdade e o estágio, Emília se dispôs a falar sobre Ludi, que para ela, é uma segunda mãe.

– Ela me acolheu quando eu passei na UTFPR; morei com ela por um ano e ela sempre esteve lá, para me apoiar. Além de mim, ela já acolheu outros sobrinhos, filhos e netos na casa dela.

Pedi para a família de Ludineti que me descrevessem ela.

– Adoro conversar com a tia sobre horóscopos e sobre a cidade – disse Emília.

– Ela é uma guerreira! Com muita esperança e força de vontade, deu a volta por cima e seguiu sempre no caminho do bem – descreve seu filho, Ary. Ary, nitidamente apaixonado e orgulho de sua mãe, complementa:

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– Eu sou o seu maior fã e se um dia me tornar a metade da pessoa que ela é, ficarei satisfeito.

Hoje, um dos netos – dentre os oito – de Lulu, como era chamada em seu antigo trabalho, mora com ela: Guilherme. Ele é um dos filhos de Marcilene, a segunda filha de Ludi.

Em outra visita ao apartamento 2209, fui para tentar encontrar um título para essa história. Foi quando, inesperadamente, Guilherme me indagou: “eu vou aparecer nesse livro ai?” Ludineti logo mandou o neto sentar à mesa e contar a história dele.

– Senta ai e conta tudo o que ela te perguntar!

Guilherme veio para Curitiba com apenas dois anos; foi criado em Curitiba e hoje tem 27. Quando o questionei como foi ter crescido no prédio, disse-me que quando era criança, brincava muito na Praça Osório.

– Quase todo domingo a gente jogava futebol ali na Praça Osório. A gente fazia: Meninos do Prédio x Meninos de Rua. Minha mãe e a vó saiam e compravam troféu e medalha, então a gente fazia campeonato. A gente era tudo amigo.

Fiquei curiosa em saber por quê ele ainda estava morando no prédio e ele disse que só está lá por causa da avó. “Ela é uma mãezona, guerreira, bota ordem no lugar” – disse. Guilherme também contou algo que acontecia no prédio que chamou a minha atenção: o treinamento dos bombeiros e da polícia no prédio. De acordo com Guilherme, os profissionais corriam pelos corredores, escalavam o edifício pelo lado de fora e depois desciam os trinta andares em uma corda.

– A gente, quando era criança, achava o máximo, ficava na janela olhando.

Algo que notei, de todas as pessoas com quem

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conversei: Emília, Guilherme, Ary e Ludimeri, é que todos se referiam à Ludi como uma “mãezona”; então pronto, encontrei o título dessa história. *** Na minha primeira visita à Ludi, após tomarmos o cappuccino no Café da Boca, Ludi comentou que adorou conversar comigo, que até achava que se outra pessoa tivesse ido em meu lugar, não teria dado tão certo. Ri e comentei que adoro conversar, já que quando começo, não paro nunca mais.

– Não me diga! Eu também sou assim! De que signo você é?

– Sou de Libra.

– Mesmo? Eu também sou! Está explicado porque a gente deu tão certo!

Pronto! Nos encontramos. Papo vai, papo vem e o assunto foi entrando para as características dos librianos e de diversas outras coisas que se possa imaginar sobre o zodíaco; descobri nesta conversa que Ludineti é do ano do Rato, segundo o horóscopo Chinês – estava explicada a quantidade de ‘ratos’ em seu apartamento.

“Tenho tudo o que você pode imaginar que remete a rato”. Ludi conta que sempre gostou de horóscopo e que tinha um amigo que sempre conversava com ela sobre esse assunto, sendo ele que a ensinou a ela tudo que sabe.

– Libra é justiceiro, né? Já fiz tantas mudanças aqui na Boca que as pessoas nem sabem que fui eu que fiz.

Por ser de libra, sou muito curiosa e fiquei martelando um pensamento na minha cabeça: “o que essa mulher pode ter feito de tão relevante?”, não perdi tempo e a indaguei.

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– Aqui do lado do prédio tem um karaokê, que sempre me incomodava. Eu ligava toda noite pra polícia reclamando do barulho, ai eles iam lá e abaixavam o som.

De tanto eu reclamar, eu ligava nos lugares e as pessoas já sabiam que era eu, elas falavam: “Diga Ludineti, o que aconteceu”? *** Ludi, em nossas conversas, se mostrou uma pessoa com muitos amigos, os quais a ajudaram a se adaptar em Curitiba. Quis conhecer alguns, foi então que descobri a Anna Baobina, sua vizinha.

Anna foi muito simpática comigo no telefone; marquei com ela em uma sexta-feira, às 15h. Uma senhora de cabelos grisalhos e bastante rugas – que demonstram já possuir uma certa idade – me recebeu.

– Depois de uma idade, a gente não conta mais quantos anos temos.

Apesar de ter se casado, Baobina nunca teve filhos.

Ela é viúva há quatro anos e vive com a companhia de seu canário, Nininho – que citarei mais pra frente.

– É impossível se sentir sozinha aqui. Se me dá uma tristeza, eu pego o elevador e vou lá pra Galeria e pra praça. Dou uma caminhada e já fico feliz de novo.

Assim que cheguei a seu apartamento, Anna disse que não tinha quase nada para me contar, mas as quase três horas de bate-papo com ela dizem o contrário. É uma pena que ela esteja sendo brevemente citada aqui, o carisma desta senhora me cativou.

Antes de entrar em contato com Anna, e até mesmo antes de Ludineti ter me falado dela, eu já tinha ouvido falar desta senhora; a impressão que tinha dela era

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de uma senhora que reclamava e não tinha amigos.

Felizmente, eu estava enganada. Quis saber sobre algumas amizades dela e perguntei sobre Ludineti.

– Gosto muito dela, mas a gente não é aquelas amigas que não se desgrudam. A gente não fica uma indo na casa da outra, mas a gente sempre sai juntas, vamos almoçar ou passear. No Sete de Setembro a gente foi ver o desfile, saímos daqui bem cedinho e voltamos só depois das quatro. É gostoso fazer isso, ter uma companhia para sair um pouco. Mas, geralmente, as conversas acontecem no elevador ou na praça.

No entanto, o grande carinho de Anna Baobina é pelo seu passarinho, o Nininho; um canário vermelho que estava ao lado da janela. Quando Anna conversa com ele, parece até que ela rejuvenesce. É nítido o amor que ela sente por ele. Quando me despedi, ela disse: “É uma pena que o Nininho não cantou pra você! Nininho, olha que moça bonita! Canta pra Leticia ver!” *** Após visitar a Anna, passei rapidamente pelo apartamento de Ludineti. Contei da visita à sua amiga e também sobre outros assuntos. Mais alguns minutos de conversa e, antes de me despedir de Ludi naquele dia, pedi para que ela pudesse resumir o que era morar no Tijucas.

– Isso daqui é como uma província. É como se você estivesse morando em uma cidade pequena e tivesse todas as regalias e conhecimento de uma cidade grande. Tem tudo aqui perto, na parte comercial tem todos os médicos que a gente precisa. Acho que se eu morasse em qualquer outro bairro da cidade, eu não teria toda a cultura que é possível encontrar no centro.

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Se eu morasse em qualquer outra parte de Curitiba, eu teria voltado para Maringá quando me chamaram, 20 anos atrás.

Após apaixonantes conversas com Ludi, ou Ludineti, percebi o brilho em seus olhos nos momentos em que comenta sobre o Tijucas. O local foi essencial na reconstrução de uma mulher que me mostrou ser muito guerreira; foi porta-voz e incentivador de sua coragem e hoje, é o local que guarda sua história. A história da Ludi: mãezona, libriana, brincalhona e mais outros diversos adjetivos que poderia atribuir a esta mulher, porém, o que posso é afirmar: se foi coincidência ou se eu estava destinada a conhecer esta libriana, eu não sei. Mas, que depois de tantas conversas, ganhei uma amiga que estará sempre disposta a conversar e tomar um café na boca.

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O que o Tijucas uniu, ninguém separa Marcos Garcia

O

começo de uma relação, seja ela profissional, de amizade ou amorosa, é sempre lembrado com carinho; o lugar, o dia, o ambiente e as circunstâncias ganham importância especial e são eternizados pelas lembranças.

Escondido no final do corredor do 16º andar do Edifício Tijucas, o apartamento 1601 é o personagem principal de uma história romântica, que teve início na sala de estar. O local, que há 10 anos se tornou o lar de Caio Zini e Camila Cunha, guarda histórias de dois

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jovens que decidiram sair cedo do conforto dos seus lares para vivenciarem os desafios e as novidades de uma vida a dois.

A história de Caio, aliás, possui raízes ainda mais antigas no grandioso prédio curitibano. Antes mesmo de se mudar para a capital paranaense, ele já havia visitado sua atual residência. Seu pai, que comprou o apartamento nos anos 70 – ainda na planta original –, o trazia quando criança para visitar a futura casa.

Natural de Caçador, Santa Catarina, Caio teve de se adaptar ainda muito cedo às diferenças de rotina que a mudança proporcionou: a falta de tranquilidade – que apenas regiões mais afastadas dos grandes centros oferecem –; e distância da família e de suas origens tornaram-se insuficientes para os sonhos do jovem de 15 anos, que pretendia prestar vestibular para Publicidade e Propaganda.

– Quando me mudei, em 2000, cheguei com a ideia de realizar o ensino médio e o vestibular. Me matriculei na PUC em Publicidade e Propaganda, mas acabei não completando o curso porque achei chato.

Mesmo que o primeiro sonho na nova cidade tenha se transformado em uma experiência frustrante, em nenhum momento pela cabeça de Caio retornar à Caçador; decidiu dedicar-se a outros cursos, ligados à área de cinema e edição. A nova paixão rendeu oportunidades profissionais e despertou em Caio um talento que ele ainda não conhecia. Atualmente, ele produz vídeos para clientes da Europa – que de vez em quando o visitam por aqui – e música eletrônica, feitos no seu pequeno “escritório”, dentro do apto 1601.

Quem frequenta bares de Curitiba, já deve ter ouvido um pouco do seu trabalho.

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A casa, que se transformou em local de trabalho, mistura a tradição da arquitetura do Tijucas com a personalidade de Caio e Camila. A primeira coisa que percebi quando entrei no 1601, é o grande espaço da sala da estar – e o convidativo tapete amarelo no corredor, com o número do apartamento –, que conta apenas com dois sofás – espaço em que me coloquei para conversar algumas vezes com o casal e, em alguns momentos, observei a bela paisagem noturna, oferecida pelas luzes dos prédios curitibanos.

O espaço é bem organizado, mas nem sempre funcionou dessa forma. Recém chegado a Curitiba, Caio dividia-se entre as novidades da vida pré-adulta e as típicas agitações, que fazem parte da rotina de um jovem urbano. As festas e o entra e sai de pessoas em seu apartamento eram constantes, o que chegou até gerar alguns desentendimentos e reclamações dentro do edifício. É nesse momento que Camila entra em cena, tendo o Tijucas como o ponto de encontro com Caio no ano de 2003. Levada por um amigo ao apartamento 1601 – durante uma festa –, ela não só conheceu o futuro parceiro de vida, mas também um local de Curitiba ao qual não havia sido apresentada.

– Eu visitava o Tijucas para usar a área comercial, então eu não tinha ideia de que existia uma área residencial no edifício. A primeira impressão é a de que eu estava em um labirinto. Até me deu medo. A visão anterior era a de um prédio histórico e antigo, sem me dar conta de que poderiam ter moradores aqui também.

Durante nossa conversa, percebi que Camila é bastante comunicativa e decidida. Comunicativa até demais, inclusive, sendo ela quem falou na maior parte

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do tempo – deixando Caio um pouco mais calado. Filha de advogado, seguiu os passos do pai, com o qual trabalha atualmente, em um prédio próximo ao Tijucas.

A imagem passada, segura e firme, influenciada – segundo ela – pelas experiências fora do país, me fez questionar sobre como havia sido a reação de seus pais, quando ela decidiu se mudar para o apartamento do namorado com apenas 19 anos de idade e seis meses de relacionamento.

– Para os meus pais eu deveria estar morando em casa até hoje, mas acho que após um tempo eles conseguiram perceber que a mudança foi o melhor para todos. Por ser a primeira filha e também mulher, havia uma super proteção, controlando as minhas saídas e o que eu deveria fazer.

Diferente dos pais, que a tiveram muito cedo e se casaram antes de definir o que fariam no futuro, Camila optou por estabelecer-se financeiramente e usar o dinheiro, em conjunto com Caio, para reformular o apartamento e deixa-lo de acordo com os gostos de ambos. *** Os 10 anos de convivência e rotina com os demais moradores nem sempre foram agradáveis.

– Infelizmente o prédio conta com algumas pessoas que não sabem viver em comunidade – conta Camila, que não tem uma boa relação com os vizinhos do 17º andar, responsáveis pelos barulhos que tiram seu sono e sua paciência durante a madrugada.

As reclamações recaem até em quem já nem está mais aqui para se defender. Há dois anos, um vizinho do casal acabou falecendo em seu próprio apartamento –

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nas palavras de Camila, simplesmente “caindo duro no chão e morrendo” –, não deixando saudades entre os condôminos – por ser uma pessoa de difícil convivência e com um histórico de reclamações (que incluíam desde o movimento exagerado do Mcdonalds da XV até o barulho do tradicional e encantador coral de natal no Palácio Avenida).

– Este senhor veio de Matinhos para Curitiba e não conseguiu se adaptar com o movimento da cidade.

Como você sai do litoral e vem pra cá achando que aqui seria tão calmo quanto lá?

As implicâncias, que não são poucas, se estendem para questões estruturais, como o funcionamento da luz do elevador do 16º andar que, durante o período em que os entrevistei, estava há mais três meses sem funcionar, a estrutura antiga do Tijucas e, principalmente, o intenso número de reformas realizadas pelos moradores sem nenhuma verificação.

– Se sair quebrando tudo, a chance de dar uma merda é grande! - conta Camila, revoltada.

A minha impressão, aliás, foi a de que o apartamento do casal não estava localizado no mesmo prédio que visitei, o Tijucas. A diferença entre a modernidade e conforto do apto 1601 em relação a estrutura antiga – e um pouco assustadora aos meus olhos – dos corredores do prédio são contrastantes. *** Percebi que para o casal, o grande número de moradores causa problemas de relacionamento entre os residentes. O que Caio faz questão de enaltecer é a diferença de idade entre as pessoas, fazendo com que pessoas de 18 anos, por exemplo, precisem viver no

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mesmo ambiente que as de 80, o que acaba, segundo ele, tornando as relações mais complicadas.

A grande circulação de pessoas, alavancada pelo setor comercial do prédio, também acarreta em uma série de problemas de segurança que incomoda diariamente o casal.

– O entra e sai de gente desconhecida é muito grande e, por isso, nós não temos uma boa segurança. É normal ver pessoas querendo ir à área residencial e acabam por bater em nossa porta.

A Boca Maldita, que abriga o Tijucas, é considerada o coração da cidade de Curitiba e referência turística e geográfica, recebendo constantemente eventos culturais e artísticos. O que aparenta ser um lugar agradável para algumas pessoas, não parece ser assim para o casal.

– Quem vê de fora acaba achando tudo lindo, mas na noite anterior aos shows musicais, por exemplo, o barulho da montagem do palco ocorre até a madrugada e atrapalha bastante – critica Camila.

Além de tudo que já mencionei até aqui, ambos falam – quase que de maneira sincrônica – sobre a limpeza da Boca.

– Há um tempo, a Rua XV também contava com uma limpeza diária por parte da Prefeitura – lembra Caio – e toda madrugada um caminhão pipa passava por aqui.

Isso já não acontece mais, o que tornou o lugar muito mais sujo e fedido.

– Fede xixi! – interrompe Camila, em tom de indignação.

Nem mesmo os protestos de 2013, os quais inúmeras pessoas se propuseram a lutar em prol de seus direitos, sensibilizaram Camila.

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– Foi um inferno. Tinha que sair mais cedo do trabalho e liberar os estagiários mais cedo também. Eu acho errado, sou contra mesmo, não adianta protestar na frente da minha casa. Por que eles não decidem ir na casa do governador e falar com quem realmente interessa? *** Existe então, alguma vantagem em morar no Tijucas, ou ele é apenas conveniente para o casal?

Esse questionamento passou algumas vezes pela minha cabeça durante nossas conversas e a resposta não surgiu com facilidade. Caio e Camila adotaram o 1601 como lar e cresceram com ele. Se no começo, solteiros, a exigência não era tão grande – nem a preocupação em manter a casa bem arrumada –, agora ela aumentou graças a maturidade e o aprendizado da vida a dois. Talvez, por isso, reclamem tanto do local que escolheram para viver.

No entanto, as críticas soam construtivas e com um tom nostálgico. Fãs da cultura – especialmente do cinema –, antigamente o casal divertia-se nos tradicionais Cine Ritz e Cine Plaza, que por muitos anos serviram à Rua XV como opções culturais, mas que hoje já não funcionam mais.

– As sessões custavam três reais – lembra Camila.

– Tinha até sessão por um real – completa Caio - e era cinema de verdade mesmo, não era necessário ir até um shopping para ver o filme, sem falar na qualidade, que era muito melhor.

Hoje, o lazer do casal acontece em lugares mais afastados da Rua XV, que na maioria das vezes é feito a pé.

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– Essa é uma grande facilidade, já que não precisamos depender de ônibus. Além disso, hoje é impossível conseguir táxi – explica Camila.

Para um jovem casal (Camila tem apenas 30 anos, um a mais que Caio) que ainda não pensa em iniciar uma família, a localização no período e a economia nas despesas ainda os deixa em situação confortável. A falta de estacionamento do Tijucas ainda não atrapalha a rotina dos dois, que projetam um futuro com carro e filhos apenas para quando se mudarem do edifício, o que, apesar das reclamações, está longe de acontecer.

– No momento eu não penso em me mudar, – diz Camila - principalmente por ser próximo ao meu trabalho e não me forçar a pegar trânsito.

Mesmo com um mercado profissional promissor fora do país e o sonho de morar no exterior, Caio também não pensa em se despedir tão cedo do apartamento comprado por seu pai.

– Se eu continuar no Brasil, não vejo motivos para me mudar. Eu sou o proprietário, então não tenho com o que me preocupar. É fácil perceber – após alguns minutos de diálogo – que há, sim, um grande afeto de Caio e Camila pelo apartamento em que se conheceram e vivem juntos há uma década. Apesar das duras críticas ao prédio, aquele é o ambiente que lutaram para deixar como gostariam, mesmo em um contexto problemático. No entanto, para eles, as reclamações surgem pois, somente dessa forma, algo melhor pode ser construído. *** Críticos, Camila e Caio fazem questão de relembrar as diferenças nas gestões administrativas nesses últimos

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10 anos de Tijucas. A relação com o atual síndico, por exemplo, é bastante conturbada.

– Ele não houve nossas reclamações e passa toda a responsabilidade para a administradora. E pior, quando vê, não resolve – reclama Camila.

As conversas no elevador – quando Camila consegue, por sorte, encontrar o síndico para relatar os problemas – não surtem efeito. No papel de porta-voz, ela ressalta que recebe o apoio dos moradores mais velhos, que a cumprimentam nos corredores e concordam com suas reclamações.

Se a relação com o atual síndico não é das melhores, os primeiros anos sob a tutela da famosa “dona Caetana” foram parecidos. As festas no apartamento de Caio, que aconteciam quando ele ainda estava solteiro, eram motivo de reclamações e multas aplicadas pela antiga síndica, que, nas palavras da advogada, “comandava o prédio como um coronel, mas sempre estava presente para intervir nas discussões e polêmicas”.

– No aspecto administrativo, a dona Caetana ótima.

Aqui no corredor, por exemplo, sempre ocorre um caso de uma moradora que desmaia no seu apartamento e necessita de ajuda urgente. Na época da Caetana, ela tinha a chave e tudo se resolvia rapidamente. Agora, ele até aparece para ajudar, mas como não tem acesso ao apartamento, precisa arrombar a porta e usar furadeiras barulhentas.

Percebo que o casal, mesmo com os atritos na relação com Caetana, mostra-se saudoso com a mesma. A impressão é de que o ambiente familiar que rondava o prédio na época da antiga síndica, a amizade e conversa entre os moradores, já não existem mais.

Também apoiada pelo casal, uma tentativa de retorno

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à antiga administração entrou em pauta. Porém, acabou frustrada. Dona Caetana, mesmo tendo relação maior com os moradores, deixou também muitos desafetos no prédio, os quais não concordavam com sua forma autoritária de realizar as decisões no Tijucas.

– Ela decidia quem subia ou não subia e é desagradável quando esse tipo de coisa acontece. Mas, bem ou mal, isso nos dava mais segurança.

Acontece uma “Guerra Fria” entre o atual e a antiga síndica, o que divide o prédio em grupos: os que apoiam um e detestam o outro. E também há quem não está nem aí pra isso, que não é o caso de Camila e seu marido, que têm a sensação de que os moradores se sentem perdidos.

– Se, antes, você fosse ao apartamento da dona Caetana, ela sempre estava lá. Hoje, a gente se sente sem representação e tem que reclamar com outras pessoas. Sobra até pros ouvidos dos porteiros, que até levam as questões para o síndico, mas nada acontece. *** Mais famosas que a ex síndica, as histórias e lendas do edifício também fazem parte da trajetória do casal.

Elas, que já chegaram a virar uma série especial de TV, ajudam a construir a mística sobre o Tijucas. Entre as mais marcantes, as que envolviam personagens um tanto quanto peculiares se destacam.

– O Tijucas sempre recebeu muitas prostitutas e traficantes, tanto no residencial quanto no comercial.

Inclusive, no comercial, a Polícia Federal já teve que subir lá e quase fechou o prédio inteiro. Em quase todo andar tinha uma garota de programa – diz Camila.

Percebo, pelos relatos do casal, que quando Dona

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Caetana era síndica, o problema não acontecia com tanta frequência.

– Quando começava o entra e sai de gente, ela [dona Caetana] aparecia para proibir ou ver o que estava acontecendo. O atual não está nem aí, se pagou o condomínio pode fazer o que quiser.

Curioso, perguntei se isso ainda é comum no prédio.

– Não que a gente saiba, mas há um caso recente de uma prostituta que morreu de overdose em um dos apartamentos.

Quanto às lendas urbanas que giram em torno do edifício, perguntei sobre os relatos de suicídios – que geraram ao prédio o apelido de “Tijogas”.

Há mais ou menos seis anos, os dois foram surpreendidos com a presença da polícia, que perseguia um homem suspeito. O rapaz teria conseguido subir até os andares mais altos do Tijucas e de lá, tentado pular para o edifício ao lado. Como não teve sorte, caiu e morreu.

– Tirando essa vez que vimos, todas as outras histórias nós soubemos pela boca dos outros, mas nunca presenciamos realmente. Há uma lenda de uma mulher que veio olhar um dos prédios aqui de cima e decidiu se jogar; a de um pastor, que caiu junto com a cortina de casa. Aliás, nessa história ninguém sabe se ele se jogou ou foi arremessado.

A bela noite, que ainda consigo usufruir pela vista da sacada, vai caindo e sinto que é o momento de ir embora. Mas antes, faço mais uma pergunta: – Quais serão as lembranças dos anos de Tijucas?

– Eu vou levar coisas boas, pois foi aqui que conheci o Caio e comecei a minha vida independente, tendo que pagar as minhas contas e criar novas responsabilidades.

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Já Caio, que aos 15 anos decidiu deixar na pequena cidade do interior catarinense seus pais e amigos, vê hoje que o prédio também serviu para que pudesse se encontrar como homem e profissional.

– Foi um momento em que precisei me virar sozinho pela primeira vez, fazendo coisas que eu não estava acostumado, como cozinhar, por exemplo.

– Isso até me conhecer! – brinca Camila – tirando de Caio um riso que, até então, eu ainda não tinha visto.

Desligo o gravador pela última vez e me despeço do apartamento 1601 – e também dessa história – com a certeza de que, apesar de todos os problemas, o Tijucas representou o início de uma nova vida para Caio e Camila e sempre será lembrado.

Quando seus filhos procurarem saber como os pais se conheceram, é daquele local que a história começará: o apartamento, que já não é tão movimentado como antigamente, ainda recebe muito bem quem quer fazer parte da sua inusitada história, nem que seja por alguns momentos, como foi o meu caso.

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A Dama de Disco do sul do país Harianna Stukio

O

cenário é uma Curitiba muito diferente desta que atualmente conhecemos. Na época que me refiro, a Boca Maldita era um território frequentado apenas por homens de negócios e por jovens que monopolizavam a avenida. Mulheres por aquelas bandas? Só se fosse à passagem; e na parte da manhã. Se caminhassem pelo local durante tarde, seriam assediadas pelos rapazes que lá ficavam.

Essa Curitiba machista e medieval que descrevo

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está longe de ser uma Curitiba colonial, ou um vilarejo da década de 1920. Isso acontecia até pouco tempo, menos de 40 anos.

Entre tantos homens ocupados como políticos, médicos e engenheiros – que se reuniam para tomar café na Boca Maldita – ou até mesmo os rapazes que aprontavam na praça, jogando óleo queimado na linha do Bondinho para vê-lo descontrolado; houve uma mulher que se destacou. A primeira mulher comerciante que ousou a desbravar a Boca Maldita.

Em meio a uma sociedade onde as mulheres se quer podiam tomar um café com suas amigas sem que estivessem acompanhadas dos maridos, a jovem, recém-separada e mãe solteira de dois filhos, Mariza Soares de Azevedo, foi corajosa o suficiente para montar a primeira loja de discos de vinil de Curitiba e ser a primeira mulher a entrar no circuito comercial da Boca Maldita.

Nascida em Recife – a Veneza Brasileira – no dia 27 de março de 1939, a dona Mariza – como ela me permitiu chama-la – é uma dama da royal society curitibana.

Mas esse não é um título que ela ostenta, muito pelo contrário. Modesta, dona Mariza gosta é de falar sobre seu intenso trabalho social. No entanto, isso é assunto para mais adiante.

Um dos maiores orgulhos da vida dessa pernambucana é falar da sua atitude desbravadora no centro de Curitiba, quando ela adentrou a Boca Maldita e começou a construir seu império. Tudo começou com uma pequena loja de discos, ali, na Galeria Tijucas.

– Eu percebi que ali era um ponto comercial com possibilidade para eu montar minha loja de discos.

Afinal, eu precisava trabalhar para sustentar meus dois

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filhos. João Bosco, com três anos na época; e Fábia, com 10 anos.

O imóvel pertencia à família Leprevost, e logo após algumas discussões com William Mussi (administrador dos bens da família Leprevost), Mariza passou a ser dona do local que iria abrigar a loja de discos CASH BOX, a pioneira do ramo em Curitiba.

A ideia de montar o estabelecimento surgiu com uma identificação de demanda. Dona Mariza percebeu que, para ter acesso à música de qualidade, as pessoas tinham que, muitas vezes, viajar até São Paulo para trazer consigo discos de vinil. Quer dizer, até tinha uma pequena loja na capital curitibana, a Ertel, mas essa trabalhava apenas com discos clássicos e eruditos, que só interessavam, na maioria das vezes, aos estudantes de música da Faculdade Belas Artes.

Depois que dona Mariza investiu na CASH BOX, o cenário curitibano mudou. A partir de então, as pessoas teriam acesso não só à música clássica, mas também ao MPB, aos sucessos da época, ao POP, Rock e tudo mais, que antes só poderiam ser encontrados em São Paulo.

– Curitiba inteira comprava na minha loja – afirma, muito orgulhosa.

Ao notar que o mercado que ela própria havia criado em Curitiba estava crescendo, dona Mariza resolveu não esperar a abertura de uma possível concorrência.

Assim, ela foi criando diversas lojas de venda de discos – ao todo 13 –, todas com nomes diferentes, “para ter concorrência” – segundo ela. A maioria se encontrava na Rua XV de Novembro.

– Às vezes chegava um cliente na CASH BOX e dizia que não ia levar tal disco porque na RITZ, ou na Discão, estava mais barato. Mal sabia ele que todas as lojas

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eram minhas – conta Mariza, rindo, ao se lembrar das histórias.

E foi nessa época que ela ficou nacionalmente conhecida como a “Dama de disco do sul do país”, afinal, na região sul do Brasil, ela era a maior compradora de discos.

– Era eu quem mais comprava discos no sul do país.

Fui condecorada desse jeito – relata –, podendo eu sentir a grandeza do orgulho em sua fala.

Dona Mariza conta, de um modo um pouco saudosista, que sempre que algum artista nacional – ou internacional – vinha à Curitiba, sempre ia à sua loja – ou como ela gosta de chamar: seu “escritório privilegiado na Galeria Tijucas”. Dessa forma, ela teve a honra de conhecer nomes consagrados da música, como Billy Vaughn, Ray Conniff, Trio Los Panchos e Eydie Gormé. *** Uma de suas melhores histórias dessa época foi quando Mariza emprestou dinheiro para o Rei Roberto Carlos. Não para o Chacon, personagem conhecido do Tijucas e sósia do RC – ela emprestou dinheiro para o próprio Rei! Tudo aconteceu quando ele, o Rei, iria fazer um grande show na cidade de Ponta Grossa, Paraná – muito antes de ser o grande rei da música brasileira.

Roberto Carlos sempre viajava em seu ônibus particular e, ao parar em Curitiba – para depois seguir viagem –, o cantor ficou sem dinheiro e impedido de comprar óleo para seu veículo – o ônibus, de acordo com Mariza, queimava uma lata de óleo por quilômetro percorrido –, dessa forma, não tinha como chegar até Ponta Grossa.

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– O empresário do Roberto Carlos foi à minha loja e disse: “Olha, nós temos essa caixinha de discos para vender, você pode comprar ela e pagar em dinheiro”?

Como eu não tinha garantia nenhuma de que iria vender e não podia ficar no prejuízo, barganhei muito o preço, comprei a caixa de discos e emprestei o que faltava a ele.

Ela vendeu todos os discos do cantor e teve um ótimo lucro em cima do preço. Roberto Carlos não só pagou o empréstimo, mas, desde então, sempre que vem até Curitiba, envia à Mariza convites especiais para seus shows, com acesso livre ao camarim.

– Eu chegava lá [no show] e ficava à vontade; tirando fotos, comendo canapés...”

A época de ouro do vinil não iria durar para sempre. Sabendo disso, Mariza logo tratou de mudar completamente seu ramo de atuação.

– Eu tenho uma visão macro do mundo e das coisas.

Por isso sempre fiz coisas que ninguém nunca tinha feito antes.

Quando o vinil ficou obsoleto, dona Mariza percebeu que “precisava de uma alternativa para sobreviver” – segundo ela mesma. Foi então que notou outra demanda latente na sociedade curitibana: um café na Boca Maldita. Quer dizer, até existia o Café da Boca, mas ele era quase que exclusivamente para o público masculino.

– Enquanto os homens tomavam café e discutiam política, as mulheres ficavam andando nas lojas da Boca, fingindo que estavam vendo vitrines.

Foi então que ela criou o Café Cocape, que logo tornou-se um sucesso – pois era um local onde as mulheres podiam se encontrar, com ou sem seus

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maridos, e degustar um bom café. Dona Mariza se orgulha em dizer que ela não vendia apenas cafés, mas que era dona da única “boutique de degustação de café do Paraná”.

No entanto, para isso, ela precisou passar por alguns desafios, até então impossíveis para a época, como enfrentar o machismo dos homens que circundavam a região, os tais “Cavalheiros da Boca”. Mas dona Mariza não é de fugir e briga.

– Construí o meu pequeno império com muito trabalho, dedicação e, principalmente, boas ideias.

Uma delas foi pedir à Prefeitura da cidade que meu comércio ficasse aberto até às 22h e também aos sábados e domingos. Como na época era proibido que os funcionários trabalhassem nesses dias e horários, eu e meus filhos cuidávamos de tudo – me afirmando ainda que fora ela quem havia quebrado o tabu de uma sociedade masculina – “e, por isso, fiquei famosa” – completa.

Um tempo pós a criação, o Cocape se tornou local de encontro da elite curitibana e também cenário de grandes discussões políticas. Dona Mariza lembra que Roberto Requião costumava chegar em seu café, pegar uma bebida, colocar o pé na parede e discutir sobre o futuro da política curitibana.

– E eu só ficava ouvindo o que eles falavam, sempre na escuta para saber o que iria acontecer em Curitiba. *** Dona Mariza disse-me que, durante anos, ela se confundia com o nome da Galeria.

– Sempre confundi Tijuca com Tijucas, agora eu não troco mais, devido uma confusão que aconteceu comigo

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em um taxi no Rio de Janeiro.

Há algumas décadas, ela fora visitar uma de suas irmãs no Rio de Janeiro. Quando saiu do aeroporto e pediu para que o taxista a levasse para Tijucas, o taxista disse que seria impossível, não havia nenhum bairro com esse nome e que ela havia descido na cidade errada.

– Eu estava na porta do aeroporto e fiquei desesperada. Foi então que disse: “mas como? Eu quero ir à Rua São Francisco Xavier”! O taxista então riu e disse: ‘Ah, então a senhora quer ir pra Tijuca, e não para Tijucas! Desde então, eu estabeleço essa relação para não esquecer o nome da galeria.

Mesmo com pequenas confusões, Mariza fica bastante emocionada ao falar da Galeria; o pequeno pedaço de Curitiba que proporcionou a ela tudo o que tem hoje.

– O Tijucas foi onde eu pude criar meus filhos e torna-los úteis a sociedade.

Hoje, sua filha Fábia é publicitária e administra as lojas de artigos esportivos da família, ao lado do irmão João Bosco, economista. Mariza ainda conta que, por fazer parte da sua história, hoje em dia ela prefere não passar pela Galeria, evitando o saudosismo de uma época que não volta mais.

– Gosto de ser pioneira. Sinto-me bem em descobrir as coisas! – conta.

Inclusive, foi com essa atitude pioneira que Mariza teve um dos primeiros programas de entrevista da rádio paranaense. Possuía um espaço na programação da Rádio Independência, onde ela encaminhava entrevistas ao vivo e diariamente, com quem estivesse em seu café: desde figuras anônimas até políticos que

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faziam parte de sua clientela. Qualquer um rendia uma boa entrevista para Mariza.

Ela também não se incomoda quando é colocada como uma das primeiras feministas da terra dos pinheirais; muito pelo contrário, sua resposta é categórica: – Minha luta é pela equidade de gêneros!

E por ter essa luta como bandeira, dona Mariza sempre pleiteou a presença das mulheres nos jantares anuais dos Cavalheiros da Boca. No entanto, Anfrísio Siqueira, presidente da Confraria, jamais permitiu. Para que fosse feita a igualdade de gêneros naquele espaço, dona Mariza – juntamente com a então vereadora na época, Rosa Maria Chiamulera – fundou a Boca Rouge.

Uma Confraria, assim como a dos Cavalheiros, mas para as mulheres. E não parou ai: ela também criou, junto com Anfrísio Siqueira, a AAA – Associação Amigos da Boca.

Jogo de cintura e pulso firme, assim foram feitas suas parcerias, talvez seja esse o segredo para cultivar tantos amigos. Mariza lembra que era muito querida por todas as pessoas que moravam ou trabalhavam perto da Galeria Tijucas, principalmente uma figura, o “Baiano”.

Sujeito simples; engraxate, manco e de pé torto.

– Ele sempre dizia que, se alguém fizesse algo para mim, era só eu repassar para ele que ele daria um jeito, porque comigo ninguém mexeria. Ele capitaneava a Boca Maldita e fornecia “segurança” para minha loja. *** Os tempos mudaram e, desde então, Mariza dedica seus dias às causas sociais. Durante vinte anos, foi presidente da Saza Lattes, instituição que presta serviços gratuitos para pessoas carentes nas áreas de saúde,

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educação e promoção social. No que se diz respeito a atendimento médico ambulatorial, a Saza Lattes foi pioneira na implantação de mais de dezoito postos de saúde na capital paranaense, enquanto a Prefeitura só dispunha, na época, de uma unidade. Mesmo assim, para ter acesso ao local, a população sofria com alguns procedimentos burocráticos; dessa forma, a Saza Lattes auxiliava as famílias – sendo o papel de Mariza administrar as ações.

Outro braço de atendimento da Saza Lattes era a APMI (Associação de Proteção a Maternidade e a Infância), instituição que dona Mariza comandou durante 15 anos consecutivos, tendo como uma de suas colaboradoras, Zilda Arns.

– Eu me recordo que nossa folha de pagamento na Saza Lattes era de 180 milhões e nossa renda era de apenas 80. Os outros 100 milhões que faltavam eram por minha conta; eu precisava arrecadar esse dinheiro todo mês. Para conseguir, fazia festas homéricas no Clube Curitibano e bingo de artes com obras de artistas famosos que me doavam seus trabalhos.

Mariza costumava dizer que qualquer dinheiro doado à Saza Lattes ajudava, mas não resolvia o problema.

Em uma de suas empreitadas para levantar fundos, ela se inscreveu em um dos programas de Sílvio Santos, chamado “Cidade contra cidade”. A única exigência dos produtores do SBT era que Mariza levasse consigo uma mulher bonita.

– Seria fácil levar uma mulher bonita, afinal, eu conhecia várias. Mas não gosto de coisa fácil, por isso, criei um concurso de beleza no Restaurante Madalosso para encontrar a mulher mais linda de Curitiba.

Atualmente, Mariza foca seus trabalhos na missão

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Soroptimista, programa internacional que visa melhorar a vida de meninas e mulheres em situações vulneráveis de comunidades locais ao redor do mundo.

O Soroptimismo apoia mulheres que sonham e buscam independência; uma de suas ações de sucesso é o projeto “Mãos de menina”.

Em uma viagem à Antonina, litoral paranaense, Mariza conheceu uma comunidade que produzia tecido a partir da pele de peixes. Com sua visão global, dona Mariza conseguiu captar a essência do trabalho e, por meio do Soroptimismo Internacional, hoje, as meninas importam seus materiais para grandes marcas do mundo, como a Louis Vuitton.

– A mulher que promove a família, constrói a Nação – diz.

Um exemplo dessa valorização que Mariza dá as mulheres é o seu projeto, ainda em andamento na Câmara de Vereadores de Curitiba, que pretende nomear uma rua de Curitiba como “Aracy Guimarães Rosa”.

– Você sabe quem foi Aracy Guimarães Rosa? – pergunta-me.

Eu, sem saber o que responder e chutando uma resposta que julgava certa, disparei: “mulher de Guimarães Rosa”? A partir daí, Mariza iniciou uma interessante aula de história.

Também conhecida como “O Anjo de Hamburgo”, Aracy era, realmente, mulher de Guimarães Rosa.

Entretanto, esse reconhecimento era pouco para ela, segundo Mariza. Muito antes de ser mulher do famoso escritor, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa foi uma paranaense, nascida em Rio Negro no ano de 1908, e poliglota – que prestou serviços ao Itamaraty

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na época da Segunda Guerra Mundial. Ajudou mais de 100 famílias judias a entrarem ilegalmente no Brasil na época do governo de Getúlio Vargas, por isso, ficou conhecida como “Anjo de Hamburgo”.

Hoje, Aracy tem seu nome eternizado no Jardim dos Justos entre as Nações, no Museu do Holocausto, em Israel, e no Museu do Holocausto de Washington. O próximo passo será o seu nome reconhecido em uma rua do bairro da Cidade Industrial de Curitiba, obra de dona Mariza. A homenagem é simbólica, mas o que dona Mariza quer é tirar o estigma de “mulher do escritor”, apenas, e perpetuar as ações dessa grande brasileira, a qual eu também desconhecia. *** Paraná tem acalanto, E floradas multicores.

Que recobre com seu manto Suas lidas e seus amores.

Entre o céu o mar e a terra Habita no Paraná A gralha azul que soterra O pinhão que brotará O poema acima pode perfeitamente se passar por uma obra ufanista escrita, por um paranaense apaixonado, mas sua autora é, sem dúvida, uma das figuras mais interessantes que já conheci: a pernambucana arretada Mariza Soares de Azevedo, ou só a dona Mariza.

Poetiza, empresária, professora formada, campeã brasileira de pesca e feminista. Mulher de fibra e mãe de família dedicada, Mariza mora hoje em um

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lindo apartamento no centro de Curitiba, com vista privilegiada tanto para o Teatro Guaíra quanto para a Universidade Federal do Paraná. Cercada de obras de artes, troféus, livros onde foi citada e fotos de seus netos, Mariza pode passar despercebida pelas ruas de Curitiba, mas sem dúvida já tem seu nome escrito na história da cidade. Curitibana de coração, Mariza tem certo dom para a poesia. E, como ela mesma diz em um de seus poemas premiados: “Nasceu em Recife sob as sombras dos coqueiros e resolveu, por opção, morrer sob as sombras dos pinheirais”.

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Pelos caminhos da África Marcos Garcia

H

á mais coisas em comum entre Brasil e Angola do que se possa imaginar. Eu mesmo, leigo no assunto, tive de entender de que forma a relação entre os dois países vai além de questões históricas, (como a língua e a colonização portuguesa), para entrevistar o personagem desta história. A rica cultura africana, que – mesmo com dificuldades – se faz presente hoje no Brasil, não só influenciou nos costumes do povo brasileiro, mas também abriu espaço para que imigrantes e viajantes do continente africano pudessem escolher o Brasil como um destino para se profissionalizarem e, em alguns casos, estabilizarem suas vidas.

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Descoberta em 1482, Angola teve a inesperada visita portuguesa 18 anos antes do Brasil, quando Diogo Cão, ao contornar o continente africano para chegar às índias, se deparou com a nova região e iniciou a conquista europeia a partir do Zaire. Após o estabelecimento de uma aliança com o Reino do Congo, que dominava toda a região encontrada, dois outros reinos localizados ao sul – Ndongo e Matamba – decidiram fundir-se para formar o Reino de Angola, já em 1559. A capital, Luanda, foi inaugurada dezessete anos depois e se transformou rapidamente na principal base de tráfico de escravos que abastecia outro país recém descoberto, o Brasil.

A rica história de colonização e batalhas por independência em Angola teve ainda uma breve presença holandesa no século seguinte ao descobrimento, rapidamente abafada pelos portugueses, que tomaram o controle da colônia de uma vez por todas e mantiveram a presença de um governo colono no país até 1975. A grande pressão de grupos separatistas influenciou os colonos, que declararam a independência da nação angolana no mesmo ano. O período de transição de colônia portuguesa para estado independente não foi realizado de forma pacífica. As negociações deram lugar a uma guerra civil, que assolou o país em três períodos mais significativos, finalizada apenas em 2002.

Mesmo que já não precisasse fugir das terríveis consequências da guerra, o angolano Yuri Gabriel dos Santos Fortes, nascido em Luanda, deixou para trás suas raízes e ousou sonhar longe, chegando ao Brasil em 2011 para iniciar um novo capítulo de sua vida. Antes de concretizar o sonho, teve como destino a África do Sul, onde buscou o início de um sucesso profissional. No novo país, enfrentou o clima frio, a

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saudade de casa e a dificuldade de uma nova língua, seus primeiros obstáculos nesta nova fase da vida. Sua mãe, uma médica recém-formada e que jamais deixara os estudos de lado, foi peça-chave para influenciar as escolhas do filho mais velho e dos outros quatro que criou ao lado do marido.

A visita ao Brasil nunca esteve nos planos de sua mãe, mas a oportunidade de ver o filho ganhando o mundo em um lugar diferente não deixou dúvidas de que esse era o caminho certo para Yuri.

– Ela é uma peça chave nas minhas decisões, até hoje – conta Yuri.

Formado em logística pela Faculdade Integrada Camões e atualmente pós graduando em Engenharia de Petróleo e Gás e Marketing Político, Yuri saiu da África para encontrar um novo lar, no centro da cidade Curitiba: o Edifício Tijucas. *** A breve apresentação de Yuri não faz jus às boas e surpreendentes histórias – carregadas de um forte sotaque – que ouvi durante nossas conversas. Bem humorado e solicito com o meu pedido de encontro em uma sexta-feira à tarde, o rapaz negro e de corpo “rechonchudo”, não tem cerimônias para falar sobre sua inusitada trajetória.

A história de Yuri chegou ao meu conhecimento após uma conversa com alguns moradores do prédio.

Os boatos da presença de haitianos, africanos – ou qualquer tipo de estrangeiro – circulam o Tijucas, ás vezes até com tom racista e de insatisfação. Decidi então observar de perto e descobri que, de fato, a situação é muito comum no edifício.

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A ótima localização faz com que o Tijucas seja escolhido por estudantes brasileiros e estrangeiros como morada durante o período de seus cursos. No caso de Yuri, que já dividiu o apartamento 1406 com outros companheiros angolanos, a história não foi diferente.

Após mudar-se definitivamente para o Tijucas em 2011, manteve sua rotina de estudos diários até se formar, dois anos depois.

Como morador, nunca chamou a atenção dos vizinhos por sua postura discreta e quase imperceptível dentro de casa e nos corredores, exceto pelo fato de ser estrangeiro que, como já comentado aqui, ainda é uma situação curiosa e de bastante discussão no prédio.

No início, tímido, compartilhava sentimentos e experiências com seus compatriotas, alguns deles amigos de infância em terras angolanas e que também moravam no Tijucas. Com o passar dos anos, Yuri foi identificando-se com o ambiente do seu novo país e com sua nova casa. No edifício, os porteiros tornaramse seus principais amigos.

Ainda na primeira visita a Yuri, quando cheguei ao prédio para entrevista-lo e anunciei o número do apartamento, o porteiro em serviço fez uma brincadeira que eu, só alguns minutos depois, pude compreender.

– Yuri? Um bem magrinho, né? É lá no 1406, pode subir.

Não era minha primeira vez naquele corredor. Dois dias antes havia visitado o Tijucas com a missão de marcar a entrevista com o “tal Yuri”, mas o mesmo não se encontrava. Decidi então perguntar aos vizinhos se eles conheciam os moradores ao lado e só obtive sucesso com um deles: uma senhora, já bastante idosa, que vivia sozinha no apartamento 1403 há seis meses.

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Ela, por sua vez, pouco tinha para comentar sobre os vizinhos estrangeiros, limitando-se a repetir os adjetivos “calmos e tranquilos”.

Quando, enfim, pude me encontrar com Yuri e entender um pouco da sua rotina, percebi o porquê do pouco reconhecimento no 14º andar. Bastante reservado – e ao mesmo tempo simpático – ele valoriza as amizades com os porteiros e os poucos conhecidos que tem dentro do prédio. Além disso, por coincidência, relembra de outro jornalista – também amigo – que já esteve no local antes de mim.

– Quando haviam mais angolanos aqui no prédio, eu visitava um ou dois vizinhos e eles me visitavam também. Um deles era um jornalista brasileiro que se dizia muito encantado com a cultura angolana, sempre querendo saber mais sobre nós. Era normal ele nos receber para almoçar.

Yuri tem a certeza de que escolheu o lugar certo para chamar de casa. Em 2011, durante seus primeiros meses em nossa capital, se instalou em uma residência no bairro Cajuru – região afastada do centro –, o que acabou gerando algumas complicações de mobilidade e horários.

– De noite aquele bairro era muito complicado. A presença da polícia era intensa e eu fui abordado sem ter feito nada, simplesmente porque estava voltando a pé para casa. Decidi me mudar alguns meses depois da minha chegada e, felizmente, achei o Tijucas, na região central. *** Depois de dividir o apartamento com outro amigo angolano, durante os dois primeiros anos, Yuri recebeu

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um de seus irmãos mais novos, que também escolheu o Brasil como destino para estudar.

Não sou muito atento aos detalhes visuais, mas sim às histórias; no entanto, em uma breve passada de olhar pelo apartamento simples e bem cuidado, consigo facilmente confirmar que o local deve abrigar, com o mínimo de conforto, cerca de três pessoas. Os móveis são de uma simplicidade singela e a estrutura mantém o mesmo desenho original do Tijucas. Não existe uma divisão entre a mesa de jantar e a sala de TV e a sensação é de que um morador sempre está muito perto do outro, dividindo o mesmo ambiente.

O que Yuri não esperava é que o espaço teria de ser modificado em 2013, quando recebeu uma notícia que mudou completamente sua rotina de vida. Sobre esse pequeno detalhe – bem pequeno, aliás – falarei no decorrer dessa história.

Reclamações sobre o prédio surgem, mesmo que sua morada dure pouco mais de três anos. Bastante calmo e seletivo com as palavras, ele classifica o Edifício como tranquilo, sem registros de problemas com vizinhos ou de segurança. Sua única preocupação diz respeito a estrutura muito antiga do local.

– Se algum empresário ou administrador quisesse ajudar financeiramente nas reformas do prédio, seria uma boa. Ás vezes é bastante normal, por exemplo, que dos três elevadores do andar, só um esteja funcionando, ou ás vezes até nenhum deles. Se você mora no 30, imagina, como vai conseguir subir? E se for um idoso?

– conta, um pouco frustrado.

No entanto, mesmo com suas preocupações e reclamações, o Tijucas já representa sua casa e o lugar em que se sente confortável. Além disso, percebo que

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a relação com prédio é também geográfica. A facilidade de deslocamento para quem estuda no centro e as múltiplas alternativas de comércio facilitam a vida dos moradores. Com Yuri, não é diferente.

Os arredores do prédio, que na rotina da maioria dos moradores da cidade acabam passando despercebidos, são vistos de forma diferente por ele. O espaço esportivo reservado na Praça Osório é usado por Yuri para dedicar algumas horas de seu dia ao lazer junto com um grupo de amigos. Quando não está no conforto de seu apartamento, gosta de caminhar sob a Rua XV, observando a movimentação e, como gosta de ressaltar, a violência que vê crescendo a cada dia.

– Em questão de segurança, os casos de assalto a mão armada e até troca de tiros estão acontecendo com mais frequência.

A infância em uma Nação pobre e em guerra deixou marcas psicológicas e culturais em Yuri, as quais ficaram bem claras quando ele compartilhou suas opiniões e visões sobre sociedade. No Brasil, ao perceber nossos problemas com uma visão diferente, ele conseguiu identificar uma série de dificuldades que o brasileiro precisa enfrentar diariamente.

– Eu vejo que o brasileiro é um povo que dá muito mais do que recebe – afirma.

Yuri, que diz já se sentir um brasileiro, enfrenta os mesmos problemas básicos do dia a dia ao lado de muitos curitibanos. O transporte coletivo e falta de infraestrutura são aspectos que critica com veemência. O maior deles, porém, ainda é o racismo e a discriminação, situação que parte da população brasileira se nega a discutir e até acredita não existir mais. No Brasil, Yuri lidou pela primeira vez em sua vida

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com o preconceito, e pior, vindo de pessoas que sequer o conheciam. A fisionomia serena e a simpatia – fácil de reconhecer na primeira troca de palavras com Yuri –, não o privaram de algumas situações constrangedoras – se não, lamentáveis.

– Me lembro de uma vez em que fui ao banco sacar dinheiro e quando eu levantei para ir até o caixa uma senhora de idade achou que eu fosse assaltá-la e chamou a polícia. Quando eles chegaram, me abordaram com violência antes mesmo de pedir identificação.

A situação só foi resolvida quando ele teve a oportunidade de se expressar e mostrar seu sotaque, o que fez com que os policiais percebessem o mal entendido.

Os relatos de discriminação não se resumem a esse fato. Em outros momentos, Yuri já percebeu o desconforto de algumas pessoas em dividir o mesmo espaço que ele. Mas encara esses acontecimentos como parte de um passado que não quer mais reviver. *** Demorei a entender como situações assim poderiam apenas “ficar no passado” ou serem esquecidas. No entanto, ao longo de nossa conversa, ficou claro que as dificuldades enfrentadas em seu país de origem foram muito maiores do que as dificuldades de adaptação ao Brasil. A infância e adolescência em Angola fizeram com que ele, ainda muito jovem, vivesse experiências que o marcariam para o resto de sua vida. Curioso, perguntei sobre como fora viver quando criança em Luanda.

– Ela [a infância] foi separada em alguns momentos.

Dou graças a Deus por sempre ter tido tanto o meu pai quanto a minha mãe por perto para me educar e

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cuidar de mim. É muito normal nesse momento de vida, principalmente em um país como o meu, que as crianças se questionem o porquê de não poder fazer certas coisas – como fumar e beber –, e isso causou alguns problemas, inclusive para mim entre meus 10 e 11 anos.

Outro momento marcante aconteceu em 1992, quando Luanda sofria com uma guerra civil entre partidos que buscavam o poder e a independência angolana.

– Foi um período de combate sangrento e eu, junto com a minha família, acabamos vivendo ele na carne.

Era impossível sair de casa, tomar banho e até comer porque os tiros entravam pelas janelas.

O intenso confronto vitimou milhares de angolanos como Yuri, incluindo alguns parentes de família que estavam isolados em outro ponto da capital. Na época, a tecnologia era mínima, fazendo com que o contato entre os familiares fosse impossibilitado.

Os barulhos dos vidros se quebrando e a procura de um lugar seguro para se proteger são memórias que Yuri relembra com dor, mas que o fortalecem a cada dia.

Afinal, ele tem sonhos a serem alcançados. Um deles é fazer parte de uma grande multinacional petrolífera. *** O sonho peculiar de Yuri, aliás, tem muito a ver com sua mãe e grande incentivadora. Marilia Fortes dedicou sua vida aos quatro filhos e aos estudos, apresentando ao filho mais velho o ramo do petróleo. Mesmo de maneira forçada – já que o adolescente era apaixonado por veterinária, especialmente por cães – Yuri chegou à conclusão de que esse seria o melhor caminho.

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A área escolhida foi resultado da reconstrução de Angola no período pós-guerra civil, no início dos anos 2000. A situação do país não possibilitava que a carreira na veterinária fosse um objetivo viável por questões de estrutura, diferentemente do ramo petrolífero.

O Instituto Nacional de Petróleos Angolano, localizado no Kwanza-Sul, é referência entre os países que falam português na África e recebe estrangeiros todos os anos em busca de especialização na área. Destino ou não, Yuri recebeu uma das bolsas de estudo que o Ministério de Petróleo angolano distribuiu na época para divulgar o projeto. Mesmo contra sua vontade, decidiu seguir os conselhos da mãe.

No início, vieram as dificuldades. Além da adaptação com a área e com o curso, o primeiro dos quatros anos no internato - que ficava a 330 km de sua cidade natal - foi cheio de problemas. Yuri precisou se apoiar em amigos, aos quais compartilhava angustias e receios, tudo para que não desistisse dos estudos e deixasse a oportunidade escapar.

– No início eu tirava muitas negativas – Yuri ainda utiliza alguns termos mais comuns ao português de Angola – porque realmente não sabia nada, nada mesmo. Olhava para aquilo e não compreendia nada, não sabia o que fazer.

Foram períodos difíceis, que só começaram a se tornar suportáveis graças à amizade de Yuri com outro estudante. O novo amigo, Sérgio, foi quem o incentivou, deu forças e ensinou o que ele não conseguia aprender. Quando começou a entender que parecia incompreensível, o medo e a angústia se transformaram em paixão, que permanece até hoje.

Ao contrário do que pensava, mesmo com a ótima

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preparação acadêmica, ele não se sentia prestigiado em Angola. Os estágios e as primeiras experiências profissionais não ofereciam os desafios da profissão que ele esperava encontrar. Foi pensando nisso que decidiu dar continuidade a caminhada fora de seu país natal e partir para a África do Sul. – Eu fiquei um pouco menos de um ano na Cidade de Cabo e me adaptei muito bem, fazendo os cursos de língua necessários. Quando já estava me preparando para o ano letivo, novamente minha mãe me surpreendeu com a novidade de que haveria outras oportunidades no ramo, dessa vez no Brasil.

O projeto em que se inscreveu fornecia intercâmbio apenas para Curitiba e, por questões burocráticas, decidiu por aqui ficar.

Não teve dificuldade em adaptar-se. O velho frio curitibano, intenso e incômodo, foi um problema simples. A comida, segundo ele, lembra a comida angolana: arroz, feijão e batata, um item a menos para preocupar-se. O que demorou a compreender – ou ainda não compreendeu – é a frieza do povo curitibano e as desigualdades sociais presentes na capital paranaense.

Quando peço para comparar nossa cidade a cidade que morou anteriormente, ele é direto: – O Brasil tem tudo pra ser um país de primeiro mundo, tem uma economia em evolução, produz muito petróleo, mas em termos internos a nossa estrutura ainda é ruim e conduzida por gente que só se importa com o poder. A gestão na África do Sul é feita de uma forma mais eficiente e, apesar dos grandes professores que tive aqui, se for para escolher um país pelo ensino, eu escolho a África do Sul.

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*** Antes de dar início ao encerramento dessa história, lembrei-me de que prometi – no início desse texto –, que é contar-lhes sobre “o pequeno detalhe” que mudou vida de Yuri. O Brasil, mesmo que ainda não tenha sua total aprovação, o apresentou a uma nova cultura e novas oportunidades de ensino. Também, acima de qualquer outro fator, já o presenteou com as duas pessoas mais importantes em sua vida. A primeira delas é Nelma, atual namorada – também angolana – com a qual divide o apartamento no Tijucas.

– Nos conhecemos em uma confraternização do Dia da Independência Angolana, que reúne os imigrantes africanos anualmente no dia 11 de novembro.

Começamos a conversar por motivos acadêmicos e terminamos transformando a relação em um namoro sério. Acabamos nos tornando cúmplices um do outro e deu ainda mais certo porque gostamos das mesmas coisas.

Aos domingos, não abre mão do futebol com os amigos, também angolanos. Nos demais momentos, está sempre com ela.

– Agora mais ainda, já que ano passado apareceu o “piazinho”.

O “piazinho”, citado por Yuri, se chama Kevin e tem apenas 10 meses. Curitibano e primeiro filho do casal, ele é responsável por alegrar a casa e esbanjar simpatia para os raros visitantes do 1406. Com a inquieta criança nos braços, ele se lembra da dificuldade em contar aos pais sobre o neto, já que eles haviam investido em sua carreira e não esperavam por esse tipo de notícia. A novidade proporcionou um choque momentâneo, mas a felicidade pela notícia foi maior.

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Pai orgulhoso e cheio de planos, Yuri já sabe como quer ver seu filho em um futuro próximo. Ao contrário do que viveu, diz que quer deixa-lo fazer suas próprias escolhas. No entanto, assim como a avó de Kevin, já dá pistas de que pode dar aquele “empurrãozinho”: – Ele vai ter livre arbítrio para escolher o que quiser, mas por mim, eu quero que ele vire jogador de futebol.

Se eu continuar no Brasil, pretendo colocar ele numa escolinha para treinar.

– E vai estudar também! – comenta Nelma, ao fundo.

– Sim, vai estudar também, mas o meu sonho é que ele jogue no Barcelona e viva na Europa. Acredito que aqui no Brasil ele tenha as condições perfeitas para treinar e no futuro realizar o meu desejo.

Sim, o desejo do pai. Afinal, percebi – ao longo de nossas conversas – que a vivência de Yuri quando jovem ao lado da mãe, mesmo com algumas diferenças de opiniões, resultou na escolha do que ele gosta de fazer e do quer para o resto da vida. Talvez ele acredite, e sonhe todas as noites, que o filho tenha a mesma sorte.

Hoje, o angolano preocupa-se em conseguir acordar no meio da noite para cuidar do filho e aprender a trocar suas fraldas. A tarefa, um tanto quanto intimidadora para mim, não parece ser suficientemente desafiadora para Yuri. Para quem já viveu em três países diferentes; presenciou uma guerra sangrenta; enfrentou o preconceito, a saudade e a distância de suas raízes, trocar a frauda de seu bebezinho não me parece um desafio que Yuri terá dificuldades em executar.

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A costura do Império Nardelli Felipe Martins

O

ano de 1958 foi de grande importância para o ramo da alfaiataria na cidade de Curitiba. A região central da cidade crescia vertiginosamente, levando junto a economia da capital. A vinda de um grande número de empresas e jovens estudantes trouxe também a necessidade de profissionais da alta costura, para suprir o fornecimento de roupas finas para os homens da época. O Edifício e Galeria Tijucas, fundado naquele mesmo ano e, até então maior prédio da cidade, virou referência para o comércio no centro da cidade. Localizado no início da Rua XV de Novembro,

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o gigante da Boca Maldita rapidamente atraiu os ‘novos curitibanos’ vindos do interior do Paraná e de estados vizinhos. E muitos alfaiates migraram para a capital dos paranaenses justamente nesta época.

Ao subir até o 2° andar da ala comercial, entrei em uma pequena loja que guarda um resumo da história da alfaiataria curitibana. Embora simples, a decoração remete aos anos 50. Das duas cadeiras de espera próximas ao tímido provador (um pequeno box escondido por uma cortina escura), o que se vê é uma prateleira lotada de tecidos de vários tipos e cores, além do próprio reflexo em um grande espelho. Por ali, há também muitas peças de roupa dobradas em cima de um longo balcão, que esconde uma antiga (porém muito melhor que as novas, garante o dono) máquina de costurar da centenária marca Singer. Vi também, quase que escondido atrás do balcão, o dono.

Ferdinando Nardelli, um catarinense de 79 anos, de origem ítalo-brasileira, me deu bom dia com um pesado sotaque italiano, mas sem perder o ponto da calça que costurava. Nascido em Rio dos Cedros, em uma humilde família de 15 irmãos, foi alfabetizado em italiano. Começou a trabalhar com 12 anos na roça, como caminho natural de todos os familiares. Pouco tempo depois, obrigado pelo pai a escolher o próprio caminho, optou pelo ofício da alfaiataria, produzindo peças de roupas para o comércio local. Com 21 anos, ouviu que Curitiba crescia a todo vapor.

– Diziam que Curitiba era uma cidade universitária, e que todo mundo se vestia bem. Foi o necessário pra eu juntar as coisas e vir.

Sem condições de crescer na pequena e recémcriada Rio dos Cedros – a colônia foi desmembrada

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da cidade de Timbó em dezembro de 1961 –, o jovem Ferdinando se mudou para o estado vizinho na tentativa de uma vida mais próspera. Chegou à Curitiba com 22 anos e logo arrumou um emprego na cooperativa dos ferroviários. Trabalhou por alguns meses, e decidiu por uma mudança ao segundo calote no pagamento.

E a mudança veio com Alceu Marcondes Zanardini, então proprietário da Alfaiataria Zanardini, na Praça Tiradentes. Lá, Nardelli pode se aperfeiçoar no ofício, além de fazer contatos. Ao final do primeiro ano como funcionário de Zanardini, o tempo de aprendizado havia se encerrado.

– O Alceu chegou pra mim e disse: ‘Nardelli, você está apto a ter a própria alfaiataria’. Já era dezembro, e eu tinha apenas uns trocados.

Nardelli saiu da Alfaiataria Zanardini apenas com um espelho, que hoje está na loja, e uma tesoura centenária, que guarda com extremo zelo. Com pouco mais de 22 anos, começou a rodar pelas áreas de maior movimento na Boca Maldita. Passou pela Confeitaria das Famílias e pela Galeria Lustosa, mas sem condições financeiras para alugar um espaço. A mudança veio ao chegar à recém-inaugurada Galeria Tijucas. Por ser novo, o local tinha salas disponíveis para locação a preços acessíveis para o bolso de Nardelli, que alugou um espaço no 4° andar. Como o dinheiro era curto, a mobília se restringiu ao espelho e ao pequeno balcão (Nardelli logo sentiu a necessidade de trocar por um balcão maior, para corte e costura de ternos), além da tesoura.

A primeira das grandes encomendas foi um conjunto completo – calça, paletó e colete. O cliente era Udo Neumann, um marceneiro de descendência alemã, que pediu urgência: teria uma festa na mesma semana. O

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pagamento interessava bastante – haviam combinado que Udo construiria o tão necessário novo balcão.

Nardelli, sem tempo e sem balcão, trabalhou durante as noites que antecederam a entrega, usando o chão da loja como apoio.

– Eu precisei cortar os panos no chão da loja mesmo, porque o balcão não dava o tamanho suficiente. Como tinha muito serviço, acabei passando as noites por lá.

Nardelli entregou a encomenda em tempo, mas novamente sofreria calote no pagamento. O balcão nunca veio, e Udo também não apareceu mais – quase 55 anos depois, brinca que ainda espera a chegada do móvel, mesmo que com cupins. Mas as noites de trabalho continuariam, e Nardelli sentiu que não conseguiria dividir o tempo e a atenção entre a loja e o curso de contabilidade. Felizmente, o comércio, a partir de então, iria bem. *** Ao chegar à parte comercial da Galeria Tijucas pela primeira vez, passando pela colossal entrada da Rua Carlos de Carvalho, pude experimentar o ritual de ‘batismo’ pelo qual todos devem passar: parar em frente aos elevadores do hall de entrada comercial, elevar o olhar e procurar o endereço desejado no enorme quadro informativo, dividido por andares. Nardelli hoje está no 2º andar, mas já foi proprietário de outros espaços no prédio. Pareceu constrangido em revelar que antes da fama, precisou sair do pensionato onde vivia, e só restou morar no local de trabalho.

– Por um tempo, eu fechava a loja depois do serviço e dormia por aqui mesmo. Tinha um travesseiro, era o

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suficiente.

Antigamente no Tijucas, muitas pessoas compravam apartamentos na seção comercial e faziam de residência – prática combatida em uma das gestões em que Nardelli foi síndico. O alfaiate contou que, naquela época, a loja no 4° andar – então propriedade da Santa Casa – tinha como vizinhos um garçom com a esposa, e que estes viviam brigando. Um dia, o homem resolveu sair de casa, e a mulher não ficaria muito tempo por lá. Nardelli se mudou para o conjunto vizinho, onde encontrou uma cama e um guarda-roupas, melhorando um pouco a mobília.

Mas aquela ainda não seria a última das mudanças dentro do prédio. Algum tempo depois, quando alugava uma das lojas pertencentes ao Doutor Rômulo – médico da Santa Casa, proprietário de algumas unidades no edifício – no 1º andar, teve a oportunidade de compra do imóvel. Na negociação, acabou comprando também a loja ao lado. Embora não pensasse em uma nova mudança, a chegada de um cartório – e uma oferta três vezes maior que o valor de aluguel do imóvel – fez com que Nardelli aceitasse o montante para se mudar.

Comprou a loja 213, logo acima de onde o cartório se instalou. De lá ainda não saiu. *** Desde que se mudou para o Tijucas, Nardelli importou colegas de ofício para o Paraná. Ajudou a transformar o prédio no maior reduto de alfaiates do Brasil – título que ainda detém, com 18 profissionais do ramo. Mas, aos poucos, a arte da alfaiataria vai perdendo espaço.

Em uma sociedade movida pela pressa e por coisas descartáveis, a alfaiataria parece ter o mesmo tempo

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de vida que seus adeptos.

Há pouco tempo, o Tijucas perdeu um dos principais nomes do ramo. Silvestre, que também era um grande amigo de Nardelli, deixou em terra uma loja fechada – hoje, já mudou de dono. Na tentativa de manter viva a arte, Nardelli atuou também como empreendedor em favor do ofício. Durante os anos na capital, ajudou na formação de alguns profissionais dos cursos de corte e costura nas principais escolas da cidade. Pareceu-me, também, querer poder ter ensinado a arte da alfaiataria para alguém, talvez em uma tentativa de deixar um herdeiro – a única pessoa que trabalha diretamente com Nardelli é a esposa Donzila, com quem casou no ano de 1965, e conversa apenas em italiano.

– Como você pode ver, é uma profissão que dá bastante dinheiro. Mas o jovem hoje em dia tem outras vontades, e não tem paciência de sentar e ficar ouvindo, praticando. E nem eu posso parar muito para ficar observando, o serviço acumula. Mas vale a pena, o retorno é bom.

Falando em retorno, a vida que Nardelli tem hoje me fez refletir sobre meu próprio futuro. Quando perguntei pelo preço de cada terno, imagino que meus olhos brilharam. Mas, quando pensei como consumidor, confesso ter me assustado. Para um conjunto de calça, paletó e colete, caso seja confeccionado com tecido importado, o preço começa em torno de R$ 5.000,00.

Nardelli garantiu que é de qualidade, e que a vida útil é muito maior.

– Se você for a qualquer loja de grande de ternos, talvez pague o dobro num terno igual. Mas dá para achar barato também, nessas lojas que tem aqui na Rua XV. Vai pagar uns R$ 400 num terno que vai durar

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uns 5 anos ou algumas lavadas. Se o terno que eu faço não durar 40 anos, eu me aposento hoje mesmo!

Mesmo rindo, Nardelli passa a confiança de que as confecções realmente duram, assim como a vontade de trabalhar, inesgotável. Quando percebi, pouco mais de uma hora e meia haviam passado desde que cheguei, e Nardelli não havia sentado por nem um minuto. Até cogitou parar de fazer o que estava fazendo, mas pediu licença e perguntou se poderia continuar o trabalho enquanto as perguntas eram feitas. Aceito o combinado, rapidamente pegou um pedaço de tecido, e me explicou que era o braço de um paletó que havia sido danificado em uma lavanderia.

Em poucos dias, Nardelli desmontou a peça, trocou o tecido e estava finalizando o reparo. Durante a conversa, um visitante entrou. O alfaiate rapidamente parou o que estava fazendo e foi até a outra parte da sala, onde ficam guardadas as encomendas prontas.

Voltou com um sobretudo que o visitante rapidamente experimentou, mas alguns ajustes ainda precisariam ser feitos. O visitante se despediu e disse que voltaria outra hora, com o dinheiro.

– Esse aí não tem como pagar o serviço de uma vez só. Às vezes ele passa aqui e paga um pouquinho, faz um ajuste. Um dia ele termina de pagar tudo.

Além de pessoas comuns, a clientela é composta por uma vasta gama de pessoas importantes para o Paraná e para a capital. Entre as cartelas de cadastro, como pude ver, estão figurões da política e empresários. Também faz ternos para celebridades. Padre Reginaldo Manzotti, por exemplo, veste ternos da Alfaiataria Nardelli. E para todos, sejam simples ou famosos, Nardelli mantém o mesmo cuidado e atenção. E a oferta para um café com

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leite, convite do qual ninguém é deixado de fora.

Há também um enorme cuidado por produtos sempre contemporâneos. Mesmo com mais de meia década de atividade, Nardelli viaja anualmente com Donzila para a Europa em busca de atualizações do mundo da moda. Em uma das viagens recentes – com o tempo de conversa, percebi que o recente de Nardelli pode significar 10 anos ou mais –, para a Alemanha, aprendeu um método de costura diferente, que não deixa marcas.

Todo o conhecimento adquirido ao longo dos anos, aliás, está pendurado na parede da loja, em forma de certificados. Em destaque estão os diplomas de formação no ofício, concedidos pela Universidade do Paraná. Na parede oposta, estão dois certificados – um dele e um da esposa – de um curso de aperfeiçoamento realizado na Argentina. Nas mesmas paredes estão também as maiores marcas de reconhecimento: recortes de jornal, com reportagens sobre o ofício da alfaiataria e sobre o próprio alfaiate, dos quais Nardelli se enche de orgulho. *** Além da alfaiataria, outras três coisas descrevem Nardelli muito bem: o cuidado com a família, as viagens quando aceita tirar férias e a religião – confessou ser católico praticante, embora alguns detalhes da loja não deixem esconder (além de algumas imagens da virgem Maria, há também frases cristãs). O cristianismo, aliás, levará o casal a mais uma viagem internacional. Desta vez, o destino é a Terra Santa, para onde Nardelli e Donzila embarcam no final do ano. Porém, voltam logo: não podem deixar de estar em Curitiba antes do Natal, e a loja não pode ficar fechada por muito tempo. Além

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da quantidade de serviço, o alfaiate não abre mão de, em dezembro, descer para Balneário Camboriú e passar as festas de fim de ano com parentes. O local de refúgio da família é uma casa próxima da praia, pela qual Nardelli conta que um velho fazendeiro mato-grossense já ofereceu uma boa quantia.

– Era um dos maiores produtores de soja do país, que tinha uma fazenda gigante lá pros lados do Mato Grosso. Quando veio pra Santa Catarina e conheceu a casa, fez uma oferta de quase R$2 milhões!

Nardelli confessou que a oferta balançou, mas a conversa com Donzila assegurou a casa como propriedade dos Nardelli. O consenso seria de que dinheiro não faltava para o casal – já era uma alfaiataria bastante conhecida na capital –, e não poderiam ficar sem ter um local para reunir os familiares. Afinal, Nardelli é avô, e as crianças tiram o alfaiate da disciplinada rotina. Rotina que, como custou a confessar, adora e não troca por nada.

Há poucos anos, decidiu que se aposentaria. No primeiro dia, descansou o suficiente. No segundo, resolveu cuidar da horta que mantém na residência oficial – uma casa em uma rua tranquila, nas proximidades da Avenida das Torres –, onde cultiva, entre outras coisas, saborosos morangos. No terceiro, revelou à Donzila que não aguentava mais o tédio de passar o dia de calção e camiseta em casa, sem fazer nada. Logo cedo, no quarto dia, estava na Galeria Tijucas, operando a velha Singer e costurando para os fiéis clientes, além de jogar conversa fora enquanto recebia velhos (e novos amigos) para o café com leite.

E eu, felizmente, tive a oportunidade de ser recebido por Ferdinando Nardelli. Depois de uma longa conversa

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– que, de forma alguma poderia ser jogada fora – e de um amigável café com bolachas, pude agradecer por poder ouvir uma das muitas histórias que formam a grande história do Tijucas e de Curitiba, e sair da Alfaiataria Nardelli já com vontade de um próximo encontro.

– Vá com Deus, menino. Que o Senhor sempre te acompanhe e traga luz para o seu caminho!

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“Meu mundo acaba na porta” Rafaela Bez

E

ntre paredes, vidraças, ferros e madeira maciça, há o verde. Este que representa um pedaço da mata atlântica. Dentro de um apartamento, nos últimos andares do Edifício e Galeria Tijucas, móveis refinados e de grande valor simbólico constroem o local, além disso, centenas de anjinhos de porcelana, corujinhas de pano, lembrancinhas de madeira e infinitos outros objetos que parecem se fundir. No entanto, algo se destaca.

Quando entrei na sala do apartamento, ignorei todas as dezenas de quinquilharias que pudessem me chamar a atenção e fixei o olhar em um canto do ambiente: o verde. Mas você deve ainda estar confuso ao perguntar que diabos de verde é esse, tão mencionado e ainda

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não explicado. Pois bem, respondo-lhe dizendo para que tenhas paciência, pois o canto verdejante será desbravado em detalhes ao longo dessa história, sendo esse o centro dela.

Em meio a discos de vinil, garrafas de whisky, rádios antigos, taças de cristal e, novamente, diversos bonecos de coruja, há vida sobre o concreto. Em um canto – que quase ocupa todo espaço – da sala, entro e deparo-me com parte de uma obra: a natureza. Curitiba; bairro centro; Rua XV de Novembro; Boca Maldita; Edifício e Galeria Tijucas: nele, mora um pedaço da Mãe Terra, um pedaço de Gaia.

Antes mesmo de observar as peculiaridades – que não são poucas – daquele apartamento que entrei, a natureza, o vento que batia fortemente sobre as folhagens, as grades de ferros que encobriam as janelas e o barulho das folhas, chamaram minha atenção.

Contradizendo uma parábola do catolicismo, que explica que não há como germinar plantas sobre as pedras, insisto que há. Presenciei que nasce vida sobre cimento e tijolos. Um pedaço da Mata Atlântica – que contem desde simples samambaias até folhagens raríssimas da Amazônia – bem como uma terra fértil e muito bem adubada.

Ao final de um dos corredores do Edifício Tijucas, quando toquei a campainha e abriram a porta, fixei meus olhos e mente e deixei de lado todos os questionamentos que havia feito anteriormente, os quais seriam realizados ao proprietário daquela “vida” que se estendia pela sala de estar do apartamento. “A primeira impressão sempre é a que fica”: comprovei a afirmação. A primeira impressão registrada é que daquele ambiente eu não esperaria mais nada além de

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milhares de outras coisas. *** Gostaria de voltar à parte em que tocava a campainha.

A partir do momento em que toquei os dedos no botão, longos segundos se passaram. Até mesmo achei que havia ausência de moradores ali. Quase partindo, abrem a porta.

– Oi, bom dia. A dona Rita está?

Antes mesmo que me respondesse – menciono aqui que estava acompanhada de dona Caetana, mulher querida e atenciosa, que me levou até o local para que o conhecesse – a senhora que me acompanhava interrompe: – Eu vim apresentar essa moça bonita pra dona Rita.

Ela quer fazer uma entrevista.

– Lamento. Ela está dormindo, podem voltar outro dia? – disse uma mulher, baixa e de cabelos curtos, parecia assustada.

Já estava eu acenando positivamente com a cabeça e agradecendo a atenção, quando...

– Leoni, a gente sabe que ela está acordada. Nós vamos entrar, somos de casa!

Aos fundos, uma voz rouca e baixa: – Deixa entrar, Leoni!

Entramos.

Nesse instante, encaixe toda a descrição que fiz anteriormente, a qual fui surpreendida pelo momento que vi aquele espaço peculiar.

Então, logo após os ligeiros segundos que me fizeram fixar os olhos àquela mata fechada, entrei nos demais cômodos da casa com muita cautela, já que estava esperando surpresas a cada passo que desse.

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Afinal, havia uma Mata Atlântica na sala, o que não é tão comum quanto se parece.

– Bom dia. A senhora é a dona Rita?

– Sim senhora, sou eu mesma. Em pele e osso.

Ainda um pouco tímida, elaborei um roteiro mental de perguntas que poderiam me fazer chegar à descoberta de quem era a “dona Rita”. Entretanto, ao primeiro passo que dei em seu espaço físico, lembrei-me de todos os ensinamentos jornalísticos que tive durante a faculdade, quando diziam: “muitas vezes, a boa história vem de um bate papo que parece ser entre amigos, não de um gravador e uma caneta”. Levei isso como ensinamento.

A proprietária daquele espaço era Rita Aparecida Joslin, uma doce senhora de quase 90 anos. Quarenta desses, só de Tijucas. Sentada em uma velha cama, coberta por pelos de gatos – os quais também darei destaque –, Rita me recebeu sorridente. Cigarro entre os dedos, copo de whisky na mão esquerda, a televisão ligada em alto volume e uma imensa janela que, segundo ela, “faça chuva, faça sol, faça vento, faça tempestade, está sempre aberta”.

– Você bebe minha filha? – respondi que sim – Leoni, traz cerveja pra moça – disse Rita.

Previ que o papo ia ser longo. *** No século XIX, a convite de Dom Pedro II, Ernest Albert Joslin e sua família imigraram para o Brasil no processo de construção de estradas de ferro. O país vivia o início do descobrimento da tecnologia e das transformações do homem moderno. A cidade da Lapa (PR) foi o destino da família Joslin: uma fazenda em

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um recanto nitidamente afastado de qualquer tipo de civilização, que não dispunha de fáceis meios de chegada até o local, mas que a família, incrivelmente, recebia – mesmo com atraso – o jornal inglês The Times. O avô de Rita Joslin morava nessa casa, que atualmente é um memorial da cidade da Lapa: a “Casa do Cavalo Baio”.

Rita, filha única, nasceu no interior da Lapa aos cuidados de sua mãe e seu pai. Incentivada principalmente pela mãe a leitura e aos estudos, foi uma moça que aprendeu a buscar seus espaços, mesmo que parecessem intransponíveis.

Cursou o ginásio na cidade em que nasceu, mas quando chegou o momento de avançar com seus estudos, aos 18 anos, houve a barreira da família. Como deixar a filha única partir?

Quando soube que Rita havia saído de casa quando atingiu a maioridade, mesmo com dificuldades, observei um espírito rebelde e determinado.

– Rebelde não. Dona do meu próprio nariz. Arrumei as malas e “mãe, to indo”!

E foi.

Aqui em Curitiba manteve-se casada por 13 anos com o homem com quem teve duas filhas. Uma delas, merece até uma atenção especial em meio ao conto dessa história, a outra – segundo Rita – “ficou louca”.

– Meu ex-marido foi um dos maiores bandidos do Paraná. Ele foi morar no Mato Grosso. Minha filha era apaixonada pelo pai e quando soube quem ele era, ela ficou “biruta”. Ao invés de ficar, foi embora com ele.

Nunca mais a vi. Quanto ao meu ex-marido, eu nunca o amei nem ao menos o desejei – relata.

“Ritinha”, como é chamada pelos familiares – e como vou ousar chama-la aqui também –, tem como filha “a

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maior advogada ambientalista do Brasil”, segundo a mãe: Maude Nancy, ou somente Maude. Ela é daquelas filhas que escolheram a liberdade feminina, vivenciando a vida da forma que lhe convém. Casada algumas vezes, tem um “filho maravilhoso e inteligente” – segundo a vó coruja. Já morou em São Paulo, Londrina, Amazônia e no Parque Nacional de Ilha Grande, onde trabalhou como diretora geral por quase 10 anos. Foi sindicalista junto com o presidente Lula e atuou bravamente contra a Ditadura Militar, sendo perseguida em algumas vezes.

Sua inteligência e boa memória admiraram-me e, posso dizer aqui que, o bate-papo com ela foi um dos mais intensos que tive.

Política, meio ambiente, Partido dos Trabalhadores, biodiversidade, aventuras na floresta, Ditadura Militar, Tijucas e dona Rita foram alguns dos assuntos de nossa conversa, protegida por uma noite fria e tempestuosa.

Quando falamos de dona Rita, percebi, de forma muito serena, a intensidade do amor de Maude pela mãe.

– Eu não sei como teria levado minha vida sem a mãe. Ela já até deslocou a omoplata em consequência de cuidar do meu filho, que era terrível. A mãe é a minha âncora.

Das vezes em que conversei com Rita, em todas ela citou sua filha, afirmando com muito orgulho seus feitos profissionais, principalmente. Sob a máquina de costura que sua mãe trabalhava, Rita sempre levava consigo os livros. Quando pequena, trancava-se no quarto e deliciava-se com contos e romances estrangeiros. Muito estudiosa, assim como Ritinha, Maude herdou da mãe esse costume.

– Não consigo dormir sem ler antes. É um hábito e uma paixão. Desde a temática do meio ambiente à

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natureza; das religiões arcaicas à política. Amo o prazer da leitura.

Neta de um conservador, Maude lia em voz alta e encantava-se com a força das palavras as quais pronunciava. Em uma das diversas vezes, conta que lia sobre astronomia, a qual explicava que a Terra girava em torno do Sol. – Tire os livros dessa criança! Ela está cometendo uma heresia. Todo mundo sabe que é o Sol que gira em torno da Terra! – disse o avô de Maude. *** Além da apreciação que tive pelo verde intenso de seu jardim suspenso, outro aspecto mais do que peculiar foram os animais que habitavam o apartamento.

Pássaros e gatos faziam do local uma biodiversidade.

Fauna e flora, juntas, no alto do Edifício Tijucas. Aquele era o apartamento de Dona Rita, a qual devo dar o nome aqui de Rita dos Pássaros – como é comumente chamada pelos moradores do prédio. Ao ser indagada como era morar sozinha em meio ao centro curitibano, logo me interrompeu, dizendo que não morava sozinha.

– Tenho o Mancha, a Fê e o Sabují (seus gatos).

Também tenho minhas plantas e meus pássaros. Eles têm vida como eu, portanto, não moro sozinha. Ao propósito, Mancha, você cumprimentou a moça? – pergunta Rita a um de seus gatos.

O amor pela natureza veio da infância. Criada sobre cavalos, potreiros e pomares, Rita dos Pássaros desenvolveu o dom do cuidado. Cuidado esse que fora cada vez mais aflorado ao longo de sua vida dentro do Tijucas. Mesmo habitando um imponente apartamento na região central de Curitiba, Rita foi responsável pelo

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cuidado de cerca de 50 pássaros que sofreram ou foram retirados de seus habitats de forma irregular.

A Sociedade Protetora dos Animais foi o órgão que solicitou a dona Rita o cuidado e atenção aos pássaros.

– Nessa época, cuidei de todos como se fossem meus filhos. Eu tinha até uma águia e uma coruja. Aliás, como me arrependo de ter entregue aquela coruja. Ela foi uma grande amiga.

Os pássaros que ainda estão no apartamento tomam boa parte da casa. No lugar de um quarto, um viveiro de plantas e animais. Os gatos nunca foram somente animais de estimação, mas amigos e cúmplices. As plantas, deixaram de, apenas, enfeitar a casa e os pássaros fazem mais do que embelezar o local. Todos eles são parte da vida e história de Rita. Aliás, eles formam um pouco de sua essência e personalidade. *** Quando falo de personalidade, simplicidade e mistério descrevem Rita. Ainda na primeira visita, acompanhada de dona Caetana, amiga e vizinha há mais de 40 anos, encantei-me ao ver as duas “comadres” trocando fofocas e relembrando histórias que vivenciaram ao longo da vida no edifício.

– A Caetana aqui era síndica, eu era sua auxiliar. Uma vez quiseram denunciar ela sem provas e nós fomos à delegacia, lá eu disse: “Se quiserem prender a Caetana, terão de me prender, pois sou sua cúmplice em tudo”. O Tijucas foi o mediador da amizade, o responsável.

Ritinha contou-me de fatos inusitados e trágicos que ocorreram ao longo desses 40 anos de Tijucas. Entre suicídios e brigas; escândalos e momentos de prazer.

Quando falamos sobre o Tijucas, sua feição denunciou

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algumas características de sua personalidade – perceptíveis em algumas conversas e convivências, é claro: a simplicidade em ver as coisas e o realismo.

Sobre os suicídios ocorridos no Edifício, um deles chamou-me a atenção. Não apenas pelo ato em si, mas pela forma em que Rita contou-me o acontecimento: chegou em casa, abriu a garrafa de um bom whisky importado, acendeu um cigarro, chamou seu gato Mancha e sentou-se ao lado da janela para apreciar o trabalho dos Bombeiros na retirada do corpo da moça, que havia se jogado.

– Acho que ela se cansou da vida – disse.

O cigarro e a bebida também fazem parte de Rita, e isso não é algo dito por mim.

– O médico falou para eu não parar com o uso, apenas diminuir. O cigarro já faz parte de mim. Se eu parar de fumar eu morro, afinal fumo há mais de 40 anos.

Nunca antes ouvi algo parecido. Se parar de fumar é pior? Tudo bem. Perguntei, então, se ainda mais jovem ela pensou em largar a nicotina.

– Não. Por quê? Posso comprar. Tenho dinheiro. Pra quê deixar ele de lado?

Questionei também se apenas cigarros faziam parte de seu consumo, mas sem que nem ao mesmo finalizasse minha frase, disparou: – Maconha eu nunca fumei, mas estou pretendendo.

– Ela está se preparando para “maconhar” – disse dona Caetana, vizinha de Rita que estava a visita-la.

Lúcida e muito coerente em sua fala, diz que deve isso a bebida. Ainda com três anos de idade, sua mãe misturava água e vinho e entregava a Rita. Acrescenta ainda que sem sua cervejinha e sem seu vinho diário,

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ela não vive.

Frágil fisicamente, sofre de doenças que degeneram os ossos e a deixam de cama, sem que possa muito se movimentar. Devida essa impossibilidade, não sai muito de casa, ficando apenas com seus fiéis companheiros, seu apartamento, sua filha e neto nos finais de semana e sua cuidadora diária, Nancy. Além disso, diz que nunca conheceu – e nem quis conhecer – muitas pessoas dentro do prédio, apenas alguns bons e velhos vizinhos, que hora ou outra a visitam.

– O meu mundo acaba na porta, mas ele é enorme aqui dentro. – disse-me, referindo-se a infinidade de seu apartamento. *** De todas as vezes que fui recebida, quem me abriu a porta fora uma simpática e simples mulher. Olhos pequenos e cabelos curtos; jeito simples de se vestir.

Nancy é a filha que a vida entregou a Rita.

– Eu não tenho a senha do meu cartão, quem tem é ela – conta Rita.

Com a indicação de uma prima que era zeladora do Edifício Tijucas, Nancy iniciou seu trabalho como diarista de Rita há 32 anos. Hoje, segundo Rita, já não é mais sua diarista, mas sua cuidadora, amiga e cúmplice.

Também uma filha.

Jamais brigaram ou tiveram qualquer discussão.

Afinal, para Nancy, Ritinha é muito compreensiva e amigável, não há como brigar com ela.

Perguntei se Nancy também cozinhava para Ritinha, mas surpreendentemente, uma resposta nada comum foi pronunciada por ambas: Rita não come “comida”.

Feijão, massas e carnes não fazem parte do cardápio.

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Em 87 anos de vida, jamais colocou um pedaço de carne vermelha em sua boca. Tem repúdio, asco, nojo e aversão a alimentos.

– Não suporto o cheiro da comida. A única coisa que como, que geralmente as pessoas normais comem, é arroz – explica.

Nesse ponto, encontrou a cuidadora certa. Nancy prefere frutas a alimentos preparados. Na hora do almoço, um frango grelhado e uma salada de tomate são suficientes. Às vezes uma fruta basta. Se tivessem me contado isso sem que tivesse visto Nancy, imaginaria uma senhora magra e em estado anêmico, no entanto, é uma mulher muito bonita, com a pele saudável – mesmo com o pesar da idade – e os cabelos muito bem cuidados.

Em uma das vezes que fui ao apartamento, após me despedir de dona Rita, fui conversar com sua amiga, cuidadora e cúmplice em outro cômodo, com mais privacidade. Já havia percebido o amor de filha que rodeava Nancy, até que lágrimas caíram de seus olhos e o depoimento deu lugar ao silencio de um choro lento.

Nesse instante percebi: dona Rita tem 87 anos.

Uma vida intensa, de muito trabalho e estudo – ora, não citei anteriormente, mas Rita tem três graduações: Ciências Contábeis; Direito com ênfase em Legislação Trabalhista e Psicologia – e tem como forma de vida a permanência em um apartamento repleto de plantas, animais e uma velha amiga. Essa é sua vida hoje. Me questionei mentalmente, por alguns instantes, como alguém que viveu a plenitude da liberdade, da vida e das experiências ao longo de quase um século pode viver hoje “acabando seu mundo naquela porta”.

Nancy, ao registrar seu depoimento com lágrimas

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de alegria e tristeza, deixa claro quem é Dona Rita, ou Ritinha, ou Rita dos Pássaros: – Eu cuido tão bem dela porque quero que ela dure pra sempre. Não quero que ela vá embora. Outro dia disse à ela: “Ritinha, não me deixe senão eu vou ficar muito triste!” – relembra, muito emocionada.

Feminista desde cedo, mesmo que o termo não tenha saído de sua boca, Rita viveu em prol de sua liberdade. Mulher – e ainda jovem –, enfrentava o pai para poder estudar e ter conhecimento sobre o mundo.

Já moça, casada sem que houvesse amor, “deu um pé na bunda” e foi seguir sua vida; ser feliz. Felicidade essa que tentou encontrar no Tijucas: em meio as folhas, gatos, pássaros, livros, música clássica e CDs de Francisco Petroneo.

– O Tijucas serviu como meu refúgio. Eu não tinha mais nada e estava sozinha no mundo. Sem estudos, pois os interrompi por insistência do marido, e deprimida pela partida de minha filha, resolvi morar aqui.

Hoje, Rita não se olha mais no espelho. Sabe quem é, mas não sabe como o tempo a deixou. Entre penas, pelos, rações felinas, cigarros, álcool e páginas de livros empoeirados, encontra-se Rita. Serena e fria, da forma como o tempo a deixou.

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