
8 minute read
Branca Dias dos novos tempos
from Ocupação Dias Gomes
Herege, subversiva, desobediente, uma ameaça às normas de conduta... É dessa forma que Branca Dias era vista pelos inquisidores no passado. Descendente de judeus convertidos, a jovem teve a vida virada do avesso numa época em que fazer as próprias escolhas não era permitido. Hoje, Branca é uma mulher forte que tem consciência de tudo o que representa no mundo, principalmente no que diz respeito aos direitos das mulheres.
Com uma voz firme, mas sem perder a doçura que sempre lhe foi característica, ela relembrou as perseguições sofridas por sua família, falou sobre o que sentiu ao ser condenada à morte na fogueira e destacou situações atuais que se assemelham àquelas vividas por ela — e que prefere esquecer.
Dias chegou para esta entrevista sem amarras e fez questão de deixar clara a sua indignação com as desigualdades e com o sistema, que ainda oprime e exclui. Inclusive, ela destacou a importância da educação, afirmando que ler é um ato político e que o conhecimento liberta e "tira as amarras da ignorância, do preconceito e da injustiça" .
Em diversos momentos, ela pausou suas falas e direcionou o olhar para o alto, tentando engolir o choro, como se relembrasse algo muito doloroso. Com a voz embargada, falou das muitas Brancas
Dias que vivem atualmente na luta por liberdade e para ter o mínimo para seguir dignamente. Ali, durante o bate-papo, foi possível ver uma mulher que carregava a dor de ter tido suas intenções deturpadas, mas que, mesmo à beira da fogueira, seguiu questionando e defendendo os seus ideais. Confira a entrevista na íntegra.
PARA COMEÇAR, VAMOS FALAR UM POUCO SOBRE SUA ORIGEM. SABEMOS QUE, NAQUELA ÉPOCA, OS INQUISIDORES ALARDEAVAM QUE PRATICAR O JUDAÍSMO ÀS ESCONDIDAS E SIMULAR O CATOLICISMO ERA INACEITÁVEL, O QUE GEROU MUITAS PERSEGUIÇÕES. COMO VOCÊ E A SUA FAMÍLIA, QUE ERAM DE ORIGEM JUDAICA, LIDAVAM COM ISSO?
Era muito difícil, principalmente para o meu pai e o meu avô, que sofreram na carne toda essa questão da exclusão. Então, lidar com isso é difícil, vem vindo de gerações passadas até chegar às novas, que estão vivenciando a mesma coisa. Muda o formato, mas o conteúdo é o mesmo, as mesmas perseguições, as mesmas limitações que são impostas. Então, tem sido muito difícil ao longo dos anos, porque vai passando de geração em geração aquele viés de sofrimento.
VOCÊ ACABOU SENDO ACUSADA DE PRATICAR "CRIME DE JUDAÍSMO" E HERESIA, SENDO DENUNCIADA AO TRIBUNAL DA INQUISIÇÃO E RECEBENDO A PENA MÁXIMA: A MORTE NA FOGUEIRA. O QUE SENTIU AO SABER DESSA CONDENAÇÃO?
Morri já antes. Foi um processo de morte lenta, não no ato, não no momento. No momento da sentença final eu já estava morta, porque foi um processo longo, um processo que eu posso dizer até de humilhação. Então, quando ouvi a sentença, já estava morta, porque já haviam matado os meus sonhos, as minhas esperanças, toda a projeção que eu tinha de um futuro de casamento, de filhos, de constituir uma família, de manter a minha fé.
VOCÊ SALVOU O PADRE BERNARDO DA MORTE POR AFOGAMENTO, MAS ESSE MESMO HOMEM FOI O RESPONSÁVEL PELA SUA CONDENAÇÃO. ELE A ASSEDIOU DE FORMA VELADA, APROVEITOU-SE DE SUA AMIZADE E PUREZA, ALÉM DE DISTORCER SUAS PALAVRAS. ESSE TIPO DE SITUAÇÃO AINDA PARECE ATUAL PARA VOCÊ?
Extremamente atual. Ao longo de todos os séculos de que a gente tem notícia, a mulher tem sido jogada de lado, menosprezada, e os assédios sempre aconteceram. Agora a gente fala mais sobre eles, mas antigamente passávamos por situações de constrangimento, de assédio moral e sexual, e nem tínhamos noção do que era isso. Ao longo do tempo, foram sendo expostos vários e vários casos, e aí você para e pensa: "Nossa, naquele momento foi um assédio moral" , "Foi um assédio sexual e eu nem me dei conta". Muitas vezes, a gente leva uma culpa dentro da gente, sabe? "Será que fiz alguma coisa errada?" , "Será que fiz alguma coisa que não deveria fazer?" .
Então, no caso do padre, após eu ter feito um ato até heroico, de ter arriscado a minha vida para salvá-lo, ele se aproveitou do quê? Da minha posição de mulher, da minha ingenuidade, do poder que ele tinha — porque tinha uma posição de destaque na sociedade —, porque era um padre. E eu era o quê? "Apenas" mais uma mulher. Então, os casos de assédio são recorrentes e são diários em qualquer ambiente. Na família acontece isso, no ambiente profissional acontece isso, em todas as esferas da sociedade.
O SANTO OFÍCIO PUNIA AQUELES QUE, PARA ELES, APRESENTAVAM "DESVIOS NAS NORMAS DE CONDUTA" E JUSTIFICAVAM QUE TAL ATO ERA UMA FORMA DE DEFENDER A FÉ CRISTÃ. NÃO SE TINHA LIBERDADE DE, POR EXEMPLO, ESCOLHER QUAL RELIGIÃO SEGUIR E FALAR ABERTAMENTE SOBRE ELA. HOJE, VOCÊ SE CONSIDERA TOTALMENTE LIVRE OU AINDA EXISTEM QUESTÕES QUE A INCOMODAM?
Eu penso que, na sociedade em que a gente vive hoje, ninguém é livre. Existe uma propaganda, um slogan de liberdade, mas não somos livres se não temos condições de moradia, de comer, de acesso ao estudo, à saúde. A gente não é livre! A pessoa livre tem liberdade de ir e vir, ela tem possibilidade de escolher o que ela quer. A religião também aprisiona, muitas aprisionam os seus fiéis em dogmas, em preconceitos, em reprodução de preconceito que vem de épocas muito antigas, quando não se atualizam as narrativas das religiões. Algumas delas são mais marginalizadas que outras, assim como o judaísmo e seus crentes, que vêm de longa data sendo marginalizados, e outras religiões também.
Posso dizer, ainda, que as religiões de matriz africana são sistematicamente jogadas de lado e ao preconceito, e muitas das pessoas que professam esse tipo de fé são marginalizadas. Então, juntam-se vários preconceitos: o econômico, o racial e o religioso, e vai se somando. O que sinto hoje? Questiono a liberdade. O dinheiro traz liberdade, mas quem tem o dinheiro?
MESMO SENDO INOCENTE, VOCÊ TEVE SEU FIM DECRETADO, FOI CONDENADA E JULGADA DE FORMA TERRÍVEL. ESTAMOS EM 2022 E, MESMO EM ÉPOCAS TÃO DISTINTAS, VOCÊ AINDA SE DEPARA COM SITUAÇÕES DE INJUSTIÇA QUE LEMBRAM O QUE VIVEU NO PASSADO?
Isso acontece todos os dias. Aconteceu comigo, antes de mim já havia acontecido com outras pessoas, principalmente com mulheres, queimadas na fogueira, julgadas como bruxas, como isso e como aquilo. Então, ao longo dos séculos, as pessoas vêm sendo desrespeitadas, os direitos humanos parecem uma teoria, mas quem tem esses direitos humanos? Quem é que julga? E a partir de que mentalidade acontecem os julgamentos? Atualmente, todos os dias, digo e repito, todos os dias os direitos humanos são desrespeitados mundo afora na sociedade em que a gente vive, aqui e agora, em todo o mundo.
Nós temos notícias de mortes de pessoas diariamente na China, na Europa, no Ocidente, no Oriente, na África, nas Américas — isso acontece sistematicamente. Num país como o Brasil, temos vários casos de várias mulheres, e a gente continua dizendo "Eu estou presente", mas as pessoas têm sido mortas. A Constituição rege que todo mundo tem os mesmos direitos perante a lei. Será que tem? Eu digo que não, eu atesto que não, comigo aconteceu isso injustamente, e com outras pessoas a gente vê acontecendo também. É só você sair em defesa dos povos indígenas, dos quilombolas, dos moradores em situação de rua, das pessoas que moram em favelas, você vai ser atacada.
VOCÊ SEMPRE FOI ADEPTA DA LEITURA, NÃO É? INCLUSIVE ISSO CONTRIBUIU PARA QUE VOCÊ ROMPESSE BARREIRAS E QUESTIONASSE O SISTEMA, TENDO O PODER DE ARGUMENTAR COM OS INQUISIDORES. POR QUE É IMPORTANTE TER CONHECIMENTO E POR QUE ESSE ACESSO AO SABER ERA TÃO CONDENADO NO PASSADO, PRINCIPALMENTE QUANDO SE TRATAVA DE MULHERES?
O conhecimento liberta. Ele tira de você as amarras da ignorância, do preconceito, da injustiça. Ler é um ato político, pois através da leitura eu posso refletir, ter fluição estética, conseguir entender o que o sistema está armando para a gente. Porque o sistema, seja ele capitalista ou não, quer coordenar, quer controlar as pessoas. Hoje a gente vive globalmente, e mesmo os países que dizem não ser capitalistas regem pela cartilha do capitalismo, do liberal, que faz com que eu seja prisioneira da minha ignorância.
Se promoverem a educação e o conhecimento, darão liberdade para as pessoas refletirem, e isso não é prioridade para eles. A educação não é prioridade nos países, não é! A leitura não é tão alardeada como outras coisas — a música, a dança e o futebol, por exemplo. Fala-se 24 horas desses assuntos, propaga-se o desconhecimento, dancinhas e um monte de postagens que não levam a nada! Mas não se propaga em larga escala que a leitura, que o conhecimento
pode libertar você dos seus próprios preconceitos, pode abrir o seu campo de visão, pode expandir. Isso não é dito.
Então, a leitura fez comigo o quê? Me fez ver mais longe, me fez olhar as pessoas, me fez entender as pessoas, tentar respeitar toda e qualquer pessoa à revelia de posição política, de questão econômica, à revelia disso. Então, eu repito: o conhecimento salva!
POR FIM, QUEM É A BRANCA DIAS NA ATUALIDADE?
Ela é as muitas mulheres deste país que lutam todos os dias para educar os filhos, que estão sozinhas, que são mãe solo, que têm que levantar de manhã e ir atrás de um prato de comida para os filhos, que não têm imunidade social, que estão sendo exploradas pelo sistema capitalista. Ela é, principalmente, as mulheres negras, que não são respeitadas como deveriam. A maioria delas sem possibilidade de ter um emprego melhor, vendo os filhos ser assassinados pelo Estado diariamente, tão somente porque são pretos. É uma necropolítica que quer exterminar os corpos negros que não têm utilidade para o sistema capitalista, que fazem das prisões novas senzalas. Só que alguém está ganhando dinheiro com a miséria, porque no sistema capitalista as coisas só acontecem porque geram lucro. Então, a Branca Dias de hoje é a mulher negra!
Personagem: Branca Dias Aparece na obra: "O Santo Inquérito" (1966)
Lena Roque interpretou Branca Dias para esta entrevista. Formada em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), é atriz, diretora teatral, dramaturga e roteirista. Atuou por dez anos em "Louca de amor", com texto e codireção de sua autoria. Como atriz, também participou de
produções no cinema, na televisão e no teatro, onde atuou em 22 espetáculos. Produz e apresenta o "Almerindas podcast", sobre literatura feminina negra. Dirigiu "Bonita Lampião", contemplado na 10ª Edição do Prêmio Zé Renato. É atriz da série "Sentença", do Amazon Prime.