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Zé do Burro, herói trágico
from Ocupação Dias Gomes
Há quem diga que Zé do Burro é um homem ingênuo, que fez uma promessa para salvar seu burro e dessa promessa, por teimosia, não saiu vivo. A tragédia de Zé do Burro começou com o adoecimento do burro Nicolau, salvo por Iansã/Santa Bárbara. Foi então que o herói trágico carregou uma cruz nas costas por 7 léguas até a Igreja de Santa Bárbara em Salvador, na Bahia.
A simplicidade do homem do sertão se choca, principalmente, com o dogmatismo da Igreja e do Padre Olavo, mas também com outros tipos da grande cidade — o repórter sensacionalista, o malandro Bonitão, os comerciantes — e, até mesmo, com Rosa, sua esposa. A saga do herói, que se torna mito, só se conclui com ele carregado na cruz, pelo povo, Igreja adentro.
Se naquela época Zé repetia "Ninguém ainda me entendeu...", desta vez ele diz com a voz mansa, mas claramente: vocês não entenderam nada.
ZÉ, ANTES DE TUDO, COMO VAI A SAÚDE DO SEU BURRO NICOLAU? ESTÁ CURADO DEPOIS DA SUA PROMESSA?
Bom... O Nicolau se salvou de uma hora pra outra. Nicolau se salvou. E foi meio que intercessão de Santa Bárbara, acho que o senhor
sabe disso. Nicolau também é nome de santo. São Nicolau protege as mãe das criança, São Nicolau manda as criança pra escola. Esse é o santo. Manda as criança lá pra aprender nos livro das letra. Pra isso que serve São Nicolau, manda pra escola para estudar, buscar conhecimento de livro.
Tem o povo também que não lê, feito eu, que não conheço o mapa das letra. Eu sou justamente o que o povo chama de burro, feito Nicolau. Nicolau, burro. Mas não foi arriba dum povo que Jesus Cristo mais Virgem Maria andaram e viajaram por aí. Que diz que até aquela manchinha que tem em cima da cacunda do jumento foi o menino Jesus que mijou em cima e deixou aquela marca. Foi Luiz Gonzaga que contou essa história para nós, o rei do baião.
Agora... Quando eu contei pro padre a promessa que tinha sido feita prum burro, ele virou e disse que burro não era gente, que não era pra colocar nome de santo em bicho. Pois hoje, quando eu passo lá pelas estrada indo pro sertão, pro agreste, e viajando naquelas cobra de cimento da estrada, o que mais nós vê é burro nas beira. No mais você só vê motocicleta, ninguém mais anda em cima de burro não. Eles vão e deixam os burro pelas lateral das estrada. E aí eu fico pensando que o padre não entendeu foi nada, porque esses burro somo nós. Esses burro lá da beira da estrada somo nós: o povo que não tem trabalho, o povo que não tem terra. Tamo lá jogado na beira das estrada. Mas Nicolau tá bem, do mesmo jeito que eu tô bem na beira das estrada.
VOCÊ É UM CARA SIMPLES E DO POVO, QUE NÃO QUIS SABER DE CONFUSÃO NEM DE ESPETÁCULO DIANTE DE SUA PROMESSA PARA SALVAR SEU BURRO. O QUE VOCÊ ACHA DE TODA A ESPETACULARIZAÇÃO QUE SE CRIA HOJE EM DIA EM QUEM SÓ PENSA EM SE PROMOVER DIANTE DE QUALQUER COISA?
Esse povo só quer consumir. Só quer consumir a carne da gente, só quer beber o sangue da gente. E a gente não é Jesus Cristo. Mas eles querem tudo, tudo que eles puder pegar e consumir eles
consomem. Feito peixe grande. Um peixe grande que pra matar a fome precisa comer um monte de peixe pequeno. Porque, se fosse ao contrário, ainda tava de bom tamanho, né? Se fosse um monte pequeno comendo um peixe grande só, era menos motivo de horror. Mas não é assim, não.
Todo esse povo... Vê todo esse povo que anda pela rua, pelas calçada, subindo e descendo, entrando e saindo de loja, tudo isso é esse povo achando como e onde comer. Comer um ao outro. É isso. Você vê aí na televisão, vê aí no jornal, vê aí nessas rede social que o povo usa agora. Morre um, quanta gente vai comer o pobre coitado que morreu? E é jornalista que come, é programa de TV que come o pobre coitado, e é o advogado que come, e é o policial que come o pobre coitado. É o pobre do homem que vai vender o caixão. Todo mundo comendo.
Agora, ia ser menos esquisito se esse povo ainda só comesse quem tá morto, o povo come quem tá vivo também. Come a gente todo dia, come a gente vivo, pedaço por pedaço. É isso que acontece. E pior: o que são mais comido somo nós, somo pobre. E a gente é comido todo dia por eles. É comido na televisão, é comido na rede social... E o povo vai se alimentando desse espetáculo de comilança. Mas isso aqui não é meu, não. Isso aqui é de Padre Antônio Vieira.
ZÉ, DEPOIS DE TODA AQUELA CONFUSÃO COM O PADRE OLAVO, DA IGREJA DE SANTA BÁRBARA EM SALVADOR, VOCÊ AINDA É UMA PESSOA RELIGIOSA? UM HOMEM PODE ABALAR SUA FÉ EM DEUS?
Rapaz... O padre morre igual eu. E a fé fica. Como é que a gente vai viver sem fé? Até eu, pra escutar a sua frase até o fim, preciso ter fé de que ela vai fazer algum sentido, significar alguma coisa pra mim. Sem fé a gente não vive. Fé não é uma coisa grande, que você precisa ter pra conseguir um milagre. Fé é coisa de todo dia, é comida de todo dia.
Fé é o pão que você tá fazendo e você tem fé que ele vai crescer, e que você vai poder se alimentar dele. Fé é mandar seu filho pra escola tendo fé que alguma coisa melhor vai acontecer na vida dele. Fé não é grande, fé é coisa pequenininha. Milagre também é coisa pequena. A gente pede é coisa pequena. Pede é pro burro. Pede força pra escorraçar uma pessoa que tá fazendo raiva em você. A gente pede é essas coisa, coisa de todo dia.
Então o padre vai embora. Agora, se eu quiser ficar, tem que ter fé. Em Jesus Cristo, porque eu sou beato. Jesus Cristo primeiramente, Nossa Senhora, Deus Pai Eterno. E depois os santos, que tão mais perto da gente.
TODA A CONFUSÃO COM O PADRE OLAVO FOI PORQUE ELE NÃO ACEITOU SUA PROMESSA A IANSÃ. MAS QUEM É SEU DEUS? É UM, É OUTRO? O QUE IMPORTA É A RELIGIÃO OU A FÉ QUE SE TEM?
Eu sou beato. A religião é importante pra mim. O que seria de um morto sem alguém que pusesse a vela dele depois de morrer? Segurando a mão dele com a vela acesa quando ele morrer? Religião é importante. Acho uma coisa bonita esses santos aí, esses santos na parede.
Uma vez veio um irmão aqui em casa, um irmão que queria me convencer a ir pra religião dele. E aí começou a pedir pra tirar todas as imagem de santo da minha casa, disse que aquilo tinha tudo diabo ali dentro. Achou diabo em tudo que é lugar, debaixo da cama, atrás da porta, dentro da geladeira. Aí eu tirei as imagem toda... Achei aquela parede branca tão feia. Falei: pode ter fé na feiura?
Eu gosto de fé nas coisa bonita e acho uma beleza as imagem dos santos. Sou beato, eu gosto da religião. Eu preciso da imagem do meu santo para ajoelhar em frente.
VOCÊ TAMBÉM CUMPRIU A PROMESSA DE DIVIDIR SUA TERRA LÁ NO INTERIOR DA BAHIA COM O POVO MAIS POBRE. HOJE AINDA VEMOS MUITOS TRABALHADORES SEM DIREITO A UM PEDAÇO JUSTO DE TERRA. O QUE VOCÊ ACHA QUE DEVE SER FEITO PARA DAR TERRA A QUEM A TERRA PERTENCE?
Rapaz, quem fez a terra? Foi Deus. Então, se a terra foi Deus quem fez, se é obra da criação, precisa de cada um ter seu pedaço de chão. Isso também não é meu, não, é de um poeta chamado Patativa do Assaré. Que essa terra é desmedida e é comum, o que só precisa é ser dividida um pouquinho pra cada um. Que faz pena ver sobre a terra o sangue humano correr, que é o grande que provoca a guerra pro pequeno morrer.
Aí fica desse jeito, assim: o mundo sempre em guerra, ambicioso, sanhudo. Todo mundo brigando por terra e a terra lá comendo tudo. Tem que dividir a terra se terra foi Deus quem fez. É coisa de Deus, sou eu que tô falando não.
POR FIM, ZÉ, O QUE VOCÊ TEM A DIZER PARA AS PESSOAS QUE AINDA PRATICAM ESSA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA? QUE TÊM MEDO DE UMA RELIGIÃO SÓ POR SER DIFERENTE DA SUA.
Esse povo não entendeu é nada da terra que eles tão vivendo. O que eu tenho de dizer é isso: vocês não entenderam nada. Quando eu falei pro Padre Olavo que Iansã era Santa Bárbara, todo mundo tava ali junto comigo. Iansã é Santa Bárbara, sim. Vai ter gente também — não é só padre — que não vai achar muito bom esse negócio de juntar. Vão falar que Iansã é uma coisa, Santa Bárbara é outra. Não é só padre que acha isso, não, tem muita gente que acha.
Aí vão falar que um povo inteiro tá errado e que quem tá certo é os professor de academia, os professor das filosofia, das sociologia. Quem fala se tá tudo igual é quem tá rezando, quem tá fazendo, quem tá frequentando. O padre e as teologia não entenderam nada, não entenderam nada do país que eles tão. Não entenderam nada
da fé que eles tão. Não entenderam nada de mim, da minha mãe, da minha vó.
Vai falar que tá todo mundo errado? Vai querer ensinar as fé dos outros? Porque tem gente que tá querendo ensinar, tem gente que gosta de ensinar. Nesse tempo de vocês, todo mundo tem alguma coisa pra ensinar. Ensina a cozinhar, a lavar, ensina como ser feliz, ensina como não ser feliz, ensina como criar os filho dos outro, como chamar os filho dos outro. O mundo devia tá uma beleza com tanto professor. O padre tava querendo ensinar pro povo o que é, mas o povo já disse o que é. O resto são as filosofia.
Personagem: Zé do Burro Aparece na obra: "O pagador de promessas" (teatro, 1959; cinema, 1962)
Rodrigo Mercadante interpretou Zé do Burro para esta entrevista. É músico, ator e diretor de teatro, formado pela Escola de Arte Dramática, ligada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (EAD/ECA/USP). É um dos fundadores da Cia. do Tijolo, coletivo de artistas com o qual desenvolve suas pesquisas há 12 anos. Integrou, durante 15 anos, o elenco do Teatro Ventoforte.