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Impactos da tecnologia digital na mensuração, monetização e participação cultural e criativa

MARCELO MILAN

RESUMO

O presente trabalho avalia as contribuições de Moreau, Navarrete, Rey e Sacco a partir do fio condutor da tecnologia digital. Moreau se concentra na mensuração do consumo criativo em condições de inexistência de preços monetários. Rey avalia como a economia criativa se utiliza do comércio eletrônico para circular bens e serviços. Navarrete considera como os museus e o patrimônio digital proporcionam insumos para novos produtos e para uma infraestrutura de conhecimento. Por fim, Sacco considera os limites da participação cultural e mostra as mudanças necessárias para uma democracia digital.

Introdu O

A tecnologia em geral e a tecnologia digital em particular têm proporcionado grandes desafios para as atividades culturais e criativas e para aquele(a)s que se ocupam em oferecer reflexões sobre elas. Os trabalhos aqui avaliados representam uma amostra importante dessas questões. Todos têm como ponto comum os impactos das novas tecnologias na criação, produção, circulação comercial, acesso ou participação e na mensuração daquelas atividades em que a tecnologia reduziu os custos monetários de reprodução ou acesso a zero. O objetivo desta avaliação é sintetizar e articular as contribuições, proporcionando um recorte coerente, ao mesmo tempo que tece alguns comentários críticos a respeito.

Para organizar esse enquadramento, este trabalho propõe dois blocos analíticos: um primeiro considerando os efeitos da tecnologia digital nas transações econômicas das atividades culturais e criativas, apontando para os pressupostos necessários para que as plataformas de comércio eletrônico facilitem uma maior circulação dos bens e serviços (Rey) e os problemas de valoração que se impõem à mensuração dessas transações quando não há preço monetário (Moreau). O segundo bloco considera a questão da participação cultural e como a tecnologia digital a modula, reproduzindo modelos elitistas pré-digitais (Sacco) ou proporcionando insumos para novos produtos e para a infraestrutura de conhecimento (Navarrete).

MONETIZAR OU NÃO MONETIZAR, EIS A QUESTÃO

A contribuição de Rey avalia o impacto da tecnologia na comercialização de bens e serviços criativos, principalmente nas plataformas de comércio eletrônico, com referências à economia criativa e exemplos do setor cultural. Contudo, ela menciona também como o uso das tecnologias digitais e das plataformas estimula a cocriação, a coprodução e práticas de consumo entre criadores e consumidores. Ainda, a adoção da tecnologia da informação pelas pequenas e médias empresas o uso das tecnologias digitais e das plataformas estimula a cocriação, a coprodução e práticas de consumo entre criadores e consumidores. embora facilite as trocas, superando a barreira da distância física e dos custos e tempo de transporte, a tecnologia digital também pode excluir consumidores. nem sempre a monetização é tecnicamente e, principalmente, economicamente possível.

(PMEs) permite personalizar produtos, almejar determinados perfis de consumidores e modelos de receita, além de gerenciar relações específicas com os clientes.

Rey mostra como a pandemia, por exemplo, levou as PMEs a se adaptarem à maior necessidade de efetuar transações via comércio eletrônico. A autora remete aqui à importância do omnicanal no varejo, com a convergência de diferentes modelos de negócios, formas de comércio e meios de pagamentos que conformam um ecossistema. Outro aspecto relacionado a esse ponto enfatizado por Rey é a resiliência do setor criativo, identificada pelo esforço para se adaptar às crises, principalmente por meio da tecnologia, com a criação de novas habilidades e capacidades. Essa adaptabilidade é essencial para a resiliência no longo prazo. A autora avalia que no Brasil, por exemplo, o comércio eletrônico contribuiu para a resiliência da economia criativa.

A plataformização proporciona outros benefícios, como uma maior visibilidade, embora as vantagens dependam do segmento criativo ou cultural. No setor editorial, por exemplo, é possível ter acesso rápido a produtos de nicho, há maior vida útil das publicações, e o gerenciamento de estoques cada vez maiores tem um baixo custo. Há, é claro, também críticas a esse fenômeno, como o acesso limitado às mídias e a perda de independência dos produtores e da pluralidade na mídia, além da influência dos proprietários das plataformas.

O cerne do trabalho de Rey remete especificamente à questão sobre qual parcela da produção cultural e criativa pode ser comercializada eletronicamente, isto é, negociada em plataformas digitais, com a tecnologia, neste caso, permitindo modificar não apenas a produção e a reprodução dos bens e serviços, mas também a sua distribuição. Para trabalhar essa contribuição em conjunto com o texto de Moreau, abordado a seguir, é importante notar que essa parcela de bens e serviços negociada eletronicamente assume a natureza de bens privados, que apresentam algumas características, como a rivalidade no consumo e a exclusão dos não pagantes via preço (é preciso pagar o preço informado para adquirir os produtos) (BENHAMOU, 2007; TOLILA, 2007).

Um problema destacado por Rey e que é familiar ao(à)s pesquisadore(a)s da economia da cultura e criativa é a reduzida disponibilidade de dados. E a literatura também não avança nessas questões. Apesar dos esforços de mensuração do comércio eletrônico ao redor do mundo e na América Latina, as estatísticas ainda não possuem recortes setoriais detalhados para identificar o peso da economia criativa. Rey aborda o indicador do MCC-ENET para mensurar o comércio eletrônico no Brasil, a partir do sistema central de classificação de produtos. As variáveis consideradas no indicador incluem o valor médio dos pedidos, o número de vendas do varejo eletrônico e a receita das vendas eletrônicas. Porém, esse indicador apresenta limitações, como a exclusão de agentes importantes no varejo, das transações internacionais e dos serviços de streaming. E há a dificuldade de enquadramento de alguns itens, como os produtos de crochê. Por fim, há o risco de os estabelecimentos reportarem vendas em estabelecimentos tradicionais e vendas virtuais, e preços ao comprador e preços ao produtor, com pouca diferenciação.

Como elemento crítico, cabe ressaltar que, embora facilite as trocas, superando a barreira da distância física e dos custos e tempo de transporte, a tecnologia digital também pode excluir consumidores, pois impõe uma condição de acesso aos equipamentos de conexão que a materializam, modificando os “pontos de venda”, e, crescentemente também, aos meios de pagamentos eletrônicos. Ou seja, a realização de transações no comércio eletrônico, digital ou analógico, em geral tem um elevado grau de inclusão tecnológica. E não resolve uma questão de fundo: a formação necessária para consumir bens e serviços culturais em suas diferentes modalidades de distribuição. A facilidade de acesso proporcionada pelas tecnologias digitais possibilita a aquisição de produtos com baixa qualidade cultural, o que possivelmente se reflete em um volume menor de transações comerciais de maior valor simbólico.

Com relação ao texto de Moreau, embora o título desta seção remeta a uma escolha, nem sempre a monetização é tecnicamente e, principalmente, economicamente possível. E, para que haja comércio de bens e serviços criativos, independentemente da modalidade desse comércio, é preciso que haja um preço monetário conhecido dos agentes. O comércio eletrônico abordado por Rey exige um conjunto de bens e serviços com valor monetário. Contudo, a contribuição de Moreau mostra que a economia criativa é muito ampla e inclui serviços sem preço monetário a ser pago diretamente pelo usuário ou consumidor, como Wikipédia e Facebook. Portanto, definidos os direitos de propriedade intelectual, surge a decisão de disponibilizar serviços sem pagamento pelos detentores do direito de distribuição (reprodução). Mas seriam esses serviços sem valor? Ou apenas sem preço monetário? Como incluí-los no Produto Interno Bruto (PIB) ou em outra métrica?

O trabalho de Moreau discute os problemas associados à mensuração do valor de bens e serviços criativos quando o seu custo monetário aos usuários é zero. Ou seja, eles têm valor de uso (são procurados), mas não têm preço (são consumidos sem desembolso monetário expressivo). Ele lista, então, dois métodos para avaliar o valor de uso dos bens e serviços sem preços monetários a partir da experiência dos consumidores ou usuários: preferências relevadas ou preferências declaradas (stated) por meio de valoração contingente.

O exercício de estimação do valor é geralmente hipotético, ou então lança mão dos métodos da economia experimental, como no caso do Facebook, com transações monetárias efetivas. Nesse experimento, o exercício tenta medir o quanto os usuários estariam dispostos a receber para ficar sem utilizar essa rede social por um mês. Os resultados mostram um intervalo com grande variabilidade, indo de US$ 1 até US$ 1.000, com valor mediano de US$ 48. Este seria, portanto, o valor mediano de uso de um mês de Facebook e que proporcionaria uma métrica diferente para o PIB, o PIB-B. Cabe notar que esse valor mediano representa um preço menor do que três pizzas tradicionais na cidade de Nova York, segundo a plataforma Slice.

O problema da mensuração surge com o imaterial, pois sua reprodução não exige custos significativos, monetários ou de tempo.

Moreau mostra que o estudo proposto fornece estimativas de valor do chamado excedente do consumidor [diferença entre o preço pago e o preço mínimo que estaria disposto(a) a pagar para cada quantidade ideal a ser comprada] para outros serviços digitais de música e vídeo que são muito maiores do que os preços efetivamente pagos. Ou seja, os consumidores extraem um enorme benefício monetário desses serviços, mesmo não pagando diretamente por eles. Por outro lado, é intrigante que mesmo para transações com preços monetários conhecidos se aplica uma metodologia desenvolvida para estimar justamente o valor imputado dessas transações. De qualquer forma, os resultados do experimento com o Facebook mostram que as receitas objetivas alcançadas com a venda de espaço publicitário pela rede social seriam menores que o valor do excedente do consumidor estimado (seria melhor, para ela, cobrar – se fosse possível). Porém, o excedente do consumidor é uma relação entre preço e quantidade. E a quantidade é algo difícil de mensurar no universo digital, sendo necessário recorrer à medida favorita dos autores clássicos da economia: o tempo. É pouco provável escapar de alguma medida de tempo nestes casos. Por isso que a pesquisa aprovada por Moreau fixa a quantidade em um mês. É claro, o uso diário da plataforma é variável ao longo de um mês, adicionando outros desafios ao método.

Por sua vez, o caso ilustrado pela Wikipédia no trabalho de Moreau é igualmente interessante, pois a enciclopédia digital substituiu as volumosas enciclopédias em papel e couro, remetendo à diferença entre material e imaterial (GREFFE, 2015; TOLILA, 2007). O problema da mensuração surge com o imaterial, pois sua reprodução não exige custos significativos, monetários ou de tempo.

Alguns pontos importantes são levantados pelo texto de Moreau. Em primeiro lugar, como a contribuição seminal de Kahnemann e Tversky (1979) sobre a teoria dos prospectos mostra, a avaliação de “ganhos” (utilizar o Facebook) difere da avaliação de “perdas” (deixar de utilizar o Facebook por um período limitado de tempo) em termos absolutos. E essas avaliações dependem do ponto de partida a ser utilizado como parâmetro comparativo. Ou seja, o experimento não considera a distribuição de renda e riqueza dos participantes (que muitas vezes são atraídos pelo experimento para receber uma renda extra e, portanto, precisam de dinheiro). Para os muitos ricos que porventura utilizem o Facebook, não haveria valor disponível capaz de dissuadi-los de utilizar a plataforma por qualquer período de tempo. Talvez segundos ou nanossegundos. A abordagem do PIB-B igualmente deixa de lado questões como comportamento de vício, que possivelmente distorce a percepção do valor das coisas. Esses problemas derivam do fato de que o método de estimativa considera apenas um lado do mercado: a demanda ou o comportamento dos consumidores. Mas o preço também passa pelas condições de produção e de circulação (comércio). E aqui a tecnologia faz toda a diferença. A questão de fundo remete à diferença entre custo de produção (do protótipo pelo trabalho criativo) e custo de reprodução (que é próximo de zero a partir da tecnologia digital, com o trabalho de reprodução sendo praticamente automatizado e substituído pela computação).

Do ponto de vista da contabilidade social, o problema se coloca pela ótica da despesa, já que o serviço é provido sem um pagamento. Pelo método das partidas do- bradas, o consumidor não paga pelo bem e, logo, o vendedor também “vende” de graça. Mas nas economias capitalistas não há bens privados vendidos de graça. E o valor monetário é condição necessária para ter uma medida-síntese ou agregada de todos os distintos bens e serviços produzidos em um determinado território e período. Surge, assim, uma independência da avaliação da demanda (disposição a pagar) diante da oferta (condições tecnológicas de produção e distribuição ou reprodução). De qualquer forma, o serviço deveria entrar no valor do PIB ou, pelo menos, no valor do protótipo, como valor adicionado e como renda dos criadores. Essa questão remete à velha polêmica sobre a relação entre bem-estar e PIB e os indicadores alternativos, como o Índice de Progresso Genuíno (IPG), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), da Organização das Nações Unidas (ONU), ou mesmo uma métrica de felicidade (FREY, 2009).

Ainda, podemos adicionar outros métodos de estimação ao problema criado para as indústrias culturais e criativas pela tecnologia digital. Há outros serviços “gratuitos” providos na economia e que precisam ser adicionados ao PIB. Por exemplo, durante muito tempo a metodologia de cálculo do PIB se deparou com problema semelhante, a saber: como valorar os serviços públicos não adquiridos no mercado, já que o PIB requer esse tipo de transação para ser calculado? A metodologia utilizada adotava a imputação de um valor dos serviços públicos com base no custo de produzi-los. A mesma questão ocupou as economistas feministas em relação ao valor do trabalho doméstico realizado sem remuneração, em geral pelas mulheres (WARING, 1988). A economia feminista mostra como os serviços domésticos têm enorme valor mas não são remunerados. Qual seria o valor se os serviços fossem ofertados em outras condições, isto é, por um profissional no mercado? O mesmo se coloca no caso do trabalho voluntário no terceiro setor.

O problema com a contribuição dos insumos pode, desta forma, se refletir no próprio preço dos bens e serviços. Por exemplo, os valores dos bens usados não entram repetidamente no valor do PIB quando são transacionados (“reproduzidos”), apenas quando são novos (criados). Um bem usado pode ser transacionado infinitas vezes (ajustando pela possível perda de qualidade) sem que o seu valor seja incluído no PIB (pela própria definição de PIB como fluxos líquidos novos).

Apenas a comissão dos vendedores entra no cálculo, como um serviço intermediário adicional. Questão idêntica surge no caso da valoração da programação da TV aberta. Os telespectadores nada pagam pelos serviços, que têm um custo para serem produzidos. O tempo de cérebro por meio da venda de anúncios, abordado por Tolila (2007), não captaria corretamente o valor da programação avaliado pelos telespectadores, segundo Moreau, assim como no caso do Facebook. Mas talvez as estimativas de valor do excedente do consumidor também não, dados os conhecidos problemas da valoração contingente (honestidade das respostas, proximidade no tempo etc.).

MODOS DE PARTICIPAÇÃO (E DE EXCLUSÃO)

As duas outras contribuições tratam da participação cultural na era digital. O provocativo texto de Sacco argumenta que a promessa de democracia cultural, mais que democratização (SILVA, 2021) por meio das tecnologias digitais, não vem sendo cumprida. Assim, a revolução na participação cultural ainda é uma promessa, pois permanece nas plataformas a lógica pré-digital de produção eli- tista para “massagear o ego” de pouco(a)s, além da persistente separação entre produção e consumo. As plataformas servem, na maioria das vezes, para a reprodução de modos particulares de vida nos moldes do formato da TV, com a existência de canais pessoais. O paradigma digital cria um potencial, mas que até o momento não foi realizado.

Diferentemente do modelo do PIB-B discutido por Moreau, o modelo de receita nas plataformas, segundo Sacco, segue o propósito de maximizar a audiência para vender espaço publicitário ou então se engajar na cadeia de valor do setor de publicidade. Mas nem tudo é repetição. A novidade surge nas relações parassociais, com o modelo de seguidore(a)s. Porém, a mudança não é suficiente para ativar canais bidirecionais de comunicação. Desta forma, os ecossistemas digitais reproduzem a assimetria entre poucos provedores de conteúdo e muitos seguidores passivos. A produção nesse universo não é, assim, inclusiva. O autor estima uma distribuição com proporções típicas de 90-9-1. Ou seja, 90% de usuários que apenas compartilham ou comentam a produção de outros, 9% de usuários com produção mas sem audiência, e 1% de superusuários com conteúdo que apresenta muita circulação e exposição. Alguns produtores digitais escapam de fato dos critérios ou filtros usuais de seleção da mídia tradicional. Mas prevalece a desigualdade. O fenômeno identificado por Sacco é equivalente ao que Benhamou (2016), no caso do patrimônio, chama de sistema do estrelato patrimonial (star system).

Como estudos de caso, a equipe de pesquisa de Sacco analisou três plataformas: Wikipédia (mencionada no trabalho de Moreau do ponto de vista do acesso livre), Tik Tok e Twitch. A primeira exige mais conhecimento e expertise do usuário, sendo limitada em termos de participação ampla. Trata-se de fato de uma enciclopédia para uso em pesquisas e atividades de aprendizagem e que exige rigor. O conhecimento requer autoridade. Como Sacco coloca, escrever e editar entradas requer trabalhar com múltiplas fontes, escrever de forma clara, lógica e não enviesada. A especialização do conhecimento dita a seleção de autore(a)s. O mesmo era válido para as enciclopédias publicadas seguindo a tecnologia desenvolvida por Gutemberg. A inclusão aqui não deveria ser avaliada pela capacidade de contribuir, mas pela capacidade de acessar, como analisado por Moreau, ainda que com outra preocupação.

No caso da plataforma de vídeos curtos Tik Tok, as exigências são menos restritivas, inclusive com a disponibilidade de recursos técnicos para produtores de vídeos. É apenas preciso alguma paciência em adquirir conhecimentos de edição para refinar o conteúdo. Com relação aoTwitch, a plataforma disponibiliza performances ao vivo de jogadores de jogos digitais, e praticamente não há barreiras à produção cultural (desde que o produtor conheça o jogo e saiba jogá-lo).

Sacco avalia, então, a questão da motivação ou dos incentivos sociais para a participação nas três plataformas: o nível de atenção ou de aprovação do conteúdo postado. No caso da Wikipédia, a aprovação passa pelos pares (poucos) que conhecem o assunto. Já no Tik Tok, o conteúdo é personalizado e a visibilidade é controlada por um sistema de recomendação por algoritmos. Existe alguma simetria, pois usuários desconhecidos também podem ter audiência, mas existe a possibilidade de manipulação para atingir o estrelato. No Twitch não há algoritmo. Assim, seria de se esperar que, nos três casos, houvesse possibilidades de inclusão e maior participação, evitando a superexposição de uma minoria de produtores de conteúdo.

Porém, as pesquisas conduzidas pela equipe de Sacco mostram que prevalece o espírito da regra 90-9-1. E, como não há requerimentos técnicos significativos ou falta de incentivos sociais, qual seria a razão? Possivelmente a existência de outras recompensas, incentivando as pessoas a evitar uma participação cultural mais ativa. Haveria recompensa social apenas em se juntar à apreciação coletiva de algo popular (ou o contrário). Há, assim, barreiras psicológicas que reproduzem o sistema de estrelato pré-digital. Na Wikipédia, isso passa por não se sentir apto a contribuir e receber críticas de outros conhecedores. No Tik Tok, ser ignorado ou criticado. E, no Twitch, não ter confiança para ver seu jogo acompanhado por uma grande multidão.

Sacco identifica outra novidade neste caso: uma retomada do caráter novo oral no qual a autoria individual perde importância para a recriação (ou replicação) coletiva (e infinita) dos materiais (por exemplo, os memes). Essa nova forma de relação desconstrói a ideia de propriedade intelectual e de autoria e desenvolve uma nova lógica de participação coletiva. O exemplo fornecido é o projeto de arte colaborativa na plataforma Reddit (arte em pixels), que exige coordenação para que resultados estéticos significativos sejam alcançados. Para Sacco, essa característica coletiva é o aspecto interessante da participação cultural mediada por tecnologias digitais, pois remove as barreiras para a participação cultural ativa (e não apenas). As lições da coordenação da ação coletiva se projetam, então, para outros campos, como a economia circular e a reciclagem. E isso não se mede pelo volume individual de conteúdos postados ou pelo nível de engajamento, mas por diferentes escalas e formação de redes. Trata-se de um fenômeno de auto-organização com fortes implicações sociopolíticas.

O autor rejeita, desta forma, uma visão microeconômica ou aditiva do todo, isto é, o agregado como mero resultado da soma de comportamentos individuais. Ele adota, assim, a visão dos sistemas complexos. A cultura deixa de ser vista como um ramo industrial para ser uma força social que molda o comportamento coletivo. É sobretudo um traço evolucionário. O que Sacco propõe como típico dos ecossistemas digitais é parecido com a bricolagem abordada em Cuche (1999).

A tecnologia digital permite acesso híbrido à informação patrimonial, que pode ser a nova forma de participação cultural: personalizada, interativa (cocriação) e em rede.

Portanto, a mudança tecnológica sem mudança nos valores e comportamentos sociais seria simbolicamente e essencialmente vazia. A participação digital deve ser baseada em criação coletiva, como transformação do paradigma em termos de mudança social e comportamental.

Essa visão de participação cultural diverge daquela proposta por Navarrete. Para esta autora, a participação cultural na era digital deve ser analisada em termos dos insumos para produção cultural. Ela lembra que o patrimônio digital (nato ou digitalizado) inclui bibliotecas, arquivos, museus e sítios arqueológicos. A tecnologia possibilita não apenas a representação do patrimônio, mas também proporcionar informação. A tecnologia digital permite acesso híbrido à informação patrimonial, que pode ser a nova forma de participação cultural: personalizada, interativa (cocriação) e em rede.

Contudo, assim como no caso dos serviços criativos livres ou comércio eletrônico, não há consenso sobre como definir ou medir o patrimônio digital. As tentativas remetem aos mesmos pontos levantados no trabalho de Moreau: produto e gasto, produção e custo ou até número de visitas às páginas da Wikipédia sobre os locais dos patrimônios. Uma alternativa seria uma estimativa baseada em renda, mas não há serviços para capturar o valor gerado pela digitalização do patrimônio. O que tem sido feito, então, é considerar o reúso do patrimônio digital para gerar valor, ou seja, o patrimônio como insumo para novas produções. Mas isso depende da facilidade de acesso.

No caso do reúso, a produção é feita pelos consumidores ou mesmo por robôs. Navarrete considera o reúso uma medida da participação cultural das novas gerações. A contribuição dos participantes não se restringe ao consumidor, porém. Há também os centros de pesquisa ou universidades em que atuam desde estagiários até pesquisadores, assim como a indústria, cujo melhor exemplo é o Google, com seus projetos para livros e artes, que utilizam como insumo a produção dos museus. Trata-se, assim, de inovação ou incremento ao conhecimento. Participação, aqui, inclui todo e qualquer tipo de contribuição e criação. Visita a um museu é considerada participação. Mas e a visita à página eletrônica do museu? Um estudo feito na Holanda mostra um elevado volume de visitas (e isto remete a outra questão: a substituição de visitas físicas por visitas virtuais). Há, desta forma, vários tipos e perfis de participação. Aquela que se caracteriza como insumo do ponto de vista do público inclui financiamento (crowdfunding), Pesquisa e Desenvolvimento, ou P&D (ideias), e colaboração aberta (coprodução, copropriedade e cogerenciamento).

Assim como no caso do comércio eletrônico criativo e dos serviços criativos gratuitos, não há contabilização da contribuição nacional do patrimônio digital para as plataformas. Segundo Navarrete, essa mensuração poderia proporcionar alguma evidência das habilidades digitais, produção do capital intelectual, inovação e geração de renda. As medidas aqui incluem o conteúdo disponibilizado na rede mundial de computadores ou o número de horas de contribuição, já que há registro digital das horas computadas. Novamente, a economia clássica sugere possíveis caminhos.

Contudo, Navarrete alerta que os museus precisam mudar seu processo produtivo para permitir contribuições de fontes externas e coletivas. É necessário um marco legal para facilitar a copropriedade, dado que a participação envolve cocriação. Eles têm informação valiosa como matéria-prima, mas não têm estratégia para gerar valor. A matéria-prima neste caso é o material digital disponibilizado pelos museus para ilustrar, por exemplo, os artigos da Wikipédia. O investimento na digitalização dos acervos é significativo: na Europa, cerca de € 450 mil/ano. Mas esse investimento tem efeitos adicionais ao permitir o uso por participantes externos para a produção de novos bens e serviços. Como modelo,

Navarrete defende que muitas empresas privadas atuam em ecossistemas para trocas colaborativas de dados e obtêm informações de múltiplas fontes para personalizar seus serviços.

Os museus precisam conectar suas informações sobre coleções às redes estruturadas, melhorando seus serviços no processo. Por exemplo, o Museu Nacional da Holanda (Rijksmuseum), em Amsterdã, atua para identificar fotografias antigas e aumentar o valor de reúso delas pela inclusão de informação antes inexplorada. Há neste caso também um ganho para o setor de patrimônio como um todo, na medida em que novas informações corrigem equívocos, por exemplo, na datação das obras. Trata-se de uma importante contribuição para a infraestrutura de conhecimento, que é um insumo para a produção como qualquer outra infraestrutura. A autora cita, ainda, o Projeto CHIM para desenvolver um chatbot para museus. E também a Wikipédia como sistema harmonizado com dados publicamente disponíveis.

Neste último caso, diferentemente de Sacco, Navarrete argumenta que os produtos digitais dos museus são reutilizados em coproduções por um grande número de usuários. E utiliza como ilustração a Wikipédia no Brasil, quantificando o uso do conteúdo dos museus brasileiros na plataforma. Há, assim, quase 1.800 pinturas de 79 coleções, sendo que quase 80% das primeiras ilustram artigos na Wikipédia. Elas estão identificadas na base WikiData e contribuem para a infraestrutura de conhecimento no país, com um elevado número de visualização das coleções. A sugestão de política cultural neste caso seria levantar e disponibilizar informações adicionais e resumidas sobre as obras. Assim, o reforço da dimensão econômica do patrimônio digital e da cultura requer dados de qualidade para reúso e criação (produto) e contribuir para uma infraestrutura de conhecimento baseada em informações, com a participação ativa dos consumidores. A política cultural adequada a essa realidade deve proporcionar infraestrutura para o patrimônio digital. Navarrete finaliza seu artigo enfatizando que o modelo de negócios participativo, a partir das inovações nos serviços dos museus, é para todos. Secco, como apresentado acima, levanta dúvidas sobre essa universalidade, apresentando desde restrições técnicas típicas da Wikipédia até incentivos sociais perversos.

Por fim, é importante ressaltar algumas limitações da abordagem proposta. A participação cultural do público, ao proporcionar uma contribuição na forma de insumo, muitas vezes se confunde com a natureza da instituição que a recebe, não pelo tipo de trabalho feito. Toda a “cadeia produtiva” ampliada que abastece as instituições culturais seria identificada como proporcionando participação cultural. Um eletricista voluntário revisando a fiação elétrica de um museu participa da contribuição cultural (em vez de contribuição técnica para uma instituição cultural). O pessoal da limpeza também proporcionaria uma contribuição cultural ao manter as dependências dos museus limpas. De forma mais precisa, caberia indagar sobre a natureza da participação cultural do ponto de vista dos insumos culturais produtivos efetivos. A participação cultural é sempre motivada de forma instrumental, como uma relação entre meios (insumos) e fins (cultura)? A motivação extrínseca (geração de valor monetário) supera a motivação intrínseca (simbólica)? A tecnologia digital muda as possibilidades de participação, de fato. Mas mudaria também a disposição a participar da cultura?

Conclus O

Os trabalhos avaliados representam uma rica contribuição para o conhecimento sobre as transformações e os desafios proporcionados pelas novas tecnologias, em particular as tecnologias digitais, para a cultura e a criatividade. Por um lado, as plataformas permitem novas formas de circulação dos bens e serviços culturais e criativos, com o comércio eletrônico avaliado por Rey. Ao mesmo tempo, a tecnologia possibilita acessar serviços criativos sem qualquer desembolso monetário, o que remete a questões além do comércio. Como mensurar monetariamente atividades disponíveis de graça ao consumidor (mas nem por isso produzidas sem nenhum custo monetário)? Moreau aponta para o PIB-B, com base em valoração contingente, como resposta.

Ao mesmo tempo, o barateamento proporcionado pelas novas tecnologias, que no limite permitem reprodução a custo monetário nulo, também aponta para uma maior capilaridade da produção cultural. Contudo, o estudo de Sacco suscita dúvidas sobre o potencial democratizador das novas tecnologias e suas plataformas. Navarrete oferece uma visão mais otimista, considerando as diferentes possibilidades de interação entre os museus e o público por meio da digitalização. São muitas as questões que esses excelentes trabalhos proporcionam, apontando para novas possibilidades interpretativas e de pesquisa no campo da economia cultural e criativa.

Como Citar Este Artigo

MILAN, Marcelo. Impactos da tecnologia digital na mensuração, monetização e participação cultural e criativa. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 34, 2023.

MARCELO MILAN é professor associado no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Deri/UFRGS). Atua também, na mesma universidade, como professor permanente no Programa de PósGraduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI) e no Programa de Pós-Graduação Profissional em Economia (PPECO), do qual é o atual coordenador. Desenvolve pesquisas com o Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura (Neccult), também da UFRGS, tendo efetuado trabalhos para o então Ministério da Cultura e para o Itaú Cultural (IC).

Refer Ncias

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