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Caricaturas como documentação teatral
José Marconi Bezerra de Souza
A palavra caricatura descende do italiano caricare, que significa carregar no sentido de exagerar, de ampliar a proporção. Assim, desenhos de caricatura tenderiam ao jocoso, como se fosse, em alguns casos, um processo impiedoso de ridicularizar o retratado. Entretanto, optamos aqui por compreender a caricatura como um processo de seleção e ênfase dos traços característicos de uma pessoa ou personagem. Desse modo, uma caricatura se tornaria homenagem, elogio ou crítica, se o autor decidir enfatizar determinadas características em detrimento de outras. Ademais, a caricatura vai além do visível, pois, quando identificada como uma vertente do expressionismo, revelaria a alma do retratado.
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Neste trabalho tentamos orientar os estudantes para perseguirem esta última abordagem: os atores-personagens foram homenageados, embelezados e acarinhados graficamente. Frequentemente, fazíamos a caricatura da personagem que era já belamente caricato - uma metalinguagem em si.
Além disso, a caricatura é vista aqui como uma documentação de um rico passado do TUT sob a direção de Ismael Scheffler. Um passado onde, às vezes, não havia fotos ou registros muito precisos das personagens. Os autores das caricaturas teriam que usar a imaginação para tornar os atores ainda mais verdadeiros do que era possível ver nas fotos e filmes. Além de imaginação, a caricatura aqui é projeção, uma documentação deliberadamente criativa. Um modo de revelar e interpretar reminiscências de memória.
Relação com o curriculum
Como professor de ilustração, este projeto me permitiu abordar uma vertente prevista nas ementas das disciplinas de Ilustração, mas que é pouco explorada: hipérbole gráfica. Foi também uma oportunidade de repassar algumas das lições que aprendi como profissional da área, inclusive com alguns trabalhos selecionados para o Salão Internacional de Caricatura de Piracicaba (2017 e 2018) e exposições (Oscar Niemeyer em Caricaturas, Fundação Memorial da América Latina, 2013; Traços Curitibanos, Fundação Cultural de Curitiba, 2015, 2017 e 2019).
A busca de estilos gráficos
Em minha opinião, um dos aspectos mais interessantes deste projeto foi decidir que o livro deveria ser um catálogo de estilos gráficos, no qual os autores deveriam, a priori, explorar linguagens gráficas distintas entre si. Para isso, fizemos encontros semanais e individuais durante três meses para, estrategicamente, orientar os estudantes sobre os aspectos conceituais e metodológicos envolvidos na criação da caricatura. Também estimulamos, e até desafiamos, os estudantes a buscarem o desenvolvimento de uma linguagem própria e que, ademais, fugisse, na medida do possível, de clichês de estilos gráficos pré-existentes. Esta abordagem de orientação fez com que os estudantes fossem levados a identificar suas “zonas de conforto” e maneirismos gráficos, bem como ampliar seus conhecimentos sobre expressões artísticas distantes de tendências do mercado.
Em um estágio intermediário do processo, solicitamos que os estudantes apresentassem suas caricaturas anonimamente, de modo a testar se os parceiros de projeto seriam capazes de identificar o autor apenas pelo estilo. Esta abordagem colabora para que o aluno entenda o potencial de sua própria linguagem e, após, seja capaz de se “autoimitar” no estilo de maneira coerente. Em outras palavras, o estudante estaria habilitado a explorar e ampliar o que ele fazia, irrefletidamente. Acreditamos que assim, haveria a possibilidade de atingir uma linguagem mais pessoal e distinta.
Por meio desses procedimentos, percebemos que alguns estudantes nunca haviam refletido sobre sua própria linguagem gráfica, bem como que outros tiveram muita dificuldade para se desapegar de fórmulas e clichês de desenho. Mas, em um clima de muita compreensão e respeito, essas eventuais dificuldades foram superadas e resultados distintos e inovadores foram atingidos.
Metodologia de design da caricatura
Para viabilizar abordagem individualizada, apresentamos informações sobre proporções básicas de anatomia, pois, se caricatura é ênfase, precisamos perceber o que faz alguém ser particularmente diferente. Para isso, estudamos o formato, proporções e estrutura óssea de anatomias canônicas e demonstramos, por exemplo, que só através da comparação com o “rosto médio” podemos dizer se um nariz é “proeminente”, uma boca é “pequena” ou olhos são “esbugalhados” etc. O mesmo pode-se dizer do corpo, pois só através da comparação com um “corpo médio” podemos confirmar se alguém tem braços “compridos”, pernas “curtas” ou tem uma postura “deprimida”.
A experiência de fazer comparações entre personagens de uma mesma peça também permitiu aos autores sistematizar o trabalho de caricaturas. Dessa forma, os alunos criaram uma “família” de caricaturas, o que necessariamente demanda uma consciência do que faz os atores-personagens do elenco serem diferentes, ou semelhantes entre si. Essa consciência transforma o trabalho de cada um dos autores em algo mais sofisticado: a linguagem gráfica da caricatura de acordo com a ideia geral da peça, e não do tratamento individualizado das personagens.
Além de utilizarmos fotografias e, em alguns casos, filmagens da peça, o professor Ismael Scheffler gravou um vídeo para cada espetáculo demonstrando e destacando visualmente aspectos da atitude corpórea das personagens. Sem esse reforço de informação, seria muito difícil imaginar a atitude das personagens apenas por fotografias – por vezes, amadoras e desfocadas.
O processo de acompanhamento também favoreceu o uso da linguagem do croqui como meio de apresentar, para os orientadores, o planejamento do conjunto de caricaturas. A adoção dessa técnica foi importante porque percebemos que havia uma tendência equivocada dos alunos desenharem com um acabamento exageradamente polido, o que é desaconselhável para as fases iniciais de geração de ideias. O estágio de croquis permitiu que a linguagem gráfica dos autores fosse desenvolvida gradual e horizontalmente, entre os tipos cômicos de cada elenco de peça. Além disso, tornavase mais fácil e rápido detectar quando o estudante assumia direções criativas menos promissoras.
Em conclusão, o processo de acompanhamento e criação foi bastante recompensador. Demonstrou a importância de estudantes que estão na fase inicial do curso já sejam engajados em projetos de design. Quanto mais cedo eles aprendem que design é um processo de desconstrução e reconstrução de uma realidade melhorada, mais aptos estarão para se tornarem profissionais autônomos e inovadores.