Grão Pará

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S u p l e m e n t o C u l t u r a l d o D i á r i o O f i c i a l d o Es t a d o d o P a r á - S e t e m b r o 2 0 1 2

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Iracema Oliveira é a coordenadora do grupo “Tucano” , fundado em 1927, no bairro do Telégrafo, em Belém

Foto: Cristino Martins

CULTURA POPULAR

No mundo dos pássaros juninos Espetáculos misturam música e teatro numa manifestação exclusiva da capital paraense

F

adas, princesas, feiticeiras e nobres... Até parece uma daquelas histórias clássicas transformadas em desenhos animados por estúdios americanos que dominaram – e dominam - o imaginário infantil de gerações pelo mundo afora. Mas não é nada disso. Esses são alguns personagens que transitam pelos cordões de pássaros juninos, uma manifestação cultural que só se registra na capital paraense, onde não faltam – acredite! - índios e caboclos. São encenações construídas com pitadas de

heroísmo, toques de vingança, disputas amorosas e doses extras de vilania. O enredo do cordão de pássaro “Guará”, de Icoaraci (um distrito da capital paraense), é um exemplo disso. Conta a história de um pescador que encontra um filhote de guará, uma espécie de ave brasileira, perdido numa praia e o vende para uma marquesa. A jovem compra a ave para dá-la de presente de aniversário a uma princesa. Encantada com o pequeno animal, mas preocupada com o destino

Fantasiada de ave, a menina representa o personagem central de um espetáculo popular

dele, a princesa entrega a ave aos cuidados de um guarda que vive num bosque da família real, que é habitado, segundo a lenda, por uma fada e uma feiticeira. Mas a presença do guará no bosque real atiça a cobiça de um caçador, que sabe que a captura da ave não será tão fácil por conta do guarda designado pela princesa como protetor do animal. Só que o caçador é esperto. Pede ajuda da feiticeira, que, para fazer o mal, deixa o guarda enfeitiçado para a alegria do caçador. O guará é ferido e capturado. Só que a fada entra na história. Liberta o guarda do feitiço e conta tudo para a princesa, que chama o seu exército para prender o caçador. Como não conhece bem a mata, o capitão, que comanda a tropa da princesa, pede ajuda aos índios da tribo tupinambá. O caçador acaba preso pelos indígenas. Mas a nossa história ainda não acabou. É preciso curar os ferimentos do guará com a ajuda dos matutos, que chamam o pajé. Com a intervenção dele, a ave fica curada e é devolvida para a princesa. Um final feliz, sem dúvida! “Os cordões de bichos são uma alegoria popular, que resulta numa defesa da flora e da fauna da Região Norte”, diz um dos trechos do livro “A Conquista da Amazônia” (1956), de autoria do folclorista e etnólogo Edison Carneiro. “Em palco armado nas cidades do interior, a representação dramática-burlesca gira em torno de um caçador, que ora por inadvertência, ora por maldade, alveja, mortalmente, um pássaro encantado. Da trama fazem parte pajés e fadas, matutos e índios, estes como perseguidores do caçador e sentinelas da floresta”. Os pássaros juninos, diz Carneiro, são uma adaptação urbana desses cordões de bichos das cidades do interior. “Uma estranha mistura de novela de rádio, burleta e teatro de revista, a que não falta certa cor local”, define. Na encenação dos pássaros juninos, há várias narrativas pontuadas pela música. Os ritmos são variados. Tem valsa, rumba, samba e carimbó misturados com “O Guarani”, de Carlos Gomes. No palco, os personagens contam suas histórias. Uma criança – quase sempre uma menina - interpreta o pássaro encantado. No figurino dela há plumas, lantejoulas, vidrilhos, pedrarias e bordados. É para atrair os olhares de quem está na plateia.

Guardião do presente, passado e futuro Amor, respeito e dedicação do “guardião” garantem a preservação dos pássaros juninos da capital paraense. Um deles é uma senhora de 75 anos de idade. A radialista Iracema Oliveira é a cabeça do grupo “Tucano”, fundado em 1927, no bairro do Telégrafo, em Belém. Assumiu o papel de “guardiã” em 1981. Cabe a ela preparar a encenação a partir de cada mês de março para que, quando junho chegar, esteja tudo pronto para as apresentações em praças, teatros e outros espaços públicos. Iracema conta que se encantou com a manifestação cultural ainda criança. Incentivada pelo pai Francisco Oliveira, interpretou o pássaro aos sete anos de idade. “Meu pai escrevia histórias para vários cordões de pássa-

Foto: divulgação

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ros e bichos. Aprendi tudo com ele”, diz. O guardião do “Guará”, de Icoaraci, é Raimundo Marcos da Silva, de 38 anos. Surgido na década de 60 do século passado, o grupo tem origem no município paraense de Vigia de Nazaré. Foi criado pelo avô de Raimundo. Na autoria das toadas do “Guará” estão, além de Raimundo, os tios e primos. Um “negócio” bem familiar. A história dos pássaros juninos mudou com o passar dos anos. No “Tucano”, a ave não é morta pelo caçador desde a apresentação de 1980. Só fica ferida pelas mãos do vilão. Tudo em nome do politicamente correto. É para não dar exemplo ruim para as crianças que estão na plateia. “Caso contrário, elas iam sair do espetáculo achando normal matar passarinho”, esclarece Iracema. A efervescência cultural promovida pelo ciclo da borracha na Amazônia do final do século XIX, quando os costumes na capital paraense sofreram forte influência europeia, favoreceu o surgimento dos cordões de pássaros. Para o sociólogo Carlos Eugênio Marcondes de Moura, autor de “O teatro que o povo cria. Cordão de pássaros, cordão de bichos, pássaros juninos no Pará; da dramaturgia ao espetáculo” (Editora Secult), essa manifestação cultural surgiu da harmonia entre

música e teatro. Destaca o mestre em Artes Cênicas, Marton Maués, que esse pássaro “mais urbano” apropriou-se de elementos desses espetáculos, ocupando inclusive seu espaço: o palco. Há duas vertentes de pássaros juninos: os cordões de pássaro e o pássaro melodrama fantasia. Diz a doutora em Artes Cênicas, Olinda Charone, que uma das características dos cordões de pássaros é a permanência em cena da maioria dos brincantes, que, distribuídos em semi-círculos, vão ao centro do palco para representar. Em seguida, retornam à posição de origem. Isso, segundo ela, permite que essa encenação seja feita em qualquer espaço. Já o pássaro melodrama fantasia requer palco, camarim e cortina. É que os brincantes, durante as apresentações, precisam trocar o figurino várias vezes. As cortinas são utilizadas para a finalização de cenas e quadros. Outra diferença é que o pássaro raramente é ferido ou morto, mas é perseguido, passando, muitas vezes, a fazer parte de temas secundários. Quase sempre a história gira em torno da vida de nobres, onde não pode faltar o vilão que arquiteta contra os mais fracos, que, com a ajuda dos índios e matutos, conseguem vencer e se livrar das maldades.

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