Cozinha São Paulo | Manual

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MANUAL





ÍNDICE 06

INTRODUÇÃO

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O que é o Projeto Cozinha SP? Em que se apoia o Projeto Cozinha SP? Exposição de motivos Um container-cozinha como ferramenta social: o debate do espaço público Gastronomia como ferramenta Cozinhar e conviver no espaço público Cozinha SP x Food trucks

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AS ETAPAS DO PROJETO-PILOTO COZINHA SP

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A preparação da praça A chegada do container O processo de escolha das equipes de cozinha O processo de mentoria e capacitação das equipes de cozinha O trabalho com imigrantes e refugiados O incentivo à agricultura familiar O impacto do projeto-piloto na praça e no entorno O histórico da praça Motivos para a localização do projeto-piloto Entrevistas

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IMPLANTAÇÃO

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Especificações técnicas Limpeza da cozinha Segurança do Container Desenhos técnicos Supervisão nutricional e controle de qualidade O consumo de energia elétrica Mentoria do projeto Cozinha SP: o processo Mentores que participaram do projeto Participantes do projeto

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DEBATES SOBRE O ESPAÇO PÚBLICO

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Site e Redes sociais O aprendizado que o projeto Cozinha SP trouxe para o Instituto Mobilidade Verde Usuário ou “cliente”? O morador da praça O movimento de bikers A realização de eventos na praça FAQ

Bibliografia Aprendizado do instituto


1. INTRODUÇÃO



1. INTRODUÇÃO O QUE É O PROJETO COZINHA SP? O Projeto Cozinha SP é uma experiência de ativação de espaço público que une cozinha colaborativa com gastronomia social. O projeto é sem fins lucrativos e todo recurso obtido vai para apoiar jovens da cidade no universo da gastronomia.

Cozinha SP, na praça dos Arcos | foto: IMV

EM QUE SE APOIA O PROJETO COZINHA SP?

EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO

ESPAÇO PÚBLICO

AGRICULTURA FAMILIAR

Educação cidadã e formação intensiva na prática e orientação profissional de cozinheiros e incentivo ao microempreendedorismo.

Ocupação, ativação e incentivo a discussão sobre o uso de espaços públicos na cidade.

Incentivo à agricultura familiar orgânica e biodinâmica.

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS O Instituto Mobilidade Verde, idealizador e executor do projeto Cozinha SP, não tinha nem tem qualquer interesse específico na área de gastronomia. Seu foco, enquanto instituto de mobilidade urbana, é desenvolver experiências que permitam às pessoas perceberem os espaços públicos de forma a ampliar sua visão, usufruir melhor a cidade em que vivem e buscar mudanças 08

que possam beneficiar toda a coletividade. O projeto Cozinha SP foi criado como piloto de uma possível política pública e o ponto de partida foi a escolha da praça Marechal Cordeiro de Farias, um local que havia se tornado ponto de venda e uso de drogas, sendo considerado inseguro e evitado pela comunidade em geral. O Instituto entendeu que a praça merecia ser resgatada e ativada, por


ser bem localizada, arborizada, possuir um belo mirante e a escultura “Arcos”, além de uma história que vem do século XIX, totalmente desconhecida pelos moradores, trabalhadores e frequentadores do bairro. A ideia de instalar um container-cozinha na praça surgiu como uma forma de ampliar o projeto para além de atrair os moradores e trabalhadores do entorno. Nasceu, assim, junto com o propósito de ativar o espaço público, o projeto de “cozinha colaborativa”, que trabalha a inserção social através de: gastronomia; micro-empreendedorismo; aprimoramento profissional; estímulo ao consumo de produtos orgânicos e à agricultura familiar; debate sobre a gastronomia de diversas culturas e a questão dos refugiados; interação social; paciência e a tolerância em todos os níveis. Tudo isso exigiu muito trabalho e diálogo entre todos os atores do projeto e com a comunidade.

ESTE PROJETO-PILOTO PRETENDEU SER UMA EXPERIÊNCIA POSSÍVEL E BENÉFICA PARA A COLETIVIDADE, A PARTIR DE UMA REFLEXÃO SOBRE O MODELO DE CIDADE QUE QUEREMOS TER.

UM CONTAINER-COZINHA COMO FERRAMENTA SOCIAL: O DEBATE DO ESPAÇO PÚBLICO A avenida Paulista é hoje o maior ponto turístico da cidade, cenário de grandes eventos como a parada LGBT, a noite de réveillon e das mais diversas manifestações politicas que têm se intensificado nos últimos anos. Também é o centro financeiro e cultural e polo econômico da cidade, servindo de endereço para diferentes bancos, consulados, hospitais, escritórios empresariais, restaurantes, bares, teatros, cinemas, artesãos, artistas de rua e comércios. Não por acaso foi palco de protestos e denúncias públicas recentes, diante do enorme fluxo de pessoas na região. São milhares que transitam por ali diariamente, o que acabou gerando um status de lugar de passagem. Não apenas pela quantidade de gente que passa e pela “atmosfera” da pressa, gerada pelo ambiente corporativo, mas também pela falta de espaços de pausa e de lazer no espaço público. Henry Shaftoe, em Convival urban spaces, associa espaços públicos à “vida democrática” e aos

“últimos locais onde ainda é possível confrontarse com a diferença e aprender a entender e tolerar outras pessoas”. Ele sugere que não existe fórmula para o espaço público de convívio, mas elementos de ordem física, geográfica, sensorial, psicológica e de gestão possibilitaria o sucesso do espaço como um lugar de convivência plena. Dentre estes estão “abundância de espaços para sentar”, “sequência espacial e acessibilidade”, “diversidade de usos”, “inclusão”, “proibição de tráfego motorizado”, “sensação de segurança”, “conforto ambiental”, “elementos naturais” e “oportunidade para comer e beber.” (SHAFTOE, 2008, p. 5) Essa lista de ingredientes levanta questionamento sobre a qualidade de espaço que temos. Se pensarmos em lugares exclusivos para sentar-se ao longo dos quase três quilômetros de extensão da avenida, nos deparamos com uma escassez de mobiliário. E mais, ainda que haja fartura de muretas, degraus e desníveis que possibilitam 09


um repouso ou encosto casual, maior é a repressão a respeito de seu uso, com a instalação de grades ou tapumes que as tornam inacessíveis. Todas essas iniciativas retomam a lista de Shaftoe, representando um passo para a cidade como espaço de convivência e para a “vida democrática”. Também abriram precedentes para outras ações do tipo, que trabalham questões de ocupação urbana.

(…) o planejamento urbano não pode mais ser linear e sequencial, mecanicista e balístico; ou seja, não pode mais pretender ser previsional, programático, sistemático, imperativo. Ele deve se constituir sobre a base de uma racionalidade limitada em universo incerto. Para orientar, enquadrar, regular, gerir, o planejamento e mais genericamenteo urbanismo […] devem implementar instrumentos que admitam as flutuações, a criatividade, a incerteza, a contradição, a ambiguidade, a imprecisão. O urbanismo deve de alguma forma passar do “planejamento estratégico” à “gestão estratégica”. (Referência na bibliografia)

É neste contexto que surge o Cozinha São Paulo, a fim de trabalhar praticamente elementos socioambientais e cumprir a tarefa de reativar ou reabilitar um espaço específico na cidade de São Paulo – a praça dos Arcos. Para isso, se utiliza da gastronomia como ferramenta e se desdobra em ramificações para englobar outras questões socioculturais e econômicas.

Av. Paulista aberta para pedestres Foto: IMV

GASTRONOMIA COMO FERRAMENTA A praça dos Arcos, como é conhecida a batizada Marechal Cordeiro de Farias, localizada em uma das pontas da avenida Paulista, era subutilizada e tomada por usuários de droga, servindo como ponto de repasse por traficantes. A falta de iluminação, somada ao isolamento produzido pela instalação de um complexo viário, também fomentavam o esquecimento ou o temor da sociedade no geral para com o lugar. Até existiam chamarizes na região, como os Arcos – obra assinada por Liliam Amaral e Jorge Bassani – que faz menção o nome, ou então a famosa Frutaria Paulista, em frente à praça. Mas no caso da 10


instalação colorida, um caminho que passa entre seus arcos antecede a entrada à praça. Já no caso da frutaria, grande parte de seus clientes chega de carro ou bicicleta e, devido às antigas condições do espaço, que imprimiam a falta de policiamento, iluminação, serviço de limpeza e assentos – como veremos em depoimentos ao longo do texto – não havia como destacar a praça. Além da frutaria, grande ponto de encontro de ciclistas e adeptos da alimentação saudável, outros estabelecimentos consagrados tiveram sua história no lugar, o que indicava um possível potencial gastronômico na região. O famoso Riviera, hoje remodelado e administrado por Alex Atala e Facundo Guerra, foi inaugurado em 1949 e já abrigou, desde a elite paulistana, passando por artistas e revolucionários, até a gravação de um filme. A região também abriga o Sal Gastronomia, restaurante do renomado chef Henrique Fogaça, que forma fila de espera diariamente. Já no quesito comida de rua, dois pontos famosos – e um pouco mais distantes – se destacam na localidade. Um deles, na praça Oswaldo Cruz, reúne cerca de 20 food trucks e vende grande variedade de culinária. Outro é na alameda Rio Claro, onde acontece a feira Eu Amo Comer em SP, a preços populares. Em sua pesquisa sobre comida de rua, a pesquisadora Ana Maria Goés considera que “a mudança de status por ela [comida de rua] experimentada atualmente, sob o ponto de vista da cultura brasileira, pode ocasionar uma quebra de paradigma importante”. Isso porque, segundo seus estudos, historicamente essa linguagem

surgiu como um trabalho de escravos, que deveria vender comida nas ruas para gerar lucro a seus donos, para depois se tornar atividade dos desempregados, imigrantes ou recém-chegados. Pondera ainda que a rua sempre foi vista, nos padrões tradicionais, como “local seguro e de bons costumes”, enquanto a rua seria “o local de marginalidade e da insegurança”. Por isso, defende que “o ato de comer na rua não diz respeito apenas a alimentar-se, mas traz consigo uma ação social, econômica e cultural.” (“A comida de Rua na Cidade de São Paulo: da marginalização à glamurização”; “A Comida de Rua em São Paulo (SP) como atrativo turístico: uma análise preliminar” [coautoria de Maria do Rosário Rolfsen Salles]) A partir de um suporte à comida de rua, por parte do poder público, com a sua regulamentação, a partir da qual se insere o contexto trabalhado na tese anterior, surge o Cozinha São Paulo. A comida de rua parece atrair todas as pessoas, de forma a não obrigá-las a adentrar um espaço intimidador a certos grupos, mas como um convite a perceber e aproveitar o espaço aberto onde se encontra. Para isso, o projeto também adotou o preço máximo de quinze reais para cada prato, independentemente da equipe ou tipo de culinária utilizada. Os cardápios também foram desenhados para que fossem próximos ao público em questão e refletissem a história de cada cozinheiro. Esta e tantas outras medidas empreendedoras – um dos pilares do projeto – foram desenvolvidas a partir de um processo de mentoria com profissionais renomados. Cozinheiros e mentores debatiam os rumos a serem tomados (logística, precificação, culinária, etc.) a cada início de ciclo.

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COZINHAR E CONVIVER NO ESPAÇO PÚBLICO Ali é um ponto de encontro marcante, por abarcar diferentes perfis de pessoas. A praça tem como entorno a região da avenida Paulista e os bairros Pacaembu e Higienópolis, bairros nobres que atraem trabalhadores, empresarios, estudantes, ciclistas, entre outros. Neste mesmo local, uma realidade distoa da anterior: pessoas em situação de rua e usuários de droga compartilham este espaço, compondo um lugar de encontros e conflitos entre distintas camadas sociais que disputam o território. Em 2014 foi noticiado em alguns canais de notícia que uma nova cracolândia surgia na região da Paulista, citando, principalmente, a praça Marechal Cordeiro de Farias. Uma das matérias em questão entrevistava moradores acuados, que exigiam a retirada dos usuários de droga, além da Prefeitura, que garantia futura abordagem de agentes de saúde no local. A Polícia Militar também se manifestava, prontificando reforço na atuação.

Daí a importância de se criar um mecanismo de convivência entre nichos, ao invés de exterminar um em benefício do outro, como muitas vezes tem sido feito. Arranjos como muretas e bancos “antimendigos” podem parecer inofensivos ou corriqueiros a um grupo privilegiado de pessoas, que chegam a aceitá-los e normalizá-los ou não notá-los. No entando, são “imediatamente compreendidos e sentidos por aqueles a quem são dirigidos: os outros, os excluídos” (ANDRADE, 2011). Este, bem como outros conflitos entre diferentes, caracteriza os espaços públicos por excelência, ainda que estejamos contemporaneamente passando por um processo de negação dessa pluralidade, parte essencial da urbanidade. Segundo Richard Sennett em seu livro “O Declínio do Homem Público”, a supervalorização da privacidade contribui para a queda da sociabilidade.

Mesmo depois da divulgação do problema e das proposições por parte do poder público, o ponto de crack e o medo continuavam ali. Não por acaso viu-se a necessidade de um projeto social para a região. Seria necessário algo diferente do modelo regido pelo medo, violência e disciplina instaurada nas relações de produção capitalista.

“As pessoas somente podem ser sociáveis quando dispõe de alguma proteção mútua; sem barreiras, sem limites, sem a distância mútua que constitui a essência da impessoalidade, as pessoas são destrutivas, não porque a natureza do homem seja malévola [...] mas por que o efeito último da cultura gerada pelo capitalismo e pelo secularismo modernos torna lógico o fratricídio, quando as pessoas utilizam as relações intimistas como bases para as relações sociais.” (SENNETT, 1999: 379) Final de semana na praça dos arcos | foto: IMV 12


COZINHA SP x FOOD TRUCKS O comércio foi uma das ferramentas utilizadas pelo projeto para cumprir com seu objetivo de trazer outra dinâmica a um espaço subtulizado. “Não se pode propor um projeto de requalificação […], com altos índices de insegurança, informalidade, indigência, etc., simplesmente com a visão de fazer uma ‘rambla’. Cuidado!, o urbanismo não resolve tudo, e menos o resolverá um espaço público”. (BORJA, 2006) Diferentemente de um restaurante ou food truck, o Cozinha São Paulo não visa o lucro direto, se não o logro do microempreendedor com quem trabalha – jovens com experiência em cozinha mas que nunca tiveram a oportunidade de investir em seu próprio negócio. O projeto também traz como um de seus pilares a agricultura familiar, incentivando o consumo de orgânicos, além do uso consciente de energia elétrica, uma vez que adotou-se uma prática de compensação – na qual troca-se energia economizada por créditos em produtos orgânicos.

Food Trucks na praça Oswaldo Cruz | foto: arquivo público

Por ser espaço de fruição, não se desenha ali uma lógica de “praça de alimentação” ou food parks. As mesas disponíveis e passíveis de deslocamento fazem parte do projeto não como exclusividade do restaurante, mas como mobiliário urbano, que atende a todos os interessados a ocupar o lugar. Os usuários são convidados a sentar e ficar o tempo que quiserem, não apenas enquanto a refeição durar. A praça Marechal Cordeiro de Farias é historicamente conhecida como Mirante Pacaembu – área tombado pelo Patrimônio Histórico – que assim como o Mirante Nove de Julho serve de ponto de observação sobre a região. Porém, enquanto o segundo lugar é produto de uma consessão da Prefeitura à uma empresa, o primeiro é fruto de uma parceria com a mesma por parte de uma ONG, o Instituto Mobilidade Verde. Ao mesmo tempo que atrai, com a venda de comida e bebida, diferentes tipos de pessoas para o lugar, as convida a compartilhar a mesa e o espaço aberto a todos. Portanto, se uma família chega para comer em uma das mesas e há ali algum morador de rua ou qualquer outra pessoa, não há norma nenhuma que vá retirar nenhum dos dois. Há, sim, uma escolha entre as duas partes de dividir o espaço ou não, sem embate direto, ainda que se considere aqui o contexto e a situação desfavorecida em que se insere o morador de rua. O projeto preza pela convivência pacífica entre todas as partes, de forma a também incentivar a visibilidade dos que por muitas vezes são tratados como invisíveis. Não pelas óticas do medo, como já dito anteriormente, mas de uma forma que perpasse a aceitação e a reflexão.

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2. AS ETAPAS DO PROJETO-PILOTO COZINHA SP



2. AS ETAPAS DO PROJETO-PILOTO COZINHA SP A PREPARAÇÃO DA PRAÇA Antes da instalação do container, a praça foi devidamente preparada para receber as instalações elétricas e hidráulicas adequadas. Um item fundamental foi a construção de bancos e mesas de madeira maciça, projetadas para acomodar de 6 a 8 pessoas, a fim de estimular a interação e a convivência dos frequentadores do local. As mesas foram espalhadas ao redor da praça, deixando claro que não seriam exclusivas para usuários do container-cozinha, mas destinadas ao uso de quaisquer pessoas que quisessem usufruir o local.

Praça dos Arcos | foto: IMV

A CHEGADA DO CONTAINER O container-cozinha chegou à Praça dos Arcos em agosto de 2015, para transformar o lugar enquanto projeto-piloto, durante o período de um ano. Diferentemente de um restaurante ou food truck, a instalação carregava como principal propósito não o de servir comida – ainda que o fizesse com qualidade e a preço justo – mas de ativar o local, além de todos os demais propósitos colocados na Exposição de Motivos. Sendo o container uma cozinha de finalização e não de produção, as diversas equipes que operaram o projeto tiveram que superar, entre outros, o desafio da distância entre o local de produção e praça Marechal Cordeiro de Farias. 16


O PROCESSO DE ESCOLHA DAS EQUIPES DE COZINHA A cada ciclo (de um a três meses), foi escolhida uma equipe para administrar a cozinha, apresentando opções de comida práticas e acessíveis, ao preço máximo de R$ 15 o prato. A renda resultante da venda de alimentos e bebidas realizada por cada equipe foi totalmente destinada à própria equipe, como apoio para seus projetos futuros. A ideia inicial era favorecer jovens vindos da periferia da cidade, mas o perfil dos escolhidos foi variando nas outras etapas, devido às dificuldades surgidas, como detalhado a seguir: O processo de escolha do primeiro ciclo foi realizado por meio de uma pessoa, contratada para fazer a triagem dos candidatos, que deveriam estar inseridos no contexto de periferia. Essa primeira experiência foi bem sucedida, mas para a etapa seguinte percebeu-se a dificuldade de deslocar as pessoas das extremidades para o centro. Para o segundo e terceiro ciclo optou-se então por edital de chamamento. A partir de um texto disponível no site do projeto, os candidatos eram convidados a apresentar seus projetos, dentro de um perfil que deveria contemplar os seguintes itens: enquadramento na proposta dentro do conceito; relevância do projeto e função social; ter uma equipe própria (pelo menos um assistente e um caixa); experiência com gastronomia; apresentação de proposta de viabilidade de vendas no dia a dia da cozinha; apresentação de proposta de divulgação do trabalho. A partir do quarto ciclo, percebeu-se que era menos dificultoso quando os participantes moravam nas proximidades da base do projeto, como aconteceu com a equipe Marmitaria Mirepoá. Isso também serviu de premissa para a escolha do último grupo, Esconderijo. A experiência específica de cada uma das cinco equipes que administraram a cozinha durante os doze meses de funcionamento do projeto-piloto serão detalhadas mais adiante.

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O PROCESSO DE MENTORIA E CAPACITAÇÃO DAS EQUIPES DE COZINHA Antes da fase de operação, cada equipe passou por um processo de capacitação guiado por uma mentoria formada por profissionais renomados da área gastronômica. Com eles, os cozinheiros aprenderam desde técnicas de cozinha, administração do negócio, atendimento ao público e até ações de marketing. Mais adiante, serão divulgados os nomes e depoimentos dos chefs que formaram a mentoria que orientou as cinco equipes que administraram a cozinha. As aulas e reuniões aconteceram na Escola de Cozinha Wilma Kövesi, que abriu suas portas para essa experiência fundamental ao sucesso do projeto.

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O TRABALHO COM IMIGRANTES E REFUGIADOS Durante o mês de maio de 2016, aos sábados, a cozinha-container também foi aberta a imigrantes e refugiados, em parceria com a organização Migraflix - que já vem fazendo trabalhos gastronômicos com esse público. Cada sábado foi dedicado a uma nacionalidade, de modo que cada integrante tivesse espaço para mostrar um pouco da cultura de seu país de origem, oferecendo pratos e bebidas típicos. Houve também o suporte de eventos independentes na praça, como o Festival de Cultura e Gastronomia e a entrega de alimentos a pessoas em situação de rua - ambos iniciativa do Mistura Cultura. Foi também realizada uma festa de música eletrônica, a Caldo, organizada por um coletivo de artistas, em parceria com a Cozinha

São Paulo - que cedeu um ponto de energia elétrica para o evento.

O INCENTIVO À AGRICULTURA FAMILIAR A fim de abrir uma reflexão sobre todo o processo de transformação do alimento até que a comida chegue à mesa das pessoas, foi realizada parceria com o Instituto Chão, empreendimento na zona oeste de São Paulo, que direciona produtos orgânicos de pequenos agricultores da região de Parelheiros, a preços de custo. A equipe de cozinheiros da vez recebia um vale-compras semanal para ser usado na aquisição de alimentos plantados em pequena escala, sem o uso de aditivos químicos. Ainda que não fosse obrigatório o uso integral de ingredientes orgânicos, a culinária saudável sempre foi priorizada, em todas as etapas do projeto.

Instituto Chão | foto: Divulgação

COOPERAPAS | foto: IMV 19


Acima, Elas no Choro, comemorando o Dia Internacional da Mulher e ao lado ensaio de peça de teatro aos sábados.

O IMPACTO DO PROJETO-PILOTO NA PRAÇA E NO ENTORNO Durante o período de doze meses, a presença do container na praça Marechal Cordeiro de Farias mostrou questões de cunho variado que envolvem o espaço público: relações entre usuário, espaço e mobiliário; relações entre os próprios usuários; pessoas em situação de rua; uso da bicicleta e outros meios de transporte alternativo; esportes urbanos; violência; lixo; limpeza; necessidade de espaços de estar; área verde, etc. Esses impactos serão demonstrados através de entrevistas realizadas pelo Instituto Mobilidade Verde com moradores do entorno, trabalhadores em estabelecimentos do bairro e todo tipo de usuários da praça e do container-cozinha. Uma iniciativa muito oportuna e que veio de encontro aos objetivos do projeto - embora totalmente independente - foi a criação de uma horta comunitária, instalada entre os arcos e o container-cozinha. Ela foi promovida pelo Movimento Parque dos Arcos, que surgiu concomitantemente ao projeto Cozinha SP (ver depoimento da arquiteta Marina Acayaba, nas entrevistas a seguir). 20


HISTÓRICO DA PRAÇA Nas primeiras plantas registradas no Arquivo Histórico de São Paulo, ela é identificada apenas como “Praça circular na convergência da avenida Paulista, rua Minas Gerais, rua Itápolis e rua Bury”, ou seja, entre os nascentes bairros dos Jardins e de Higienópolis, no final do século XIX. No entanto, a praça viveu décadas de glória, a partir da fundação da avenida Paulista, em 1891, onde residiam os “barões do café”. A criação do bairro de Higienópolis, lançado em 1895 como Boulevard Bouchard, reforçou a nobreza da região e contribuiu para transformar a atual praça Marechal Cordeiro de Farias no “Belvedere da avenida Paulista”. Essa primeira denominação, apenas informal, faz até hoje muito sentido, pois o lado da praça que dá para o bairro do Pacaembu ainda oferece uma vista clara do horizonte e do Pico do Jaraguá. O Belvedere era frequentado pela elite da sociedade paulistana e no dia 7 de setembro de 1922 recebeu um enorme monumento de bronze, dedicado a Olavo Bilac, assinado pelo artista sueco William Zadig e composto de vários fragmentos elaborados na Dinamarca e transportados em cargueiros para o porto de Santos. Na foto anexa, da década de 20, aparecem a o monumento já instalado e a praça no dia do lançamento. Finalmente, no ano de 1935, a praça recebeu seu primeiro nome oficial: praça Vicente Rodrigues, inspirado no padre jesuíta que foi o primeiro alfabetizador de índios. No ano seguinte, devido a polêmicas que já agitavam os moradores da região, o monumento a Olavo Bilac foi removido e seus fragmentos distribuídos em outros pontos da cidade, alguns ainda hoje guardados em depósitos. Além de alegarem que atrapalhava o trânsito (já nas décadas de 20-30), o monumento era considerado de gosto duvidoso. O mais polêmico dos fragmentos foi O Beijo Eterno, julgado indecoroso nos cinco endereços para onde foi transferido ao longo de três décadas. Em 1966, ele foi incorporado à Faculdade de Direito do Largo S. Francisco.

Praça Marechal Cordeiro de Farias | foto: arquivo público

Em 1952, ainda sob a comoção do fim da II Guerra Mundial, o nome da praça é mudado para Praça dos Expedicionários do Brasil, em homenagem aos Pracinhas. Uma placa continha os dizeres “São Paulo agradecido reverencia seus heróis. O sangue generoso de seus filhos mais uma vez se ofereceu à Pátria: lutar e morrer por ela – foi o lema dos expedicionários”. Na década de 70, a construção do Complexo Viário Rebouças exigiu a redução do tamanho da praça e a isolou do entorno, tornando-a quase “invisível” e de difícil acesso. 21


No ano de 1991, centenário da avenida Paulista, a praça recebeu a escultura Arcos, de autoria da artista plástica Lilian Amaral e do arquiteto Jorge Bassani. Os arcos, de cores e formatos diferentes, se abrem de forma lúdica, como um arco-íris que se desdobra e ilumina o espaço urbano, interagindo com as árvores e os prédios ao redor da praça, e permitindo a passagem das pessoas entre as estruturas. A partir de então, a praça passou a ser chamada, informalmente, de praça dos Arcos. No ano seguinte, possivelmente para evitar confusões com a Praça Heróis da Força Expedicionária Brasileira, localizada em Santana, a praça assumiu o nome atual, Marechal Cordeiro de Farias – como era chamado o comandante de Artilharia da FEB durante a Campanha da Itália, em 1944. Esta praça, que respira história mas ficou praticamente abandonada durante as últimas décadas, é o exemplo vivo de como a memória urbana de São Paulo se perdeu em meio ao crescimento desenfreado da cidade. A divulgação dessas memórias, obtidas através de pesquisa junto ao Acervo Histórico de São Paulo e a outros órgãos, surpreendeu inclusive moradores do entorno, que desconheciam os fatos e começaram a frequentar e ver a praça com outros olhos. Isso demonstra como a preservação e divulgação do registro histórico dos lugares pode influenciar a mobilidade urbana.

Movimentação diversa de pessoas utilizando o espaço da praça durante a implantação do projeto. | foto: IMV

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MOTIVOS PARA A LOCALIZAÇÃO DO PROJETO-PILOTO Ponto de passagem entre quem vai da Paulista / Higienópolis / Pacaembu para a zona oeste, ou vice-versa, a praça Marechal Cordeiro de Farias acaba esquecida ou nem conhecida. Ela é rodeada por prédios ativos (a maioria de escritórios) e inativos, área verde e um viaduto. No entorno, ainda há uma diversa gama de estabelecimentos comerciais, como produtoras, galerias e escritórios, o que explica o maior fluxo de pessoas em horário comercial. O espaço é ponto de encontro de skatistas, ciclistas e pedestres. Em 2010, recebeu a escultura Vênus de Concreto, durante um evento de skate, para ser usada por skatistas. Durante anos, o espaço também foi utilizado pelo coletivo

Bike Anjo, que auxilia pessoas que queiram iniciar o uso da bicicleta. Também conhecido por Praça Vegana, o lugar foi batizado com este nome por um grupo vegano engajado na proteção animal. No início do projeto-piloto Cozinha SP, houve resistência por parte desse coletivo, que tinha como objetivo a criação da primeira praça vegana do mundo. Eles não aceitavam que fossem vendidas refeições contendo produtos de origem animal. O projeto Cozinha SP nunca alimentou este conflito, aliás apoiou o uso da praça para eventos do grupo vegano, cedendo, inclusive, a cozinha-container para o preparo de alimentos.

DURANTE TODAS AS ETAPAS DO PROJETO, A FREQUÊNCIA DE PESSOAS NA PRAÇA FOI AUMENTANDO PAULATINAMENTE, DEVIDO À MAIOR SEGURANÇA PROPORCIONADA PELA PRÓPRIA CIRCULAÇÃO DE GENTE, CICLISTAS, SKATISTAS E INTERESSADOS NO PROJETO DE COZINHA COLABORATIVA, QUE LHES PROPORCIONOU EXPERIÊNCIAS GASTRONÔMICAS DAS MAIS VARIADAS. 23


ENTREVISTAS REALIZADAS COM MORADORES, TRABALHADORES DO ENTORNO E USUÁRIOS DA PRAÇA, DURANTE O PROJETO-PILOTO

“Moro no Edifício Anchieta, tombado pelo patrimônio histórico, desde a década de 50. Naquela época, os jardins do nosso prédio davam para a praça. Depois, quando começaram a projetar o Conjunto Viário, houve a desapropriação de 180 m2 de jardim aqui do condomínio. A praça era bem mais ampla, tinha um mirante bonito, mas acho que foi após a construção dos viadutos, na década de 70, que ela começou a ser abandonada e degradada. Ficou de difícil acesso e isso até piorou com a ciclovia. Fiquei sabendo que instalaram uma cozinha na praça, mas nunca fui, deve ser bom pra quem trabalha no bairro.”

MARIA JOSÉ PULITI, moradora da Av. Paulista

“Faço parte do movimento Parque dos Arcos, formado no ano passado por moradores e trabalhadores do entorno. Pretendemos criar um parque de esportes urbanos abrangendo, além da praça, todos os espaços livres do Conjunto Viário, inclusive embaixo dos viadutos. Um projeto que já conseguimos realizar foi a horta comunitária, localizada atrás do container-cozinha. O projeto Cozinha SP foi muito bem vindo para ativar a praça, que começou a sofrer um processo de degradação de uns três anos para cá. Sou arquiteta e meu escritório fica neste prédio em frente à praça, que é de propriedade da minha família.”

MARINA ACAYABA, arquiteta com escritório na Av. Paulista

“Conheço a Praça dos Arcos há uns dois anos, desde que comecei a trabalhar aqui. Era um lugar mal cuidado e abandonado e eu tinha medo de passar. Depois que a Cozinha foi instalada a praça ficou mais atraente, a gente se sente mais à vontade lá. Eu costumo levar minha marmita e comer no banco, acho que seria legal se algumas mesas fossem cobertas, quando chove não dá pra sentar lá. Vi o pessoal da Cozinha oferecer comida a uns moradores de rua, é muito bacana. A praça melhorou até pra eles, essas pessoas se sentem invisíveis. Eu não frequento a praça nos fins de semana porque moro no ABC, mas me falaram que fica animada, com ciclistas, skatistas, música. Muito legal tudo isso.”

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VICTORIA MARQUES, funcionária da Galeria de Artes Vermelho, Rua Minas Gerais


“Moro neste prédio há dez anos. Antes a praça era horrorosa, minha mãe não deixava a gente passar lá, era assalto a torto e a direito. Há uns anos colocaram os postes de luz, melhorou um pouco mas, mesmo assim, a praça continuava entregue a usuários de drogas. Depois da instalação do container a praça mudou de cara. Gostei do mobiliário, tenho uma amiga que sempre vai estudar lá. Seria legal colocar mais cor na praça, alguma coisa combinando com os arcos, dando mais vida. Não sabia que era um projeto social, vou começar a frequentar.”

WALKIRIA BRAGA, moradora da Rua Minas Gerais, passeando com o namorado Guilherme

“Trabalho aqui há 5 anos e a praça me dava pena, um lugar incrível onde só via ócio e abandono. Sempre tive vontade de ver alguma coisa legal lá, então curti o projeto desde o início, amei o mobiliário rústico, almocei várias vezes na Cozinha. Também levo marmita e fico à sombra de uma árvore. Gostei muito da variedade e da troca de cozinheiros, poder experimentar coisas novas por um preço super acessível. Precisaria mesmo é de uma cobertura, pelo menos parcial, para os dias de garoa. Gostaria de ver mais coisas lá: de vez em quando tem uma feirinha, um som, mas acho que podia ser mais frequente, tipo feiras, festivais de músicas, contação de histórias. Nós aqui do Cenpec podemos ajudar! Ah, e seria bom ter um painel na praça explicando o projeto.”

MARIANA CETRA, funcionária do CENPEC - Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, Rua Minas Gerais

“Sou formada em gastronomia e mestranda em hospitalidade pela Universidade Anhembi Morumbi. Meu projeto de pesquisa pretende analisar as alterações na ocupação do espaço público em São Paulo, através da venda de comida de rua, a partir da nova lei municipal de 2014. Tomei conhecimento do Projeto Cozinha SP numa matéria do site Projeto Draft e iniciei uma pesquisa de campo no local e também em dois outros pontos da Av. Paulista (Alameda Rio Claro e Praça Oswaldo Cruz). Desde fevereiro venho fazendo visitas frequentes à Praça dos Arcos, observando e conversando com as pessoas que estão trabalhando lá (no Cozinha SP, no Instituto Mobilidade Verde, no Bicicletário), com frequentadores (clientes ou não do projeto), moradores de rua, etc. O que vi e ouvi é bastante positivo e me faz acreditar que o Projeto contribuiu muito para a revitalização do espaço, para que as pessoas se sentissem mais seguras e confortáveis para frequentar a praça, independente do fato de comprarem algo no Cozinha. Acho que a presença do bicicletário no local também contribui conjuntamente pois a presença de mais gente trabalhando na praça e dos ciclistas que circulam por alí ajuda a dar movimento e tira a sensação de abandono, trazendo mais frequentadores. Mesmo existindo a circulação

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de moradores de rua, me parece que, no geral, a convivência é tranquila. Em termos de comida, acho bem positivo o custo máximo de R$ 15,00, bastante acessível para uma região onde comer bem é muito caro, e também o fato de existir sempre uma opção vegetariana. Os principais aspectos que acredito que poderiam ser melhorados dizem respeito a melhor divulgação do projeto para que mais pessoas se interessem em conhecer, o que geraria mais movimento e maior ocupação do local para atividades de lazer também, inclusive em sites como o www.cidadedesaopaulo.com. Também seria interessante a realização de outros projetos concomitantes que atraiam públicos variados (por exemplo música, contação de histórias, peças, etc) que tragam para a praça públicos diferentes. Por exemplo, quando aconteceu a apresentação do clube do choro para comemoração do dia das mulheres trouxe um público diferente do habitual à Praça, inclusive moradores da região que não tinham conhecimento do Projeto e que comentaram pretender voltar em outra oportunidade para experimentar.”

ANA GÓES, Chef e Pesquisadora

“Com o container a praça melhorou bastante. Agora tem lugar para sentar, menos lixo, menos morador de rua. É também mais frequente a vigilância por parte de policiais aqui em volta.”

ANTONIO DE SOUZA, gerente da Frutaria Paulista - rua Minas Gerais

“Acompanhei o Cozinha desde o começo e vejo bastante gente interessada em vir. Quando está fechado o pessoal vem perguntar. O prefeito Haddad veio uma vez nos perguntar o que achávamos do projeto e que a ideia era ampliar para demais praças. Acho que deveria ter um vigia para controlar certas situações, como pessoas dormindo nos bancos de piquenique. Isso afasta os clientes, tem gente que não gosta.”

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RAFAEL WALATIO, funcionário do bicicletário Itaú, também instalado na Praça dos Arcos


“Eu venho aqui todos os dias na hora do almoço ou no fim da tarde. Trabalho perto há mais de um ano e há pouco tempo descobri a Praça dos Arcos. No meio do caos, ter um lugar assim, onde você pode ficar na paz, é precioso. Especialmente pra quem trabalha em uma empresa, como eu, é importante sair do ambiente corporativo e poder ficar tranquilo, além de encarar outras realidades. Aqui é um espaço de lazer, mas também possui uma função social, uma vez que une diferentes mundos. Às vezes eu estou aqui de boa e vem um cara pedir um cigarro, senta ao lado e a gente conversa. Acho isso ótimo! Fora que tem comida, mobiliário, lugar para deixar a bicicleta - esta é a saída para a boa convivência com a cidade. Deveria ter mais iniciativas como esta em São Paulo inteira. Ainda não pude experimentar os pratos do Cozinha SP, mas assim que eu receber meu salário vou comer aqui.”

CAIO GALDINO, designer das Lojas Pernambucanas - R. da Consolação

“O projeto melhorou toda esta área. Eu durmo aqui quase todos os dias e antes não era assim. Além de ser bem mal cuidada, em todos os sentidos, sempre vinha a polícia me tirar. Moro no Embu das Artes, mas fico aqui direto. Olho os carros à noite, na rua Minas Gerais e na continuação da avenida Paulista. Tomo banho num estacionamento aqui perto e até largo as minhas coisas aqui, porque sei que ficam seguras.”

CLAUDIO, guardador de carro na região

“O Bike Anjo começou a usar a Praça Vegana (é assim que a chamamos) em Agosto de 2011, onde fizemos nossa primeira Oficina Aprender a Pedalar, como teste. Depois disso realizamos outra em Outubro do mesmo ano. Mas a partir de Janeiro de 2012 começamos realizá-la mensalmente e a fizemos até Janeiro de 2016, sem falhar um mês, sendo que desde Março de 2015, com um novo projeto nosso, o Programa Escola Bike Anjo, criamos outras oficinas agora semanal, realizando mais de 150 oficinas nesse período. No início a Praça era abandonada, não havia nenhuma atividade e era ocupadas por moradores em situação de rua, existiam até “moradia” dessas pessoas feita com madeiras, papelão, colchões, etc. Mas sempre que chegávamos lá para nossas oficinas, eles iam embora, só retornando a ocupar quando terminávamos, mas nunca tivemos nenhum problema. Com o passar do tempo, o público começou a ficar maior em nossas oficinas e a praça

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cada vez mais ocupada. O último domingo do mês virou o dia de aprender a pedalar, mas segundo moradores e representantes da Associação de Moradores da região, era o único dia que a Praça tinha “vida”, o único dia em que tinha família, crianças, pessoas usando aquele espaço. E nos outros dias voltava a ser um local ocupado pelos moradores em situação de rua, sempre vazia. Até hoje, moradores da região nos procuram, para que voltemos a fazer atividades por lá, ainda mais que no último ano, fazíamos atividades praticamente todos os fins de semana. Mas infelizmente por dois motivos, tivemos que deixar a Praça Vegana. Primeiro, pela própria instalação do Bicicletário e da Cozinha, pois ocuparam grande parte da praça, principalmente para nossa principal atividade de ensinar a pedalar. Até participamos de algumas reuniões antes da implantação da estrutura para que todos pudessem compartilhar a praça, mas infelizmente o formato que foram colocados prejudicou nossa atuação.

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Movimentação diversa de pessoas utilizando o espaço da praça durante a implantação do projeto. | foto: IMV


E em segundo lugar, nesse mesmo período estávamos negociando a colocação de um contêiner por lá para ser nossa base com materiais, mas infelizmente a Sub da Sé não teve interesse e acabamos conseguindo a aprovação da Sub de Pinheiros, liberando um espaço no Largo da Batata para colocá-lo. E hoje seguimos com nossas oficinas por lá, toda semana fazemos uma atividade diferente no Largo. A Praça Vegana é um local onde o Bike Anjo tem um imenso carinho, pois foi lá onde começamos e foi lá onde crescemos, a decisão de sair de lá foi muito dura para nós. Até tentamos manter os eventos lá, só que o trabalho de buscar as bicicletas e materiais no Largo da Batata, levar para a Praça e depois voltar ao Largo para guardar é muito trabalhosa. Só que faremos algumas atividades extras por lá. Agora temos duas oficinas de aprender a pedalar no mês, e uma delas será itinerante e com certeza voltaremos a fazer algumas na Praça Vegana. A Cozinha São Paulo é um projeto muito bacana que na minha opinião deve se espalhar para outros pontos. E acredito que a mudança na Praça se deve a alguns fatores e não somente a Cozinha SP. Após a colocação do Bicicletário e da Cozinha, as rondas da GCM se intensificaram na região, sempre que estávamos por lá apareciam algumas viaturas, o que não acontecia no início. E com isso os moradores em situação de rua saíram daquele local. Mas mesmo assim a Praça continua vazia. Costumo passar por lá várias vezes na semana, pois utilizo muito aquele bicicletário, e sempre vejo pouca movimentação. O dia que tem mais movimento é o domingo com a Paulista aberta e as ciclovias e ciclofaixas. E acredito que o movimento na Cozinha seja mais forte nesses dias também. Penso que todos os projetos (Bicicletário, Cozinha SP e Bike Anjo) são super importantes para a ocupação do espaço público e que todos devam ser replicados em várias regiões da cidade, mas que além disso ele seja ativo permanente com atividades o tempo todo para que o local seja “vivo” todos os dias e as pessoas tenham o costume de usar a qualquer momento e não somente aos fins de semana.”

MARCOS JANA, coordenador do projeto Bike Anjo - que por anos teve sua base na praça dos Arcos

DEPOIMENTO DE UM POLICIAL QUE ATUA NA REGIÃO Com alguns meses de vida, o projeto recebeu o feedback de um comandante da Polícia Militar, por meio de um telefonema. Na ligação, o oficial sugeria ao Instituto Mobilidade Verde que instalasse outro container, aos moldes da Cozinha SP, na praça Roosevelt. Isso porque, segundo ele, desde a instalação o número de reclamações relacionadas à violência havia caído em 90% na região da praça Marechal Cordeiro de Farias.

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3. IMPLANTAÇÃO



3. IMPLANTAÇÃO ESPECIFICAÇÕES TÉCNICAS Desenhada e projetada pela Zoom Arquitetura e construída pela Contain[it], a cozinha é um container de 2,26m de largura por 6,64m de comprimento, que conta com: forno combinado elétrico; banho-maria elétrico; fogão elétrico com quatro queimadores; mesa de apoio com duas cubas; lavadora de louças; coifa de encosto; armários suspensos; mesa de apoio; estufa elétrica; refrigerador horizontal; refrigerador vertical - tudo em aço inox. O container foi implantado na Praça dos Arcos em agosto de 2015.

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LIMPEZA DA COZINHA Os cozinheiros participantes tinham a responsabilidade total sobre a higienização da cozinha. Todos os dias, ao fim do período de vendas, deviam limpar o que foi utilizado (chão, fogão, panelas, forno, etc.). Quinzenalmente realizavam uma limpeza geral, que incluía a geladeira e as partes de difícil acesso. Também havia a exigência de utilização de sabão neutro e papel para a lavagem frequente das mãos, e álcool para a limpeza da bancada. Havia uma contratada todos os domingos para varrer a praça e auxiliar em caso de necessidade por parte dos cozinheiros. Para operar na cozinha foi necessário o certificado da Covisa, curso básico de manipulação de alimentos, além do uso obrigatório de touca e avental. Todos tiveram que usar touca e avental dentro da cozinha.

SEGURANÇA DO CONTAINER A cozinha é munida de um extintor de incêndio e dedeiras para casos de acidentes. As pessoas que operam dentro do container utilizaram sapato duro para evitar machucados em caso de queda de objeto pesado. Todos receberam instruções antes de operar qualquer equipamento do container.

Vista interna da cozinha | foto: IMV 33


DESENHOS TÉCNICOS

Medidas externas e desenho indicativo interno do container.

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SUPERVISÃO NUTRICIONAL E CONTROLE DE QUALIDADE: PARCERIA COM A ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE NUTRIÇÃO

As nutricionistas Laura e Marli montaram um check list (modelo anexo), no início do projeto, que a funcionária Amanda fazia cumprir diariamente. Ao chegar, ela seguia a checagem de limpeza (dividida por partes da cozinha) e temperatura (geladeira e alimentos). Também fazia a vistoria da etiquetação de todos os alimentos, com datas de validade. A partir dessas informações, produzia relatórios diários bem detalhados. Todas as segundas-feiras, ela fazia uma reunião com a equipe de cozinheiros, para discutir o dia a dia da cozinha e pontos de melhora. Uma vez por mês, uma das nutricionistas fazia uma visita para checar os relatórios e vistoriar a cozinha.

O CONSUMO DE ENERGIA ELÉTRICA: PROGRAMA DE ECONOMIA/CONSUMO DE ORGÂNICOS/ESTÍMULO À ECONOMIA SOLIDÁRIA

Para incentivar o consumo consciente de energia elétrica por parte das equipes, o Instituto instaurou um programa que transformasse cota de economia em produtos orgânicos para matéria prima. Quando a Cooperapa solicitou que as compras de orgânicos fossem feitas utilizando algum intermediário entre Cozinha SP e pequenos produtores, por questões de quantidade X distância, foi sugerido o nome 36

Instituto Chão. A associação sem fins lucrativos, que trabalha com economia solidária, então, se tornou a fonte de abastecimento para os cozinheiros. A cada mês, de acordo com a economia feita no uso da eletricidade, os empreendedores receberam um vale-compras no valor médio de 400 reais para ser utilizado na entidade localizada na Vila Madalena, na compra de seus insumos.


COM O PROGRAMA DE REDUÇÃO DE ENERGIA, SAÍMOS DE 1500 KWH AGOSTO/2015 PARA MENOS DE 300 KWH AGOSTO/2016.

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DEPOIMENTO DA FUNCIONÁRIA DO COZINHA SP “Comecei como funcionária da faxina, no projeto, e nunca havia vindo para São Paulo. Trabalhei como recepcionista e vendedora de roupa, em Suzano. Com a saída do Reinaldo, passei para o controle geral e para o cuidado da cozinha no geral. Foi bem importante pra mim, principalmente no aprendizado social. Eu tinha outra ideia sobre os moradores de rua. Seria interessante que o funcionário de apoio tivesse experiência na área. Eu vim a fazer um curso de controle de qualidade no meio do projeto e agora pretendo trabalhar com isso, mas no começo eu seguia os manuais. Também seria importante que essa pessoa tivesse um espaço próprio. Três pessoas operando dentro do container já deixa o espaço muito reduzido.”

AMANDA NASCIMENTO DA PAZ, contratada para apoio, supervisão e fiscalização da Cozinha

MENTORIA DO PROJETO COZINHA SP: O PROCESSO

Para o acompanhamento do processo de desenvolvimento dos cozinheiros foram selecionados e convidados profissionais altamente reconhecidos em suas áreas de atuação, de forma que pudessem compartilhar conhecimento e experiência. Um dos primeiros convidados foi Checho Gonzales, pioneiro no trabalho de comida de rua de qualidade e nas feiras gastronômicas. Além de Dagoberto Torres, um dos principais nomes relacionados à cozinha em São Paulo. Em seu país de origem, a Colômbia, participou de projetos sociais focados na recuperação de presidiários através da gastronomia, além de ter como sócio uma pessoa de extenso conhecimento financeiro - sua área de foco na contribuição para o Cozinha São Paulo. Selecionado o participante, ele foi chamado para uma reunião com os mentores e o Instituto Mobilidade Verde, para que apresentasse a sua equipe e o projeto a ser desenvolvido. A partir disso, a equipe recebeu dicas e provocações para a criação de sua identidade e cardápio, que deveriam ser apresentados em aproximadamente uma semana, em um segundo encontro com as mesmas pessoas. 38

Nesta etapa, a equipe apresentou um menu degustação com os pratos que pretendia vender no projeto, expondo custos, lucros, ingredientes e logísticas – tudo avaliado e criticado pelos profissionais presentes. Fechado o planejamento, a equipe fez uma visita aos empreendimentos dos mentores, em uma espécie de estágio. Eles passaram um dia juntos para acompanharem o dia a dia do negócio funcionando, seja na cozinha ou no escritório. Ali receberam lições práticas, teóricas e logísticas, de profissionais renomados no campo gastronômico. A partir do início das atividades de cada equipe no container, os mentores foram convidados a visitar a equipe em operação, que também era supervisionada semanalmente pela equipe de nutrição. Além disso, foi contratada uma pessoa que abria e encerrava as atividades da cozinha junto ao grupo, coordenando e fiscalizando questões de organização, limpeza etc.


MENTORES QUE PARTICIPARAM DO PROJETO Dagoberto Torres – Chef do Restaurante Suri Checho Gonzales – Chef da Comedoria Gonzales Carlos Sifert – Chef e Consultor Jorge Gonzáles – Chef e sócio do Buzina Food truck Ana Rodrigues – Sócia do Buzina Food truck Betty Kovesi – Escola de Cozinha Wilma Kövesi Arpard – Kairós / Cooperapa ( Produção e Distribuição de orgânicos ) Associação de Nutricionistas de São Paulo Fernanda Danilon - Instituto Guandu – Compostagem orgânica Sofia Carvalhosa – Comunicação em gastronomia

DEPOIMENTOS DOS MENTORES NA AVALIAÇÃO DO PROJETO E DE SUAS ETAPAS “Sou muito fã do projeto, uma experiência nova que poderá dar muitos frutos, se for feita uma reciclagem com base nas experiências do piloto. Justamente por acreditar no projeto, e por entender que é muito complexo, fiz uma avaliação bastante crítica e até autocrítica das etapas e das falhas que ocorreram. Por parte de nós, mentores, faltou um verdadeiro projeto de mentoria, que só poderia ser elaborado agora, após a avaliação de todo o processo, já que o projeto é novo e não poderíamos adivinhar todos os problemas. No que poderíamos ser mais colaborativos? Já no processo de escolha dos cozinheiros, nós mentores poderíamos unir conhecimentos e buscar candidatos que atendessem ao escopo do projeto, ou seja, dar uma oportunidade a pessoas que tenham um perfil empreendedor, mas que não possuam recursos para abrir seu próprio negócio. Apenas um dos cozinheiros que passaram pelo Cozinha SP tinha esse perfil, o Wellington. Ele veio da periferia, demonstrou muita vontade, criatividade e humildade para obter o máximo de informações e experiências. Não senti em nenhum dos outros cozinheiros a mesma disposição. Ficou evidente que pessoas com esse perfil são raras, muitos candidatos sem recursos não têm perfil empreendedor, e também não se pode esperar que o candidato ideal venha através de edital, o que de fato não ocorreu. Num eventual novo ciclo do projeto, seria interessante ir buscar cozinheiros com esse perfil nas próprias comunidades da periferia, fazendo contato com coletivos locais que possam indicar essas pessoas e permitir uma boa triagem. Uma falha que percebi em várias equipes de cozinha foi a falta de entrosamento entre os membros, ou seja, o cozinheiro e o (os) ajudante (s). Alguns ajudantes estavam desmotivados, vários até abandonaram a equipe logo no início do trabalho, o que complicou muito a continuidade. Ficou evidente que alguns cozinheiros haviam convidado seus ajudantes sem prever pagamento pelos serviços, outros trabalhavam apenas em troca de alimentação. Essa questão teria que ser discutida com muita clareza com as 39


equipes, pois se a ideia é esses cozinheiros aprenderem a gerir seu próprio negócio, precisam entender desde o início que ninguém pode nem deve trabalhar de graça. Um projeto de mentoria bem elaborado, com mais reuniões e oficinas, poderia apoiar melhor as equipes durante sua trajetória, fazendo um diagnóstico dos problemas que surgiram em cada etapa e que precisariam ser evitados nas seguintes. Cada mentor deveria ter um papel mais claro, dentro de sua expertise, ou seja: um orientaria as equipes com respeito à questão de compras e custos, outro faria uma supervisão do controle de qualidade, outro daria consultoria para atendimento aos clientes etc. etc. Dessa forma, todas as atividades de trabalho seriam supervisionadas, o que poderia diminuir os problemas. A maioria dos cozinheiros também não fizeram sua parte, deixando de nos passar informações importantes, como o número de pratos vendidos diariamente, mudanças no cardápio, mudanças de horário etc. Alguns não compareceram às reuniões marcadas e assim perderam oportunidades de aprendizado e conhecimento. Senti muita falta de informações sobre a sustentabilidade do projeto, que é para mim o aspecto mais importante. Algumas equipes se deixaram levar por uma espécie de romantismo e perderam o foco, que era ganhar experiência e autonomia na gestão. Sem disciplina e organização, nenhum projeto se torna sustentável. Projeto social nada tem a ver com “caridade”. A fixação do preço de 15 reais o prato se revelou inadequada, especialmente nos últimos meses do piloto, quando a alta de preços disparou. Essa questão também dificultou muito a aquisição de ingredientes orgânicos, uma das pontas do projeto. A comunicação também poderia ser melhorada. Faltou uma boa estratégia de comunicação com os prédios do entorno, muitos deles de escritórios, portanto de pessoas que costumam almoçar nas redondezas. Essa comunicação é necessária, pois apesar da reforma da praça e da instalação da cozinha, muitos ainda têm medo de circular por lá, especialmente quem vem da avenida Dr. Arnaldo. Por isso, o ideal seria cada nova equipe se apresentar aos zeladores dos prédios, distribuir folhetos e mostrar que o projeto funcionou e teve diversas etapas. Isso diminuiria a inibição das pessoas e a frequência da praça poderia aumentar durante os dias de semana. A divulgação através do facebook foi legal, mas faltou uma estrutura melhor de comunicação, como fazem as feirinhas gastronômicas, que usam estratégias muito eficazes através do instagram e do twitter. Todas as falhas que relatei pretendem fazer uma crítica construtiva, demonstrando a importância da avaliação contínua e do feedback em projetos pioneiros e promissores como este.”

DAGOBERTO TORRES, chef do Restaurante Suri

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“O projeto é muito bacana, cria e fecha um ciclo empreendedor interessante. Além de revitalizar um ponto da cidade.Wellington foi um processo muito legal, ficamos próximos. Ele chegou no meu estabelecimento com humildade e abertura para receber o que tínhamos para passar. Ronaldo também entrou sem pretensão. E não que ambos não tivessem experiência - até por conta disso já tinham a noção de que entrar numa outra cozinha requer outra postura. Não é possível receber alguém novo e dar tarefas complexas, por isso o que faziam era desossar frango, fatiar queijo, escolher folhas, etc. Depois desse período na produção, passaram pro caminhão - onde tiveram acesso à dinâmica de vendas e logística. Jonathan e Luciana não completaram o dia conosco, o que me deixou chateado. Não senti humildade da parte deles, pois fizeram um pouco da produção e já foram embora. Para os dois primeiros, o projeto era importante, para que voltassem às suas quebradas mais fortalecidos, fechando um ciclo. Os dois últimos fizeram como uma passagem, sem propósito ou necessidade, na intenção de gerar conteúdo apenas pra eles próprios. Para mim, além das relações ótimas que criei com o projeto, me fez olhar ainda mais para o retorno que damos à comunidade com o nosso trabalho na rua. Comecei a chamar mais gente do Capão Redondo para trabalhar comigo, fizemos um dia do hambúrguer lá, com lanches gratuitos no dia das crianças.”

JORGE GONZÁLEZ, chef e sócio do Buzina Food truck

“Quando conhecemos o projeto, logo nos interessamos pela ideia de poder auxiliar no ofício de jovens cozinheiros que não teriam a experiência de empreender seu próprio negócio. Pessoalmente, pude auxiliar com a minha experiência de atendimento e serviço dos anos que estive em restaurantes, e a mescla desse serviço com a realidade do serviço e logística de servir na rua. Aprendi com eles também a necessidade de se adaptar em um container no coração de São Paulo, a Av. Paulista, porém em um lugar pouco frequentado. Acho que nem todos os cozinheiros que passaram pelo projeto se beneficiaram das experiências e conselhos dos mentores, porém mesmo assim acredito que tiveram um aprendizado. Acho que o projeto pode crescer como um todo, na organização, na escolha dos candidatos e no planejamento para um real aproveitamento da mentoria. Acredito que mesmo com dificuldades na busca dos cozinheiros o projeto deveria retornar à ideia inicial de recrutar candidatos com pouca experiência, de comunidades, porém prever mais subsídios para esses candidatos. Promover um pequeno curso preparatório

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onde os candidatos aprendam o ofício como profissionais. E que o tempo com os mentores, individualmente, seja maior.”

ANA RODRUIGUES, sócia do Buzina Food truck

“A minha cozinha é pequena, então durante a mentoria os cozinheiros ficavam ao lado, observando o funcionamento do negócio. Acho que alguns dos participantes aproveitaram e outros não. O início, com o Wellington, foi bem legal. Ele tem um perfil que acredito ser aquele com quem deveríamos trabalhar. Ele é do Capão e não tinha experiência. Os outros meninos não queriam aprender nada. Jonatas já tem experiência e presença nos espaços. Estava passando por um momento egocêntrico, que não precisa de ninguém. Então pra que procurar o projeto? O nosso sentido [mentores] termina. Ele queria participar para ter, talvez, um aluguel gratuito. O Ronaldo já tinha um negócio na casa dele e precisava de algo para fazer eventos, chamar público. Ambos usaram o projeto. Em relação às meninas, eu vi uma super dinâmica. A Lu tem uma personalidade tremenda. Acho que são as que mais se desenrolaram, mas também têm uma postura de já saber o que fazer e se apoiaram no Cozinha SP. Acredito que houve um desvio do projeto. Se a ideia era trabalhar com quem não tem condições, como um guia, esse guia foi usado indevidamente no meio do caminho. Precisaria trabalhar a triagem de uma outra forma. Acho que o projeto é redondo e muito legal, só precisa de mais tempo para que possa ir se ajustando.”

CHECHO GONZALEZ, chef da Comedoria Gonzalez

“A minha cozinha é pequena, então durante a mentoria os cozinheiros ficavam ao lado, observando o funcionamento do negócio. Acho que alguns dos participantes aproveitaram e outros não. O início, com o Wellington, foi bem legal. Ele tem um perfil que acredito ser

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aquele com quem deveríamos trabalhar. Ele é do Capão e não tinha experiência. Os outros meninos não queriam aprender nada. Jonatas já tem experiência e presença nos espaços. Estava passando por um momento egocêntrico, que não precisa de ninguém. Então pra que procurar o projeto? O nosso sentido [mentores] termina. Ele queria participar para ter, talvez, um aluguel gratuito. O Ronaldo já tinha um negócio na casa dele e precisava de algo para fazer eventos, chamar público. Ambos usaram o projeto. Em relação às meninas, eu vi uma super dinâmica. A Lu tem uma personalidade tremenda. Acho que são as que mais se desenrolaram, mas também têm uma postura de já saber o que fazer e se apoiaram no Cozinha SP. Acredito que houve um desvio do projeto. Se a ideia era trabalhar com quem não tem condições, como um guia, esse guia foi usado indevidamente no meio do caminho. Precisaria trabalhar a triagem de uma outra forma. Acho que o projeto é redondo e muito legal, só precisa de mais tempo para que possa ir se ajustando.”

MARLI BRASIOLI, da Associação de Nutricionistas de São Paulo

“Achei incrível o projeto e poder participar como mentora. Senti que ajudei, no caso da Marmitaria Mirepoá, que foi do ciclo que participei. As meninas tinham uma visão muito ampla e pretensiosa. Misturava comida tailandesa, contemporânea e outras coisas - muito grande. Ao ter acesso às histórias de vida da dupla, da família, sugeri algo menor - “destruí” os planos delas na primeira conversa. Mas foi de uma forma positiva, que elas até deram o retorno, afirmando que eu tinha sido a pessoa que as ajudou a sintetizar no ponto de vista conceitual. Os outros mentores deram outras sugestões, como questões de custo. A mentoria é uma troca muito grande, tanto para o cozinheiro participante quanto para o mentor, que aprende com os sonhos dos jovens e ajuda, dando um caminho. Fui em um domingo na Praça dos Arcos, experimentei a comida e senti que elas tinham conseguido resumir e fazer uma coisa linda. Também achei incrível aquele lugar, que era limpo, tinha uma atmosfera coletiva, com o compartilhamento de mesas, moradores de rua em volta e o uso do espaço, que o deixava menos degradado. O bicicletário e o container trazem uma energia para o lugar que tira a degradação. O projeto é ótimo e deve ser continuado, tem várias funções: comida barata, revitalização de um pedaço da avenida Paulista que é esquecido e degradado, incubadora de jovens talentos da gastronomia. Para o futuro, acho importante fixar um nome só para a divulgação, mesmo que seja o mesmo lugar. Fiquei meio confusa, no começo, sem saber se era no mirante Pacaembu ou na Praça dos Arcos. Acho que também deveria ter um telefone no lugar, para que as pessoas pudessem se informar. Além de um comprometimento maior da Prefeitura com a limpeza, que acaba sendo feita pelos participantes do projeto. Acho importante isso que já

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acontece de não poder vender bebida alcoólica.”

SOFIA CARVALHOSA, Comunicação em gastronomia

“A dinâmica colaborativa que permeou o Cozinha São Paulo trouxe, ao meu ver, aprendizado aos mentorados e a cada um de nós, mentores. Quando Lincoln me contatou dizendo que o tempo entre a primeira mentoria e a estreia na cozinha seria de cinco dias brinquei, dizendo que, se funcionasse, mudaria minha forma de trabalhar. E mudei! Foi privilegio acolher o projeto na Escola Wilma Kövesi de Cozinha. Torço para que a iniciativa bem pensada e sólida de Lincoln Paiva tenha continuidade. Os cozinheiros que pensam em empreender e os espaços públicos de São Paulo merecem trabalhos e ocupações como esta.”

BETTY KÖVESI, Escola de Cozinha Wilma Kövesi

“Foi um enorme prazer poder contribuir com o Cozinha SP, desde o início o projeto se preocupou em atender inúmeras demandas da ocupação do espaço público sob os olhares e possibilidades da gastronomia, o que faz com que todo universo relacionado a ela seja envolvido, desde a busca por fornecedores e parceiros que tenham um produto sustentável, limpo e justo, até as boas práticas de cozinha tais como higiene, segurança alimentar e nutrição. Poder conhecer jovens cozinheiros com sonhos e ideais que são similares aos meus foi dos pontos importantes pessoalmente, pois tenho reforçado em mim a vocação e a escolha que fiz em trabalhar com educação e civilidade por meio do conhecimento da comida e de suas origens bem como atuar em treinamento de equipes para abertura de novos negócios para desenvolvimento local. No aspecto de realização pessoal também

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vi muito meu lado de administradora pública atrelado ao projeto pois sei que um pequeno esforço feito por muitas pessoas se transforma em algo grande e importante. Vê-los passar por testes de convencimento de que sua cozinha/comida de essência em geral não está em técnicas muito modernas, preparos mirabolantes, ingredientes caros e complicados imagino que tenha sido o grande aprendizado que cada um dos cozinheiros levou consigo ao final do seu ciclo no Cozinha SP. A prática e o contato com os clientes também seguramente ajudaram a trazer mais confiança e foram ponto crucial para os ajustes e acertos ao longo do período. Entendo que o processo deixou um pouco em aberto o fechamento com os mentores, acredito que esta teria sido uma etapa muito importante do pós-projeto de cada ciclo termos feito juntamente com os mentores uma cartilha de erros e acertos para que assim pudéssemos enriquecer com esta informação a equipe que estava por vir, ficaria esta minha sugestão. Minha sugestão seria: Quando a equipe seguinte(nova) estivesse preparando as comidas para serem servidas aos mentores - segundo encontro - poderíamos ter a equipe que estivesse (em atividade) presente para que fosse possível documentar e conhecer o que de fato funcionou e o que não funcionou das sugestões dadas no início do ciclo.”

MARINA HERNANDEZ, consultora e professora em gastronomia

Quando entrei foi tudo muito rápido. O projeto da cozinha já existia, mas não estava totalmente formulado, muitas questões não estavam desenvolvidas e precisavam da prática para que fossem testadas e adequadas. Foram três semanas entre ter o projeto no papel e estar com a cozinha pronta, já com Wellington trabalhando. O desafio foi juntar todo mundo. Ninguém se conhecia. Eu atuava como gestor do projeto e também como psicólogo – passava o dia inteiro lá. O mais dificil era ser gestor de pessoas. Tinha muito conflito, era novo pra todo mundo. Ninguém tinha trabalhado com cozinha, nem os cozinheiros nem o instituto. Havia um déficil grande, por causa dos custos de manutenção, que o patrocínio cobria apenas uma parte. Cabia a mim ajudar os cozinheiros a chegar numa verba que pagasse o restante. E a ideia era que os cozinheiros conseguissem dar continuidade a esta dinâmica quando tivessesm seu próprio negócio – bancá-lo e conseguir lucro. O projeto dá possibilidade a alguém que nunca teve opção, é seu momento de brilhar e mostrar suas capacidades. Um mês (como determinado no início para cada ciclo) era totalmente inviável para isso, inclusive desgastante para os mentores. Havia muita gente interessada, mas não havia capacidade administrativa para cumprir com o que o Cozinha propunha. Eu saí do projeto porque percebi que muitas

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coisas estavam fora do meu alcance. Eu sou designer, não administrador. Mas foi muito desafiador e uma experiência incrível, que me gerou muito conhecimento. Acredito que o projeto foi um sucesso e cumpriu com seu objetivo. Talvez o momento econômico atual também tenha afetado no desenvolvimento. Todo projeto tem a possibilidade de chegar ao seu máximo potencial, mas tudo depende das situações. Há cinco anos, estava todo mundo comendo fora. Talvez se não houvesse a crise, tivesse sido um sucesso ainda maior. Agora que vai passar pras mãos da Prefeitura, tomara que receba o apoio que necessita. Ele tem o potencial para ser igual o Mirante Nove de Julho e é uma grande questão, nesta nova etapa. A Prefeitura tem a capacidade de fazer muito mais, em relação a uma ONG, principalmente para apoiar eventos no lugar e aumentar o movimento da praça. É importante integrar o container no espaço. Dava a impressão que ele estava alienado, o que mudou um pouco com o grafite.”

REINALDO APABLAZA, gestor do projeto nos primeiros meses

“Projeto inovador de formação de cozinheiros e/ou chefs, que possibilita uma visão ampla da atuação na cozinha e envolve todos os elementos envolvidos - desde a produção agrícola, criação dos pratos, uso do espaço até destinação dos resíduos. Na parte que me tange o projeto foi bem interessante: possibilita aos chefes uma vivência de como são produzidos os ingredientes dos pratos que irão fazer. Também foi muito positivo para os agricultores receber os chefs nas suas hortas e a valorização da agricultura para a produção. Como cada chef passa pouco tempo na cozinha, não é possível desenvolver uma relação mais próxima de planejamento da produção e desenvolvimento conjunto de produtos. Se conseguíssemos trabalhar com uma agenda definida com antecedência, poderíamos trabalhar a produção de maneira mais integrada. Não foi possível fornecer produtos em grande volume, dada a baixa integração entre produção e consumo. Para os próximos seria interessante iniciar com a visita na produção e criar desafio de usar x por centro de produtos da agricultura local e orgânica.”

ARPAD SPALDING, coordenador de projetos do Instituto Kairós

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OS PARTICIPANTES DO PROJETO COZINHA SÃO PAULO

WELLINGTON RAMOS RECH, “Do Capão pro Mundo” agosto a outubro de 2015

SOBRE O CHEF/EQUIPE Morador do Capão Redondo, Wellington tinha pouca experiência na gastronomia quando entrou para o Cozinha SP. Isso, na visão dos mentores, foi essencial para que absorvesse abertamente tudo que lhe era indicado, tornando-se exemplo recorrente durante todo o período do projeto. De família nordestina, trouxe de lá as influências para seus pratos e conquistou clientes com “sabores afetivos” nos três meses que comandou a cozinha. Nesse período, recebeu ajuda de um funcionário do Instituto, depois trabalhou com sua família – o que gerou atritos – para então criar uma equipe, que fechou o processo com ele. Posteriormente, Wellington passou pelo food park Marechal Deodoro, em um período gratuito cedido pelos administradores do local (ContainIt), mas não continuou pela massacrante concorrência. Retomou, então, a sua atividade como professor e seus estudos. Atualmente faz pós-graduação em educação.

DEPOIMENTO DO WELLINGTON “Depois do encontro com os chefs de cozinha as coisas ficaram mais claras pra mim. Quando eu fiquei sabendo que o projeto seria na Paulista, fiquei muito preocupado e nervoso por causa do público - por ser da periferia e estar acostumado a cozinhar para amigos e família. Eu sabia que o público de lá era muito diversificado e exigente. Pensando nisso, pensei em um monte de coisas fora do meu contexto, tipo hamburger e buffalo wings, em busca de agradar esse público, mas não mostrar a minha cara. Foi aí que os mentores, principalmente o Checho, falou muito de contar a minha história através da comida. Foi fantástico! Aquilo abriu os meus olhos e me fez pensar muito. Tanto que já naquela noite eu bolei outro cardápio e trouxe como prato principal o trio capão, que foi um sucesso e o que mais vendeu, porque ali tava muito da minha história. Além do couscouz, que era o prato que a minha mãe fazia pra mim. Foi chocante quando eu entrei porque houve muita repercussão. No primeiro dia o prefeito estava lá, foram muitas as entrevistas. Mas logo foi melhorando. Eu tinha uma visão sobre as pessoas que frequentavam: achei que seria um bando de gente fresca, que ia chegar lá e olhar torto. Mas foi muito diferente e muito bom, conheci muita gente diferente e muitas portas se abriram e estão abertas até hoje. Fiz amigos que não imaginava que pudessem estar na minha rede de amizade. Pessoas que passavam por lá e que eu via que eram bem ricas - eu achava que iriam olhar torto quando soubessem que eu moro no Capão. A experiência foi muito boa, cresci como cozinheiro e houve muita quebra de paradigma. O 47


Lincoln também é um cara fantástico que eu admiro muito e que se tornou um heroi pra mim pelo que fez e faz por aí. Sempre acompanho as lutas sobre mobilidade. O projeto pra mim foi um sonho real, que me marcou e marca até hoje. Mudou meu olhar para muitas coisas e sobre a vida.

RONALDO MELO E GABRIEL MANARI, “Bença Vó Gastronomia” novembro de 2015

SOBRE O CHEF/EQUIPE Ronaldo teve sua infância na favela do Heliópolis. Após mudança de bairro, para o Ipiranga, foi ali que começou a montar seu próprio negócio - uma lanchonete informal na garagem de sua casa. Também lá conheceu Gabriel, cliente fiel que acabou se tornando ajudante na passagem pelo Cozinha SP. Durante o mês de novembro serviram quitutes tradicionais, como o lanche de pernil com uma maionese caseira de autoria de Ronaldo e a torta de frango.

DEPOIMENTO DO RONALDO (Ronaldo não quis dar depoimento)

JÔNATAS PASSOS E LUKAS FELIX, “Mistura Cultura” dezembro a fevereiro de 2016

SOBRE O CHEF/EQUIPE Morador da zona norte, mais precisamente da Vila Maria, Jônatas Passos foi provocado pela heterogeneidade de seu bairro. Por ali convivem paulistanos e pessoas de diferentes regiões, mas o que chamou a atenção do cozinheiro foi a quantidade de nordestinos e bolivianos. Foi então que ele começou a pesquisar sobre a cozinha desses dois lugares e montou um cardápio especial, batizado de Mistura Cultura, que junto a seu parceiro Lukas Felix, lançou no Cozinha São Paulo em dezembro. No cardápio fixo, ingredientes como a quinoa, o ají e o mote garantiram a presença da influência boliviana; o porco, couve manteiga e o coentro, a nordestina. O milho e a mandioca uniam as duas culturas. Além 48


disso, todos os dias, durante dois meses no projeto, a dupla trazia um prato diferente, com inspirações variadas. Organizaram na praça eventos com música, intervenções artísticas e até um mutirão de recolhimento, preparo e entrega de alimentos a pessoas em situação de rua. Hoje têm um empreendimento chamado Ilha, no bairro dos Jardins.

DEPOIMENTO DO JÔNATAS “Durante o processo de concepção do projeto fui me norteando pelo edital, queria contar uma história e fazer algo com viés social, criei essa dificuldade pois acreditava ser necessário levar ao publico a possibilidade de questionar o modelo seguido nos estabelecimentos comerciais e reiterado por grande parte dos frequentadores de restaurantes de alto padrão. Seguimos com o conceito da culinária andina e foco na cultura boliviana, priorizando ingredientes comuns em nossa mesa e utilizamos bastante variedades de milho e mandioca. Durante as consultorias modifiquei bastante o cardápio que havia planejado, queria utilizar miúdos, mas segui os conselhos do mentor Dagoberto Torres, que foram indispensáveis principalmente no âmbito comercial, financeiro e na viabilidade de vendas. Houve desencontro com um dos mentores e talvez desinteresse por parte de outros, mas afirmo que essa é a parte mais importante do projeto. O jovem empreendedor necessita de auxílio para entender o mercado de forma mais ampla. Tocar o projeto empiricamente é começar algo às cegas. Operação: o planejamento era de se manter aberto do meio dia até às vinte horas, e foi assim durante o primeiro mês, tivemos o feedback positivo com relação a isso, muitos que passavam pelo local não tinham a oportunidade de conhecer o projeto por conta do curto horário adotado dos cozinheiros anteriores. O horário de operação mudou por decisão do coordenador do projeto, não tinha mais a cópia da chave e só pude utilizar o espaço com a presença de um monitor que trabalhava até as 17:00 horas. Isso dificultou o pré preparo, logística de compras e armazenamento, e a limpeza. Adversidades climáticas atrapalharam bastante a operação, por ser fixado numa praça e não dispor de cobertura, nos dias de chuva ou muito sol o movimento foi ruim, o cliente necessita de um ambiente confortável e seguro para ter uma experiência satisfatória, outro ponto a ser melhorado é com relação a vedação do container, qualquer chuva mais forte fazia água entrar em abundância e muitas vezes a vazão de água dos ralos era insuficiente. Seria prudente a implantação de uma base da guarda civil metropolitana próximo ao container, o local é estigmatizado por ter sido durante muito tempo tido como perigoso. De fato, a Prefeitura ainda não conseguiu êxito na questão dos moradores de rua e do consumo de crack. Digo isso baseado em relatos de clientes e moradores da região, fiz algumas tentativas de utilizar o projeto como ponte para uma abordagem mais humana do problema, porém foram mal vistas por alguns grupos de moradores. Como empreendedor foi uma experiencia válida, tive oportunidade de lidar com clientes 49


de forma direta, saber das preferências de um público específico, conhecer restrições de aplicação prática com relação a documentação em sub prefeituras e entender melhor os problemas de gerenciamento financeiro de uma operação diária.”

LU GONZALEZ E EMANUELE FENERICH , “Marmitaria Mirepoá” fevereiro a abril de 2016

SOBRE O CHEF/EQUIPE Lu Gonzalez cresceu no Tatuapé, época em que compartilhava longas refeições com sua família de imigrantes espanhóis. Criada para ser dona de casa, como ela mesma conta ao definir seu ambiente familiar como machista, sabia que não era isso que queria, mas com uma coisa concordava: seu lugar era na cozinha. E é das raízes hispânicas que traz suas referências principais para a Marmitaria Mirepoá, lançada em parceria com Manu Fenerich, na passagem pelo Cozinha São Paulo. A sócia e produtora cultural, igualmente resgatou sabores de seu tempo de infância, no interior de São Paulo, e ainda conta com experiência administrativa. A ideia da Marmitaria Mirepoá é apresentar sabores afetivos, com releituras de pratos familiares, e oferecer a comida em embalagens de marmitex. A dupla fez muito sucesso em vendas durante sua passagem pela praça e tornou seu negócio conhecido entre os moradores e empresas da região, servindo também em eventos paralelos ao projeto. Elas seguem na gastronomia de rua, administrando uma marca na praça Benedito Calixto, atualmente.

DEPOIMENTO DE LU E MANU A Marmitaria e a Cozinha São Paulo: como três meses de vivência num projeto de gastronomia comunitária mudou nossa percepção sobre o espaço público e potencializou nosso projeto de gastronomia como forma de cultura. A junção de uma produtora cultural e uma chef de cozinha foi o que bastou para escrever um projeto que trouxesse a acessibilidade à gastronomia em sua forma mais pura e simples, principalmente, como fator cultural juntamente com o feminino na gastronomia e a Cozinha São Paulo foi o que deu o pontapé inicial para que ele saísse do papel. Em fevereiro ocupamos o container localizado na Praça dos Arcos, ao lado da nossa casa. A princípio nos questionávamos dos porquês de nenhuma mulher ter ocupado até então aquele espaço tão incrível e toda a vida que ele trouxe à uma praça que, por muitos anos, era povoada por usuários de drogas e sem nenhuma segurança. O primeiro mês, basicamente, foi de intensa comunicação verbal com os moradores do entorno e usuários da praça que foram se familiarizando e se identificavam com a 50


nossa comida não gurmetizada, de valor acessível e inspirada nas receitas das nossas famílias. Podemos afirmar que o famoso “boca-a- boca” foi fundamental e surtiu melhor efeito, para o nosso projeto especificamente, do que as redes sociais. Conquistamos um novo público, os usuários passaram a ser solidários a nossa presença e, por muitas vezes, fomos boas ouvintes de muitos. Claro que nem sempre foi assim. Alguns, até mesmo os mais próximos, por motivos óbvios (como excesso de drogas, por exemplo), foram indelicados diversas vezes, abordando clientes, nos tratando como se fôssemos obrigadas a alimentá-los, entre outras situações. Percebemos, então, o quão falho é o sistema de política pública e segurança na nossa cidade. Não precisou de muito para que percebêssemos a importância de estarmos ali, daquele container estar naquela praça e das mesas serem divididas para aproximar as pessoas, atualmente, extremamente tecnológicas e quase imperceptíveis. No segundo mês já recebíamos famílias com seus animais de estimação pela praça, ciclistas, jovens, senhores, crianças, artistas de rua, roda de choro, pessoas aprendendo a andar de bicicleta e assim é até hoje. Encerramos o terceiro mês e demos continuidade ao nosso projeto, nos tornamos membros do grupo de moradores que trabalham voluntariamente em prol das melhorias do entorno, fidelizamos clientes e fizemos bons amigos que estão presentes até hoje. Tecnicamente, como o projeto era experimental e sabíamos disso, vivenciamos algumas falhas e participamos, ativa, direta e indiretamente, para que melhorias fossem feitas. Acreditamos que alguns pontos são interessantes de serem ressaltados: a comunicação através das redes sociais, para nosso projeto especificamente e como supracitado, não surtiu muito efeito. As pessoas que frequentaram a praça enquanto estávamos lá, iam por curiosidade, pelas flores na praça, pelo nosso atendimento e pela familiaridade com o nosso conceito. Tivemos também como ponto muito positivo a Cozinha São Paulo não permitir a comercialização de bebidas alcóolicas. É de extrema valia, inclusive, ressaltar que o conceito das marmitas foi devido à simplicidade da nossa história e não apenas para baratearmos custos. Seria interessante que a próxima equipe tivesse um conceito que a diferenciasse da anterior. Balanceando os pontos negativos e positivos, nossa experiência foi extremamente positiva e somos gratas ao Lincoln e todos os colaboradores da Cozinha SP por acreditarem em nosso projeto, disponibilizado seu tempo e seu trabalho, para que nosso projeto se concretizasse da melhor maneira possível e começado a engatinhar, criando forma da melhor maneira possível. Agradecemos a todos que fizeram parte dessa experiência única.”

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4. DEBATES SOBRE O ESPAÇO PÚBLICO



4. DEBATES SOBRE O ESPAÇO PÚBLICO DIVULGAÇÃO DO PROJETO COZINHA SP SITE COZINHASP.ORG Junto ao Núcleo Digital, montamos um site que fosse um canal com o público. Por meio da plataforma e das mensagens via celular e email, os cadastrados receberam as novidades que aconteceram na Praça dos Arcos. O endereço também foi atualizado a cada ciclo, apresentando o cozinheiro da vez e seus pratos oferecidos. Um mapa, linkado ao Google, mostrava exatamente a localização da base do projeto, para que mesmo aqueles que não conhecessem a região tivessem acesso.

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REDES SOCIAIS As redes sociais também foram usadas e conectadas ao site: Facebook e Instagram serviram como base para a comunicação direta com as pessoas, com informações diariamente atualizadas. Diariamente postagens mostravam fotos dos pratos e bebidas oferecidas, novidades entre as equipes ou acontecimentos na praça, além de informações a respeito de espaço público, no geral. Também usamos o Facebook, principalmente, para saber a opinião dos parceiros do projeto, convocá-los para a participação ativa em reuniões de mentoria, convidar novos participantes e tirar dúvidas de horário e funcionamento a quem interessasse.

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USUÁRIO OU CLIENTE? Desde o início, entendemos que os usuários da cozinha tinham dificuldade para entender que se tratava de um projeto social e não de um negócio. Eles colocavam-se na condição de “clientes” e exigiam alterações no cardápio, funcionamento do container em dias de chuva, maior rapidez no atendimento, emissão de nota fiscal etc. Alguns reclamavam inclusive do tamanho dos pratos, alegando que havia outros estabelecimentos no bairro que ofereciam maior quantidade pelo mesmo preço. Todas essas dificuldades levaram alguns voluntários do Instituto Mobilidade Verde a elaborar um banner afixado na praça, esclarecendo o caráter social do projeto. Não basta realizar um trabalho social, ele só vai ter um caráter transformador se houver uma discussão a respeito.

O MORADOR DA PRAÇA

O MOVIMENTO DE BIKERS

Tivemos como importante questão o convívio com moradores do entorno da praça. Inicialmente, a doação de alimentos era incentivada, mas percebemos que não seria viável alimentar a todos que pediam. Alguns apareciam com agressividade, como se fosse uma obrigação que a doação acontecesse a qualquer horário, ainda que houvesse clientes esperando por atendimento. Entendemos, então, que deve haver, sim, um suporte à pessoa em situação de rua, mas de forma organizada. A equipe Mirepoá, por exemplo, estabelecia horário, pós comercial, para a entrega de alimentos. Os integrantes do Mistura Cultura organizaram um dia de doação que envolvesse a população em geral e estimulasse a reflexão sobre a fome e o desperdício de alimentos.

O uso das bicicletas como meio de transporte é uma questão primordial para o fluxo da cidade, assim como instrumento de bem estar e lazer. A praça dos Arcos é um ponto de encontro, passagem e estacionamento de bicicletas, por isso buscamos estimular sempre a continuidade e o progresso dessa qualidade. Algumas das equipes ofereceram desconto para quem chegasse de bicicleta ou disponibilizaram embalagens especiais para os ciclistas. Temos claro que a presença de ciclistas e do bicicletário 24h na praça incentiva a presença de pessoas na praça e dá uma segurança maior a quem por ali passa e utiliza o espaço. Também atrai mais participantes para o Cozinha SP.

A REALIZAÇÃO DE EVENTOS NA PRAÇA Percebemos que a movimentação principal daquele espaço decorre da atividade comercial e empresarial do entorno, além da abertura da avenida Paulista aos domingos. A realização de eventos diversos atrai outro público, direcionado a cada um desses acontecimentos independentes. Isso contribui para a democratização do espaço e para a interação social entre diferentes indivíduos e grupos. 56


FAQ PERGUNTAS COLOCADAS POR USUÁRIOS DO PROJETO COZINHA SP NO DIA A DIA

O COZINHA SÃO PAULO PODE EMITIR NOTA FISCAL DE SERVIÇOS? Não, trata-se de um projeto social colaborativo e sem fins lucrativos, visando a ativação do espaço público, a interação social, o estímulo ao empreendedorismo e aos pequenos agricultores. Se houver necessidade de comprovante, pode ser dado um recibo simples, assinado pelo cozinheiro.

O COZINHA SÃO PAULO É UM FOOD TRUCK? Não, um Foodtruck é um empreendimento comercial, um veículo que se desloca de um lugar para outro a fim de garantir sua clientela. O Cozinha São Paulo é um projeto social implantado em um determinado lugar, a fim de torná-lo mais atraente e estimular mais pessoas a frequentá-lo.

QUEM IMPLANTOU O PROJETO PILOTO DO COZINHA SÃO PAULO? Foi uma iniciativa do Instituto Mobilidade Verde, uma ONG sem fins lucrativos que trabalha com Mobilidade Urbana e ocupação do espaço público, como meio de desenvolvimento social, criando projetos que ajudam a colocar as pessoas em contato com o meio ambiente urbano e com a sua comunidade, para discutir a cidade e torná-la mais humana. Sua execução só foi possível através do apoio e da colaboração de empresas, de cidadãos e da Prefeitura.

QUEM FAZ A MANUTENÇÃO DO PROJETO DO COZINHA SÃO PAULO? Durante a implantação do projeto piloto e supervisão do Instituto Mobilidade Verde, toda a responsabilidade era assumida pelo próprio Instituto. A partir do momento que o projeto foi doado à Cidade de São Paulo, essa responsabilidade passa a ser da Prefeitura, pois poderá tornar-se política pública.

COMO É O RELACIONAMENTO DO COZINHA SÃO PAULO COM OS MORADORES DE RUA? Por se tratar de um projeto participativo e solidário, os cozinheiros que participam do projeto são convidados a oferecer comida aos moradores que frequentam o local, sempre dentro de suas possibilidades.

BIBLIOGRAFIA ANDRADE de, Patrícia Alonso. Quando o design exclui o outro. http://www.agitprop.vitruvius.com.br/ revistas/read/arquitextos/12.134/3973, 2011. BORJA, Jordi. Espaço público, condição da cidade democrática – A criação de um lugar de intercâmbio (1). http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.072/353, 2006 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987. GOES, Ana Maria. A comida de rua na cidade de São Paulo: da marginalização à glamurização. GOES, Ana Maria; SALLES, Maria do Rosário Rolfsen. A Comida de Rua em São Paulo (SP) como atrativo turístico: uma análise preliminar. SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. Tradução: Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. SHAFTOE, Henry. Creating Effective Public Places. Earthscan, 2012. 57


APRENDIZADO DO INSTITUTO: Há mais de 10 anos o Instituto Mobilidade verde atua no espaço público como forma de gerar experiências urbanas que promovam a cidadania e a conexão ser humano com a cidade onde vive. Através destas experiências, outras entidades públicas e privadas puderam aprender com o desenvolvimento de novas tecnologias sociais desenvolvidas pelo Instituto, tais como: o projeto Bicicloteca, misto de biblioteca móvel que dava acesso a cultura para cidadãos em situação de rua, o Pedal Social que empresta bicicletas para quem não tem recursos para utilizar o transporte público, o Campus Aberto que ajuda estudantes a encontrarem carona para estudar, as rotas literárias no centro de SP incentivando a cultura e a mobilidade a pé, introduzimos os parklets em São Paulo e depois foi compartilhado através do manual para centenas de outras cidades brasileiras, desenvolvemos, os primeiros Pocket Parks e diversos espaços públicos. A Cozinha SP é mais um projeto inovador desenvolvido pelo Instituto Mobilidade Verde, cujo objetivo era testar novas formas de ocupação de espaços públicos através da gastronomia. Entendemos que o projeto é viável após testar diversas maneiras de inserir o cozinheiro amador e profissional para ativar o espaço público através de um projeto social, é possível através deste aprendizado corrigir o rumo, aparar arestas e incentivar a produção orgânica, microempreendedorismo e a ocupação de praças abandonadas. Com este manual, é possível verificar os feedbacks de todos os participantes, usuários e colaboradores.

EQUIPE COZINHA SÃO PAULO: Coordenador Geral Lincoln Paiva Urbanista Letticia Rey Pesquisa Giulia Pierro Comunicação social Luisa Coelho Comunicação Visual Monica Yuri Projeto arquitetônico Zoom Arquitetura Editoração Mila Fraga Controle de qualidade da cozinha Amanda Paz Gestor inicial Reinaldo Aplabaza Serviços Gerais Mari Silva Serviço de segurança Alexandre Martins Construção Contain(it)

AGRADECIMENTOS Moradores e trabalhadores do entorno da Praça, Prefeitura de São Paulo, Banco Itaú, Sabesp, Eletropaulo, Subprefeitura Sé Secretaria de desenvolvimento urbano, Nabil Bonduki, Renato Cymbalista, Mentores da Cozinha, Produtores orgânicos de Parelheiros, Cozinheiros, Rabino da quebrada, Bicicletário da Praça dos Arcos, Ciclistas, Claudio - Morador de rua do entorno da praça , População da cidade de São Paulo.

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PARA MAIORES INFORMAÇÕES: contato@mobilidadeverde.org


COZINHASP.ORG


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