Jornal n.º 115

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SETEMBRO 2017

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Descentralizar ou desresponsabilizar?

✓ José Alberto Lourenço

A descentralização administrativa, conforme a Constituição, tem por finalidade assegurar o reforço da coesão nacional e da solidariedade inter-regional e promover a eficiência e a eficácia da gestão pública na defesa dos direitos das populações.

T

odavia, ao longo das últimas décadas as várias iniciativas de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais têm ficado muito longe desses objectivos. Desde 1984, com o Decreto-Lei nº 77/84, de 8 de Março, que estabeleceu o regime da delimitação e da coordenação das actuações da administração central e local em matéria de investimentos públicos, um conjunto de atribuições e competências passaram para as autarquias locais, permitindo ao poder central desresponsabilizarse de um enorme volume de investimentos, nomeadamente na rede de escolas do ensino básico, centros de educação do ensino pré-escolar, bibliotecas, museus

municipais e instalações e equipamento para a prática desportiva e recreativa de interesse municipal. A situação mais grave foi sem dúvida a que se registou com as escolas do ensino básico, quase todas construídas nos anos 50 e 60, pouco ou nada equipadas, e que foram deixadas nos braços dos municípios. Já nesse tempo os governos não só não cumpriam a lei das finanças locais, como, com a chegada dos fundos comunitários, aplicaram o financiamento para reconstrução e construção de escolas apenas nos níveis de ensino que permaneceram sob a responsabilidade do poder central. Para os municípios ao longo dos vários quadros comunitários

legitimidade constitucional para as assumir.

Autarquias depauperadas

sobraram apenas e sempre as migalhas libertadas pelos vários programas nacionais. Mas seja no parque escolar do ensino básico, seja no parque habitacional público cada vez mais degradado, seja da rede rodoviária de âmbito municipal, ou da entrega de empresas municipais de transportes públicos e outros, a transferência de competências e atribuições para as autarquias traduziu-se invariavelmente

no alijamento de responsabilidades para os ombros do poder local.

Competências e recursos A nova proposta de lei entregue pelo actual governo na Assembleia da República, associada a um conjunto de decretos-leis sectoriais, pretende estabelecer um novo quadro de transferência de competências para as autarquias locais e para as

Proposta do Governo não garante direitos sociais

STAL questiona descentralização em audição na AR O STAL tem vindo a alertar para os perigos do projecto de descentralização de competências para as autarquias. Em duas audições realizadas na Assembleia da República, a primeira a 24 de Maio e a segunda a 4 de Julho, o Sindicato reafirmou a sua posição de que a proposta de lei do Governo não garante o acesso universal a direitos estruturantes da sociedade e constitucionalmente consagrados, como a saúde e educação, e não acautela, o direito à profissão, à carreira e ao vínculo estável, entre outros direitos dos trabalhadores. O STAL observou que o projecto apresenta apenas uma lista de

competências sem qualquer indicação precisa dos meios do futuro quadro legal de atribuições. Por outro lado, questionou a benevolência dos objectivos proclamados, lembrando que o poder central tem vindo a promover a concentração e apropriação de serviços públicos que histórica e juridicamente pertencem à esfera do Poder Local. É o caso da água, do saneamento e dos resíduos, sectores com grande potencial de lucro para o capital. Não se entende, pois, que agora se considere que as autarquias dispõem de condições orgânicas para assumir atribuições em matérias como a Saúde, a

Educação ou a Segurança Social. Para o STAL, este processo apelidado de «descentralização» terá como consequência a desresponsabilização do poder central de funções sociais essenciais que lhe estão acometidas. Após sucessivos anos de incumprimento da Lei das Finanças Locais e de políticas de redução dos recursos humanos e financeiros, a generalidade das autarquias não tem meios nem estrutura orgânica para gerir as novas áreas, o que resultará necessariamente na negação de direitos sociais fundamentais, nas áreas referidas.

entidades intermunicipais. Uma vez mais trata-se de um enorme pacote de transferências que se estendem às áreas da educação, acção social, saúde, protecção civil, cultura, património, habitação, áreas portuário--marítimas, áreas urbanas de desenvolvimento turístico e económico não afectas à actividade portuária, praias marítimas, fluviais e lacustres, cadastro rústico e gestão florestal, transportes e vias de comunicação, estruturas de atendimento ao cidadão, policiamento de proximidade, saúde animal, segurança alimentar, segurança contra incêndios, estacionamento público e modalidades afins de jogos de fortuna e azar. A proposta de lei é bastante detalhada quanto às atribuições e competências a transferir, porém é muito vaga sobre os meios financeiros, humanos e patrimoniais que serão alocados simultaneamente às autarquias locais. Por outro lado, prevêse a transferência de competências cuja escala é supramunicipal, mas ignora-se a necessidade da criação de autarquias de nível regional (regiões administrativas), as únicas com capacidade e

Nos últimos 40 anos, a Lei das Finanças Locais nunca foi cumprida pelos sucessivos governos, ao mesmo tempo que as restrições à autonomia do poder local em matéria financeira, orçamental, organizacional, material e humana aumentaram ano após ano. Com a última alteração à lei das finanças locais de 2007, por exemplo, os municípios viram as suas transferências do Orçamento de Estado cair cerca de 350 milhões de euros por ano. As autarquias foram também nos últimos anos o subsector do Estado que mais reduziu o emprego, em consequência das imposições do poder central, realidade que levanta as maiores preocupações em relação à sua capacidade actual para assumirem, sem perda de qualidade do serviço público, novas competências. Depauperadas de recursos humanos e financeiros, este pacote de descentralização, se não for amplamente discutido, avaliado, dotado dos recursos humanos e financeiros, poderá representar o toque de finados do poder local democrático de que tanto nos orgulhamos e que tanto deve aos trabalhadores da administração local. Possivelmente é isso que alguns pretendem. Descentraliza-se, pensam eles, e se as autarquias locais não forem capazes de gerir, que concessionem ou privatizem. É contra estes perigos que os trabalhadores da Administração Local organizados em torno do seu sindicato, o STAL, terão de lutar nos tempos mais próximos.


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