Um Rio Chamado Angústia

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—•— Lista de autores, por ordem de saída dos contos:

Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa | Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho | Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado | JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio | David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira | Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN inesmassas_icqmail.com ===zfMekNpd4ySncFK7H22LEv5ECOvQt3yBKCIe5UJ5Z9Y=


Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Eduardo Madeira Título: Um Rio Chamado Angústia Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-07-5 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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sobre o autor — •—

Eduardo Madeira Humorista, ator e argumentista, nasceu em Bissau, em 1972, e vive em Cascais. Começou a escrever humor para as Produções Fictícias, sendo coautor de programas como Herman Enciclopédia, Contra-Informação, Conversa da Treta e Os Contemporâneos. Escreveu ainda peças de teatro, telefilmes, filmes e vários livros, entre os quais destacamos Nove Estórias (2005). O seu conto Um Tigre não Bebe Tisanas está presente na Antologia do Humor Português (2008).

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Um Rio Chamado Angústia —•—

Eduardo Madeira

I —

Introdução Como se dá o nome a um rio? Quem o escolhe? Com que autoridade alguém um dia diz a partir de agora este rio vai perder os vários nomes com que ao longo dos tempos o foram baptizando; vai ver-se livre das alcunhas maliciosas dos poetas libertinos que nas suas margens se rebolaram com damas roliças (como Alphonso Gaspacho de Vega, que chamou Rio Regaço ao actual Rio Nérida, na Andaluzia); vai deixar de ter os apelidos de imperadores que o atravessaram a cavalo para não molharem a roupagem interior (o caso de Libório I, o Seboso, que deu nome ao rio Seboso, na Baviera); vai libertar-se dos cognomes ridículos dos reis que nas suas margens construíram palacetes de férias (tal como Dom Firmino III — O Bizarro, fez nas margens do Rio Bizarro, na Flandres) e passar-se-á a chamar apenas o nome que eu escolhi para ele, e, pumba, assim acontece por vontade desse indivíduo?! Que documento legal outorga ou institui o nome de um rio? Que documentação é necessária? A quem se deve assacar responsabilidades se a coisa correr para o torto? E, talvez a pergunta mais importante de todas, como se assume o pesado fardo de se ser o criativo que um dia deu a este ou àquele rio um nome que ficará para sempre e que pode, de uma certa forma, ou mesmo de várias formas, ser totalmente inadequado? São questões que afligem e sempre afligiram uma grande parte da sociedade e a maioria dos intelectuais ao longo de séculos. Wittgenstein, Jung, Marshall McLuhan, Sartre, Skinner, Chomsky, Wilhelm Reich, todos eles conheceram o incómodo de não conseguirem penetrar neste mistério. Embora um ou outro, não vale a pena agora referir nomes, tenha tido dificuldade em penetrar no que quer que fosse.


Serve isto para chegarmos ao rio que nos interessa. Um rio que é um enigma total. Estou a falar, claro, do Rio Gião. No entanto, sobre o Gião há sete tratados e onze enciclopédias, uma delas com 23 tomos, que o decifram, explicam e tornam um rio exposto, sem privacidade, nu. Uma espécie de socialite dos rios. Vamos por isso ficar-nos pelo seu afluente, o silencioso, poderoso, pantanoso e, aqui e além, algo peneirento Angústia.

II — Geografia e Clima O Angústia é um dos cinco grandes afluentes do Gião, juntamente com o La Toya, o Jermaine, o Janet e o Michael. Situa-se a norte da Cordilheira das Marmotas e a nordeste do Vale dos Esquilinhos Doentes, serpenteando e bamboleando-se pelos refegos como um réptil libidinoso com o cio. O seu leito rasga a região dos bosques da Farénia e atravessa depois, mais à frente, toda a região do baixo Tora. Esse percurso, considerado pretensioso pela maioria dos geólogos, e rotulado de ridículo por simples, mas sinceros, visitantes, deve-se ao Vulcão Bossa, que durante vários anos estremeceu e deitou lava de uma forma sistemática fazendo lembrar os períodos menstruais dos camelos fêmeas. No Inverno, o Angústia possui caudais generosos que permitem a navegação de barcos de médio e grande portes (pelo menos até Baldtown) e, no Verão, forma baixios que proporcionam as desovas da truta e da carpa, facto natural muito apreciado pelos habitantes da zona, pelos turistas e por um urso que tem comportamentos estranhamente contemplativos e existencialistas para o tipo de mamífero que é e para a quantidade de pêlo que ostenta. Três grandes cidades são banhadas pelo Angústia. Baldtown, a maior de todas, fica na República Central da Lambónia e é um importante “porto-mar” que possui aproximadamente oitocentos mil habitantes, segundo os sensos de 1996. Bikafefe, que fica no Nimambe e que terá na melhor das hipóteses duzentas e cinquenta mil almas, é outra dessas cidades. E, por fim, Reikabjorklund, que fica na Fiorávia e que, por ser uma afamada estância turística com praia, tem uma população flutuante na ordem dos cento e oitenta mil habitantes no Verão e apenas onze idosos no Inverno. Depois há também cidades mais pequenas que não merecem que se diga nada sobre elas.

III — A História O Angústia foi sempre, por culpa da sua personalidade, um rio de respeito. Com o tal caudal largo na época das chuvas permite a navegação de navios de grande porte, um factor de desenvolvimento que se confirma na prosperidade ostensiva e despudorada da longínqua Baldtown. Tal como o Angústia, Baldtown possui também uma denominação algo estranha, mas de muito mais fácil explicação, que se baseia nos imponentes e antiaderentes cocurutos glabros dos irmãos Liszt, dois jacobinos pedantes que a fundaram em 1611, abandonando-a logo em 1613. Refundaram-na depois em 1615 e tentaram abandoná-la de novo um ano depois, até que Hernani VII, o resoluto e impiedoso monarca da Lambónia, os condenou a parar com as constantes fundações de cidades (vício que há muito assombrava a brasonada e secular família Liszt), e a fixar-se em Baldtown para todo sempre. O que é certo é que quando os Liszt chegaram ao território onde hoje é Baldtown já alguém os tinha avisado, durante a viagem, de que aquele rio, que até ali os levara em três fragatas da marinha, era o Angústia. Esquecendo-se de perguntar a origem desse nome, acabaram por ter de o aceitar e dar como oficial, visto serem ambos muito honestos nessas coisas. Mas, se quisermos recuar, o que é certo é que durante anos as populações das margens discutiram


com uma intensidade exacerbada a origem do nome. As teorias seriam, no início do século XX, umas duzentas e trinta e oito, segundo defendeu no seu livro: “Tantas São as Doces Noites nas Margens do Angústia”, o antropólogo germânico Josef Zweig. Uma obra que nunca ninguém percebeu bem se é uma antologia de poemas, uma fotobiografia com poses escabrosas, ou um estudo preciso, mas algo envergonhado, sobre mecânica aeronáutica. Uma coisa é certa, Zweig era um mentiroso patológico e acabaria preso em Veneza depois de lançar um livro de História intitulado “As Quatro Cleópatras”, e de ter utilizado estranhas teorias acerca de certos comportamentos tribais na Ilha da Páscoa para casar com uma condessa herdeira de uma fortuna em frescos de Tintoretto, ovos Fabergé e pregadeiras de diamantes da família Van Cleef. Todavia, Zweig seria apenas um protagonista entre tantos outros. Em 1921 é publicada uma das mais sustentadas e lógicas fundamentações para o nome do rio. Foi defendida em Tull, uma cidadezinha insignificante e mortiça, mas com um importante centro académico. O líder da Teoria Tulliana era o professor de Ciência Política e História Vazili Guido Olavo. Os seus discípulos seguiam-no de forma cega. De tal forma que alguns foram, a certa altura, atropelados numa rua paralela à universidade quando caminhavam no seu encalço de olhos fechados e aos tropeções. Vazili sustentava que o nome Angústia remontava aos primeiros ocupantes da região, os Enfadonhos, um povo que vinha do Leste dos Balcãs e que se fixou ali por preguiça e por não possuir nenhuma vontade de chegar ao seu verdadeiro destino, as ilhas gregas, onde iria fazer férias. Escavações posteriores revelaram que os Enfadonhos tentaram por diversas vezes fazer reuniões para atribuírem um nome ao rio, mas acabaram por se dividir em dois grupos que se digladiaram, levando à sua extinção total. Não deixaram invenções, utensílios ou escritos de relevo. São por isso considerados o povo mais inútil e esmagadoramente imbecil de toda a história, mesmo contando com os séculos XX e XXI, tão profícuos em estupidez e alarvidade. Mas a teoria de 1921 é posteriormente suplantada em aceitação nos sectores mais esclarecidos por outra tese. Trata-se da Teoria Alexandrina. Segundo essa corrente o nome do rio deveu-se a uma gigantesca batalha travada no século III antes de Cristo por Alexandre, o Vesgo (que se pensa ainda ter sido da família de Alexandre, o Grande, por causa de um sinal igual que ambos possuíam no testículo esquerdo). A fúria expansionista de Alex, como lhe chamavam os amigos, leva-o às margens do Angústia, que na altura se presume tivesse vários nomes, como Rio Palhacinho, Rio Comodoro ou Rio dos Pudins. Na margem, Alexandre pede ao homem da barca, delicadamente e com a promessa de justa recompensa, que atravesse para o outro lado o seu exército de noventa mil homens, novecentas e cinquenta mulheres, cento e vinte mil cavalos e um vidente. O homem recusa-se, dizendo que com a sua barcaça, que levava apenas sete pessoas, demoraria trezentos e onze anos a fazer o serviço. E isso era-lhe impossível, visto que nessa mesma tarde tinha de recolher um rebanho de ovelhas de um tio e ir buscar os filhos à escola. Alexandre, que não aceitava um não, ficou furibundo e mandou atacar, matar e saquear tudo e todos na cidade mais próxima, que ficava a setenta quilómetros dali. Ao homem da barcaça, no entanto, não tocou com um dedo. Mas deixou-o ali, nas margens, com o coração apertado e cheio de angústia por ter sido o carrasco dos vinte mil habitantes da cidade de Neziria que, em virtude desse gesto irreflectido, se eclipsou. Esta versão histórica dos acontecimentos é, actualmente, e como já foi referido, a mais aceite, mas continua a haver grupos académicos defensores de outras doutrinas (os tullianos, os vandetis, os gansos molhados, etc) que se encontram frequentemente com os alexandrinos em congressos anuais que chegam a juntar setecentos homens e mulheres vindos de todo o mundo para discutirem a matéria a fundo e depois, à noite, fazerem jantares onde bebem demais e acabam nos quartos uns dos outros a satisfazerem-se sexualmente até à exaustão. Esse acto é aceite e considerado saudável, no sentido em que possibilita a libertação da pesada e sufocante angústia que afecta a esmagadora maioria da


população nos nossos tempos. Lá está, ainda e sempre, a angústia.

IV — Mil E Uma Elegias, Prosas, Canções e Poesias Se até aqui a história do Angústia tem aspectos perturbantes, mas comuns a qualquer outro rio do globo, a partir daqui tudo passa a ser de uma normalidade total, embora aqui e ali um nadinha inquietante. Ou seja, tudo fica na mesma. E isso deve-se ao simples facto de a origem do seu nome ainda ser, bem lá no fundo, uma questão em aberto. Mas foi essa mesma questão que levou a que em todas as zonas adjacentes ao percurso do Angústia tenham proliferado artistas que sobre ele se ocuparam. Na pintura destacaram-se os mestres Nisetto (1721-1802) e Bonaggio (1811-1878), e o génio absoluto que foi Detlef Cantinflas (1902-1983). Na música temos a obra colossal de Wolfgang Nitratus Holden (1690-1743), que dedicou ao Angústia mais de 90% da sua produção, da qual é de destacar a “Fantasie in C Minor” (Lento Assai — Allegro Energico — Andante Sostenuto — Allegro Energico — Andante Sostenuto — Lento Assai), as sinfonias nº4, nº7, e nº9 e meio, bem como as óperas “O Imperador, a Odalisca e o Angústia” e “A Profana e Divina Boda dos Lobos e das Odaliscas nas Impassíveis Margens do Angústia”, ou ainda a pungente opereta “Fidelio Morre de Indigestão nas Águas do Angústia para se Fazer de Herói perante uma Odalisca”. Também na Lambónia, mais precisamente em Baldtown, surge uma obra capaz de competir em importância com a de Holden. Trata-se dos concertos para cravo e piano de Giordano Gorgonzola (1780-1791), que maravilharam as cortes quando aos onze anos o pai de Gio o levou, doente com papeira, sarampo, peste bubónica e um resfriado ligeiro, a viajar mostrando o seu virtuosismo ao cravo e sua tez baça e doentia por vários países. No campo da escrita é o poeta e dramaturgo Basilis Fórceps-Gaton (1891-1959), de origem Nimambiense, que pontifica. Prémio Nobel em 1957 (ex aequo com Camus), recebeu ainda a Grã Medalha de Mérito Literário, Desportivo e Estético do Nimambe (Basilis era um homem bonito e um atleta muito razoável), A Real Gravata de Ouro da Academia de Artes e Letras da Fiorávia, e o Prémio Doutor Binoculi Sirocco, o mais alto galardão das letras da Lambónia. As sua obras “Garfadas e Garfadas de Areia”, “Bucho” e “Guinchinhos Histéricos” foram consideradas obras-primas da literatura, embora as duas primeiras fossem absolutamente ilegíveis e a terceira fosse apenas um livrinho de banda desenhada com uns poemas atrevidos no fim. No século XX temos ainda que destacar o sucesso internacional do actor Dieter Luhngm (protagonista de “Assassinos de Esferovite” e “O Rochedo Medonho”, onde contracena com Greta Garbo), a carreira apoteótica da cantora lírica Panoplia Biscosi, e o esmagador sucesso da banda de pop-rock The Bastards, que nos anos sessenta e setenta ombreou com as maiores bandas da época e vendeu cinquenta e três milhões de discos. O álbum conceptual sobre o Rio Angústia gravado em 1969, intitulado “The King Bizarr”, é hoje considerado por muitos uma Bíblia da escrita pop, um Alcorão da escrita de letras para canções pop e uma Cabala da escrita em conjunto de letras e canções pop. Um disco seminal, embora tenha uma capa meio apatetada, com os elementos da banda a tocarem guitarras enquanto pisam uvas num tanque com as calças arregaçadas.

V — Conclusão


Muito mais haveria para dizer sobre um rio cuja origem do nome permanece um mistério e que, ainda assim, foi refúgio de musas inspiradoras, de poetas e músicos, de pintores e escultores, mas também de batalhas sangrentas, de momentos trágicos e de alguns momentos que, bem vistas as coisas, têm o seu quê de comédia. Principalmente se tivermos em conta os bigodes e as suíças de alguns estadistas que marcaram a história geopolítica do rio e dos países circundantes. Mas o Angústia foi, segundo alguns, definitivamente descrito nas palavras inspiradas e inspiradoras de Tobias G. Morbidus, um dos maiores estadistas da Lambónia, no final de um discurso perante o Parlamento de Baldtown, quando disse, com a sua voz segura, mas num ligeiro falsete: O Angústia É Uma Força da Natureza Arrebatadora e Voraz Como Nenhuma Outra. Só Este Ano Já Me Levou Duas Bezerras e Um Cão! Creio que, com isto, o essencial está dito.

Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

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