Museologia.PT - Nº 2

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museologia.pt

nº 3 / 2009 tema do dossiê: museus e inovação tecnológica

museologia.pt museologia.pt nº 2 / 2008 Director do Instituto dos Museus e da Conservação Manuel Bairrão Oleiro Direcção da revista Clara Frayão Camacho Subdirectora do Instituto dos Museus e da Conservação

nº2/2008

Conselho editorial Alice Semedo Graça Filipe Ecomuseu Municipal do Seixal

dossiê gestão de museus

nº 2/2008 periodicidade anual

Instituto dos Museus e da Conservação

Na capa: Mesa II Exposição “Alvaro Siza - Expor” Museu de Serralves, 2005 © Moritz Elbert

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

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Instituto dos Museus e da Conservação

ano II, nº 2, 2008

João Brigola Universidade de Évora

João Castel-Branco Museu Gulbenkian

Luís Raposo Museu Nacional de Arqueologia e Comissão Nacional do ICOM

Raquel Henriques da Silva Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Coordenação editorial Alexandra Curvelo Textos Alexandre Pais Alexandrina Barreiro António Martín Pradas António Ponte Catarina Alves Costa Catarina Mourão Clara Camacho David Fleming Dóris Santos Filipe Serra Graça Filipe Helena Santos João Brigola João Pedro Fróis José Arnaud Judith Ara Lázaro Leonor de Oliveira Luís Raposo Manuel Bairrão Oleiro Mercês Lorena Odete Patrício Paulo Ferreira da Costa Pedro Lapa Raquel Henriques da Silva Roger Marcet i Barbé Susana Bessone

Traduções Alexandra Curvelo Ana Madureira Clara Mineiro Felisa Perez Apoio Ana Madureira Carla Rodrigues Nuno Fradique Edição e propriedade Instituto dos Museus e da Conservação Palácio Nacional da Ajuda Ala Sul, 4.º andar 1349-021 Lisboa Telefone: +351 21 365 08 00 Fax: +351 21 364 78 21

museologia.pt@imc-ip.pt www.imc-ip.pt Design gráfico Moritz Elbert Pré-impressão e impressão SOCTIP Distribuição e comercialização Lojas de Museus Palácio Foz, Praça dos Restauradores 1250-187 Lisboa

Periodicidade anual Preço por número 20 € Tiragem 1000 Exemplares ISSN 1646-6705 Inscrição na ERC nº 125160 Depósito Legal nº 258753/07 Agradecimentos Centro de Arte Manuel de Brito Francoise MacClafferty – National Museums Liverpool Fundação António Prates Fundação Ellipse João Herdade Museu de Arte Contemporânea de Elvas Museu do Chiado / Museu Nacional de Arte Contemporânea Museu Colecção Berardo Museu Municipal de Tomar – Núcleo de Arte Contemporânea Museu do Neorealismo Professor Bragança Gil Sonja Ameglio – Atelier Thomas Struth Os artigos são da inteira responsabilidade dos respectivos autores. Os textos e as imagens não podem ser reproduzidos sem autorização prévia do Instituto dos Museus e da Conservação ou de outros eventuais proprietários.


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nº2/2008

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nº 2/2008 periodicidade anual

Instituto dos Museus e da Conservação

Na capa: Mesa II Exposição “Alvaro Siza - Expor” Museu de Serralves, 2005 © Moritz Elbert

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

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Instituto dos Museus e da Conservação

ano II, nº 2, 2008

João Brigola Universidade de Évora

João Castel-Branco Museu Gulbenkian

Luís Raposo Museu Nacional de Arqueologia e Comissão Nacional do ICOM

Raquel Henriques da Silva Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Coordenação editorial Alexandra Curvelo Textos Alexandre Pais Alexandrina Barreiro António Martín Pradas António Ponte Catarina Alves Costa Catarina Mourão Clara Camacho David Fleming Dóris Santos Filipe Serra Graça Filipe Helena Santos João Brigola João Pedro Fróis José Arnaud Judith Ara Lázaro Leonor de Oliveira Luís Raposo Manuel Bairrão Oleiro Mercês Lorena Odete Patrício Paulo Ferreira da Costa Pedro Lapa Raquel Henriques da Silva Roger Marcet i Barbé Susana Bessone

Traduções Alexandra Curvelo Ana Madureira Clara Mineiro Felisa Perez Apoio Ana Madureira Carla Rodrigues Nuno Fradique Edição e propriedade Instituto dos Museus e da Conservação Palácio Nacional da Ajuda Ala Sul, 4.º andar 1349-021 Lisboa Telefone: +351 21 365 08 00 Fax: +351 21 364 78 21

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museologia.pt

nยบ 2/2008


apresentação Manuel Bairrão Oleiro director do Instituto dos Museus e da Conservação

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segundo número da revista Museologia.pt, correspondente ao ano de 2008, concretiza alguns dos objectivos traçados pela Direcção do Instituto dos Museus e da Conservação (IMC) para este veículo de comunicação, enunciados na apresentação do primeiro número da revista, editado no ano passado. Cumprindo os objectivos de apresentação das políticas patrimoniais, trazemos ao conhecimento do grande público as linhas mestras da estratégia delineada pelo IMC para o conhecimento, registo e divulgação do património cultural imaterial, no âmbito da qual têm decorrido uma série de colóquios – envolvendo a participação de centenas de interessados – onde se têm interessada e frutuosamente debatido os eixos de trabalho a desenvolver nessa nova e importante área de competência do Instituto. Indo ao encontro do objectivo de divulgar massivamente projectos e experiências, apresentamos exemplos do cruzamento possível entre os suportes de recolha áudio visual do património imaterial e os contextos expositivos mais tradicionais, da mesma forma que damos a conhecer intervenções na área da conservação e restauro, decisivas no aprofundar dos conhecimentos sobre obras de arte de referência do nosso património cultural e possibilitar, sobre elas, novas interpretações e inovadores enquadramentos museográficos. Reflectimos sobre a educação e os museus, sobre os públicos que os frequentam, sobre as especificidades das Casas-Museu e sobre a multiplicação de museus de arte contemporânea que tem marcado os tempos mais recentes do panorama museológico português. Damos a conhecer a história de um museu e a longa experiência de um museólogo de referência, Fomentando um salutar e amplo debate de ideias e perspectivas, o dossier sobre Gestão de Museus confronta opiniões diversificadas sobre o tema, cruzando experiências estrangeiras com diferentes abordagens por parte de profissionais da museologia portuguesa. Num tempo em que, a propósito de questões outras que não a gestão de museus, se repensam as obrigações e as responsabilidades dos Estados, a reflexão sobre o papel que cabe ao Estado na salvaguarda e divulgação do património cultural é, a todos os títulos, de grande oportunidade. O bom acolhimento de que foi objecto o primeiro número de Museologia.pt por parte dos profissionais do sector – que estamos convictos se repetirá em relação a este número da revista – permite-nos afirmar estarmos perante um objectivo plenamente atingido, por parte do IMC, no que se refere à concretização e disponibilização de uma plataforma de reflexão e debate, útil a todos quantos têm intervenção nas áreas dos museus, da conservação e restauro e do património cultural imaterial. A todos aqueles que tornaram possível a publicação do nº 2 de Museologia.pt (autores de artigos, membros do Conselho Editorial, colaboradores do IMC) expresso o meu grato reconhecimento.

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editorial Clara Frayão Camacho subdirectora do Instituto dos Museus e da Conservação

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órum de debate de questões e de problemas dos museus e da Museologia, lugar de divulgação de práticas inovadoras e reflexo de tendências culturais contemporâneas: assim se definia há um ano atrás as linhas de força da nova revista que então nascia. Se no número de arranque da Museologia.pt tentámos levar por diante estes objectivos, julgamos que é neste segundo número que a revista procura ir de forma cabal ao encontro daquelas orientações, privilegiando a novidade e a actualidade, fomentando o debate, quiçá estimulando a polémica. Vive este número de um conjunto de contributos, em que, a par da autoria de directores e de profissionais de museus, de responsáveis de organismos da área da Museologia e de gestores, de pessoas ligadas ao terreno, ganham mais espaço os investigadores e docentes universitários que, a partir da reflexão académica, investigam a realidade museológica e sobre esta produzem conhecimento. Apesar do papel desempenhado nas duas últimas décadas pelas universidades na formação em Museologia e pelo exponencial aumento das respectivas dissertações, raramente os resultados desta aproximação encontram abrangente divulgação, permanecendo escassos os casos de publicação. Em paralelo, dentro ou fora da órbita dos cursos de Museologia, emergem os projectos promovidos por investigadores e docentes universitários, que tomam por objecto de investigação os museus, fascinantes lugares de cruzamento interdisciplinar. Enquadrados os artigos na malha de rubricas temáticas definidas para a revista, iniciamse os Projectos e Experiências com um tema pouco abordado em contexto museológico: o do uso das imagens em movimento nos museus, a partir das experiências e práticas de Catarina Mourão e de Catarina Alves Costa, que nos propõem uma reflexão problematizante, baseada no seu próprio testemunho de cineastas com provas dadas na realização de documentários em colaboração com um significativo conjunto de museus. De acordo com as autoras, se um objecto nos dá pistas para histórias, técnicas e conhecimentos, uma imagem, um som, a escolha de uma palavra, uma entoação, uma hesitação dão-nos pistas para sentimentos, ambientes e sensações. Este mote leva-nos ao artigo seguinte, da autoria de Paulo Ferreira da Costa, sobre a documentação do património imaterial nos museus. Inscrito desde 2007 nas competências do Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), o património imaterial encontra na nova orgânica do Ministério da Cultura um lugar adequado, que se espera poder contribuir para um melhor conhecimento dos acervos dos museus portugueses, os quais frequentemente já dedicavam a este domínio uma especial atenção. Da área da conservação e restauro, também inserida desde 2007 nas competências do novo IMC, emanam os dois artigos seguintes: de Mercês Lorena, uma proposta de abordagem das pinturas flamengas do retábulo da Sé de Évora, que tinham sido já objecto de um artigo de Joaquim Caetano no número anterior, e cujas relevância patrimonial e amplitude do projecto de investigação nos pareceram justificar uma outra perspectiva neste número; de Alexandrina Barreiro e de Alexandre Pais, “O Divino Salvador”, remete-nos para as singulares etapas da vida deste objecto artístico, que se vem a converter em bem arqueológico e em potencial objecto museológico.

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A investigação universitária enquadra os artigos que se seguem. A João Pedro Fróis cabe um actualizado e abrangente ponto de situação conceptual sobre a educação nos museus de arte, iluminado com autores pouco conhecidos em Portugal e de ampla proveniência geográfica e com as mais contemporâneas teorias sobre a aprendizagem nos museus. Helena Santos traz-nos o tema dos públicos culturais e dos públicos dos museus, situando esta questão nos contextos internacional e português e ilustrando-a com alguns indicadores para sublinhar a necessidade da adopção de estratégias de conhecimento aprofundado dos públicos a partir dos museus. A fechar esta rubrica, António Ponte lança novos olhares sobre as Casas-Museu, num artigo decorrente também do contexto universitário, na sequência da sua dissertação de mestrado em Museologia. Na rubrica Exposições optou-se por eleger como tema único os museus e centros de arte contemporânea recentemente abertos ao público no nosso País, preenchido com um artigo de Raquel Henriques da Silva, que analisa as colecções, os edifícios, as actividades e os modelos de gestão de sete novos museus que vieram enriquecer o mapa museológico nacional. História e Memórias prossegue o objectivo de contribuir para a construção da História da Museologia Portuguesa, através da realização de entrevistas a profissionais da vida museológica nacional a quem muito devemos, desta feita a Fernando Bragança Gil, antigo Director do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, numa viva conversa guiada por João Brigola e Luís Raposo. E porque a História da Museologia se faz da História dos Museus, o artigo de Dóris Santos sobre o Museu José Malhoa, resultado da sua dissertação sobre este tema, vem acrescentar importantes contributos ao conhecimento do percurso museológico português do século XX. Dedicado à Gestão de Museus, o Dossiê central da revista abre com um artigo de enquadramento sobre os museus na contemporaneidade, de João Brigola, e incorpora artigos de autores portugueses (Manuel Bairrão Oleiro, Filipe Serra, Silvana Bessone, Pedro Lapa, Graça Filipe, Odete Patrício e José Arnaud), cujas diferentes perspectivas, inovadoras propostas e, nalguns casos, polémicas posições estimularão certamente o debate sobre esta problemática. Também a rubrica Internacional se centra neste número na Gestão de Museus, com os contributos de David Fleming, Judith Ara Lázaro e Roger Marcet i Barbé. Uma nova rubrica é integrada no segundo número da Museologia.pt com o objectivo de divulgar bibliografia especializada: Recensões Críticas de obras recentes nas áreas da Museologia e da Conservação e Restauro, com a colaboração de António Martín Pradas e de Leonor de Oliveira. Ao Conselho Editorial que ajudou a programar e a gizar esta revista e aos autores que nela colaboram e connosco partilham reflexões, práticas e experiências, o nosso enorme e reconhecido agradecimento.

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Manuel Bairrão Oleiro V Apresentação Clara Frayão Camacho VI Editorial

projectos e experiências Catarina Alves Costa, Catarina Mourão 3 Paulo Ferreira da Costa 17 Mercês Lorena 37 Alexandre Pais, Alexandrina Barreiro João Pedro Fróis Helena Santos António Ponte

53 63 77 91

Imagem em movimento nos Museus: experiências e práticas Discretos Tesouros: limites à Protecção e outros Contextos para o Inventário do Património Imaterial Pinturas flamengas do retábulo da Sé de Évora Análise material da série da Vida da Virgem – proposta conjuntural O “Divino Salvador”: questões históricas, de conservação e museografia Os Museus de Arte e a Educação. Discurso e Práticas Contemporâneas Públicos Culturais: algumas notas com museus em fundo Casas-Museu. Museus do Privado versus Espaços de público

exposições Raquel Henriques da Silva 113 Museus de Arte Contemporânea: uma extraordinária dinâmica

história e memórias João Brigola e Luís Raposo 128 Entrevista ao Professor Fernando Bragança Gil Dóris Joana Santos 135 História, discurso e ideologia – Como se fez o Museu José Malhoa


índice

dossiê - gestão de museus Clara Frayão Camacho João Carlos Brigola Manuel Bairrão Oleiro Filipe N. B. Mascarenhas Serra Silvana Bessone Pedro Lapa Graça Filipe

Gestão de Museus: modelos, desafios e mudanças A crise institucional e simbólica do museu nas sociedades contemporâneas Gestão e Museus – Contributo para uma reflexão Museus: a gestão dos recursos ou a arte de gerir a escassez Museu Nacional dos Coches. O desafio da gestão de um Museu Nacional Panorama museológico da arte contemporânea em Portugal, 2008 Património e museologia, planeamento e gestão para o desenvolvimento. Conceitos e práticas em mudança no Ecomuseu Municipal do Seixal Odete Patrício 213 A Gestão de Museus – uma abordagem a partir da Fundação de Serralves José Morais Arnaud 229 O museu Arqueológico do Carmo: um exemplo de gestão associativa

149 155 163 169 181 191 201

internacional David Fleming 247 Ideia chave: estratégias para conseguir a mudança nos museus Judith Ara Lázaro 259 Processo de Modernização do Museu Nacional do Prado, 2002-2008 Roger Marcet i Barbé 273 Práticas de gestão do Museu Marítimo de Barcelona

recensões Antonio Martín Pradas 288 O Conselho de Cultura da Junta de Andaluzía e o Getty Conservation Institute: publicações sobre o restauro de retábulos em madeira policromada. Leonor de Oliveira 290 Pollock, Griselda, Zemans, Joyce (ed.) Museums after modernism: strategies of engagement.



projectos e experiĂŞncias


Memory believes before knowing remembers William Faulkner

Fig. 1 Rituais de Inverno com Máscara Stills do documentário © Laranja Azul

museologia.pt nº2/2008

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Catarina Alves Costa e Catarina Mourão Imagem em movimento nos Museus: experiências e práticas Este artigo propõe uma revisitação a algumas experiências de produção e realização de conteúdos audiovisuais para diferentes situações expositivas, no âmbito de uma produtora independente. Estes conteúdos servem como suporte para veicular informação, contextualizar uma prática, dar um testemunho ou enriquecer a dimensão visual e sensorial de uma exposição. Propomo-nos neste texto definir e tornar explícitas estratégias práticas e metodologias de adequação da imagem ao discurso expositivo, identificando questões práticas e dúvidas comuns às várias experiências de uso de imagens em museus. This article proposes to analyse several production experiences of audiovisual contents for different exhibitions in the context of an independent production company. These contents bear different aims such as conveying information, contextualizing a practice, giving testimony or finally enriching the visual and sensorial dimension of an exhibition. We hereby intend to share and question practical strategies and methods to adjust filmic images to the museum discourse, through practical issues and questions brought by the different experiences of use of film in museum exhibitions.

PALAVRAS-CHAVE: Imagem e Museologia, Documentário, Arquivo Visual, Filme Etnográfico.

Realizadoras e produtoras de cinema, fundadoras da produtora Laranja Azul | laranjaazul@mail.telepac.pt

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projectos e experiências


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oje a imagem em movimento é uma ferramenta incontornável da museologia contemporânea, uma museologia que não se preocupa apenas com a preservação da cultura material mas que privilegia as suas relações com o real, gerando conhecimentos, provocando espanto e interrogações, renovando memórias, convidando à reflexão. Mas falar sobre a utilização da imagem em movimento em museus é antes de mais mergulhar num mundo de infinitas possibilidades e combinações, pelo que convém talvez começar por distinguir diferentes tipos de abordagem, diferentes experiências possíveis ao alcance do museólogo. Por um lado a imagem em movimento pode ser utilizada apenas como suporte e linguagem para veicular informação, contextualizar uma prática, dar um testemunho ou enriquecer o conteúdo de um museu ou exposição. Por outro, podemos ter uma abordagem de natureza diferente, utilizando o espaço do museu ou exposição como espaço privilegiado para mostrar obras cinematográficas que auto-questionam a próprio linguagem do cinema como arte e que tiram partido desta forma de exibição menos convencional para levar mais longe os limites dessa mesma linguagem, como no caso de filmes de autor exibidos num museu ou galeria, concebidos especificamente para aquele espaço.

A título exemplificativo entre estes dois tipos de abordagem, gostaríamos de propor neste artigo uma revisitação a algumas experiências de produção e realização de conteúdos audiovisuais para diferentes espaços e situações expositivas, no âmbito de uma produtora independente1. A partir de algumas experiências de trabalhar para museus, propomo-nos neste texto definir e tornar explícitas estratégias práticas e metodologias de adequação da imagem ao discurso expositivo. Identificaremos questões e dúvidas comuns às várias experiências em que trabalhámos. É na diversidade dos seus contextos, objectivos e resultados que se abrirão perspectivas diferentes sobre o uso da imagem em movimento em museus e, nessa medida, poderá enriquecer-se o debate sobre a utilização deste meio. Falar sobre a utilização da imagem em movimento no espaço expositivo é perceber exactamente a sua natureza e função, a par dos outros suportes. É falar sobre como tirar o máximo partido das suas potencialidades, identificar os limites desta linguagem, perceber como o seu uso interfere com o espaço em redor e condiciona a forma como o visitante experiencia o museu.

Rituais de Inverno com Máscara, pelas aldeias de Trás-os-Montes O documentário Rituais de Inverno com Máscaras2 foi filmado em Trás-os-Montes durante os anos de 1999 e 2000, para a exposição com o mesmo nome, que acabaria por inaugurar, anos mais tarde, em 2007, no Museu Abade de Baçal, em Bragança, seguindo no ano seguinte para o Museu Soares dos Reis no Porto. A ideia foi, desde logo, realizar um documentário observacional, etnográfico, que fosse mostrado num espaço independente da exposição em que se caracterizasse longamente vários exemplos de festas com uso de máscaras, numa vertente de registo etnográfico puro. Por outro lado, decidiu-se realizar uma síntese de imagens e sons com uma vertente mais poética a ser projectada em écran numa das salas da exposição. Este segundo vídeo pretendia fornecer um ambiente visual e sonoro, que expressasse o poder imagético e simbólico do uso da máscara, bem como o carácter performativo e excessivo dos mascarados. O ranger dos carros de bois e o som dos guizos dos caretos ou do chocalheiro forneciam um ambiente sonoro que induzia os sentidos do visitante da exposição ao mundo rural arcaico. A partir de um mesmo material base foram realizadas duas montagens que contemplam objectivos diferentes. O primeiro é informativo e pedagógico, o segundo serve o discurso e a estética da montagem expositiva, remetendo para a ideia de uma envolvente mais sensorial.

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Este trabalho foi feito a convite do etnólogo Benjamim Pereira, comissário da exposição, com larga e extensa experiência no uso da imagem nestes contextos, especialmente no Museu Nacional de Etnologia ao longo de várias décadas. Podemos sucintamente dizer que Benjamim Pereira fez parte do grupo de etnólogos da chamada escola de Jorge Dias, com investigação antropológica importante a partir de 1930 (cf LEAL, 2000). Este grupo usou de forma sistemática e criativa a imagem aplicada à etnologia: desenho, fotografia e filme. O filme etnográfico ganha grande importância no decurso dos anos 1960 e 1970, a partir da pesquisa de Jorge e Margot Dias entre os macondes de Moçambique, em que foi rodado em 16 mm um conjunto de filmes sobre a vida maconde. Mais tarde, em final dos anos 1960, Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira, centrados num projecto alargado de recolhas e estudo do mundo rural português, realizam, em colaboração com o Instituto do Filme Científico de Göttingen, um conjunto de filmes. As temáticas tratadas foram essencialmente as tecnologias tradicionais agrícolas, as tecnologias tradicionais ligadas à cultura material, também designadas por “artesanato” e o ritual, o registo de um conjunto de romarias. As filmagens, marcadas por uma ideia de urgência de tratar um mundo rural que parecia estar a desaparecer, decorreram por todo o país, desde Trás-os-Montes, Barroso à Serra Minhota, Litoral, Beira e Alentejo. São filmes que Benjamim Pereira designa como “um olhar pertinente, objectivo, mas que não estão a tentar inquirir, são um flash, uma observação de um fenómeno, filmes passivos, que fixam o que está a decorrer, sem problematizar” (cf LEAL, 1993:56-58). Sobretudo a partir de 1962, quando se começa a situar no horizonte um Museu de Etnologia, e se constituem as suas colecções, o filme tornou-se definitivamente fundamental para esta geração de etnólogos. Para estes, o filme permitia devolver aos objectos a vivência primeira das situações no terreno e a sua compreensão e, por outro lado, o sentido profundo que só pode ser dado pelo seu contexto de produção e uso. Mas os filmes eram mais uma técnica de registo do que um meio com possibilidades de expressão próprias. Embora tivessem sido utilizados várias vezes em contexto expositivo, estes eram feitos mais para servir um arquivo e uma exposição do que para projecções em sala. Ao olhar, e guardar, está-se a preservar a memória do que se viveu. Por outro lado, registar em imagens é fixar, é a prova da existência de algo. Embora a imagem como evidência possa ser questionada, a intencionalidade está lá. Fixar em imagem é sintetizar, poupar informação, facilitar a apreensão do fenómeno, isolando-o e obrigando-nos a olhar os detalhes, compreendendo-os. O sentido que retiramos destas imagens é construído por quem as produz e por quem as vê, mas de certo modo sentimos que elas carregam uma ideia de verdade, de autenticidade, que lhes deu origem.

Para a equipa de que fazia parte nesses idos anos, a imagem em movimento, tal como as notas de campo, as fichas, e outras formas de recolha de dados empíricos, forneciam um ponto de vista único sobre a realidade material e social, revelando atributos das pessoas, objectos, tecnologias ou eventos que representava e sugerindo uma emoção relacionada com a vivência da própria situação registada. Assim, quando começámos, nos primeiros projectos da produtora Laranja Azul3, a trabalhar com Benjamim Pereira, num conjunto de colaborações, este transportava consigo ideias sobre o que caracteriza o filme etnográfico, mas antes de mais era alguém que valorizava a imagem, a sua utilidade, tanto na prática do trabalho de campo, como na apresentação do mesmo a um público. No trabalho sobre as Máscaras, foi Benjamim Pereira que definiu, à partida, os locais a filmar: Varge e a festa dos rapazes, o Santo Estevão em Ousilhão, o chocalheiro da Bemposta e finalmente o Carnaval em Podence. São da responsabilidade dele também os textos que dão contexto e informam as quatro histórias com máscaras contadas neste filme. Em cada situação, tentamos seguir a narrativa própria do ritual, através dos seus momentos fundamentais. Formamos assim três equipas, em torno das datas fundamentais: a de Catarina Mourão (em Varge 24 e 25 de Dezembro, e nas Festas de Sto Estevão-Ousilhão) de Catarina Alves Costa (em Bemposta na noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro) e a de José Filipe Costa (em Podence, Domingo e Terça Feira de Carnaval). Para o caso do excerto sobre o chocalheiro, em Bemposta, foi necessário filmar o leilão da máscara, na noite anterior à saída deste personagem misterioso, que corre as ruas da aldeia pedindo para o Menino Jesus, e de que ninguém conhece a identidade. Tudo se passa uma única vez, e os imponderáveis das acções implicam um conhecimento prévio daquilo que vai acontecer, por um lado, e pelo outro implicam uma flexibilidade e um guião que se vai construindo. Este trabalho não se pode desligar de todo o processo de criação da exposição, por isso tínhamos já acompanhado as idas ao terreno, as recolhas e prospecção de peças, a formulação da exposição e a sequência que ela iria seguir. Interessa neste ponto reflectir sobre aquilo que, de certo modo, precede uma encomenda deste tipo, um pedido de colaboração de um etnólogo e museólogo, como Benjamim Pereira. De facto, a reflexão sobre a forma como se adequa a linguagem e as técnicas cinematográficas ao trabalho dos museus depende sempre da relação estabelecida com os interlocutores com quem se trabalha. Um trabalho com imagem para museus é sempre marcado pela história das formas de trabalhar e do contexto teórico que informam esses interlocutores, e que precedem este trabalho.

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projectos e experiências


Fig. 2 Imagens e Sons para o Museu da Luz Stills do documentário © Laranja Azul

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Por isso julgamos importante revelar aqui essa herança que, de certo modo, determinou o nosso modo de trabalhar. O projecto de recolher imagens para a exposição Rituais de Inverno com Máscara cruza-se, a um nível mais imediato, com uma história que a precede e que é importante, essencialmente com o livro de Máscaras Portuguesas de Benjamim Pereira (1973), e mais tarde com o documentário inspirado no livro e realizado por Noémia Delgado, Máscaras (1976), que apresenta uma estrutura muito similar a este nosso trabalho, ou seja, filma e regista para cada localidade o contexto de um ritual em que se usa máscara. Revelou-se desde logo o carácter e a especificidade de um trabalho que dava conta de uma colecção etnográfica para a qual era importante ter em conta a história das anteriores representações visuais sobre os objectos expostos. Como vimos, Benjamim Pereira transportou para a rodagem das Máscaras toda uma visão do modo como se faz filme etnográfico, marcada pela ideia de um filme científico, revelador de gestos e de acções que se constroem numa sequência cujo contexto é mínimo. Nós transportávamos outra visão, mais teórica do que vivida na prática, marcada pela ideia de um documentário observacional e reflexivo em que se dá voz às pessoas, em que se filma a ambiguidade dos discursos e das práticas, as suas contradições, desvendando negociações e manipulações. No fundo, trata-se da distinção que David MacDougall (1978) faz entre o filme ilustrativo, em que a imagem é usada como informação a ser elucidada pelos textos ou por um discurso expositivo, e filme revelador, modalidade que introduz deliberadamente a palavra do etnografado e propõe um filme com autonomia própria. No primeiro, o acto de filmar é concebido mais como uma acção de reconhecimento e como um complemento, que serve, antes de mais, para informar o que se expõe. No segundo, o acto de filmar é um acto de descoberta, ou seja, permite ir mais além do contexto expositivo. Julgamos que do cruzamento destas duas visões de filme etnográfico nasceram estes trabalhos de que falamos aqui. Mas é necessário, a partir destas pistas, fazer uma reflexão sobre as possibilidades e os limites do uso da linguagem cinematográfica, identificando os agentes implicados, os objectivos iniciais e discutindo os resultados finais, explicitando opções técnicas e de estilo, analisando modos de expor e de adequar as técnicas usadas em documentário e os modos de apresentar os mesmos. A que tipo de questões pode a imagem responder? Sabemos que as imagens têm um carácter próprio, subjectivo: um plano ou uma sequência podem sempre,

contra a vontade do autor, subverter todo um discurso que se queria demonstrativo. Durante a rodagem, sentimos que há comportamentos que o próprio acto de filmar desencadeia e que podem mostrar-se muitos reveladores, criando uma realidade a que se tem chamado pro-fílmica. O acto de filmar fixa e congela a realidade social, por natureza dinâmica. A saída do chocalheiro, que filmámos em Bemposta, é uma performance cultural sempre em processo de construção e reinvenção, e seria esse processo que interessaria reconstituir. Do ponto de vista de quem usa as imagens em movimento e em especial a linguagem do documentário no contexto dos museus, algumas pistas podem ser dadas aqui sobre outras estratégias que estão para além das que usámos antes, mas que poderiam ser propostas interessantes se aplicadas. Durante a rodagem e o trabalho de campo em Trás-os-Montes, vimos que para além do turista que capta imagens destes rituais, os próprios intervenientes tendem cada vez mais a filmar as suas performances públicas. Essas imagens de consumo interno e amador são elas próprias material que poderia ser incorporado nos registos visuais deste tipo. O filme final é, depois de montado, tal como o ritual do chocalheiro, um produto de consumo, um objecto que pode servir para revisitar e rememoriar o acontecimento. Verifica-se que existe uma forma convencionada e ligada à linguagem televisiva que tem vindo a capitalizar a chamada cultura popular e a sua autenticidade, prolongando a visão de um país profundo, exótico, alternativo. Julgamos que estas convenções não deverão ser reproduzidas dentro de um filme feito no âmbito de uma exposição como esta, mas antes deverá haver uma adaptação da forma de usar a imagem à linguagem analítica e estética do discurso expositivo. Finalmente, e como vimos, o material em bruto recolhido para a montagem de um filme pode e deve ser usado de formas diferentes, podendo ser revisitado e classificado de diversas formas, desde a apresentação ao público ou serviços educativos aos arquivos para consulta dos visitantes ou das comunidades. Este trabalho foi feito a par das recolhas em vídeo que fazíamos nesse ano, também com várias equipas no terreno, na Aldeia da Luz, de que falaremos em seguida. Foi um ano de discussão intensa, de procura da melhor forma de trabalhar em conjunto, com Benjamim Pereira, com o objectivo de servir exposições etnográficas. Para as imagens do Museu da Luz, como veremos, usávamos uma outra abordagem, ou seja, um trabalho de representação do que era a vida na velha aldeia feito em colaboração estreita e com intervenção constante da própria população, o que contrastava com a usada no caso das máscaras.

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Imagens e Sons para o Museu da Luz O projecto Imagens e Sons para o Museu da Luz arrancou em 1999. Juntamente com o etnólogo Benjamim Pereira, a antropóloga Clara Saraiva e os arquitectos Pedro Pacheco e Marie Clément, começámos a discutir o papel do Museu da Luz e a importância de um arquivo audiovisual. Estávamos ainda longe do momento em que a velha aldeia da Luz ficaria submersa e que os seus habitantes teriam de mudar para a nova aldeia construída a uns quilómetros de distância numa quota superior. A mudança só teria lugar no verão de 2002, mas até lá cabia à Laranja Azul trabalhar num acervo audiovisual que registasse os últimos anos de vida daquela aldeia. Discutiu-se largamente qual o papel que a imagem em movimento teria neste futuro museu, tendo em conta a natureza deste, que, segundo Benjamim Pereira, teria de transcender o âmbito de qualquer museu regional, tornando-se um espaço privilegiado de reencontro com o passado comum e participando no desenvolvimento da comunidade local. Estávamos de acordo em que o museu teria de ser um depositário de toda a recolha etnográfica anteriormente realizada na antiga aldeia (objectos, documentos, fotografias), testemunhos indirectos de um modo de vida que desapareceria em breve. Mas sentíamos que competia à imagem em movimento guardar e registar as experiências, as acções, os ambientes, invocar o contexto humano inerente aos objectos, tudo aquilo que outro suporte não poderia dar de forma tão vívida. O suporte audiovisual seria o ideal para traduzir e representar tudo aquilo que é da ordem do impalpável, do foro emocional, do foro mais subjectivo, contribuindo para a construção da memória, no sentido da experiência mais profunda entre o sujeito e o seu passado. Se um objecto nos dá pistas para histórias, técnicas e conhecimentos, uma imagem, um som, a escolha de uma palavra, uma entoação, uma hesitação dão-nos pistas para sentimentos, ambientes e sensações. No início tínhamos uma espécie de guião, uma listagem de situações que seria fundamental registar, situações que corriam o risco de se transformar ou desaparecer com a mudança para a nova aldeia. Este era um dos nossos critérios: registar aquilo que poderia não se repetir. Nesta categoria estavam os registos de actividades ligadas ao ciclo agrícola, às tecnologias tradicionais, aos rituais religiosos (Festa da Nossa Sra. da Luz, Natal, Páscoa, Pascoela, Dia dos Mortos), aos rituais ligadas à comida, registo de espaços interiores de casas; transformações que os espaços públicos e privados sofreram ao longo dos anos, sobretudo a partir de 1960, e a acção quase dialéctica entre essas mudanças e a vida física e emocional das pessoas. Estes registos eram acompanhados de extensas entrevistas feitas por Benjamim

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Pereira e Clara Saraiva a diferentes habitantes de aldeia, com o objectivo de registar, através da palavra, histórias de vida, experiências vividas no passado. Paralelamente a estes registos, havia uma segunda categoria de cenas a filmar que tinham como preocupação o presente, a expectativa da mudança e a forma como os habitantes viviam esse tempo, essa espécie de limbo. Aqui podemos incluir todas as cenas que antecedem a mudança, visitas à aldeia nova e às futuras casas, negociações com a Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estrutura do Alqueva (EDIA), desabafos, olhares dos habitantes sobre a transformação da paisagem, a mediatização de que a aldeia foi objecto, as visitas dos turistas, as vindas de inúmeras equipas de televisão, inclusive a rodagem de um episódio de uma telenovela e, finalmente, todo o processo de mudança e adaptação à nova aldeia, que envolveu variadas etapas desde a trasladação do cemitério, à mudança dos santos e, por fim, das pessoas. Se falamos de duas categorias de registo cinematográfico, uma que remete para o passado e outra para o presente, é porque elas determinam abordagens diferentes durante a rodagem. Na primeira categoria o papel dos etnólogos era fundamental, eram eles a nossa porta de entrada para as cenas. Se, por momentos, a filmagem decorria segundo um registo observacional em que se procurava apresentar momentos da vida na antiga aldeia com a colaboração e intervenção da população, este registo era muitas vezes enriquecido com as intervenções de Benjamim Pereira e Clara Saraiva, que abordavam os personagens, colocando questões, desenterrando memórias e histórias. Na segunda categoria optámos quase sempre por um registo observacional, sem o uso de entrevistas, uma vez que era importante apanhar as situações na sua espontaneidade e improviso. Aqui o desafio era ter sempre alguém da equipa na aldeia quando as situações estivessem a acontecer. Mas a abordagem observacional nunca se tornou um dogma. Os habitantes da aldeia conheciam-nos e era natural falarem para a câmara ou para alguém da equipa sobre as situações que estavam a viver e, nessa medida, o material está recheado de desabafos e referências ao próprio acto de filmagem. Houve momentos até de alguma complexidade, como no dia em que filmámos a mudança e a despedida dolorosa do Sr. Domingues e da D. Bia da sua antiga casa, episódio que estava simultaneamente a ser filmada por uma equipa de televisão. Ao incluirmos este momento de reflexividade estávamos também a falar sobre a nossa presença na aldeia. Filmar é um acto relacional e assim foram-se desenvolvendo relações mais próximas entre a equipa e alguns habitantes da aldeia, influenciando claramente a escolha do que era filmado. Representar uma situação com a câmara é escolher um ponto de vista, é ter um olhar subjectivo sobre uma realidade.


Assim, a ideia de registo puro de sequências ou cenas de quotidiano desgarradas, que não contribuem para a construção de uma narrativa, começou a perder sentido. Ao longo de cerca de quatro anos de recolha audiovisual na aldeia da Luz, os critérios acerca do que filmar forçosamente evoluíram e tornou-se inevitável que, a pouco e pouco, irrompesse a possibilidade de se associar esta cena àquela, numa antecipação da montagem. Cerca de 80 horas de material bruto foi o resultado final de cinco anos de registo cinematográfico, para a constituição do arquivo. Entendemos que seria fundamental acompanhar o material em bruto de um primeiro trabalho de sistematização e montagem. Num cenário ideal, a equipa do museu teria uma pessoa com conhecimentos técnicos para manipular estes materiais e contribuir para a renovação da sua apresentação, numa perspectiva de found footage. Estes registos foram assim catalogados segundo critérios temáticos, organizados em oito dvds por forma a facilitar a sua acessibilidade, tanto a investigadores externos à aldeia da Luz como aos seus habitantes. Numa lógica de boneca russa, cada dvd contém diferentes filmes, cada filme observa uma temática específica e contém diferentes capítulos. Por sua vez cada capítulo contém uma ficha técnica onde estão assinaladas as cassetes originais de onde foram retiradas as imagens, a data de rodagem, a equipa de rodagem e o nome dos habitantes da aldeia que intervieram em cada capítulo.4 Mas estes registos poderão servir de base para os conteúdos de muitas e futuras exposições, podendo ser trabalhados de acordo com o objectivo de cada exposição. Cada sequência filmada poderá revelar conhecimentos a vários níveis e poderá ser trabalhada e reinterpretada (nomeadamente através da montagem) sob diversas perspectivas. O Museu da Luz é um pequeno museu composto de três espaços principais: a sala de exposições temporárias, a sala da Luz e finalmente a Sala da Memória. Pensou-se sempre que este seria o espaço ideal para guardar o arquivo audiovisual e projectar imagens desse arquivo. A sala da Memória, como o próprio nome indica é um espaço privilegiado para a reflexão presente e futura em torno do processo de transmutação da aldeia da Luz, para além de assumir um papel fundamental na construção da “memória colectiva” de uma cultura. Idealizava-se que este seria um espaço de reunião e confraternização na aldeia, um espaço de encontro entre gerações diferentes, um local onde os habitantes da Luz pudessem rever as imagens, discuti-las, interrogá-las, reflectindo sobre o seu presente depois da mudança, participando na construção do seu próprio arquivo-memória, da sua auto-representação, como uma segunda oportunidade de dar voz aos participantes do processo. Entendemos sempre que este seria um arquivo vivo e aberto, um arquivo que poderia acolher materiais vídeo filmados pela própria população, incentivando a

continuação de um registo audiovisual de quotidianos, histórias da vivência na região e da forma como a alteração na paisagem veio transformar hábitos, economias, relações. Trata-se por fim de um arquivo de consulta pública, ao alcance de todos os que queiram estudar determinado assunto. Na sequência deste trabalho de montagem e catalogação das imagens, utilizando o suporte e a lógica de menus de dvd e materializando esta ideia de arquivo aberto e em crescimento, resolvemos propor ao museu um novo objecto audiovisual que fosse também ele um olhar sobre o arquivo. Foi assim que nasceu o documentário A minha aldeia já não mora aqui.5 Este documentário é já um olhar assumidamente subjectivo sobre o material. A autora, Catarina Mourão, seleccionou do arquivo imagens e cenas para contar a história da mudança da aldeia da Luz. Para tal, fez filmagens específicas na nova aldeia, envolvendo crianças e jovens, propondo-lhes que reflectissem, num contexto de redacção escolar, sobre a mudança que tinham vivido. Na montagem final do filme apenas um testemunho ficou. Este filme pode servir o museu como suporte museológico assumidamente autoral e assim alimentar uma reflexão em torno da mudança. Mas assume características diferentes dos outros suportes audiovisuais, na medida em que é um objecto autónomo que vive formal e narrativamente sem os restantes conteúdos do museu e é exactamente nesse estatuto que o museu resolveu editá-lo e comercializá-lo.

Os ciclos do linho e da Seda. Trazer a vida ao museu A par dos trabalhos sobre as Máscaras (1999-2000) e sobre a Aldeia da Luz (2000-2006), queremos referir ainda o que fizemos em 2003, com Benjamim Pereira, para o Museu Tavares Proença Júnior de Castelo Branco e a convite da sua directora, a Dra Ana Margarida Ferreira. Num museu em que os materiais, neste caso as colchas de Castelo Branco, vivem de duas matérias fundamentais, o linho e a seda, tratava-se de fazer dois documentários que ilustrassem, para os núcleos respectivos, estes dois processos. Daqui nasceram O Linho é um Sonho e um outro documentário intitulado A Seda é um Mistério.6 Estes foram editados pelo Instituto Português de Museus, com um pequeno livreto informativo, para serem vendidos aos visitantes. Para a exposição, elaborou-se um filme síntese, mais curto, que é mostrado num pequeno monitor numa das salas do museu. Trata-se de uma verdadeira reconstituição histórica encenada por nós e pela nossa personagem, a D.Teresa Frade, nascida na Charneca beiroa, dos ciclos da seda e do linho. Os filmes fixam todos os passos significativos do percurso de produção e transformação destas matérias.

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Fig. 3 O linho é um sonho Stills do documentário © Laranja Azul

Aqui havia já um acerto de maneiras de trabalhar, mais assumidamente encenado, reconstituído e manipulado, o que só foi possível graças à relação estabelecida com a personagem, que entrou no jogo da encenação de si. De facto, como conta Benjamim Pereira na brochura que acompanha o filme, a nossa personagem, obrigada a ir viver para a cidade de Castelo Branco, e “para superar o trauma profundo que esta situação lhe provocou”, continuou a usar o seu tear manual, “que fôra ao longo da sua vida de solteira uma das grandes paixões” (PEREIRA, 2003). Assim, logo desde o início, o Benjamim combinou com a D.Teresa todos os detalhes para se partir para a grande aventura do linho. Começou por se preparar a terra e fazer a sementeira. Os vizinhos ajudaram, disponibilizando-se a fornecer materiais e trabalho, a planta cresceu, filmou-se a rega e a arrinca. Meses mais tarde, junto do rio Ocresa, filmou-se o enlagamento da planta. De cada vez, era necessário programar uma próxima ida para filmar as seguintes fases: a maçagem, a espadelagem, e a fiação. Mais tarde, voltamos ao rio, para o branqueamento das meadas, e seguimos todo o processo da preparação do tear e da tecelagem. Vieram os objectos da colecção do museu, sempre que necessário: o ripanço, o maço, a espadela, o cortiço. Tratou-se de uma reconstituição vivida

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por nós e pela personagem central para quem esta era a última vez que repetia um ciclo que remetia para os seus tempos de infância e juventude. No caso do filme da seda, em 36 minutos narra-se a forma como a mesma personagem cria os seus bichos da seda a partir da eclosão das borboletas nascidas dos ovos que guarda no armário de sua casa. Depois, segue-se um mês em que todos os dias as lagartas são alimentadas com folhas de amoreira, que a D.Teresa colhe nas árvores, acabando por subir a pequenos ramos de pinheiro e fazer os casulos que são depois fervidos, sendo a seda recolhida com ramos de carqueja. Trata-se de um processo delicado, e todo este ciclo se revelou fascinante e cinematográfico, pela sua simplicidade e possibilidade de seguir uma pessoa, uma actividade, e praticamente sempre o mesmo local. Trata-se aqui de um registo que acaba por servir o Museu nas suas diversas actividades, nomeadamente ao nível da formação e aprendizagem das tecnologias tradicionais, num momento em que estas são cada vez mais valorizadas, mas também de um registo que, pelo seu carácter ao mesmo tempo lúdico e pedagógico, acaba por circular e ganhar vida própria, fora do âmbito restrito do museu, mas remetendo sempre para ele.


Dois vídeos para o Museu do Mosteiro de Santa Clara Em 2007 iniciámos uma colaboração com a equipa que estava a desenvolver o programa museológico do futuro museu de Santa Clara-a-Velha (Dr. Artur Côrte-Real e Dr.ª Lígia Gambini), para a realização de dois filmes sobre o mosteiro. Trata-se de um projecto que ainda não está concluído, no entanto, a sua descrição é importante, visto tratar-se de uma experiência com objectivos e processos de trabalho muito diferentes das nossas experiências anteriores. O primeiro filme, intitulado Intervenções Contemporâneas Memorial à água, procura envolver o espectador no ambiente e história do monumento, desde o seu abandono no séc. XVII até ao momento actual. Uma história contraditória, simultaneamente de destruição e salvaguarda do Mosteiro pelas águas do Mondego, com um final feliz: a sua recuperação a partir de 1990. Em princípio, este filme teria um carácter mais ambiental e atmosférico, utilizando imagens de arquivo e fotografias do início do século XX, filmes amadores da mesma época e imagens vídeo captadas já nos anos noventa, aquando do início dos trabalhos de recuperação do monumento, e seriam as imagens a contar a história.

O tempo das imagens e dos planos seria longo e envolvente, mostrando o sítio e a cidade. A sonorização do filme seria bastante elaborada e teria um papel muito importante na experiência do filme. O resultado da primeira versão estava bastante próximo daquilo que foi idealizado, mas sentiu-se a necessidade de contextualizar e explicar as imagens. Neste sentido, optou-se pela inserção de cartões com texto intercalado entre as imagens. Nessa operação de articulação entre um discurso imagético e um discurso escrito, perdeuse, na nossa opinião, um pouco da dimensão poética do filme, apesar dos textos escritos pelo arqueólogo Artur CôrteReal terem essa dimensão como objectivo. Sentimos assim necessidade de depurar o texto e trabalhá-lo no sentido de devolver às imagens mais espaço de interpretação por parte do espectador. O segundo filme, intitulado A Fundação do Mosteiro de Santa Clara, pretende contar ao espectador a história do Mosteiro desde a sua fundação no séc. XIV, até ao seu abandono no séc. XVII. Esta encomenda apresentava logo à partida um enorme desafio: como contar hoje, através de imagens, uma história do passado remoto, com personagens para os quais nem sempre existe iconografia disponível, que vivem conflitos e dramas em espaços do mosteiro há muito desaparecidos?

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Para este tipo de filme, as soluções mais convencionais passam pela reconstituição histórica, através da ficção, ou a utilização de iconografia estática para ilustrar a informação veiculada por uma voz-off, uma locução. Ambas as soluções nos pareciam desadequadas. A primeira por estar longe daquilo que julgamos ser a nossa mais-valia enquanto realizadoras de documentário, isto é, a tentativa de articulação do passado com o presente, num trabalho de representação a partir de uma realidade. A segunda solução parecia-nos demasiado literal e pouco cinematográfica, dado que as potencialidades da imagem em movimento não eram neste caso devidamente exploradas. A proposta que apresentámos centrava-se na utilização de imagens captadas na actualidade, de natureza subjectiva e intimista, no interior de um mosteiro de freiras reclusas. Propusemo-nos utilizar material iconográfico (pintura, gravura), encadeando-o com planos do quotidiano gestual das freiras, num mosteiro actual. Sentimos que esta seria a forma mais estimulante de transmitir a história do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, mas também de dar a conhecer de uma forma mais rica e autêntica o ambiente místico e de clausura num mosteiro de Clarissas, proporcionando simultaneamente um diálogo com o presente, susceptível de diferentes níveis de leitura. O processo de pesquisa de imagens iconográficas e de imagens em movimento no Arquivo Nacional de Imagens (ANIM) e em outros arquivos foi fascinante, mas foi ainda mais forte a experiência de viver alguns dias em regime de clausura com as Irmãs Clarissas de Monte Real e, num segundo tempo, no Mosteiro do Louriçal. Apesar da dificuldade inicial no acesso e contacto com as hierarquias da Ordem, foi da maior importância as Irmãs terem compreendido o filme que estávamos a tentar fazer e onde queríamos chegar. Recordamos a frase da Irmã Maria de Fátima do Louriçal, que traduziu a intenção do filme da seguinte forma: “Estou a perceber, em vez de nos virem pedir os hábitos para outras pessoas vestirem fazendo-se passar por Irmãs Clarissas, vocês querem que por baixo dos nossos hábitos estejam aquelas que os vestem com sinceridade”. Depois da pesquisa e da rodagem, avançámos para a primeira versão de montagem. E foi na reacção a esta primeira versão que surgiram questões que porventura valerão a pena aqui desenvolver. Houve alguma dificuldade por parte dos responsáveis do Museu em aceitar o entrosamento das imagens contemporâneas com imagens iconográficas que nos iam guiando pela História do mosteiro. Foi-nos pedido que tentássemos, na medida do possível, excluir elementos claramente contemporâneos, bem como acções sobre o quotidiano monástico do convento de Santa Clara-a-Velha diferentes das reveladas pela investigação histórica. Por exemplo, disseram-nos que não seria aconselhável ver as freiras a tratar da horta, pois as freiras no mosteiro de Santa Clara-a-Velha nunca trabalharam na agricultura.

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Oriundas, na sua maioria, da nobreza, as Irmãs Clarissas tiveram sempre a quem recorrer para os trabalhos agrícolas. Existem sempre dificuldades na articulação de um discurso mais científico, que se quer veicular através de uma linguagem expositiva, com um discurso mais cinematográfico e artístico.

Algumas conclusões Como vimos neste último exemplo, julgamos que vale a pena discutir até que ponto deve a linguagem audiovisual ser responsabilizada por veicular informação num museu, informação esta cujo carácter é porventura mais adequado ao texto ou a outros tipos e formas de comunicação. Será que, ao esgotarmos o audiovisual com esta missão, não estamos a desaproveitar as suas verdadeiras potencialidades e aquilo que de facto o torna diferente de outros suportes? A mais valia da linguagem cinematográfica é a sua capacidade de acrescentar novos sentidos à realidade, novas leituras que passam pelas emoções e pelos afectos, e que poderão suscitar reacções diferentes de espectador para espectador. É na sua ambiguidade que está a sua riqueza e a possibilidade de chegar mais longe, transcendendo a ideia de um documento puro e apostando na experimentação. Estamos, no entanto, cientes que o tipo de negociação em torno do papel do audiovisual e a discussão que esta gera faz parte de qualquer processo de colaboração transversal, só assim se podendo chegar a uma adequada utilização do audiovisual no âmbito dos conteúdos expositivos. É importante perceber, porém, que nessa negociação se procura quase sempre um equilíbrio entre o olhar do autor e as necessidades da exposição. Ao longo deste texto, demos alguns exemplos que mostram diferentes possibilidades, diferentes tipos de abordagem aos usos da imagem, ao alcance do museólogo. Como vimos, as soluções encontradas não revelam um esquema de funcionamento ou modelo, mas uma adequação a diferentes espaços e situações expositivas, mas também a diferentes relações com o mundo exterior, e a diferentes modos de comunicar. No âmbito da Laranja Azul, foram realizados filmes que vão do registo e acompanhamento de processos de transformação e criação da própria exposição, a filmes que servem de janela ao mundo lá fora. Tentamos aqui tornar explícitas algumas estratégias práticas e metodologias de adequação da imagem ao discurso expositivo. A partir dos trabalhos elaborados tendo por base ou pano de fundo colecções etnográficas, ou seja, que se referem a uma realidade que se transformou com o tempo, mas que, de certo modo, permanece viva, como é o caso dos rituais com uso de máscara nas aldeias transmontanas ou da aldeia da Luz, propomos que se tomem em conta vários factores.


Estes exemplos, tal como os do ciclo do linho e da seda, mostraram a necessidade de acompanhar as imagens feitas para servir a exposição ou o arquivo de um outro suporte, um suporte que tenha a sua autonomia, que comunique, que circule, tal como o catálogo faz, fora do espaço expositivo. Em última análise, propomos a ideia de que trabalhar um filme deverá ser tomá-lo como algo que se baste a si mesmo, não estando dependente da informação dos textos e do discurso expositivo. Assim, este filme segue um outro caminho, para fora do museu, e para a própria comunidade que o enforma, permitindo a observação diferida. Ele pode ser, portanto, um instrumento de devolução e discussão, em torno de um visionamento, com os seus intervenientes, dando azo a novas descobertas e novas premissas. Para isso, é preciso formular a sua unidade, a sua autonomia dentro da própria exposição, é necessário que ele seja visto não como um registo neutro e objectivo, mas como algo mais próximo da expressão artística e de um olhar de autor. Como vimos, o material em bruto recolhido para a montagem de um filme pode e deve ser usado de formas diferentes, podendo ser revisitado e classificado de diversas formas, desde a apresentação ao público ou serviços educativos aos arquivos para consulta dos visitantes ou das comunidades. Tratou-se, neste texto, de lançar algumas pistas e referir alguns modos de trabalhar que decerto não se esgotam aqui. De cada vez, é necessário partir do zero, e adequar a imagem a todo o contexto de produção, realização e tipo de visibilidade de um determinado discurso expositivo. Aqui, a tecnologia permite cada vez mais uma apropriação e uma aprendizagem dos usos do audiovisual por parte das equipas dentro dos museus, desde que exista essa abertura à experimentação.

Notas 1 A Laranja Azul, Lda é uma produtora criada em 2000 pelas realizadoras Catarina Alves Costa e Catarina Mourão. A sua actividade cinematográfica tem sido essencialmente dedicada ao documentário criativo e, por meio deste, ao desenvolvimento de diferentes conteúdos audiovisuais para museus e exposições. (www.laranja-azul.com) 2

Realização: Catarina Alves Costa e Catarina Mourão; Câmara: CM, Filipe Alarcão, CAC, José Filipe Costa; Som: CM, João Vasconcelos, Luís Carrapeto; Montagem: CAC, Pedro Duarte; Colaboração Científica e Textos: Benjamim Pereira; Produção Laranja Azul.

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Para além de Rituais de Inverno com Máscaras (2000), foram feitos nesta produtora O Linho é um Sonho, sobre o ciclo do linho e A Seda é um Mistério, sobre o ciclo da seda, realizados para o Museu Tavares Proença Júnior (2003); a totalidade dos audiovisuais do Museu da Terra e do Mar da Carrapateira (2004) Imagens e sons para o Museu da Luz (2006), e também Moinhos de Gavião (2004). A par destes trabalhos, a Laranja Azul produziu outras encomendas. Para o Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, Próxima Paragem, filme realizado no âmbito da exposição Registos de uma transformação. Para o IPPAR, O Sítio de Castelo Velho (2004), documentário que acompanha uma escavação arqueológica ao longo de três anos, e Intervenções Contemporâneas - Memorial à Água e A Fundação do Mosteiro de Santa Clara (2008). Para o Museu de Serralves, produziu O Parque (2008), sobre o processo de reabilitação do parque de Serralves.

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Conteúdos dos dvds: DVD1 – Ciclo Agrícola; A Caça; O Pastoreio; DVD 2 – Tecnologias tradicionais; A Matança do Porco; DVD 3 – O Rio Guadiana; A Festa da Nossa Sr.ª da Luz; DVD 4 – A relação com os espaços Públicos; Olhares de fora; DVD 5 – Conversas com o Arquitecto Pedro Pacheco e Marie Clément; DVD 6 – A mudança; DVD 7 – A paisagem e a sua transformação; DVD 8 – Cenas da vida na nova aldeia.

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Realização: Catarina Mourão; Imagem: Catarina Alves Costa, Catarina Mourão, Paulo Menezes; Som: Armanda Carvalho, CM, Olivier Blanc; Montagem: Pedro Duarte; Pós-Produção Áudio: Tiago Matos; Produção: EDIA e Laranja Azul.

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Realização: Catarina Alves Costa; Câmara: CAC, (e Rossella Shillaci no filme do linho); Som: Olivier Blanc; Montagem: Catarina Mourão; Colaboração Científica: Benjamim Pereira; Produção Laranja Azul.

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Fig. 4 Intervenções Contemporâneas - Memorial à água Stills do filme © Laranja Azul

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Referências bibliográficas LEAL, João et al, 1993, Olhares sobre Portugal. Cinema e Antropologia. Catálogo org Centro de Estudos de Antropologia social (ISCTE) e ABCine Clube de Lisboa, Olhares sobre Portugal. Cinema e Antropologia. LEAL, João, 2000, Etnografias Portuguesas (1870-1970). Cultura Popular e Identidade Nacional, Lisboa. Publicações Dom Quixote. MAC DOUGALL, David, 1978, “Ethnographic film: failure and promise” in Annual Review of Anthropology, 7: 405-425. PEREIRA, Benjamim, 2003, O Linho é um sonho. Brochura, IPM/MFTPJ, 500 exemplares, 29 páginas.

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Fig. 1 Proclamação das “loas” por ocasião da Festa dos Rapazes* Varge, Bragança, 2000

* As legendas completas das imagens encontram-se na página 33

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Paulo Ferreira da Costa Discretos Tesouros: limites à Protecção e outros Contextos para o Inventário do Património Imaterial

O texto reflecte sobre o enquadramento legislativo, institucional e científico nacional, no âmbito da definição da estratégia do Instituto dos Museus e da Conservação para a salvaguarda do património cultural imaterial. Neste contexto, identifica os planos de mais complexa aplicabilidade da Convenção UNESCO 2003, bem como os principais pontos fortes que deverão ser capitalizados naquela estratégia, e que se consubstanciam na utilização de paradigmas adequados às especificidades do PCI, bem como no recurso às recolhas efectuadas ao longo de mais de um século no âmbito da Antropologia e áreas disciplinares relacionadas. The text debates on Intangible Cultural Heritage within the Portuguese context, namely on the legal, institutional and scientific issues that must be taken into consideration in order to implement the inventory of ICH at a national level, which constitutes a duty of the Institute for Museums and Conservation. The text also debates on the most complex questions raised by UNESCO’s 2003 Convention on its regard to the Portuguese context, as well as the main strengths which must be taken into account for that strategy, namely innovative legal paradigms, adequate to the specificity of ICH, as well as inventories produced for more than one century by Anthropology and related social sciences.

PALAVRAS-CHAVE: Património Cultural Imaterial, Instituto dos Museus e da Conservação, Inventário, Lei de Bases do Património Cultural, Património Etnológico, Cultura Popular, Antropologia.

Director do Departamento de Património Imaterial, Instituto dos Museus e da Conservação, I.P. paulocosta@imc-ip.pt

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categoria de património cultural imaterial é expressão de um recente alargamento da noção de património, institucionalizado internacionalmente pela UNESCO por referência ao património de carácter monumental/mundial (cultural e natural), pressupondo a abordagem integrada aos domínios do imaterial e do material. Das várias questões orientadoras da reflexão sobre esta categoria de património, aquela que porventura reunirá maior consenso será a de saber porque merece este domínio o esforço no sentido da sua salvaguarda. A resposta reside, em primeiro lugar, no facto de que a noção de património imaterial remete imediatamente para a identidade de uma sociedade, independentemente do seu âmbito e escala, como colectivo orientado para o futuro pela partilha de um mesmo quadro de valores, encontrando-se estes inscritos num tempo de longa duração, e assumindo-se determinada manifestação desse património como expressão da singular visão do mundo dessa mesma sociedade. Contudo, a categoria de património cultural imaterial suscita inúmeras interrogações quanto ao que constitui, ou pode efectivamente constituir, o seu objecto, designadamente quando pensado conjuntamente com outras categorias de património – bens materiais e espaços – que frequentemente se lhe encontram associados. Para além de saber o que constitui afinal “património imaterial”, e ao que deve ou pode entender-se pelo processo da sua salvaguarda, as interrogações estendem-se ainda às questões de saber para que fins agir sobre ele, de que modos e com recurso a que agentes. Estas questões constituem-se assim como os planos de reflexão do presente texto, no contexto da política definida pelo Instituto dos Museus e da Conservação [IMC] para o estabelecimento das bases do inventário do património cultural imaterial [PCI] em Portugal.

Normativos e Instituições No quadro actual da política cultural portuguesa, 2001 constitui um ano marcante no âmbito da actuação sobre o património cultural imaterial, contemplado desde então na Lei de Bases do Património Cultural [Lei 107/2001], que, não obstante o escasso articulado que dedica a este domínio, à semelhança da sua antecedente, introduz uma inovação relativamente à Lei 13/1985, de 6 de Julho. Trata-se da diferenciação entre “realidades com suporte em bens móveis ou imóveis” – passíveis de protecção legal de acordo com os mesmos regimes e níveis de protecção previstos para os restantes bens móveis e imóveis – e “realidades que não possuam suporte material”, para os quais não é aplicável qualquer forma de protecção legal, preconizando-se o seu registo (“gráfico, sonoro, audiovisual ou outro”) como medida indispensável para a sua salvaguarda. Enquanto as primeiras se encontram sujeitas – tal como os restantes bens móveis ou imóveis – a uma eventual distinção de valor e à sua correspondente hierarquização de acordo com diferentes regimes (inventariação ou classificação) e formas de protecção (interesse municipal, público ou nacional), as segundas são objecto de uma abordagem que implicitamente reconhece a equivalência do sentido e valores intrínsecos das suas manifestações, independentemente da diversidade formal que estas possam assumir. Se a ampliação do património cultural ao domínio do imaterial resultou, em grande medida, numa ruptura de paradigma relativamente à noção clássica de património, no quadro legal nacional a Lei 107/2001 revela a consciência de que este (novo) domínio pressupõe e exige a formulação de um paradigma inovador relativamente ao património móvel e imóvel e adequado às especificidades do património imaterial.

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Para tal terá certamente contribuído a evidência de que o património imaterial define, antes de mais, e independentemente da longevidade passível de documentação de uma determinada manifestação, uma realidade em permanente devir, ao invés da protecção legal de qualquer bem físico, que pressupõe a intenção da sua preservação ad aeternum. Dando expressão a tal diferença intrínseca entre bens imateriais e bens materiais, a solução preconizada pela Lei 107/2001 resulta, pois, numa abordagem diferenciada a ambas as categorias. Aquela distinção, entre bens materiais que constituem o suporte de realidades imateriais (e passíveis de protecção legal, como os demais bens móveis e imóveis) e bens imateriais propriamente ditos (não sujeitos a qualquer protecção legal) parece-nos assim de capital importância, como paradigma adequado às especificidades do PCI, por se revelar em sintonia com o princípio de equivalência do valor das suas diversas manifestações (designadamente na comparação de cada uma com manifestações congéneres em contextos sociais diversos), e, como tal, com o princípio de equivalência do valor das comunidades e respectivas identidades que lhes estão na origem. Afinal, este quadro de relativismo cultural constitui o pano de fundo essencial para a leitura de todos os esforços sistematicamente desenvolvidos a nível internacional, em particular pela ONU, pela UNESCO, pela WIPO e pelo CE/UE, no âmbito de uma estratégia global em que a salvaguarda do património imaterial é reconhecida como componente essencial da preservação da identidade e da diversidade cultural das comunidades e grupos, em articulação com a promoção do diálogo intercultural, do respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, do respeito pelos direitos humanos, e da protecção da cultura tradicional popular em vista à promoção da coesão social e do desenvolvimento sustentável. Por outro lado, e apesar da sua antecedência sobre a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, adoptada na 32.ª Conferência Geral da UNESCO, em Paris, a 17 de Outubro de 2003 [Convenção 2003], o paradigma instituído pela Lei 107/2001 revela-se ainda conceptualmente em sintonia com os instrumentos que a UNESCO veio depois a desenvolver com vista a uma aproximação integrada aos patrimónios material e imaterial, expressos logo em 2004 com a adopção da Declaração de Yamato, que se reveste assim de carácter de adenda àquela Convenção. É precisamente na sequência da elaboração da Convenção 2003, o normativo internacional de referência para a actuação sobre o PCI, que a política cultural portuguesa vem a dar expressão concreta às preocupações relativas

a este domínio, através do cometimento ao Instituto dos Museus e da Conservação, em conjunto com as Direcções Regionais de Cultura, das respectivas competências e atribuições. Através do Decreto-Lei n.º 97/2007, de 29 de Março, e correlativa Portaria n.º 377/2007, de 30 de Março, o IMC passa assim a constituir o organismo do Ministério da Cultura cuja missão consiste no desenvolvimento e execução da política cultural nacional no domínio do PCI, nomeadamente através do respectivo estudo, preservação, conservação, valorização e divulgação, da definição e difusão dos normativos, metodologias e procedimentos relativos às diversas componentes da sua salvaguarda. Na correspondência directa com o articulado da Lei de Bases do Património Cultural, e considerando igualmente as suas competências em matéria de inventário e classificação de bens móveis, é ao IMC que compete promover o registo gráfico, sonoro, audiovisual ou outro das realidades sem suporte material para efeitos do seu conhecimento, preservação e valorização, bem como promover o registo dos bens culturais móveis ou imóveis associados ao património imaterial. No quadro de articulação interinstitucional no âmbito do Ministério da Cultura, é ainda ao IMC que compete assegurar a articulação e o apoio técnico às Direcções Regionais de Cultura, às quais compete especificamente “apoiar a inventariação de manifestações culturais tradicionais imateriais, individuais e colectivas, nomeadamente através do seu registo videográfico, fonográfico e fotográfico” (Decreto Regulamentar n.º 34/2007, de 29 de Março). Finalmente, o ano de 2007 revela-se ainda decisivo na actuação sobre o domínio do património imaterial, com o início do processo de ratificação, por parte do Estado Português da Convenção 2003. Iniciado com a aprovação da ratificação por parte do Conselho de Ministros, a 23/08/2007, vem a concluir-se já em 2008: aprovada por unanimidade pela Assembleia da República a 24 de Janeiro (Resolução AR n.º 12/2008), a 26 de Março procede-se à sua ratificação, por publicação em Diário da República do Decreto do Presidente da República n.º 28/2008. À semelhança do que já sucede relativamente à Lista do Património Mundial, Cultural e Natural da UNESCO, será certamente à Comissão Nacional da UNESCO que competirá a coordenação das futuras candidaturas às Listas homólogas previstas na Convenção 2003. Também em 2007 teve início o processo de desenvolvimento da Lei 107/2001 relativamente ao património imaterial, no âmbito de colaboração entre o IMC e a Comissão para o

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projectos e experiências


• tradições e expressões orais • expressões artísticas e manifestações de carácter performativo • práticas sociais, rituais e eventos festivos • concepções, conhecimentos e práticas relacionados com a natureza e o universo • competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais

Práticas Expressões

manifestadas em

Representações que

associadas a

• saberes e técnicas

• objectos e lugares

• as comunidades e os grupos reconhecem como pertencendo ao seu património cultural • são transmitidas entre gerações • são objecto de constante recriação • proporcionam um sentido de identidade e continuidade aos grupos e comunidades • são compatíveis com instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos

Fig. 2 Para uma definição de Património Cultural Imaterial (adaptado de: The Intangible Heritage Messenger, nº1, Paris, UNESCO, Fev. 2006)

Desenvolvimento da Lei de Bases do Património Cultural (estrutura criada no âmbito do Ministério da Cultura), processo ainda em curso no momento da elaboração do presente texto, mas cuja concretização consideramos de vital importância com vista à operacionalização do inventário do património imaterial à escala nacional, particularmente considerando as questões que seguidamente se suscitam.

Tradicional e Popular, Património e Etnologia No universo do património imaterial integram-se práticas, representações, expressões, conhecimentos e competências técnicas, bem como os bens materiais e os espaços que se lhes encontram associados, que uma determinada sociedade reconheça como parte integrante do seu património cultural, no quadro de uma titularidade colectiva de âmbito variável e de uma efectiva transmissão intergeracional. Sendo objecto de constante produção e recriação em função do respectivo contexto social, histórico e ambiental, constitui-se como fonte de identidade e factor de continuidade cultural dessa sociedade. As formas pelas quais o PCI se manifesta encontram-se inscritas nos próprios modos de organização e nos referentes culturais de uma sociedade, sendo indissociáveis dos mesmos e nelas convocando-se, como fenómenos totais, essa realidade social indecomponível,

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independentemente do carácter mais ou menos difuso que tais manifestações possam assumir. Tal como definido na Convenção 2003, as manifestações do PCI têm particular expressão nos domínios1 das tradições e expressões orais, incluindo a língua como veículo do património cultural imaterial; das expressões artísticas e manifestações de carácter performativo; das práticas sociais, rituais e eventos festivos; das concepções, conhecimentos e práticas relacionados com a natureza e o universo, também designados por saberes naturalistas populares, bem como das competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais, vulgarmente objecto de correspondência com a actividade artesanal2. Poderia facilmente este conjunto de domínios corresponder às coordenadas ou aos capítulos para qualquer inquérito, monografia ou manual para a etnografia da maior parte dos contextos da “cultura tradicional popular”, que de facto constitui o objecto privilegiado da Convenção 2003, ainda que o articulado desta não o refira explicitamente e remeta apenas para a Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, adoptada pela UNESCO em 1989, e ainda que o enquadramento e os princípios de actuação previstos na Convenção sejam objecto de relevância para domínios que não os dessa “cultura” em sentido estrito3.


Fig. 3 António Germano, lavrador, comerciante de carroças e antigo almocreve Murteira, Cadaval, 1996

É precisamente naquela Recomendação que se encontra a origem dos diversos programas de salvaguarda dedicados à cultura tradicional popular que a UNESCO desenvolveu ao longo da década de 1990, designadamente o Livro Vermelho das Línguas em Risco de Desaparecimento (1993), o Programa dos Tesouros Humanos Vivos (1994) e a Proclamação das Obras-Primas do Património Oral e Imaterial da Humanidade (1997/1998)4, este último cancelado com a entrada em vigor, em 2006, da Convenção 2003. Mas é mais directamente do Relatório Our Creative Diversity (WCCD, 1996), elaborado por referência à Convenção de 1972, e da Conferência A Global Assessment of the 1989 Recommendation on the Safeguarding of Traditional Culture and Folklore: Local Empowerment and International Cooperation, realizada em Washington conjuntamente pela UNESCO e pela Smithsonian Institution (BOUCHENAKI; KURIN 1999), que vem a resultar a Convenção 2003, e que o termo “imaterial” vem a instituir-se em definitivo no panorama internacional. Com este pretende-se superar, sublimando-os, os qualificativos de “tradicional” e “popular”, noções inerentemente complexas e de utilização não consensual nas Ciências Sociais, bem como ultrapassar a divergência de sentidos das terminologias oficiais no seio da UNESCO: “traditional culture and folklore” / “culture traditionnel et populaire”.

Fig. 4 “Festa dos Leilões” Atouguia, Abrigada, Alenquer, 2000

Por seu turno, a Lei 107/2001 refere-se à “cultura tradicional popular” como devendo ser objecto de legislação própria (n.º 8 do Art.º 2.º). No entanto, é precisamente com este domínio que o seu articulado faz coincidir a concepção de “bens imateriais”, identificando-os como “realidades que, tendo ou não suporte em coisas móveis ou imóveis, representem testemunhos etnográficos ou antropológicos com valor de civilização ou de cultura com significado para a identidade e memória colectivas (n.º 1 do Art.º 91.º). A referência ao “interesse etnográfico ou antropológico” das realidades com suporte em bens móveis ou imóveis (n.º 3 do Art.º 91.º) deverá ser lida ainda conjugadamente com o teor do Art.º 55.º, especialmente na referência ao “especial interesse para o estudo e compreensão da civilização e cultura portuguesas”. Neste contexto, a matéria do património imaterial pode ser considerada plenamente coincidente com a de património etnográfico ou património etnológico5, quer como expressão de uma abordagem holista da cultura tradicional popular, por princípio integradora das realidades material e imaterial, quer enquanto objecto da Antropologia e áreas disciplinares afins, independentemente de corresponder a acções estritas de estudo, inventário e documentação, e/ ou a acções de salvaguarda física, no contexto de recolhas orais ou documentação audiovisual, da constituição de colecções, etc.

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projectos e experiências


Fig. 5 Senhor da Boa-Morte Monte e Ermida do Senhor da Boa-Morte, Vila-Franca de Xira, 1998

Mas aquela equação de equivalência entre “património imaterial”, como categoria técnico-política (no sentido de actuação em matéria de património), e “património etnológico”, como categoria técnico-científica, dificilmente poderá reunir consenso absoluto, não apenas por se referirem a campos de acção pública relativamente distintos, mas, em grande medida, em função dos pressupostos e respectiva aplicabilidade de determinados mecanismos de salvaguarda instituídos pela Convenção 2003.

Património Imaterial e Mudança Social A noção de PCI remete para a imagem de uma determinada sociedade e do seu respectivo quadro cultural como todo

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orgânico e, não obstante o seu carácter dinâmico, dotado de coerência interna, com uma historicidade e um corpo de soluções sociais – estrutura e modos de organização social, mundivisão, língua, tecnologia, etc. – que constituem fonte de identidade para os seus membros, bem como critério de especificidade, simultaneamente do ponto de vista interno e externo, face às demais sociedades. É por relação com essa imagética que também deverão ser entendidas as políticas internacionais de conservacionismo6 cultural, pensadas sobretudo como estratégia de protecção das sociedades dos países em vias de desenvolvimento, no quadro contemporâneo de globalização, com vista à preservação da identidade e da diversidade cultural das comunidades e grupos, à


Fig. 7 Colocação do mastro num moinho recém-construído Catefica, Torres Vedras, 2000

Fig. 6 Aguardando a procissão nocturna em honra de S. José Carvalhal, Bombarral, 2000

Fig. 8 Feira Medieval Tomar, 2007

promoção do diálogo intercultural, da coesão social e do desenvolvimento sustentável, e, no caso específico da Convenção 2003, como resposta às expectativas daqueles países de implementação de um mecanismo de valorização patrimonial homólogo à Convenção do Património Mundial, Cultural e Natural, adequado não apenas às características das suas sociedades, regra geral sem objectos de património “monumental”, mas também às próprias ameaças que recaem sobre estas naquele mesmo quadro de globalização e homogeneização cultural. É este também um dos contextos possíveis para o entendimento das Listas preconizadas pela Convenção 2003: a Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade e, muito em particular, a Lista do património cultural imaterial que necessita de

urgente salvaguarda, enquanto instrumentos fundamentais de sensibilização, à escala mundial, para a necessidade de protecção do PCI.Tal como preconizado pela Convenção 2003, a inscrição de um determinado elemento do PCI naquelas Listas, a partir de proposta de um ou mais países, pressupõe o prévio registo dessa manifestação no(s) respectivo(s) inventário(s). Independentemente de todos os efeitos que possam resultar dessa inscrição7, o que aqui importa reflectir é, para o caso da sociedade portuguesa, o contexto de leitura para o que é ou pode ser afirmado como PCI, e, correspondentemente, para o que pode ou não vir a ser objecto de registo no inventário nacional e, eventual e subsequentemente, a ser objecto de candidatura a inscrição naquelas Listas da UNESCO. Para tal deverão ser referidas algumas evidências.

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Fig. 9 A figura da “viúva” Murteira, Cadaval, 2000

Fig. 10 Procissão em honra de N. Senhora das Neves Montejunto, Cadaval, 1994

Grosso modo, o interesse pela cultura tradicional popular portuguesa desenvolve-se a partir do último quartel do século XIX, no plano estritamente etnográfico, ou nas relações deste com outras áreas disciplinares, com personalidades como Teófilo Braga (1843-1924), Oliveira Martins (1845‑1894), Adolfo Coelho (1847‑1919), A. Tomás Pires (1850-1913), Consiglieri Pedroso (18511910) e José Leite de Vasconcelos (1858-1941). Em ciclos de desenvolvimento caracterizados por objectos, perspectivas, metodologias, recursos e fins diferenciados (vd. LEAL 2000), esse esforço de conhecimento prossegue por todo o século XX, vindo a culminar, em diferentes tempos, com a autonomização e a institucionalização dos vários campos disciplinares devotados à cultura tradicional popular, e conduzindo inclusivamente à sua reprodução corporativa não apenas pela via da investigação, no contexto de Centros de Investigação, Museus e Universidades, mas também pela via da formação académica dos seus profissionais. Ao longo de todo esse período, e não obstante os diferentes e sucessivos interesses temáticos, geográficos e metodológicos, grande parte do território nacional vem a ser alvo de inquérito e cartografia, mais ou menos extensos e em maior ou menor profundidade. É principalmente naquelas instituições que se encontram os repositórios/inventários do PCI em Portugal.

Modos de vida seculares e as suas correspondentes mundivisões são submetidos a partir de então a profundas transformações estruturais na sociedade portuguesa, vindo a subsistir em bolsas residuais ou a desaparecer por completo, por razões de ordem demográfica, económica, social ou simbólica, sendo por vezes revalorizados e revivificados após o seu abandono, mas regra geral já no contexto da atribuição de novos sentidos a essas práticas tradicionais. Para o caso do mundo rural, contexto de leitura de parte significativa do que é ou pode ser afirmado como PCI, este declínio de um tempo longo (BAPTISTA 1996) deve constituir precisamente um dos enquadramentos-base para a leitura dos domínios do “tradicional” e do “popular” na contemporaneidade, paradoxalmente entendidos numa perspectiva de atemporalidade, como se tais usos e costumes tivessem sobrevivido inalteráveis – como fragmentos incorruptos dessas vivências ancestrais – não obstante as demais componentes da realidade das respectivas comunidades terem sido sujeitas a transformações de ordem diversa.

Volvido precisamente um século sobre o despertar deste interesse e projecto colectivo de conhecimento do que actualmente recebe a designação de “património cultural imaterial”, a sociedade portuguesa acelera um processo de mudança que altera radicalmente o contexto e as condições para a continuidade das matrizes da cultura popular que para esse período lhe foram documentadas.

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O actual contexto do PCI em Portugal não é, pois, exactamente o das sociedades frias que se assumem como beneficiárias preferenciais das preocupações que presidiram à elaboração da Convenção 2003 e das Listas por ela instituídas à escala internacional. Aliás, se reconhecidamente muitas das “tradições” já não são o que eram, muitas delas apresentam, paradoxalmente, uma vitalidade suspeita no quadro de anteriores vaticínios de extinção. Restará saber se se tratam efectivamente de “tradições” ou, ao invés, de representações de tradicionalismo, valorizadas pela respectiva comunidade como modo discursivo de afirmação da sua longevidade, identidade e especificidade e que, mais do que traduzirem


Fig. 11 Arte Xávega Praia da Nazaré, 2000

Fig. 12 Ronda à aldeia por ocasião da Festa de Santo Estêvão Ousilhão, Vinhais, 1999

o que a comunidade efectivamente é, serve para esta se contar e representar a si própria. Um caso bom para pensar a actual situação do PCI e os seus possíveis duplos é o dos Caretos de Podence, exemplo de como a tradição, neste caso a do “Carnaval”, pode manifestar-se em dois sentidos distintos para a mesma comunidade: por um lado através da sua realização no local e na comunidade que lhe estão na origem, Podence, e no tempo próprio da tradição, o Carnaval; por outro, a performance da tradição no exterior da aldeia, em qualquer lugar e momento do calendário, como representação da comunidade, da região do Nordeste Trasmontano, e mesmo, sobretudo quando sucede além-fronteiras, como representação da tradição de âmbito nacional (RAPOSO 2006). Deverá ser este, aliás, um dos factores do entendimento para a sua escolha, de entre tantos possíveis exemplos da presença dos personagens mascarados nos rituais de Inverno naquela região, para integrar diversas lógicas de promoção deste tipo de festividades, inclusive à escala mundial. Neste âmbito temático e regional, tal escolha ilustra ainda como a questão do contexto e da escala assumirão particular relevância na concepção e implementação de um sistema de inventário do PCI à escala nacional, não apenas para fins de coerência interna no processo de identificação, estudo e registo do PCI, designadamente na perspectiva da sua classificação tipológica, mas igualmente como instrumentos de apoio à eventual candidatura à sua inscrição naquelas Listas.

é objecto de des-semantização e transformação, a partir da matriz cultural original, em puro espectáculo e objecto de consumo por parte do exterior da comunidade. Este exemplo de como as festividades do Ciclo de Inverno constituem um dos principais recursos de emblematização cultural da região trasmontana, ilustra com particular acutilância processos de revivificação, reinvenção ou mesmo folclorização da cultura tradicional popular, simultaneamente como reconfiguração das identidades locais e tradição num contexto de mudança social8 e como processos de mercantilização daquela cultura, induzidos por entidade externas e/ou pelas próprias comunidades. Tal como refere Paulo Raposo, cujo trabalho constitui a fonte desta breve síntese sobre o Carnaval de Podence, o caso dos seus Caretos revela como por vezes “O recente formato de emblematização e patrimonialização parece ser mais relevante do que a assertiva e criteriosa sobrevivência e manutenção de uma morfologia da «festa autêntica»” (2006: 90).

Em Podence, enquanto manifestação social, a Festa do Carnaval assume assim um sentido duplo: por um lado é investida de sentido e função por referência ao contexto rural, arcaico e comunitário, como objecto de identificação e participação no seu âmbito social de origem; por outro,

Longe de se constituírem apenas como instrumentos de desconstrução dos domínios do “tradicional” e do “popular”, os estudos sobre os processos de patrimonialização da cultura popular, designadamente na perspectiva da invenção de tradições (HOBSBAWM; RANGER 1983) e da folclorização (CASTELO-BRANCO; BRANCO 2003), mercadorização e promoção do consumo dessa cultura, constituirão certamente uma das vias para circunscrever e identificar o que constitui, efectivamente, PCI, ajudando a distingui-lo do que traduz mera prática discursiva e performance da tradição e emblematização e representação de especificidade cultural popular por parte de uma comunidade, para si própria e/ou para o exterior, e quantas vezes, procura de certificação dessa suposta autenticidade.

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Fig. 13 Pinturas realizadas por ocasião do Cantar dos Reis Olhalvo, Alenquer, 2008

Em particular, os estudos sobre os movimentos e os agentes de recriação e revivificação da cultura popular podem revelar-se um importante repositório e meio para análise das realidades sociais declaradas como “autênticas”, “tradicionais”, “ancestrais”, etc. – e para cuja imagética de originalidade, colorido, exotismo, atemporalidade e espectacularização se promove o consumo mais ou menos massificado, num processo de emulação extensivo a aldeias, vilas, cidades e regiões –, mas que efectivamente deverão ser entendidas num plano distinto do da salvaguarda do PCI e objecto de estratégias e apoios diferenciados, tal como sucede, por exemplo, para o domínio do Artesanato, o qual pode inclusive beneficiar de apoios de carácter financeiro, técnico ou logístico, e no qual se enquadra a certificação

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de saberes e técnicas específicos com expressão na sua utilização pelas unidades produtivas artesanais e nos seus respectivos produtos (vd. nota n.º 2). Para regressar às especificidades do PCI no contexto da sociedade portuguesa contemporânea, designadamente enquanto sociedade democrática e no quadro da sua integração das sociedades ocidentais modernas, não nos parece que suscitem especial complexidade ou inquietação determinadas exigências preconizadas pela Convenção 2003 por referência à cultura tradicional popular, tais como as relativas à compatibilização do que possa ser considerado como PCI com os instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos9.


Fig. 14 Pinturas realizadas por ocasião do Cantar dos Reis Abrigada, Alenquer, 2008

No entanto, outras exigências não serão eventualmente susceptíveis de reunir o mesmo consenso, em particular no que respeita à sua aplicabilidade. É em particular a da necessidade do reconhecimento do PCI por parte dos seus respectivos detentores (“as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos”10), bem como a da participação desse(s) mesmo(s) detentor(es) no processo de elaboração dos respectivos inventários, conceptualizada originalmente por referência às sociedades frias, em países quentes, em relação às quais importa precaver, por exemplo, a utilização de saberes e técnicas tradicionais sem que os benefícios resultantes da mesma revertam directamente a favor dos seus detentores originais11. Quanto à primeira, no contexto democrático da sociedade portuguesa, e no actual quadro de valorização endógena da cultura popular tradicional, será pouco provável que uma comunidade, grupo ou indivíduo não venha a reconhecerse no que seja proposto considerar, independentemente da sua fonte, como PCI. Pelo que atrás referimos relativamente aos processos de patrimonialização e mercantilização da cultura popular, poderá precisamente suceder o inverso: que o desejo e a expectativa de vir a ser declarada como PCI – no contexto do inventário nacional, e eventualmente no âmbito das Listas da UNESCO – uma manifestação que é afirmada como tal pelo seu detentor, não possam encontrar correspondência nas suas características mínimas indispensáveis para que, com rigor técnico e científico, possa ser considerada como tal. Quanto à exigência da participação dos detentores do PCI no seu respectivo inventário, ela suscita naturais dificuldades

para diversos tipos de manifestações, em particular as que envolvam escalas colectivas alargadas, devendo ser entendida, evidentemente, de acordo com as próprias orientações técnicas da UNESCO, que preconizam que compete a cada Estado-Membro determinar os modos da salvaguarda do PCI no seu contexto territorial, bem como os modos de envolvimento das respectivas comunidades e grupos (UNESCO 2005: 19-20). Um dos principais desafios que se colocará nacionalmente ao inventário do PCI constituirá assim a concepção e implementação de um sistema suficientemente ágil que permita viabilizar a participação desses detentores e, simultaneamente, a articulação entre as entidades promotoras do registo do PCI, bem como as autarquias, enquanto instâncias do poder político representantes das comunidades locais. Para tal, os meios que a Sociedade do Conhecimento hoje fornece constituirão certamente um factor decisivo, designadamente como paradigma alternativo e inovador face aos tradicionais mecanismos legais de consulta pública utilizados no âmbito da protecção legal do património material. Finalmente, e para lá das soluções que venham a ser encontradas para lhe dar aplicabilidade, esta mesma exigência da Convenção 2003 traduz-se num paradoxo essencial: por um lado, preconiza o indispensável reconhecimento destes objectos de cultura, enquanto objectos de património, por parte dos seus produtores/ detentores; por outro, pressupõe o seu inventário como condição primordial da sua salvaguarda, enquanto meio do seu estudo e documentação.

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Concomitantemente, de um lado afirma tratar-se este de um património “vivo” (expressão que suscita inúmeras dificuldades, de ordem conceptual e operacional), que deve encontrar correspondência no que os seus produtores/ detentores identificam e afirmam como tal; por outro, enquadra-o, compreensivelmente, na lógica patrimonial da perda decorrente do perigo do seu desaparecimento e, como tal, da urgência da sua protecção, exigindo a intervenção de agentes técnica e cientificamente qualificados para assegurar essa protecção mediante a elaboração de inventários, na qual devem participar também, em determinado grau, os mesmos produtores/ detentores, designadamente na perspectiva de recair sobre estes a titularidade desse bem. Este complexo contexto institucional e normativo de (re) descoberta do património imaterial configura certamente, independentemente de todas as retóricas que a ele se possam aplicar, um conjunto de novas oportunidades para os vários profissionais, desde logo no campo da Antropologia, que o têm tomado como objecto de interrogação desde o último quartel do século XIX, e que, em planos e âmbitos diversificados, têm-se constituído como agentes preferenciais do seu estudo, promoção, valorização e, mediante estes últimos, como agentes preferenciais da sua salvaguarda. Tal como tem vindo a suceder já para outros contextos de actuação patrimonial (museus etnográficos, movimentos associativos de defesa e valorização da cultura tradicional popular, instâncias políticas de âmbito diverso, etc.), um dos principais desafios que se colocará a esses profissionais, nomeadamente enquanto agentes de mediação entre os produtores/detentores do PCI e a constituição do respectivo inventário, e enquanto agentes qualificados para o estudo e a documentação desse mesmo património, será possivelmente o do equilíbrio a conseguir entre a análise e a documentação das realidades que estudam, que constitui a matéria fundamental da sua actividade, e a sua potencial participação na legitimação directa de aspirações patrimonializadoras dessas mesmas realidades. Aspirações de comunidades, grupos e indivíduos, que constituem o principal veículo para esse conhecimento, e de cuja cultura esses profissionais assumem-se como intérpretes privilegiados, mas também aspirações dos seus variados tipos de representantes. Enfim, tal desafio, a que a cada um responderá de acordo com as suas próprias convicções – científicas, profissionais, cívicas e políticas – resultará no equilíbrio entre o constituírem-se como agentes do conhecimento do PCI e como potenciais agentes da participação na construção e emblematização dos patrimónios e das identidades dos seus objectos e meios de conhecimento.

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Inventário do Imaterial: Princípios e Objectivos No actual quadro legal e institucional de salvaguarda do PCI, é posição do Instituto dos Museus e da Conservação que a política de protecção e valorização daquele deverá assentar, a nível nacional, sobre o respectivo inventário, na perspectiva de instrumento heurístico de importância primacial para a sua identificação, estudo e documentação sistemáticos, e enquanto componente prévia e incontornável para a sua adequada divulgação e valorização. Mas também como medida indispensável à sua salvaguarda, considerando que cada inventário assume esse papel fundamental de protecção, quando é apenas o que subsiste como memória do que não pôde ser perpetuado. Esta é, em última análise, e a despeito do reconhecimento pela UNESCO do seu carácter dinâmico, uma das poucas certezas que poderemos ter relativamente ao património imaterial, em particular para contextos em acelerada transformação, pois, ao contrário dos bens culturais móveis e imóveis, cada elemento daquele património permanecerá no que é apenas enquanto cumprir a função, ou funções, de que é investido pela sociedade que lhe está na origem e que lhe confere o seu sentido pleno.

*** Tal sistema de inventário deverá dar expressão aos compromissos assumidos pelo Estado Português no âmbito da ratificação da Convenção 2003, no âmbito da qual a constituição de inventários é precisamente uma das medidas indispensáveis. Do mesmo modo, deverá constituir-se como instrumento de apoio à decisão da salvaguarda de uma determinada manifestação do PCI à escala internacional, através da sua inscrição na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade ou na Lista do património cultural imaterial que necessita de urgente salvaguarda. (Art.ºs 16.º e 17.º da Convenção 2003. A concepção e implementação do referido sistema de inventário deverá ser efectuada segundo uma aproximação integrada e holística do património cultural, designadamente na perspectiva da frequente indissociabilidade entre património material e imaterial – e, para as realidades imateriais com suporte em bens materiais, em íntima articulação com o quadro de princípios, formas e procedimentos relativos à protecção legal de bens móveis e imóveis – e na perspectiva da importância assumida pelo património no âmbito dos mecanismos sociais e identitários das comunidades e grupos, independentemente dos territórios e da profundidade histórica nos quais se inscreve essa memória e identidade.


Fig. 15 Mulher recolhendo sal Marinhas, Rio Maior, 2000

Deverá igualmente dar expressão ao carácter dinâmico das manifestações imateriais do património, do que decorre que a sua salvaguarda deve consubstanciar-se na identificação, estudo e documentação sistemáticos e exaustivos dos processos culturais que lhe são inerentes, isto é, nos próprios actos sociais em permanente reelaboração que se constituem como garante da continuidade e reprodução social de tais manifestações. Deverá promover o inventário do PCI de acordo com critérios técnicos e científicos adequados, no âmbito de procedimentos uniformizados e no respeito pelas boaspráticas inerentes ao seu processo de identificação, estudo e documentação, bem como, sempre que possível ou aplicável, com o envolvimento da respectiva comunidade, grupo ou indivíduos, no quadro dos princípios éticos e deontológicos aplicáveis e com vista ao pleno reconhecimento da titularidade dos seus respectivos detentores. Tal sistema de inventário deverá assim constituir um instrumento indispensável: à promoção do rigor técnico no processo de identificação, estudo e documentação do PCI, com recurso a agentes dotados da adequada qualificação

técnico-profissional; ao conhecimento alargado, à escala nacional, das múltiplas manifestações do PCI, designadamente no âmbito da identificação de diversidades, recorrências e afinidades tipológicas; ao acesso ao PCI por parte das respectivas comunidades, grupos e indivíduos. Simultaneamente, deverá dar expressão à importância do papel desempenhado pelas entidades de carácter científico e educativo, nomeadamente museus, arquivos e centros de investigação, como agentes indispensáveis ao processo de conhecimento, salvaguarda e valorização do PCI, através da constituição e preservação de colectâneas e bancos de dados, independentemente do seu suporte e meio de registo, e da promoção de inventários, recolhas, estudos e actualizações de informação relativa ao PCI. Deverá promover a concertação de esforços e a cooperação entre as diversas instituições, públicas e privadas, envolvidas na salvaguarda do PCI, designadamente promovendo a digitalização de conteúdos e o seu acesso alargado, para fins da sua salvaguarda e fruição. Deverá assentar sobre o princípio da equivalência do sentido e valor cultural intrínseco da vasta diversidade de manifestações do PCI, independentemente do tempo, lugar

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e modos da sua produção/reprodução, bem como dos contextos e dinâmicas específicos de cada comunidade e grupo, de que deverá decorrer uma estratégia de salvaguarda equitativa, de acordo com princípios e formas não diferenciadores no plano do seu processo de conhecimento e valorização. Deverá promover um conhecimento do PCI simultaneamente em extensão e em profundidade, sustentado por uma lógica inclusiva da diversidade dessas manifestações, tendo simultaneamente em consideração: a sua importância enquanto reflexo da respectiva comunidade ou grupo, em particular dos seus modos de organização e dos seus referentes e quadros culturais; o seu valor social para a respectiva comunidade ou grupo, enquanto factor de reconhecimento interno de identidade e continuidade social e cultural; a sua complexidade enquanto fenómeno social e factor de compreensão, reflexo e condicionante do contexto social e cultural alargado da comunidade ou grupo, designadamente dos diversos domínios do respectivo património cultural, imaterial e ou material; a densidade do conhecimento e documentação dos respectivos contextos sociais e culturais da sua produção e reprodução, particularmente quanto à respectiva profundidade histórica e representatividade espacial; os âmbitos, os modos e as formas do seu acesso por parte da comunidade, grupo e dos indivíduos; os âmbitos, os modos e as formas em que se processa a sua transmissão, em particular os que implicam o recurso à oralidade; a sua efectiva produção e reprodução no âmbito da comunidade ou grupo a que se reporta; os âmbitos, os modos e as formas como nos seus processos de produção e reprodução se articulem as participações colectivas e individuais, internas ou externas à comunidade ou grupo; os processos de mudança que lhe sejam susceptíveis de documentar, designadamente na sua relação com mudanças no contexto social alargado da respectiva comunidade ou grupo; as circunstâncias susceptíveis de acarretarem a sua evolução para formas que, total ou parcialmente, não se enquadrem na definição de património cultural imaterial, no âmbito de processos sociais de que decorram a sua plena cristalização, reinvenção, folclorização, hibridização, mercadorização ou turistificação, bem como no âmbito de processos sociais de que resultem manifestas descontinuidades com a respectiva comunidade ou grupo; as circunstâncias susceptíveis de acarretarem o seu desaparecimento, parcial ou totalmente; a sua relação com demais manifestações de património cultural, móvel, móvel integrado, imóvel ou imaterial, e/ou com património natural.

*** Recorrendo a uma analogia certamente simplista, parece-nos que o inventário do PCI deve ser entendido por relação com o de uma colecção museológica. Sendo cada colecção mais

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ou menos ampla, o inventário de cada um dos bens que a constituem deve ser efectuado com recurso ao máximo número de fontes, e com vista à sua documentação com a maior profundidade possível. Independentemente das suas características específicas, que convocam mais ou menos recursos para a sua protecção, e do diferenciado valor que se possa atribuir a cada bem, variável a cada momento e em função de quem o olha e interroga, cada um desses bens é inalienável e, por princípio, todos eles se equivalem intrinsecamente. Como tal, o inventário deve estender-se a cada um e a todos os bens que integram uma determinada colecção, e não apenas aos seus “tesouros”, às suas “obras-primas”. Variável em função da dimensão de cada colecção, bem como dos recursos que a ela se encontram afectos, a tarefa desse inventário é frequentemente avassaladora e interminável. Porém, a via para o conhecimento sustenta-se primacialmente pelo trabalho sistemático, e não fosse tal o desafio não seriam certamente tão grandes os ganhos. No caso do PCI, o território a cobrir é consideravelmente mais amplo e mais complexo do que as reservas de um Museu, e o seu inventário estará, muito possivelmente, sempre incompleto, designadamente dada a necessidade da sua periódica actualização, tal como preconizado pela Convenção 2003. Contudo, parece-nos que as vias serão, essencialmente, apenas duas: a da ambição do rigor, da sistematicidade e da inclusividade, ou a da elaboração de listas formadas por exclusividade, nela incorporando apenas exemplos de maior notoriedade. Portugal, já o sabemos pelo menos desde o Concurso “A Aldeia mais Portuguesa de Portugal”, promovido em 1938 pelo Secretariado de Propaganda Nacional com a colaboração das Juntas de Província, encontra-se repleto de coloridos, ancestrais, vibrantes e originais exemplares do nosso património cultural imaterial. Mas, decorridos precisamente setenta anos sobre aquela iniciativa, não poderá ser hoje a mesma a estratégia nacional para a sua valorização, em particular no que respeita à actuação dos organismos no âmbito do Ministério da Cultura. Antes, poderá ser esta a oportunidade para sistematizar o nosso conhecimento sobre os demais tesouros que aguardam ainda, discretamente, pela nossa (re)descoberta, desde logo através da revisitação, sistematização e actualização, por confronto com o terreno, de inúmeras recolhas – etnográficas, etnomusicológicas, orais, audiovisuais, etc. – dispersas por variadas instituições, como reflexo frequente de grandes vontades e de recursos escassos, de que foi sendo feito o nosso conhecimento deste universo. Esse imenso conjunto de registos constitui, afinal, a principal forma de salvaguarda do PCI, tal como preconizado pelos principais normativos do quadro legal e institucional português – respectivamente a Lei de Bases


Fig. 16 “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal” Monsanto, 2002

do Património Cultural e os diplomas orgânicos relativos ao IMC e às Direcções Regionais de Cultura –, e os conteúdos daqueles mesmos registos assumem-se inequivocamente como um dos principais pontos fortes para qualquer actuação qualificada sobre o património imaterial no território nacional. Como tal, a estratégia de inventário para este território deverá recorrer indispensavelmente a esses fundos, dispersos por arquivos, museus, centros de investigação, associações de protecção do património e várias outras instituições, promovendo a sua sistematização, a sua digitalização e a sua disponibilização online de acordo com metodologias adequadas, promovendo assim a valorização, a divulgação e o seu acesso por parte das comunidades que estão na origem desse património e para a identidade das quais ele é decisivo.

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Notas 1

A terminologia adoptada difere da tradução oficial para Português da Convenção 2003, publicada em Diário da República (I/S, n.º 60, de 26/3/2008), tendo beneficiado do confronto das versões disponibilizadas previamente pela Procuradoria-Geral da República e pela Comissão Nacional da UNESCO, bem como do confronto das versões oficiais da Convenção em Inglês, Francês e Castelhano.

2

No contexto nacional, o artesanato é já objecto de políticas e de medidas de salvaguarda e valorização específicas, autónomas do domínio do património e da cultura, na dupla componente de regulação de actividade produtiva e de certificação dos produtos dela decorrentes (vd. DecretoLei n.º 41/2001, de 9 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 110/2002, de 16 de Abril), designadamente no contexto de actuação do Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P.

3

Constituiu esta precisamente uma das vias de reflexão suscitada nos Colóquios “Inventário, Protecção, Representatividade” (Museu Nacional do Teatro, 11/04/2008) e “Saberes e Técnicas: entre o Registo e a Transmissão” (Ecomuseu Municipal do Seixal, 27/06/2008). Ambos decorreram no âmbito do Ciclo de Colóquios “Museus e Património Imaterial: agentes, fronteiras, identidades” (Fevereiro a Novembro de 2008), organizado com vista à promoção da reflexão e debate sobre o domínio do PCI, no contexto da recente criação do IMC.

4

Acresce ainda a Colecção de Música Tradicional do Mundo, programa iniciado pela UNESCO em 1961.

5

A expressão “património etnográfico”, utilizada timidamente, reporta-se sobretudo às colecções e actividades dos museus etnográficos, de âmbito geralmente local, designadamente no âmbito da crescente afirmação destas instituições no panorama museológico, em Portugal e noutros contextos (vd. BROMBERGER 2007). A utilização em Portugal da segunda expressão deve-se principalmente à actuação do Museu Nacional de Etnologia, pela sua vocação e pela missão que prossegue desde a sua constituição em 1962, também como herdeiro do Centro de Estudos de Etnologia (1947). Para o caso francês, em particular para a declaração de coincidência entre “património imaterial” e “património etnológico” no contexto da actividade desenvolvida pela Mission à l’Ethnologie, sucessora da Mission du Patrimoine Ethnologique, vd. FABRE 2006.

6

No sentido dos seus paralelismos com as políticas e instrumentos de preservação da biodiversidade.

7

A mais notória resulta na sua imediata diferenciação e hierarquização (vd. BARRETO 2003: 45) por referência às demais manifestações do PCI (em particular relativamente às suas congéneres) de um mesmo território, e, como tal, a correspondência entre a elevação de uma ou mais manifestações a património imaterial mundial e a sua assumpção como representação de um todo nacional, aliás com evidentes correspondências com o espírito subjacente ao anterior programa da UNESCO de Proclamação das Obras-Primas do Património Imaterial da Humanidade.

8 De tal são também exemplo as Festas de Rapazes, recuperadas e reactualizadas com a participação de raparigas, “tradicionalmente” interditas nestes rituais e vítimas preferenciais das aproximações físicas dos rapazes (ALMEIDA 2006). 9

Exceptuar-se-ão, eventualmente, as práticas que envolvam o recurso ao “trabalho infantil”, outrora recurso indispensável à economia doméstica em inúmeros contextos sociais.

10

Para a definição destes tipos de detentores, realizada subsequentemente à Convenção 2003, vd. UNESCO/ACCU 2006: 9.

11

O domínio da etnobotânica é um dos exemplos mais frequentemente citados na literatura dedicada ao PCI.

12

Os normativos consultados são referidos apenas no próprio texto.

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Legendas das Imagens Fig. 1 Proclamação das “loas” por ocasião da Festa dos Rapazes. Na janela, friso de máscaras, acompanhadas de letreiro indicando “Para Venda”. Varge, Bragança. 2000. [Foto Benjamim Pereira]. Fig. 3 António Germano, lavrador, comerciante de carroças e antigo almocreve, exibindo o seu arado de madeira. Nessa Primavera, o arado foi excepcionalmente utilizado para lavrar um campo de milho, pois o terreno encontrava-se encharcado pela chuva em excesso e desaconselhava a utilização do seu tractor, pelo peso excessivo deste. Murteira, Cadaval, 1996 [Foto PFC]. Fig. 4 Decorando o “cargo” para o leilão da “Festa dos Leilões”, organizada pelo Atouguia Futebol Clube e realizada em honra do Mártir S. Sebastião, orago da aldeia. Atouguia, Abrigada, Alenquer, 2000 [Foto PFC]. Fig. 5 Circumambulação da imagem do Senhor da Boa-Morte em torno do Cruzeiro, finda a bênção dos campos, carregada por homens envergando “traje de campino”. Nesta Quinta-feira de Ascenção, feriado local, como em muitos outros municípios do Ribatejo, a bênção estendeu-se, para além da lezíria, à Expo ’98, que inauguraria no dia seguinte. Monte e Ermida do Senhor da Boa-Morte, Vila‑Franca de Xira, 1998 [Foto PFC]. Fig. 6 Aguardando a passagem da procissão nocturna em honra de S. José. Sobre o muro, luminárias feitas de cascas de caracóis e alimentadas a azeite. Após a procissão, uma “Comissão Avaliadora” percorre depois as ruas da aldeia, com vista à eleição do vencedor do concurso, ao qual se podem candidatar apenas as casas que recorram àquelas luminárias tradicionais. Carvalhal, Bombarral, 2000 [Foto PFC]. Fig. 7 Colocação do mastro, retirado de um moinho em avançado estado de degradação, num moinho recém-construído, em betão e tijolo, com o piso térreo destinado a habitação de veraneio. Catefica, Torres Vedras, 2000 [Foto PFC]. Fig. 8 Recriação da tradição: Feira Medieval, com venda de produtos agrícolas e gastronómicos, assegurada por grupos folclóricos e etnográficos. Tomar, 2007 [Foto PFC]. Fig. 9 A figura da “viúva” carpindo as “virtudes” do seu defunto no Enterro do Entrudo. A tradição local foi interrompida na década de 1940, e retomada apenas em 1990, sob a iniciativa de um grupo de jovens fortemente liderado pelo Gué, ou Hélder Jacinto, a quem coube desde então aquele papel. Murteira, Cadaval, 2000 [Foto PFC]. Fig. 10 Procissão em honra de N. Senhora das Neves, um acto performativo em permanente reelaboração. Em 1994, pretendendo “recuperar a tradição antiga” de, antes da missa, os cavalos darem três voltas à capela, o pendão foi transportado a cavalo por um rapaz, acompanhado de uma menina também a cavalo. Montejunto, Cadaval, 1994 [Foto PFC]. Fig. 11 Encenação da Arte Xávega, por ocasião do festival anual que afirma este tipo de pesca tradicional como marca da identidade da Nazaré. Praia da Nazaré, 2000 [Foto PCF]. Fig. 12 Ronda à aldeia por ocasião da Festa de Santo Estêvão, outrora exclusivamente uma “Festa de Rapazes”. Ousilhão, Vinhais, 1999 [Foto Benjamim Pereira]. Fig. 13 Pinturas realizadas nas casas por ocasião do peditório cerimonial que acompanha o Cantar dos Reis. Olhalvo, Alenquer, 2008 [Foto PFC]. Fig. 14 Pinturas realizadas nas casas por ocasião do peditório cerimonial que acompanha o Cantar dos Reis. Abrigada, Alenquer, 2008 [Foto PFC]. Fig. 15 Mulher recolhendo sal no talhão da sua família. Marinhas, Rio Maior, 2000 [Foto PFC]. Fig. 16 Monsanto, vencedora do concurso “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal”, promovido pelo SPN em 1938. O concurso, com fins claros de promoção dos valores ideológicos do Estado Novo referentes à cultura popular, destinava-se a seleccionar, como ícone do mundo rural tradicional, uma aldeia considerada resistente a quaisquer “influências estranhas” e cristalizada no “estado de conservação no mais elevado grau de pureza” das suas características originais. Ao fundo, a Torre de Lucano, ostentando a réplica do Galo de Prata ganho no Concurso [Foto PFC].

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Mercês Lorena Pinturas flamengas do retábulo da Sé de Évora Análise material da série da Vida da Virgem – proposta conjuntural

Durante dois anos (2005/2006) foi levado a cabo uma intervenção de conservação e restauro das treze pinturas da série da Vida da Virgem, provenientes do antigo retábulo da Sé de Évora e que, actualmente, pertencem ao acervo do Museu de Évora. Estas pinturas, cronologicamente situadas no final do século XV, são de origem flamenga, produto de encomenda, bem ao gosto português, caracterizado pela monumentalidade e necessidade de ornamentar Catedrais, dedicadas ao culto da Virgem. A proximidade das pinturas e a análise material e documental permitiram um outro modo de ver e agrupar este conjunto pictórico que, por falta de informação disponível, é, para além da sua forma sequencial e narrativa, difícil de expor. During two years (2005/2006) it was undertaken a conservation-restoration intervention of the thirteen paintings from the Life of the Virgin series, from Évora Cathedral ancient altar piece, which belong actually to the Évora Museum collection. These paintings, chronologically dated from the end of the fifteen century, are flemish in origin, and a contract product, well in accordance to the Portuguese style characterized by its monumentality and the necessity of ornamenting the Cathedrals dedicated to the Virgin devotion. The paintings proximity, and the material and documental analysis, have allowed another way of viewing and assembling this pictoric set, which by lack of available information, and beyond its sequencial and narrative form, is difficult to expose.

PALAVRAS-CHAVE: Retábulo, Pintura flamenga, série da Vida da Virgem, Sé de Évora, Museu de Évora, Conservação-restauro.

Conservadora-restauradora, mestre em museologia, técnica do departamento de Conservação e Restauro do Instituto dos Museus e da Conservação | merceslorena@mail.pt

Fig. 1 Adoração dos Reis Magos Painel © Instituto dos Museus e da Conservação

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N

um Museu, quando se pretende expor, há que primeiramente compreender aquilo que se vai expor. A exposição, definitiva ou temporária, deve considerar um cenário de objectos e de informação. O actual conceito museológico difere daquele que vigorou durante o século XIX e princípio do século XX. Os museus de arte nasceram de uma ideia de tesouro guardado e resumiam-se a uma acumulação de obras, existindo uma individualização da peça, quase num sentido referencial, que, ao ser colocada num museu é, propositadamente, descontextualizada. Durante anos o museu de arte funcionou apenas como repositor de memória, não ultrapassando os domínios da História de Arte, veiculando, deste modo, uma visão que contemplava, apenas, a não funcionalidade da arte. As obras viviam por si, sem uma caracterização específica, com alguma dificuldade na absorção da contemporaneidade. Será que esta realidade já não se ajusta aos dias de hoje, quando se tenta enquadrar o modo expositivo dentro de um contexto? Seja ele de índole propagandística (política, económica, religiosa), seja para informação ou educação, ou, ainda, apenas como prazer e/ou carácter expressivo da imagem artística, como símbolo de perpetuidade. Os Museus tentam adaptar-se, o que nem sempre é fácil, a este conceito de enquadramento histórico e/ou artístico, pois a obra de arte deixou de ser considerada como uma definição de categoria de objecto para passar a ser considerada como uma realidade própria, carregada de vários tipos de valores. Estes, por seu turno, estão definitivamente ligados a técnicas executadas pelo homem, cujo resultado final é sempre uma relação mental e operacional, inserida dentro de um determinado contexto. O valor artístico de uma obra de arte é, contudo, aquele que sobressai na sua configuração visível, ou seja, na sua forma mais elementar, fazendo face às existências de uma sociedade cada vez mais exigente. A exposição museológica de determinados objectos pode ser pensada e observada com sentido crítico, proporcionando através dela a elaboração de uma narrativa cultural. Não deve, contudo, exercer a função criadora de sentido, mesmo quando o objecto não encerra um sentido inerente e através dela se possa descodificar e difundir informação; pelo contrário, o ciclo expositivo deve fornecer, ao mesmo tempo, leituras de certos acontecimentos e condições para o visitante avaliar criticamente as informações. Quando se sugere fazer um estudo sobre pintura, mais precisamente sobre o políptico que compunha o antigo retábulo da Sé de Évora, a fim de o expor ao público, tem-se como principal finalidade, e dentro do possível, compreendê-lo na sua essência. O facto de não haver informação disponível que permita saber ao certo a autoria, a data de feitura e a origem do políptico, torna este estudo difícil e assente em suposições feitas pela análise material das pinturas, que é aquela que, de momento, mais informação pode dar. Descrevendo o políptico da Sé de Évora, tal como se encontrava exposto no Museu de Évora, e olhando para as pinturas como peças soltas e, vistas aos olhos dos dias de hoje, descontextualizadas, apenas se pode dissertar, numa primeira abordagem, sobre o ciclo sequencial narrativo, que é: Encontro de Santa Ana e São Joaquim; Nascimento da Virgem; Apresentação da Virgem no Templo; Casamento da Virgem; Anunciação; Natividade; Adoração dos Reis Magos; Circuncisão; Fuga para o Egipto; Apresentação do Menino no Templo; Menino entre os Doutores; Morte da Virgem. Não foi incluída neste estudo, por não se considerar como parte integrante do retábulo inicial, nem a grande pintura da Virgem da Glória, nem as seis pinturas da Paixão de Cristo do retábulo do Esporão.1

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São conhecidas algumas propostas conjecturais de recolocar o retábulo tal como seria no original, ou seja, como se ordenariam espacialmente as pinturas, umas em relação às outras. Túlio Espanca promoveu uma proposta do retábulo horizontal, em dois panos desdobrados de ambos os lados do quadro central da Virgem da Glória, cada um dos quais dispostos sobre um ou dois registos. Elisabeth Agius d´Ivoire, seguindo o programa iconográfico, reagrupa, com bastante segurança, o retábulo, privilegiando o sentido vertical com as cenas em três sequências coerentes: as quatro primeiras cenas relativas à infância da Virgem – Encontro de Santa Ana e São Joaquim, Nascimento da Virgem, Apresentação da Virgem no Templo e Casamento da Virgem –; as quatro cenas seguintes relativas ao ciclo da natividade de Cristo – Anunciação, Natividade, Circuncisão e Adoração dos Reis Magos – e uma terceira série de pinturas constituída por episódios da infância de Cristo de carácter doloroso para a Virgem, Apresentação do Menino no Templo, Fuga para o Egipto, Menino entre os Doutores, terminando com a Morte da Virgem. “Um espaço vertical na parte de cima ao centro do retábulo seria ocupado pelo painel Virgem da Glória, encimado por uma figura, sem dúvida esculpida, da Assunção” (D´IVOIRE 1992: 297). É contudo possível, neste momento, e para além de tomar em consideração outras propostas em estudo por parte dos historiadores, pensar também em diferentes hipóteses de reagrupamento, tomando como ponto de partida a análise directa das pinturas. Assim, podemos pensar numa estruturação em três níveis: um primeiro com as primeiras cinco temáticas da Virgem antes do nascimento do Menino; um segundo com as cinco temáticas seguintes, relacionadas com a Virgem e o Menino; e um terceiro com as duas últimas temáticas relacionadas com as despedidas da Virgem. Este estudo baseia-se na análise comparativa das actuais dimensões das pinturas, assim como com o estudo da cor, forma e proporções das figuras2. A arte é uma manifestação de impulsos e de valores. Quando se olha pela primeira vez para o conjunto das doze pinturas deste retábulo, a primeira percepção que se tem, e aquela que mais nos sensibiliza, é o riquíssimo contraste de cores que o compõem. Sobressaem os azuis, os verdes e os carmins, distribuídos à primeira vista igualmente pelas doze pinturas. Esta sensação, segundo Kandinsky, é explicada devido ao facto de que quando se olha para um conjunto de cores, se produzir um duplo efeito. O primeiro produz-se, sob o ponto de vista físico, quando o olho sente a cor, aprecia as suas propriedades e a sua beleza, tratando-se fundamentalmente de um efeito superficial. É um efeito rápido, substituído por um segundo mais emotivo, provocando uma vibração psíquica. Desconhece-se se o efeito produzido é uma reacção directa ou se, pelo contrário, advém da associação de ideias pré-adquiridas. (KANDINSKY 1987: 57)

O valor de uma certa cor é acrescido por uma dada forma e atenuado por outra. A forma e a cor não podem entrar em dissonância, devendo antes estar em harmonia. O número de cores e de formas é infinito, assim como as respectivas combinações e efeitos. Se a concentração assentar em cores isoladas, estas podem ser divididas em dois grandes grupos: o de calor ou frio da cor; o da claridade ou obscuridade dessa mesma cor. A cor quente tende a aproximar-se do espectador enquanto a cor fria o afasta. Por exemplo, quando se tenta arrefecer o amarelo, cor muito quente, este resulta num tom esverdeado e perde os dois movimentos que lhe são intrínsecos. O azul tem um movimento oposto e tempera o amarelo. Se ainda se acrescentar mais azul, os dois movimentos antagónicos anulam-se e atingem a imobilidade, o verdadeiro repouso; surge o verde. (KANDINSKY 1987: 78-80) Num exercício de compreensão do ritmo e equilíbrio das cores do políptico, isolaram-se as cores que, de um determinado prisma, causam mais impacto e contraste no observador, isto é, a cor ligada a grandes manchas centrais de primeiro plano. Assim, colocando o verde, aquecido com grande quantidade de amarelo misturado, em oposição ao azul, verificou-se que o verde ainda é uma cor mais quente e centrípeta e o azul mais frio e centrífuga. Talvez seja por essa razão que quando se olha para o conjunto, se tem a ilusão de que a percentagem de verde é relativamente idêntica ao azul, causado pelo poder da adição do amarelo, que irradia força e se aproxima do espectador. Depois de feito o mapa de desfragmentação das cores (Fig.2), conclui-se que a quantidade de cor azul é mais do dobro da cor verde. Inclusivamente, apenas quatro pinturas têm o verde como grande mancha central: Nascimento da Virgem, Adoração dos Reis Magos, Menino entre os Doutores e Morte da Virgem. O verde é sem dúvida o ponto de equilíbrio que transmite tranquilidade, não possuindo qualquer movimento. A terceira cor que se isolou neste estudo foi o carmim, ou seja o vermelho. Esta cor intensa contém uma força intrínseca que, por vezes, em contacto com o azul, é arrefecida. Se ainda se lhe adicionar branco na sua composição, pode tornar-se mais fria, alterando-lhe o seu carácter. Esta foi a intenção do pintor, que para fazer o carmim juntou vermelhão ou corante vermelho com branco de chumbo e/ou, muito pontualmente, carvão vegetal. De referir que as pinturas Nascimento da Virgem e Anunciação não têm nenhuma mancha de carmim em primeiro plano, assim como na Morte da Virgem é uma grande mancha de vermelho vivo em vez do carmim, no traje de um Apóstolo, que imediatamente salta à vista; razão pela qual esta pintura é uma excepção cromática.

39

projectos e experiências


Identificação das pinturas Fuga para o Egipto Apresentação do Menino no Templo Menino entre os Doutores Morte da Virgem

Anunciação Natividade Adoração dos Reis Magos Circuncisão

Encontro de Santa Ana e São Joaquim Nascimento da Virgem Apresentação da Virgem no Templo Casamento da Virgem

Fig. 2 Mapa de manchas de cor Azul, carmim e verde nas figuras de primeiro plano

Resumindo, o azul associado à Virgem, protagonista deste retábulo, é a cor predominante. Como cor fria que é, foi equilibrada pelo verde e pelo vermelho que lhe deram o ritmo e equilíbrio de conjunto. Também a luz está ligada intrinsecamente à cor, uma vez que sem luz não existe cor. Tratados antigos demonstram

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40

a importância da luz e como esta foi, ao longo dos anos, interpretada e aplicada à construção, não só da arquitectura, mas também da pintura: “A luz do sol dá as sombras à luz do teu olho dada pela tua mão, convém que a luz seja suave e o sol te ilumine pela esquerda” (CENNINI 1988: 38). Confirmou-se que nestas pinturas, efectivamente, a luz está sempre colocada no lado esquerdo da composição.


Um outro aspecto a salientar neste estudo prende-se com a perspectiva como lançamento do desenho. A perspectiva renascentista é o produto de uma convenção, ou seja, é o oposto da realidade naturalista, pois fundamentase numa convenção óptico-técnica que, baseada em antigos tratados de arquitectura, atingiu o auge naquela época. Examinando mais uma vez o conjunto retabular e tentando imaginá-lo na sua imensa dimensão, num espaço único para o qual foi pensado, com uma função lógica e ideal, torna-se difícil conjecturar qual a sua posição e localização. A sua unidade não é mais do que a sua identidade, e o espaço homogéneo nunca é o espaço dado, mas sim o espaço construído. Segundo Panofsky, a fórmula criada por Jean Pélerin-Viator quando parafraseava Euclides enunciava que: “As quantidades e as distâncias têm concordâncias diferentes”. Esta fórmula foi totalmente reformulada no Renascimento, numa reelaboração que lhe alterou parcialmente o sentido original: “dimensões iguais postas a distâncias desiguais não podem ser vistas com diferentes proporcionalidades” (PANOFSKY 2003. 18-19). Assim, observando atentamente as pinturas, pode-se considerar que existem ao nível das personagens de primeiro plano, pelo menos duas a três escalas diferentes. As de escala maior são aquelas que representam as cenas da vida da Virgem, antes do nascimento do Menino Jesus, ou seja as primeiras cinco temáticas, sendo no entanto ligeiramente mais pequenas no Nascimento da Virgem e na Anunciação. Depois, numa escala intermédia, com cerca de 10 cm de diferença, encontram-se as cinco pinturas cujo tema se relaciona directamente com o nascimento do Menino, sendo também aqui, nas pinturas da Circuncisão e da Apresentação do Menino no Templo, que as figuras surgem ligeiramente mais pequenas. Por fim, com uma escala figurativa mais pequena, os dois últimos temas. Subsiste ainda a dúvida de saber se houve intenção de enfatizar ou compensar as distâncias no observador. (Fig. 3) Em teoria, as regras fundamentam as condições psicológicas da impressão visual. A perspectiva pode ser elaborada com êxito para trabalhar as distâncias. Sempre se questionou se o quadro se devia reger pela posição efectiva do observador e pela simetria da frontalidade. Uma das características da pintura flamenga é que o ponto de vista é quase sempre central. Posto isto, considera-se que as pinturas com as figuras de maior escala estão mais próximas do observador. A perspectiva procura a distância entre os homens e as coisas: primeiro é o olho que vê; segundo o objecto visto; terceiro a distância intermédia, afirmou Dürer, corroborando Piero della Francesca (PANOFSKY 2003. 49)

Santa Ana Porta Dourada c. 134 cm

Santa Ana Ap. Virgem no Templo c. 135 cm

Virgem Casamento da Virgem c. 133 cm

Virgem Ap. Do Menino no Templo c. 113 cm

Santa Ana Circumcisão c. 115 cm

Fig. 3 Escala das figuras de pé em primeiro plano

41

projectos e experiências


As actuais dimensões das pinturas

• O vermelho, a que correspondem as seis pinturas

Quando se iniciou o estudo para a intervenção de conservação e restauro, verificou-se que as pinturas tinham diferentes dimensões por terem sido cortadas. Este artigo baseia-se em dois momentos diferentes da vida do políptico: o primeiro prende-se com a observação e relação das pinturas tal como se encontram; o segundo com as prováveis dimensões originais, que lhe dão uma visão diferente. De facto, neste conjunto retabular, as doze pinturas sobre madeira são estruturalmente idênticas, mas não iguais. Como foi referido, as pinturas apresentam cortes, algumas apenas na altura, outras, tanto na altura como na largura. Tal facto alterou-lhes definitivamente as dimensões originais, deixando-as com tamanhos diferentes. É possível que a compreensão desses cortes possa contribuir para a percepção de qual seria a sua disposição, senão originalmente, pelo menos após essa redução de dimensões. Os valores apurados permitiram agrupar as pinturas quanto à sua altura, em dois grupos distintos:

Nome

Altura* Largura*

1. Encontro Santana e S. Joaquim

191

102

2. Nascimento da Virgem

191

102

3. Aparição Virgem no Templo

192

111

4. Casamento da Virgem

193

111

5. Anunciação

191

98

6. Natividade

191

98

7. Adoração dos Reis Magos

188

97

8. Circuncisão

188

97

9. Fuga para o Egipto

188

101

10. Aparição do Menino no Templo

188

101

11. Menino entre os Doutores

188

111

12 – Morte da Virgem

188

110 *em cm

museologia.pt nº2/2008

42

mais altas, com uma média de 191 cm, e em que estão incluídos os primeiros seis temas da narração; • O amarelo, a que correspondem as seis pinturas mais

baixas, com cerca de 188 cm, e em que se incluem os últimos seis temas da narração; Quanto à largura, podem-se agrupar em três conjuntos: • O azul, que compreende as quatro pinturas centrais dentro da temática representada que medem cerca de 97 cm, surgindo deste modo como das mais estreitas do conjunto; • O verde, a que correspondem igualmente quatro pinturas,

mais precisamente as duas primeiras do primeiro grupo de quatro, e as duas primeiras do último grupo de quatro, medindo cerca de 101 cm; • Por ultimo a cinzento, o grupo das mais largas, com cerca de 111 cm. Este, tal como os anteriores, incluem quatro pinturas, que correspondem às duas últimas do primeiro grupo e às duas últimas do último grupo.

Como conclusão, e após esta análise, apenas fica uma certeza: existindo uma relação entre os cortes executados e a sequência narrativa, eles foram realizados com um objectivo e para uma colocação pré-definida num determinado espaço. Não foram reduções aleatórias na medida em que há semelhanças de dimensões entre os grupos, para além do facto de nesses cortes ter havido o “cuidado” de amputar as pinturas nos lados ou topos que menos interferissem com a representação. A observação da construção dos suportes através de raio-X permitiu verificar que o sistema original de união das tábuas é de colagem por junta viva, reforçado por taleiras rectangulares e travadas por cavilhas de secção circular (Fig. 4). Observou-se ainda que havia diferença no espaçamento entre os níveis de taleiras, inteiras ou vestígios (Fig. 5), nos diversos painéis3. Posto isto, foi possível dividi-las em três grupos: o 1º coincide com as primeiras cinco pinturas com sequência narrativa, exceptuando a do Casamento da Virgem, cujo distanciamento é cerca de 40 cm; o 2º grupo coincide com as últimas seis com sequência narrativa imediatamente anteriores à Morte da Virgem; o 3º grupo corresponde às pinturas Casamento da Virgem e Morte da Virgem, que ao apresentarem características algo individualizadas, tornam difícil a sua relação com qualquer dos tipos de construção/sequência narrativa. • 1º grupo (40 cm entre níveis de taleiras)

Encontro de Santana e São Joaquim Nascimento da Virgem Apresentação da Virgem no Templo4 Anunciação


Fig. 4 Taleira Pormenor de RX da Anunciação

Fig. 5 Vestígio de taleira Pormenor da Anunciação

• 2º grupo (50 cm entre níveis de taleiras)

Ao marcar esse rectângulo, que circunscrevia o limite máximo dessas sobreposições, verificou-se que a respectiva largura era idêntica à das pinturas que tinham rebarbas laterais, sendo legítimo levantar a hipótese de esta estar muito próxima da original, 111 cm. Este dado verifica-se nas pinturas Apresentação da Virgem no Templo, Casamento da Virgem, Menino entre os Doutores e Morte da Virgem. O rectângulo limite permitiu, para além da aproximação às larguras originais das pinturas, estabelecer as medidas de possíveis áreas em falta nas margens de cada uma delas. Assim, após este estudo, em que se demonstrou a grande probabilidade das pinturas possuírem inicialmente dimensões iguais, pré-estabelecidas, e possivelmente destinadas à inserção num conjunto retabular, seguiu-se um outro mais conjectural, caracterizado pela realização de ensaios a partir dessas dimensões mínimas originais, com o intuito de perceber os contornos pictóricos das áreas em falta, que completariam as cenas de cada pintura. Completando o desenho em falta, conclui-se que, de facto, o espaço representado nestas pinturas não é um espaço fechado, ou seja, não se confina ao limite do quadro. A superfície do mesmo encontrase colocada no meio do espaço, de modo a que este pareça evoluir para os lados, abraçando o espaço envolvente, diminuindo a distância que parece incluir o espectador, situado defronte do quadro. É uma realidade em que o espaço imaginado se estende de dentro para fora em todas as direcções, para lá daquela que é representada, pondo em evidência a infinidade e continuidade espacial.

Natividade Adoração dos Reis Magos Fuga para o Egipto Circuncisão Apresentação do Menino no Templo Menino entre os Doutores • 3º grupo (62/65 cm entre níveis de taleiras)

Casamento da Virgem Morte da Virgem

Sugestão das dimensões originais das pinturas No cômputo de tudo o que já foi referido, chegou-se a uma encruzilhada de dados. Nesta parte final, procurou-se objectivar aquilo que é o segundo momento da investigação, mas que em boa verdade, é o primeiro momento da vida do políptico, ou seja, a sua dimensão original. Observando mais uma vez a documentação por raios-x, verificou-se que as pinturas apresentavam diferenças de densidade nos cantos superiores, indicando que o limite original da camada cromática termina em forma de arco. Sobrepondo as radiografias das pinturas em função das curvaturas existentes nos cantos superiores, verificou-se que estas coincidem perfeitamente, pois têm a mesma abertura. Este dado permitiu a inserção de duas circunferências tangentes à margem esquerda e direita de um rectângulo limite encontrado pela justaposição das pinturas, umas em relação às outras, de acordo com o que terão perdido das suas dimensões originais.5

43

projectos e experiências


0.060

0.400

0.400

0.060

0.060

0.060 0.138

0.063

0.138

0.060

0.063

0.407

0.065

0.162

0.065

0.448

0.060 0.448

0.062 0.417

0.062 0.417

0.426

0.063

0.426

0.063

0.397

0.069

0.397

0.069

Encontro de Santa Ana e São Joaquim

Nascimento da Virgem

museologia.pt nº2/2008

44

• todas as pinturas teriam originalmente 5 níveis de

taleiras; • as pinturas do Encontro de Santana e São Joaquim,

Nascimento da Virgem e Anunciação são rigorosamente iguais na construção dos suportes e que os espaçamentos entre níveis de taleiras é de cerca 40 cm; • distam de ambos os topos 10 cm, coincidindo

tangencialmente com o final das circunferências, utilizadas para marcar os arcos no topo superior; • existe uma ligeira diferença de distância no topo superior

da pintura da Apresentação da Virgem no Templo; • simulando a inserção das pinturas num rectângulo,

apuraram-se novas medidas – 222 cm x 111 cm – ou seja, a altura é o dobro da largura, rectângulo do duplo quadrado; • dividindo este rectângulo em partes iguais 6 x 3

encontram-se dezoito quadrados de 37 cm cada; • 37 cm é também o raio da circunferência que marca os

arcos dos topos.

0.139

0.171

0.211

Fig. 6 Proposta de redimensionamento pela análise da construção dos suportes

Nestas pinturas, tomadas individualmente ou inseridas no conjunto, pode-se considerar a existência de um único ponto de vista central, dentro de um plano, com vários pontos de fuga, dentro ou fora do espaço. No espaço de cada pintura é possível traçar as linhas principais, verticais e horizontais, do lançamento das formas. Apesar de sensorial, ainda não foi possível definir onde está localizado nem o ponto de vista central, nem por onde passam as linhas, sobretudo por falta da possível altura original das pinturas. Curiosamente, fazendo a simulação das taleiras incompletas ou em falta, no topo inferior e superior de algumas pinturas, concluiu-se surpreendentemente que este poderia ser o dado que faltava para finalizar esta demonstração. Como resultado, começando pelo primeiro grupo das pinturas de maior escala, ou seja, os primeiros cinco temas, (exceptuando o Casamento da Virgem) verificou‑se em todas elas que (Fig. 6):

0.087 0.148 0.135

0.139

0.171

0.148

0.060 0.396

0.060 0.396

0.053 0.417

0.053 0.417

0.104

0.124

0.156 0.211

0.104

0.156

0.170

0.111

0.124 0.198

0.170 0.133

0.111

0.198

0.133

0.217

0.113

0.128

0.129

0.217

0.113

0.194

0.407

0.194

0.162

0.125

0.251

0.129 0.118 0.128 0.166

0.125

0.166

0.118

0.251

0.218


Apresentação da Virgem no Templo

• as taleiras centrais estão exactamente no meio das

pinturas, excepto na Apresentação da Virgem no Templo; Extrapolando esta ideia para as restantes pinturas, obtiveram‑se os seguintes resultados para o segundo grupo (Fig. 7): • todas as pinturas teriam originalmente 4 níveis de

taleiras; • A distância entre as taleiras é em média 50 cm; • A última taleira dista do topo inferior aproximadamente

30 cm;

0.066

0.066 0.446

0.414

0.411

0.076

0.122

0.154

0.063

0.414

0.063

0.446

0.10

0.122 0.116

0.136 0.129 0.154 0.117

0.10

0.136

0.076

0.069

0.411

0.069

0.063

0.063 0.396

0.060

0.103

0.060

0.060 0.156

0.060

0.103

0.396

0.074

0.132

0.156

0.074

0.116

0.117

0.129

0.079 0.478

0.367

0.433

0.135

0.139

0.171

0.087

0.148 0.135

0.087

0.433 0.079 0.478

0.367

0.081

0.480

0.060

0.081

0.169

0.060

0.218 0.132

0.480

0.063

0.218

0.138

0.063

0.211

0.169

0.426 0.060

0.400

0.060

0.448

0.063

0.426

0.063

0.139

0.171

0.148

0.104

0.396

0.124

0.060

0.448

0.111

0.170

0.104

0.060 0.396

0.156 0.211

0.138

0.156

0.400

0.170 0.133 0.124 0.198

0.111

0.217

Anunciação

10 cm dos topos. A Morte da Virgem, por seu lado, é a única pintura que tem apenas três níveis de taleiras com intervalos de 60 cm entre elas, distando 40 cm dos topos, aproximadamente. (Fig. 8) Resumindo, este novo dado permite avançar não só com uma nova arrumação das pinturas no espaço, mas sobretudo com uma diferente maneira de as olhar. Para uma melhor compreensão, simulou-se o desenho em falta para o que seriam as verdadeiras dimensões originais. Assim, concluiu-se que era possível reagrupar de novo as pinturas do seguinte modo (Fig. 10):

• A última taleira dista do topo superior aproximadamente

cerca de 15 cm Por último, restam as pinturas Casamento da Virgem e Morte da Virgem que, como já foi referido anteriormente, são diferentes das outras na construção dos suportes. O Casamento da Virgem tem as medidas entre as taleiras de aproximadamente 60 cm, distando as últimas com

• 1º grupo mais perto do observador Encontro de Santana e São Joaquim Nascimento da Virgem Apresentação da Virgem no Templo Anunciação Casamento da Virgem

45

projectos e experiências


.065 0.065

0.070

Circuncisão

0.070 0.070

Apresentação do Menino no Templo

0.071

0.071 0.071

0.065

0.065 0.0

Menino entre os Doutores

Fig. 7 Proposta de redimensionamento pela análise da construção dos suportes 0.485

0.062 0.062 0.062 0.058 0.058 0.0

0.550

0.069 0.069 0.0

0.671

0.671

0.465 0.465 0.465

0.530 0.530 0.530

0.547 0.547 0.547

0.452 0.452 0.452

0.11 0.11 0.11

0.12 0.12 0.12

0.185 0.185 0.185

0.147 0.147 0.147 0.136 0.136 0.136

0.176 0.176 0.176

0.161 0.161 0.161 0.144 0.144 0.144 0.127 0.127 0.127 0.153 0.153 0.153 0.129 0.129 0.129 0.176 0.176 0.176

0.320

0.550

0.058 0.058

0.485

0.058 0.176

0.176 0.176

0.127

0.313 0.313 0.313

0.068 0.068 0.068

0.671

0.063 0.063 0.104 0.127 0.121 0.125 0.110 0.121 0.127 0.110

0.066 0.066 0.066

0.320

0.550

0.063 0.098 0.098

0.104 0.119 0.125 0.129 0.119 0.121 0.104 0.129 0.110 0.125

0.548 0.548 0.548

0.540 0.540 0.540

0.1 0.1 0.1

0.485

0.098 0.129

Adoração dos Reis Magos

0.119

0.386 0.386 0.386

0.564 0.564 0.564

0.219 0.219 0.219

0.320

0.215 0.215

0.207

0.433 0.433 0.433

0.05 0.05 0.05

0.482

0.137

0.137 0.155

0.155 0.122

0.063 0.063 0.063

0.493

0.207

0.122 0.137 0.140

0.155 0.140 0.132

0.122 0.132

0.140

0.488 0.488 0.488

0.061 0.061 0.061

0.445

0.482

0.132

0.199 0.199 0.199

0.089 0.089 0.089

0.229 0.229 0.229

0.083 0.083 0.083

0.214 0.214 0.214

0.089 0.089 0.089

0.487 0.487 0.487

0.339

0.071 0.071 0.493

0.068 0.068 0.215

0.445

0.08 0.208 0.208

0.339

0.157

0.157 0.169

0.208

0.207

0.13

0.169 0.122

0.122 0.157 0.135

0.169 0.135 0.132

0.122 0.132

0.135

0.214 0.214

0.482

0.508

0.132

Natividade

0.493

0.484

0.13

0.13

0.11

0.164 0.164 0.164

0.445

0.071

0.190 0.190 0.190

0.339

.066 0.066

0.462

0.068 0.08

0.352

0.06 0.508

0.08

0.484

0.508

0.06

0.214

0.462

0.484

0.547 0.181 0.181

0.352

0.462

0.530

760.181

0.352

0.465

.06

0.313

.06 0.221 0.221 0.221 0.181 0.181 0.181

0.06 0.06 0.06

0.061 0.061 0.061

0.06 0.06 0.06

0.066 0.066 0.066

0.078 0.078 0.078 0.065 0.065 0.065

Fuga para o Egipto


0.11 0.11 0.12 0.12 0.12 0.12 0.09 0.09 0.11 0.11 0.09 0.09 0.11 0.11

0.186 0.186

0.205 0.205

0.008 0.008

1.100 1.100

0.637 0.637

0.384 0.384

0.060 0.060 0.060 0.060

0.621 0.621

0.053 0.053

0.635 0.635

0.058 0.058

0.658 0.658

0.062 0.062

0.589 0.589

0.060 0.060

0.380 0.380

0.061 0.061

0.060 0.060 0.060 0.060

Casamento da Virgem

0.002 0.002

Morte da Virgem

Fig. 8 Proposta de redimensionamento pela análise da construção dos suportes

• 2º grupo mais longe do observador Natividade Adoração dos Reis Magos Fuga para o Egipto Circuncisão Apresentação do Menino no Templo Menino entre os Doutores • Sem grupo Morte da Virgem Como conclusão pode-se então conjecturar o seguinte:

• A pintura do Casamento da Virgem, sendo aquela que

apresenta na sua composição mais simetria, teria um posicionamento central na composição, ladeada pela Apresentação da Virgem no Templo e pelo Encontro entre Santa Ana e São Joaquim, respectivamente à esquerda e à direita; • As Pinturas Nascimento da Virgem e Anunciação, por

terem uma escala ligeiramente inferior, seriam colocadas no lado esquerdo e direito respectivamente, num nível ligeiramente superior, que em conjunto com as pinturas imediatamente anteriores levam a um primeiro e segundo momentos do ciclo narrativo;

Primeiro grupo:

Segundo grupo:

• Corresponde aos cinco primeiros temas da Virgem antes

• Condiz com os seis temas seguintes relacionados com a

do nascimento de Jesus e estariam colocadas num nível inferior, mais próximo do observador

Virgem e o menino, e estaria colocada num nível acima do primeiro grupo;

• É o que tem as figuras com maior escala, tendo o seu início

• É o que tem as figuras de menor escala, tendo o seu início

mais perto do bordo inferior, ou seja a cerca de 20 cm;

mais longe do bordo inferior, ou seja a cerca de 30 cm;

47

projectos e experiências


Adoração dos Reis Magos

Morte da Virgem

Fig. 9 Marcação de linhas estruturas da composição

• A pintura da Adoração dos Reis Magos, por concomitância

de ideias com o primeiro grupo, teria um posicionamento central na composição do conjunto, por cima do Casamento da Virgem e ladeada pela Natividade e Fuga para o Egipto, respectivamente; • As pinturas Circuncisão e Apresentação do Menino no Templo, por terem uma escala ligeiramente inferior, seriam colocadas no lado esquerdo e direito respectivamente, num nível ligeiramente superior proporcionando, como no primeiro grupo, também um primeiro e segundo momento narrativo;

Por último, a pintura do Menino entre os Doutores, por ter a escala das figuras ligeiramente inferiores, por ser um tema em que o Menino já não é de colo e por isso se afasta de sua Mãe, passaria para um nível superior conjuntamente com a Morte da Virgem. De referir que estas estariam lateralmente acima das pinturas Circuncisão e Apresentação do Menino no Templo respectivamente. Observando o políptico sob esta nova concepção de arrumação, deparamo-nos com uma grande harmonia e

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estabilidade de conjunto, em que todas as representações da Virgem estão de rosto virado para o centro. Lateralmente estão colocadas as pinturas que representam cenas de interior, enquanto que as de exterior se posicionam ao centro. O ritmo das cores rosa/azul, em proporções idênticas, é sequencial de compasso binário no primeiro grupo, ternário no segundo grupo e quaternário no terceiro grupo. O verde é a pausa nas mudanças de ritmo. Um outro dado bastante relevante prende-se com o facto de ficar agora mais clara e óbvia a localização e escala das personagens de primeiro plano. Quer-se com isto afirmar que a escala das figuras está directamente relacionada com a distância em que estas estão colocadas na representação, ou seja, as figuras maiores têm o seu início mais perto do bordo inferior e vice-versa para as figuras menores. Após tudo o que foi afirmado, permanece, porém, uma nova/velha questão: seria a pintura da Virgem da Glória a encimar o retábulo, ladeada pelas pinturas do Menino entre os Doutores e a Morte da Virgem ou, pelo contrário, haveria um outro elemento incluso como, por exemplo, uma grande janela?6

0.051

0.051 0.051 1.880 1.880 0.289 0.289

0.002 0.002 0.002

1.880

0.100 0.100 1.880 1.880 0.240 0.240

1.100 1.100 1.100

0.289

0.008 0.008 0.008

0.060 0.060 0.060

0.100

0.088 0.088 1.930 1.930 0.202 0.202

Casamento da Virgem

0.970 0.970 0.970

1.880

0.088 1.930 0.202

0.080 0.080 0.080

0.240

1.110 1.110 1.110


6.400 3.840

1.280

0.735

7.905

7.170

1.280

12

11 6 1

7 2

8 3

9 4

10 5

1 Anunciação 2 Encontro de S.ta Ana e S. Joaquim 3 Casamento da Virgem 4 Apresentação da Virgem no Templo

Fig. 10 Proposta conjuntural das pinturas

5 Nascimento da Virgem 6 Circuncisão 7 Natividade 8 Adoração dos Reis Magos

9 Fuga para o Egipto 10 Apresentação do Menino no Templo 11 Menino entre os Doutores 12 Morte da Virgem


Conclusão Ainda que num campo meramente hipotético, calculouse o redimensionamento das pinturas, que terminou com a sugestão de 222 cm de altura por 111 cm de largura, ou seja, um rectângulo cuja altura é o dobro da largura. Esta medida, talvez próxima da medida original de encomenda, permite dividir este rectângulo em dezoito quadrados iguais, com 37 cm de lado, a que corresponde, ainda, o raio da circunferência que marca os cantos, sob a da moldura original, entretanto desaparecida. Com estas medidas, e partindo do pressuposto que as molduras teriam cerca de 8,5 cm de vista7, o retábulo teria, com base nesta suposição, a dimensão global de 640 cm de largura. Fica em aberto a medida da altura, por não se conhecer, neste momento, a que distância do chão estaria o retábulo. Como segunda grande conclusão, propomos um novo reagrupamento das pinturas, que reflecte, de certa maneira, a imagem da fachada da Sé de Évora, ou seja, um grande corpo central, encimado por uma janela e com duas torres laterais. O corpo central corresponderia, num nível inferior, às pinturas Casamento da Virgem ladeada pelo Encontro de Santana e São Joaquim e pela Apresentação da Virgem no Templo, à esquerda e à direita respectivamente; num nível superior, acima do Casamento, estaria a Adoração dos Reis Magos, ladeada à esquerda e à direita, respectivamente, pela Natividade e pela Fuga para o Egipto. Representando a configuração das torres, com início a um terço do corpo central, funcionando como volantes, corresponderiam, por sua vez, as pinturas com as cenas de interior; assim, do lado esquerdo estariam sobrepostas umas às outras, a Anunciação, a Circuncisão e o Menino entre os Doutores; por fim, do lado direito, sobrepostas, ficariam, o Nascimento da Virgem, a Apresentação do Menino no Templo e a Morte da Virgem. Saliente-se que, com esta diferente disposição, as pinturas se dividem em três grupos: o primeiro corresponde às cinco primeiras temáticas,

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antes do nascimento do Menino Jesus; o segundo está relacionado com o tema da Virgem com o Menino, ainda de colo; e o terceiro e último grupo relaciona-se com as despedidas da Virgem ou seja, o Menino entre os Doutores e a Morte da Virgem. Depois de todas estas reflexões, que culminaram num possível redimensionamento do retábulo, talvez mais próximo do original, volta-se agora ao ponto de partida, ou seja: qual o critério adoptado no corte de todas as pinturas? Será que mantiveram a mesma disposição, ou será que de facto existiram dois momentos distintos na vida do retábulo? Um relacionado com o projecto inicial e outro relacionado com o projecto adaptado? E fica ainda por saber, em relação aos diversos tipos de construção dos suportes, se terá havido pelo menos duas oficinas diferentes, encarregues da construção dos suportes; apenas da construção dos suportes, ou também da realização das pinturas. Terá uma oficina construído e pintado uns painéis e outra oficina construído e pintado outros? E os que não se enquadram em nenhum grupo de construção? Ou terão sido simplesmente marceneiros com técnicas diferentes dentro de uma mesma oficina, a mesma que depois se encarregou da realização das pinturas? As dúvidas e incertezas existentes em relação ao políptico, de certa forma, mantêm-se. Assim sendo, resta comparar estes dados com outros complementares que permitam passar de hipóteses a certezas; caso contrário fica a informação semântica que acompanha os objectos na narrativa expositiva, que é conceptual e confere suporte histórico e científico, necessário para o esclarecimento das características, dos factos e dos fenómenos. Em suma, essa é de facto a grande responsabilidade do Museu enquanto instituição de comunicação e fonte de pesquisa científica e estética e, ainda, transmissora do conhecimento e disseminadora de informação, ou seja, o local onde o contexto cultural é mostrado em toda a sua abrangência.


Notas 1

Este artigo corresponde ao segundo capítulo da dissertação de Mestrado em Museologia da Universidade de Évora, orientada pelo Professor Doutor José Alberto Gomes Machado e defendida em Outubro de 2007. A escolha do tema prendeu-se, essencialmente, pela oportunidade, única e excepcional, de se estar inserido numa equipa de trabalho, interdisciplinar, formada por historiadores de arte, conservadores-restauradores, cientistas, fotógrafos e outros técnicos qualificados, responsáveis pelo estudo e intervenção de restauro do políptico. Tratou de um projecto promovido pelo IPM - Instituto Português dos Museus, em colaboração com o IPCR - Instituto Português de Conservação e Restauro, nos anos 2004/06 sob a coordenação do Director do Museu de Évora - Dr. Joaquim Oliveira Caetano.

2

Toda a documentação utilizada e trabalhada nos esquemas em anexos são de autoria e pertença do IMC e da autora deste estudo.

3

A espessura média das tábuas varia de painel para painel. As mais espessas são as pinturas Fuga para o Egipto e Natividade com cerca de 39 mm, (provavelmente ainda com partes no original) e a Anunciação com aproximadamente 37 mm. Quanto às restantes pinturas é difícil calcular a sua espessura original pois todas elas já sofreram desbastes, parcial ou total, em anteriores intervenções. De referir no entanto, que provavelmente todas teriam espessuras originais muito próximas e pouco comuns. Isto explica-se sobretudo pela grandiosidade do conjunto retabular.

4

A excepção mais evidente é a distância existente entre os dois níveis inferiores da pintura Apresentação da Virgem no Templo, em que essa medida é ligeiramente maior (47 cm).

5

Estudo efectuado durante a intervenção de conservação e restauro pelo grupo de conservadoresrestauradores Dulce Delgado, Mercês Lorena, Teresa Homem de Mello, Sónia Pires, José Mendes e Miguel Garcia,

6 Há noticia que em 1586 durante uma tempestade, caiu um raio na torre do cruzeiro da Sé, causando

alguns danos, entre os quais a queda de algumas pedras que partiram uma vidraça e atingiram uma Nossa Senhora que estava sobre o retábulo da Capela Mor. Se assim for, isso poderia indiciar que as pinturas se encontravam junto de uma janela. 7 Sugere-se esta medida de moldura por ser aquela que corresponde às antigas molduras das pinturas

em depósito no Museu de Évora. Salienta-se, contudo, que não são nem as originais nem as actuais.

Referências bibliográficas CENNINI, Cennino, 1988, El libro del arte, Ediciones AKAL, S.A., Madrid D’ IVOIRE, Elisabeth Agius, 1992, Grão Vasco e a pintura Europeia do Renascimento, Catálogo da exposição na Galeria do Rei D. Luís, 17 de Março a 10 de Junho, Lisboa. DORFLES, Gillo, 1988, O Devir das Artes, Publicações Dom Quixote, Lisboa ESPANCA, Túlio, 1966, Inventário Artístico de Portugal Concelho de Évora, vol. VII A.N.B.A., Lisboa KANDINSKY, 1987, Do Espiritual na Arte, Publicações Dom Quixote, Lisboa PANOFSKY, Erwin, 2003, La Perspectiva como Forma Simbólica, Fabula Tusquets Editores, Barcelona.

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projectos e experiências


Fig. 1 O Divino Salvador Após a intervenção de conservação


Alexandre Pais e Alexandrina Barreiro O “Divino Salvador”: questões históricas, de conservação e museografia

A descoberta de uma escultura do século XIV, em pedra policromada, enterrada no terreiro da Igreja do Figueiredo, Braga, em que são evidentes vestígios de tempos diversos, é o pretexto para uma reflexão acerca do papel da conservação e restauro e do enquadramento religioso e museológico numa peça com as especificidades do “Divino Salvador”. This paper aims to be a reflexion roused by the discovery of a 14th century polychrome sculpture found in the yard of the church of Figueiredo, in Braga, northern Portugal. Being a religious sculpted image of the Divine Saviour that bears the evidence of different periods, its place in a religious and museum context, as well as the role of conservation, are hereby discussed.

PALAVRAS-CHAVE: Escultura de pedra; arte medieval, conservação e restauro, policromia, culto e museologia.

Historiador de Arte, técnico do IMC (Departamento de Conservação e restauro) alexandrepais@imc-ip.pt Conservadora-Restauradora, técnica do IMC (Departamento de Conservação e Restauro) alexandrinabarreiro@imc-ip.pt

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projectos e experiências


O

Divino Salvador é uma escultura que terá integrado a Igreja da mesma invocação, localizada no Figueiredo, próximo de Braga, fundada no século XII, templo profundamente alterado nos princípios do século XVIII, quando foi substituída a frontaria românica original1. Obra de vulto (1,25m), esculpida num bloco de pedra calcária policromada, é a representação de Cristo sentado num trono, que abençoa com a mão direita, segurando à esquerda uma cruz, símbolo do Seu triunfo. No peito desnudo tem a chaga da lança e nas mãos e nos pés os estigmas da Crucificação. Sobre os ombros tem um manto preso por firmal losangular (Fig. 1). Pela análise estilística, esta escultura deverá ter sido feita nas primeiras décadas do século XIV. As suas formas mais naturalistas e a expressão de um certo movimento distanciam-na do hieratismo da linguagem românica, tal como o tratar-se de uma peça autónoma, já não subordinada à arquitectura (Fig. 2). Também a presença de policromia a afasta desse período, em que o aditamento cromático era pouco frequente no Ocidente. Característico da estatuária gótica é o sentido do detalhe, uma atenção no tratamento do pormenor bem patente nesta peça, no modo como são definidas as pregas do manto de Cristo, a ênfase no firmal que o prende, os cabelos e a barba cuidadosamente enrolados (Fig. 3). Esta representação exibe ao nível formal algum paralelismo com os Cristos em Glória, também conhecidos por Cristos em Majestade, colocados nos tímpanos dos portais góticos [CARVALHO 2000: 162-165]. No entanto, nestas imagens surge normalmente como atributo um livro, ao invés da cruz, pelo que a presença deste elemento aproxima a escultura da figura de Cristo Ressuscitado, representado de pé junto ao Santo Sepulcro [RÉAU 1996]. A sobreposição destes elementos define uma iconografia pouco comum, que expõe a dualidade temporal entre a Ressurreição e a imagem da Majestade, mas sem o peso punitivo que caracteriza as esculturas de períodos anteriores. A expressividade da escultura, traduzida no rosto e na gestualidade, valoriza uma dimensão simbólica e catequética que enaltece o perdão e a compreensão do Homem. Distancia-se de outras esculturas que a antecederam, com iconografia similar, em que a ênfase era colocada na severidade e no castigo [PLAZAOLA 1996: 425-433]. Para esta linguagem, terá sido determinante a crescente influência das Ordens mendicantes, nascidas no século XIII como exemplo de conduta na pobreza e na caridade, fomentando a piedade popular em contraponto ao culto oficial do clero laico. A proporção da imagem é divergente na relação que estabelece entre os vários elementos anatómicos (a cabeça de maior dimensão ou o torso desproporcionadamente

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grande face ao resto do corpo), sugerindo o escorço um posicionamento elevado, o que a direcção do olhar da figura, dirigido para baixo, parece confirmar. Não conhecemos referências à colocação desta escultura no espaço da igreja do Figueiredo. Ainda que as dimensões modestas do edifício não o pareçam indiciar, o Divino Salvador poderia ter sido concebido para um pórtico, encimando a entrada no espaço de culto, acolhendo os fiéis e tornando a bênção por ele evocada extensível a todos quantos atravessavam o espaço. No entanto, a conservação da policromia e a definição dos elementos escultóricos não parece estar de acordo com esse posicionamento. Em certos casos, as representações do Pantocrator encontravam-se posicionadas na ábside do altar, orientadas para nascente, pois Cristo é o culminar da Criação. Deste modo, uma colocação similar explicaria a razoável condição em que se encontrava o Divino Salvador aquando da sua descoberta. Ainda que sejam desconhecidos os aspectos da colocação e posicionamento desta escultura na igreja do Figueiredo, podemos avançar com algumas ideias acerca dos acontecimentos que terão levado ao seu enterramento. A última sessão do Concílio de Trento (1545-1563) provocou uma viragem decisiva, ao incidir sobre o decoro e o respeito que as representações de índole religiosa deviam apresentar, procurando regrar toda e qualquer criação artística através de um código severo. Na base do programa reformador encontrava-se um capítulo (XXV) acerca da veneração e invocação devidas às relíquias dos santos e às imagens sagradas, com o fim de orientar todos os que participavam na génese da arte para a sua finalidade última, a exaltação da Igreja Católica. Estas directrizes foram complementadas, de imediato, por uma série de tratados e escritos para orientação dos artistas. As normas sobre o decoro ligado à representação de imagens preocuparam tratadistas, desde finais do século XVI e ao longo do século XVII, procurando organizá-las de modo a serem claramente seguidas, pois de acordo com as directrizes tridentinas, os altares com as suas imagens atraíam e mantinham o crente na Fé2. As decisões do Concílio de Trento chegaram a Portugal a 3 de Junho de 1564 acompanhadas do breve de Pio IV, Sacri Tridentini, tendo-se tornado lei com o alvará de D. Sebastião, de 12 de Setembro desse ano [GOUVEIA 2000: 15-19] de acordo com o qual o rei mandava “dar todo o favor e ajuda para a execução dos decretos do Concílio” [ALMEIDA 1968: 335]. As directrizes relacionadas com a disposição das imagens, com o respeito devido às relíquias e as normas que o artista devia respeitar na execução de toda a obra de arquitectura, escultura ou pintura, foram divulgadas em território português pelas constituições dos Bispados.


Fig. 2 O Divino Salvador Verso após a intervenção de conservação

Fig. 3 O Divino Salvador Pormenor da cabeça após a intervenção de conservação

A decência das igrejas, dos altares, das imagens, das pinturas, das alfaias religiosas e dos paramentos, eram preocupação maior, revelando o desejo profundo de reforma preconizado pelo espírito tridentino. Assim, as imagens sagradas deviam ser esculpidas e pintadas com decência na “honestidade dos rostos, perfeição dos corpos, ornato das vestes” [Constituições 1690: 373], procurando fazê-las, sempre que possível, à “semelhança dos originais”. Existia um controle total da produção artística de índole religiosa e nenhuma imagem podia ser colocada em igreja, ermida ou capela sem licença prévia do bispo ou do provisor, o que implicava que a mesma tinha de ser vista e aprovada. Para evitar “superstições, abusos, profanidades e indecências” [Constituições 1690: 373] ligados às imagens sagradas, o visitador estava encarregado de examiná-las, o que ocorria logo no início da visita, verificando se estavam de acordo com o preceituado. As que estivessem em mau estado, “indecentemente pintadas ou envelhecidas” [Constituições 1690: 377] eram enterradas nas igrejas, afastadas das sepulturas dos defuntos3. Esta prática vem aludida no Traité des saintes images de Johannes Molanus4, surgindo referido que “Les images

antiques et les tableaux qui ont été consacrés ne seront pas brûlés mais seront ensevelis dans un jardin ou en autre lieu honorable, afin de ne pas avoir à supporter l’outrage de la laideur” [MOLANUS 1996: 250]. A razão fundamental que presidia ao enterramento das imagens, prendia-se com o facto destas terem sido consagradas, não podendo por isso ser destruídas. Assim, a escultura do Divino Salvador foi soterrada no adro da Igreja do Figueiredo, provavelmente, no início do século XVIII, época em que, plausivelmente, o visitador cumpria as constituições do Bispado. O seu enterramento deverá significar que a imagem não tinha a decência considerada adequada para estar na igreja e, de acordo com as directrizes tridentinas, deixara de atrair e manter os fiéis na Fé católica. A etapa final da execução de uma imagem era a sua consagração, o que dava à representação um novo estatuto que a adequava à colocação num espaço sagrado. A consagração era um acto ritual, físico ou verbal, e investia a imagem de poderes e propriedades associados à personagem representada ou, pelo menos, alterava o seu estatuto de figuração para uma dimensão transcendente, onde o espírito do representado “habitava” a sua representação5.

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projectos e experiências


A consagração estava simbolicamente associada com a infusão de vida no objecto, tal como o sopro divino animou o barro a partir do qual foi feito o Homem. De acordo com o Rituale Romanum, que poucas alterações teve após o Concílio de Trento6, a consagração consistia no recitar de uma fórmula: Deus Todo Poderoso e Eterno, suplicamos-te te dignes benzer e santificar esta escultura (ou pintura) em memória e honra do teu único filho Jesus Cristo (ou da Virgem, dos Apóstolos ou do Mártir ou Santo, de acordo com a representação), e concede a quem a venera e renda homenagem ao teu único Filho (ou Santa Virgem, etc.) por seus méritos e intercessão receba de ti a graça e a glória eternas na vida benaventurada7. Após esta récita o bispo benzia a imagem com água benta. Na bênção, mais do que uma pedagogia sagrada, a Igreja santificava toda a criação material, pois o objecto, uma vez purificado, servia como bem material e espiritual do Homem8. Assim, a imagem podia ser objecto de veneração, contribuindo para a oração individual nos edifícios de culto, mas sem qualquer papel na liturgia, recomendandose aos sacerdotes que desviassem a atenção dos fiéis para esta e para a devoção eucarística. De acordo com E. Kitzinger9 “pour l’homme du commun en tous cas, le Christ et les saints agissaient à travers leurs images”, concepção animista da imagem que, segundo o autor, baseando-se em relatos de narrativas hagiográficas, deveria exprimir práticas existentes. Na Legenda Dourada pelo menos três histórias encorajavam a uma grande familiaridade com estátuas (Santa Inês10, São Nicolau11, Virgem com o Menino), associando à Graça Divina uma metodologia de meditação que, quanto mais intensa, mais espectacular era na resposta obtida12. Deste modo, a imagem era o veículo privilegiado de meditação e a sua veneração confundia esta com a entidade representada, imbuindo-a de um poder de intercessão divino. A este processo não era alheia a dimensão estética da imagem, pois era através dela que surgia, naturalmente, a empatia. O Divino Salvador foi encontrado em 2002 no adro da igreja do Figueiredo, quando aí decorriam obras de beneficiação13. Nas pregas do manto e na parte inferior do braço da cruz, são visíveis os sulcos que a pá da escavadora provocou ao embater na pedra. A escultura apresentava-se bastante degradada, tanto ao nível do suporte como da policromia, devido a ter estado enterrada cerca de três séculos. A superfície estava coberta de terra completamente sedimentada, sendo difícil vislumbrar a policromia do suporte. A cabeça, destacada quando a imagem foi enterrada, apenas apresentava vestígios de terra nas zonas reentrantes, por ter sido lavada com água corrente aquando da sua descoberta (Fig. 4). Foi descoberta uma mão que não é a original, ficando a imagem sem a mão direita, o mesmo acontecendo com o braço horizontal da cruz, do qual não havia vestígios.

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Existem, ainda, pequenas faltas na forma esculpida causadas por impactos físicos antigos. Para definir uma metodologia de intervenção, foi necessário efectuar uma série de estudos preliminares para o conhecimento pormenorizado, tanto do suporte e dos estratos de policromia, como do estado de conservação em que se encontrava a obra. O Departamento de Estudos de Materiais (DEM) do Instituto Português de Conservação e Restauro, actual Instituto dos Museus e da Conservação, efectuou a caracterização dos materiais constituintes, definindo a estratigrafia e identificando os pigmentos e os aglutinantes. No primeiro caso, após a montagem dos cortes transversais das amostras recolhidas, a observação microscópica permitiu verificar, de um modo geral, a existência de uma policromia original e cinco repolicromias. Essa metodologia de repolicromar esculturas pode ser encontrada, entre outros, em Molanus, que refere a conservação de imagens “Puisqu’il est nécessaire de peindre à nouveau et de reproduire les images effacées par l’encassement et le moisi, il faut le faire de telle sorte qu’elles puissent être renouvelées à l’identique dans la matiére et le support; en effect, lorsque la même forme et la même matière sont utilisées par le peintre, rien n’est détruit, mais au contraire l’accord se réalise avec ce qui existait auparavant” [MOLANUS 1996: 249]. Na estratigrafia da carnação do peito observaram-se seis policromias distintas (Fig. 5), no rosto cinco, e na mão esquerda apenas duas, que correspondem ao primeiro e segundo estratos. No interior do manto existem quatro policromias distintas, sendo de mencionar que estas variaram ao longo do tempo, tendo sido inicialmente azul, depois rosado, avermelhado e, por fim, amarelo (Fig. 6). O facto de não ter sido detectado o mesmo número de estratos em todas as amostras pode indiciar lacunas nas camadas subjacentes, ou demonstrar diferenças no número de vezes que algumas áreas foram repolicromadas. No entanto, permite perceber que a imagem foi sujeita a cinco reparações, eventualmente para se manter com a “decência” necessária para estar ao culto. A identificação dos pigmentos foi efectuada com recurso à análise elementar por espectrometria de fluorescência de raios X (FX), conjuntamente com a análise micro química dos pigmentos individualizados e das suas propriedades físicas. Todos os pigmentos detectados foram utilizados desde tempos antigos14, com excepção da terra úmbria, presente no último estrato e cuja utilização na Europa só se generalizou a partir do século XV. Este pigmento surge na carnação do peito e integra a mistura utilizada na última repolicromia. De referir que em todas as policromias foi assinalada uma preparação à base de branco de chumbo, revelando grande qualidade de execução, o que permite prolongar a sua cronologia até meados do século XVII.


Fig. 4 O Divino Salvador A cabeça antes da intervenção de conservação, sendo visível a perda de policromia causada pela lavagem a que foi submetida

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projectos e experiências


6 policromia 5 policromia 4 policromia

3 policromia

2 policromia

1 policromia

Fig. 5 Corte estratigráfico da carnação do peito do Divino Salvador onde são visíveis 13 estratos polícromos que correspondem à policromia original e a 5 reprolicromias

Ainda que a identificação dos aglutinantes tenha sido efectuada com recurso à micro espectroscopia com transformada de Fourier (µS-FTIR), em muitas amostras analisadas não foi possível, contudo, determinar o seu tipo, pois estes encontravam-se muito degradados ou eram praticamente inexistentes. Nas amostras em que foi possível identificar o aglutinante, este era feito à base de têmpera de ovo. Os pontos analisados com FX revelaram a presença dos elementos Cl (cloro) e S (enxofre), que deverão ser provenientes dos sais existentes na pedra, consequência das condições adversas a que a escultura esteve sujeita durante o período longo do seu enterramento. O exame de ponto e área à lupa binocular revelou que os estratos polícromos apresentavam grande falta de coesão e de adesão entre eles, observação reforçada pela informação do DEM e que permitiu concluir que os aglutinantes haviam perdido a sua função. Assim, podiam registar-se muitos destacamentos e lacunas ao nível de todos os estratos policromos. A grande degradação que a obra apresentava, sobretudo a nível das policromias, conjuntamente com as camadas espessas e muito aderentes de terra que cobriam toda a superfície, preconizavam uma difícil intervenção de conservação. Tendo em conta o contexto em que a obra foi encontrada, e depois de consultados os técnicos de conservação de bens arqueológicos, assumiu-se a escultura como sendo uma peça arqueológica, tendo em atenção as condições e os séculos que esteve enterrada.

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Procedeu-se então à remoção mecânica de toda a terra, humidificando-a pontualmente com uma solução de gelatina a 1% e levantando com bisturi e cotonete os depósitos sedimentados. Esta fase do tratamento, muito morosa, teve que ser efectuada por etapas, pois não podia remover-se de uma vez toda a camada de terra sedimentada, com o risco de se perder a policromia subjacente (Fig. 7). Assim, o levantamento foi muito lento tendo exigido extremo cuidado e atenção. Após a conclusão da limpeza de toda a superfície, procedeu-se à colocação da cabeça, tendo-se utilizado um espigão metálico como reforço estrutural e um adesivo adequado. Apesar das análises revelarem a presença de elementos com cloro e enxofre, a pedra do suporte não apresentava sais solúveis, pelo que podia considerar-se estável. No verso da escultura tinha sido aplicada uma camada de gesso, mais ou menos espessa, com a finalidade de nivelar as faltas de suporte existentes, pelo que se efectuou o seu desbaste de modo a não danificar a pedra original. Seguidamente, procedeu-se à fixação dos estratos polícromos mediante três aplicações a pincel de um adesivo à base de ethyl silicate, previamente testado. Foram integradas ou tonalizadas pontualmente algumas lacunas, como nos olhos da imagem, para permitir a leitura uniforme da obra. A opção de respeitar em absoluto a escultura original determinou a decisão de não reconstituir as faltas de forma esculpida, nem fixar a mão direita que não é original.


4 policromia

3 policromia

2 policromia

1 policromia

Fig. 6 Corte estratigráfico do interior do manto do Divino Salvador onde são visíveis 12 estratos polícromos que correspondem à policromia original e a 3 reprolicromias

Com o finalizar da intervenção de conservação e restauro da escultura do Divino Salvador somos confrontados com uma série de questões, relacionadas com o papel que deverá desempenhar actualmente. Uma obra com as suas características obriga à salvaguarda dos vestígios que permaneceram, nomeadamente a policromia remanescente. Poderá haver a tentação de submeter a imagem a nova policromia ou remover todos os vestígios ainda existentes, expondo a pedra, num gosto purista que conduziu, na arte portuguesa, a uma série de excessos no início do século XX. No entanto, ela é um testemunho precioso do modo como a passagem do tempo foi deixando marcas, quer evidenciando alterações no gosto (as variações de cor do manto do Salvador), quer demonstrando o cuidado empregue na conservação e na decência das imagens15. Nesta óptica, a peça deverá ser encarada como um bem arqueológico e não como um objecto de culto, estatuto que perdeu para sempre quando foi enterrada, provavelmente por já não ser capaz de “atrair e manter o crente na Fé Católica” de acordo com as normas tridentinas. Ainda que represente o orago da igreja para a qual foi criada e onde hoje se encontra, ela tem uma nova identidade. É uma escultura de pedra policromada, de inícios do século XIV, um excelente exemplar da procura de erudição no território que então constituía Portugal e que por isso pode assumir novas funções, tanto didácticas como museológicas.

Notas 1

Guia de Portugal, 1986: 853; Igreja Paroquial do Divino Salvador.

2

A utilização da imagem como instrumento religioso, ainda que tendo presente riscos de idolatria, foi considerada eficaz por alguns dos seus mais influentes teólogos, como São Boaventura ou São Tomás de Aquino. Este último referiu “tres razones para la existencia institucionalizada de imágenes en la Iglesia: primera, la instrucción de los analfabetos, que podrian aprender en ellas como en los libros; segunda el misterio de la Encarnación y los ejemplos de los santos podrian perdurar más firmemente en nuestra memoria viéndolos representados ante nosotros a diarios; e tercera, las emociones se estimulan más eficazmente con cosas vistas que con cosas oídas.” FREEDBERG 1992: 197

3

É disso exemplo, em 1713, com uma imagem da Senhora do Rosário, da igreja de Beire, Paredes. Livro das visitações de S. Tomé de Cubelas, fl. 68, cit. ALVES 1989: 45.

4

Jean Vermeulen de Louvain (1533-1585), dito Molanus, teólogo da Faculdade de Teologia de Lovaina e censor dos livros de Filipe II. Notabilizou-se pela introdução de normas de iconografia cristã.

5

Desde o início do século III, na Tradição Apostólica de Hipólito, são mencionadas bênçãos com óleo em doentes, assim como para o queijo e azeitonas. Os sacramentos romanos dos séculos VI-VIII referem no formulário de algumas missas, bênçãos que se situam Per quem hæc omnia do cânone: óleo, leite, mel, as primeiras sementes. Por outro lado, o sacramentário de Adriano agrupa uma série de bênçãos ou orações para diversos lugares, pessoas e circunstâncias. No entanto, foi através das liturgias romanas da Gália e da Hispânia que se desenvolveu mais o uso de bênçãos, assim como os seus formulários: a bênção das vestes de uma viúva, do altar, dos vasos sagrados ou de outros objectos de culto, das veste sacerdotais, das

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Fig. 7 O Divino Salvador durante a remoção da terra que o cobria

vestes dos neófitos, das virgens e dos religiosos, de toda a espécie de produtos da terra, de construções... Acerca deste tema consultar: MARTIMORT 1961: 641-655 6

esta bênção não afasta a pessoa ou o objecto da vida ou do uso profano. 9

“The cult of images in the Age before Iconoclasm”, cit por WIRTH 1989: 90-91.

Rituale Romanum, tit.8, cap. 25 (sub «Benedictiones ab Episcopis») cit. por FREEDBERG 1992: 115.

10

7 Tradução adaptada a partir da fórmula apresentada por FREEDBERG

VORÁGINE 1992: 119.

11

VORÁGINE 1992: 42.

1992: 115. 8

Importa, no entanto, distinguir entre dois tipos de bênção: a constitutiva e a invocativa. A primeira, a que também se associam as consagrações, dota os indivíduos, objectos e lugares de uma dimensão sagrada que os subtrai de toda a utilização profana, sendo nesta categoria que se integram as bênçãos de estátuas. As invocativas ou simples não modificam a natureza da pessoa ou do objecto, nas orações que comportam é solicitado que sobre uma dada pessoa ou objecto desça a bênção divina afim de que nele seja despertado um efeito espiritual ou corporal. Consequentemente,

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12

Para mais informações consultar SBALCHIERO 2002, Legende: 442-445; Miracles: 531-538.

13

http://cnefigueiredo.no.sapo.pt/igreja.htm

14

Os pigmentos detectados foram: branco de chumbo; vermelhão; ocre; cochonilha; azurite e carvão vegetal e animal.

15

“Il faut donc éviter toutes ces détériorations afin que rien de ce qui choque le goût et la décence ne se manifeste dans les images sacrées. (...), MOLANUS 1996: 249.


Referências bibliográficas ALMEIDA, Fortunato de, 1968, História da Igreja em Portugal, Porto/Lisboa, Livraria Civilização Editora. 2 v. ALVES, Natália Marinho Ferreira, 1989, A Arte da Talha no Porto na Época Barroca, , Porto, Arquivo Histórico, Câmara Municipal. vol.1. ANDRADE, Sérgio Guimarães de, 1997, Escultura Portuguesa, Lisboa, Correios de Portugal. BASIN, Germain, 1981, A Concise History of World Sculpture, Amsterdam, Roto Smeets. CARVALHO, Maria João Vilhena, 2000, “Escultura”, Dicionário de História Religiosa de Portugal (dir. Carlos Moreira Azevedo), Rio de Mouro, Círculo de Leitores, vol. C-I, p. 162-165. Constituições Synodaes do Bispado do Porto, 1690, Porto, por Joseph Ferreyra Impressor da Universidade de Coimbra. DIAS, Pedro, 1986, “O Gótico” História da Arte em Portugal, Lisboa, Publicações Alfa. vol. 4. FREEDBERG, David, 1992, El Poder de las imágenes, Madrid, Cátedra. GABORIT, Jean-René, 1978, Histoire Mondial de la Sculpture, Paris: Hachette Realités GETTENS, Rutherford J., STOUT, George L., 1966, Painting Materials: a short encyclopaedia, New York, Dover Publications, Inc. GONÇALVES, Flávio, 1960, “A constituição sinodal portuguesa da Contra Reforma e a arte religiosa, Porto”, Comércio do Porto, Suplemento de Cultura e Arte, pp.5-6. GONÇALVES, Flávio, 1963, “A Inquisição Portuguesa e a arte condenada pela Contra Reforma, Colóquio, Lisboa, n.º 26, pp. 27-30. GOUVEIA, António Camões, 2000, Contra-Reforma, Dicionário de História Religiosa de Portugal (dir. Carlos Moreira Azevedo), Rio de Mouro, Círculo de Leitores, vol. C-I, pp. 15-19. Guia de Portugal, Entre Douro e Minho, 1986, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, volume 4, Tomo II, p.853. HORI, Charles Velson, 1987, Materials for Conservation: organic consolidants, adhesives and coatings, London, Butterworths. MARTIMORT, A. G., 1961, L’église en prière. Introduction à la Liturgie, Tournai, Belgium, Desclée & Cle, Éditeurs. MOLANUS, Johannes, 1996, Traité des saintes images, Patrimoines christianisme, Paris, Les Éditions du Cerf. PLAZAOLA, Juan, 1996, Historia y sentido del arte cristiano, Madrid, Biblioteca de autores cristianos. RÉAU, Louis, 1996, Iconografia del arte Cristiano, Iconografia de la Bíblia – Nuevo Testamento, Barcelona, Ediciones del Serbal. Tomo 1,vol. 2. SANTOS, Reinaldo dos, 1950, A Escultura em Portugal, Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes. 2 v. SANTOS, Reinaldo dos, 1953, História da Arte em Portugal, Porto, Editora Portucalense. 3 v. SBALCHIERO, Patrick, 2002, Dictionnaire des miracles et de l’extraordinaire chrétiens, Paris, Fayard, Légende, p. 442-445, Miracles, 531-538. VORÁGINE, Santiago de la, 1992, La leyenda dorada, Madrid: Alianza Forma, vol.1. WIRTH, Jean, 1989, L’Image médiévale. Naissance et développements (VIe-XVe siècle), Paris, Méridiens Klincksieck, p. 90-91 Igreja Paroquial do Divino Salvador. [consultado em 2008-04-04]. Disponível em: http://cnefigueiredo.no.sapo.pt/igreja.htm

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Fig. 1 Thomas Struth, Museo del Prado 6 Madrid, 2005 C-print, 172,6 x 211,8 cm Š Thomas Struth, 2008

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João Pedro Fróis Os Museus de Arte e a Educação Discursos e Práticas Contemporâneas

Neste artigo procura-se situar conceptualmente a problemática da educação nos museus de arte. Procede-se ao mapeamento de autores e teorias que representam o pensamento contemporâneo das teorias do ensino e aprendizagem em contexto de museu. Propõe-se o estabelecimento de várias distinções conceptuais e enunciam-se algumas das práticas mais evocadas na bibliografia da problemática em análise. No encerramento sugerem-se algumas áreas de interesse para investigação. This article focuses on the subject of education in art museums. We have identified contemporary authors and their theories on the best practices of education and learning within a museum. The establishment of some conceptual distinctions is discussed as some of the evoked practices on the bibliography. Areas for further study are also identified.

PALAVRAS-CHAVE: Serviços educativos, história da educação em museus de arte, aprendizagem, desenvolvimento estético e artístico, programas de educação artística.

João Pedro Fróis – Investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens, Universidade Nova de Lisboa | simurg@mail.telepac.pt

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projectos e experiências


C’est parce que quelque chose des objects extérieurs pénètre en nous que nous voyons les formes et que nous pensons. Épicure, Lettre à Hérodote

A

s primeiras alusões à missão pedagógica das colecções de arte foram evocadas por Francis Bacon (1561-1626) em A Nova Atlântida (1627). O filósofo inglês fez aí referência à Casa de Salomão, “local onde as maravilhas da ciência e retratos dos grandes inventores se expunham para o bem de todos os cidadãos”. Esta sensibilidade pedagógica acompanhou a criação do primeiro museu de BelasArtes em França, e, ao longo do século XX, foi lentamente metamorfoseada a partir de contributos disciplinares diversos. O serviço educativo foi, pela primeira vez, teorizado no final do século XIX, na Alemanha, por Alfred Lichtwark (1852-1914), director do “Museu de Arte de Hamburgo”, entre 1886 e 1914. Lichtwark foi protagonista do movimento de educação estética na Europa, entendeu o museu como um território para a educação cultural e artística dos indivíduos. A percepção analítica das obras de arte foi para este director a estratégia mais adequada ao desenvolvimento da educação artística. Para a concretizar recorreu à indagação socrática para que o sujeito centrasse a sua atenção nos detalhes visuais das obras no espaço do museu. As ideias fundamentais, sobre o modo como devia ser a educação em museu de arte, foram elaboradas em dois textos – “Die Kunst in der Schule” e “Übungen in der Betrachtung von Kunstwerken” – escritos em 18971. George Kerschensteiner (1854-1932), impulsionador da “escola activa”, colaborou com Alfred Lichtwark. A ideia da abertura às artes a públicos mais jovens está intrinsecamente relacionada com a “construção moderna” sobre a infância e a criança, vista como um ser social com integridade psicológica própria, com características específicas reconhecidas quanto ao modo como ela capta e se integra na realidade. Tal como Lichtwark, nos Estados Unidos da América, Albert Barnes (1872-1951) e Thomas Munro (1901-1973), importante teorizador da psicologia da educação artística e fundador do Journal of Aesthetics and Art Criticism, contribuíram para a afirmação do serviço educativo e acreditaram que as artes tinham o “poder” de civilizar e humanizar através da convocação das capacidades intelectuais, morais e estéticas dos cidadãos. Ao abrirem as portas dos seus museus ao público, estes directores compreenderam que deveriam assumir outras responsabilidades, além das relativas à recolha e à conservação das obras, procurando os melhores recursos para a facilitação do acesso dos públicos jovem e adulto às colecções; por isso, organizaram conferências, visitas, ateliês, promoveram exposições de “arte infantil”, desenharam programas para o envolvimento das famílias, tal como, ocorre, hoje, nalguns dos museus contemporâneos. Outra personalidade importante desta história foi Albert Barnes, médico, “capitão da indústria” americana, coleccionador de arte que dialogou com John Dewey (1859-1952). A empresa por si fundada – “A. C. Barnes Company” (1908) – possibilitou-lhe tornar-se num dos coleccionadores de arte mais importantes do século XX. Em 1922, organizou uma fundação com o seu nome, aplicando parte da sua fortuna na organização de uma colecção de arte, cuja finalidade era a “promoção do progresso da educação e da apreciação das belas-artes”, uma instituição com um forte pendor educacional. Este mentor desejou sinceramente aplicar um método “científico” de apreciação e avaliação das obras de arte, o que ostenta num artigo publicado, em 1915, sob o título “How to Judge a Painting”.

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A colaboração de John Dewey, aparentemente circunscrita ao espaço e ao tempo em que ocorreu, foi determinante para o modo como a educação artística nos museus foi estruturada nos Estados Unidos da América. A filosofia educativa e estética elaborada por Dewey influenciou, de modo determinante, o pensamento e as acções que ocorreram e persistem ao longo do século XX na educação nos museus de arte. Na essência, Barnes considerou a apreciação artística, não apenas como uma questão de emoção, mas como fusão entre emoção e inteligência em conjunto. As duas são necessárias para a sua compreensão, tal como para a criação das obras de arte; a sua organização surge assim como uma “fortaleza inexpugnável”, batendo-se, durante toda a sua vida, para que a considerassem como uma instituição educativa e não como uma galeria pública. Como salienta Dominique Chateau (2003), no sistema de Barnes a história da arte é “proscrita” em proveito directo das obras. A missão dos vários programas foi o de preparar os visitantes através de um método de percepção estética que lhes permitisse partilhar o insight resultante do encontro com a arte. A insistência na percepção das obras de arte, que visava o “enriquecimento cultural” dos indivíduos, estava em sintonia com a teoria do pragmatismo educacional e da experiência estética de John Dewey, tal como ela se apresenta em Democracy and Education (1916) e Art as Experience (1934). Estes exemplos ilustram, de modo claro, a ideia de que na primeira metade do século XX, para estes directores, fazia sentido proporcionar acções que, ao justificar a existência destas entidades, iam ao encontro das necessidades dos públicos. Em qualquer área do conhecimento, a biografia das “personalidades carismáticas” é geralmente a primeira a ser escrita, um género que Karen Hamblen (1985, 1989) intitulou “Person A biographies”. Os percursos de vida destes directores-pedagogos, designação apropriada a A. Lichtwark, A. Barnes, T. Munro e, de igual modo, a João Couto (1892-1968), constituem uma área de fundamental importância para uma melhor compreensão do estado actual da educação nos museus de arte contemporâneos2. Estes directores entenderam na sua plenitude o papel que os museus deviam desempenhar na educação cultural e artística dos indivíduos. A dimensão pedagógica da arte foi convocada recentemente por Umberto Eco em El Museo en el tercer milenio (2005). No texto proferido numa conferência no Museo Guggenheim Bilbao, propõe-se a organização de um “museu novo”. A realização da utopia exige a adopção de várias medidas que visam proporcionar a obtenção de uma experiência cognitiva e emocional suficientemente satisfatória. Se, por exemplo, A Primavera de Sandro Botticelli fosse dada a ver a partir da ambiência da Florença vivida pelo artista, da

cultura do seu tempo, da mística da Roma de Ghirlandaio e de Perugino, integrada numa sequência expositiva com as obras de artistas contemporâneos de Botticelli, os que o antecederam e os que se seguiram, de Lippi a Verrocchio e as próprias obras do pintor, o visitante, através da exposição, certamente, criaria para si imagens únicas. O recurso a outros meios, como a fotografia, o som, etc., transmite uma ideia sobre a complexidade temporal e espacial em que o pintor concebeu aquela pintura. Esta visão deveria ser assente numa economia de meios, porque o excesso de estímulos não favorece a fruição equilibrada. Neste sentido, a organização de uma exposição, como a que Umberto Eco propõe no seu texto, ou de uma colecção de arte, é, por si só, um acto pedagógico que deve estar disponível a todos os grupos, quer dizer, é uma acção cultural que apela a uma harmonia tácita entre a promessa de benefícios a partir da exposição e as expectativas dos visitantes. O “museu utópico” de Eco centra-se na compreensão, não apenas da própria “obra-prima” inserida nos contextos narrativos em que se insere, mas na proposta de um olhar integrador da obra de arte que o visitante, através do seu exercício, pode captar. O que mais importa nesta experiência é que o itinerário conduza os visitantes a uma “verdade” ou “verdades” que, aparentemente, reside ou residem na obra e se impregnam no indivíduo, através das mediações disponíveis. Afinal, uma experiência esperada como memorável e que o visitante aguarda obter. Esta é a utopia que alguns museus de arte almejam: o desenvolvimento de uma pedagogia adequada ao conteúdo das exposições que envolva os visitantes. Interessa agora olhar alguns dos aspectos conformadores da existência dos museus de arte esclarecedores do tópico deste texto. Com Gaea Leinhardt (2002) consideramos que os museus são, em primeira instância, entidades sociais e culturais complexas. São entidades culturais porque se organizam como espaços de sentido, onde se reúnem e preservam os exemplos das realizações artísticas, científicas e sociais da humanidade, e entidades sociais porque o coleccionador, o conservador, o educador e o designer empreendem diálogos, ora tácitos, ora explícitos, com os visitantes. Na realidade, ao mesmo tempo que o museu apresenta os “objectos” (as obras), representa também os princípios culturais, sociais e estéticos de uma determinada sociedade e oferece aos indivíduos oportunidades e reptos que outros tipos de entidades não oferecem. Tornar a arte pública e movê-la, com o aparato de interpretação que a sustém e alimenta, de uma esfera relativamente privada do ateliê do artista e da academia para o domínio público, é um dos modos como as artes podem circular e conviver como parte de um sistema cultural mais alargado, presumindose que a pedagogia subjacente à exposição é transparente para os visitantes.

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projectos e experiências


O museu de arte tornou-se no século XX numa entidade socialmente visível. Esta visibilidade corporizou-se nos projectos arquitectónicos monumentais, acompanhada pela organização de exposições mediáticas, divulgadas através de uma publicidade “agressiva” e polémicas de vário tipo. No último quartel do século passado o declínio de muitas economias ocidentais levou, através do sector terciário, à diversificação da arquitectura e das infra-estruturas das cidades. Uma das características deste processo contribuiu, de modo muito positivo, em vários lugares, para a regeneração cultural urbana. Os vários “supermuseus” e centros de arte contemporânea são uma fonte importante para a captação de recursos materiais, que se enquadram neste registo; alguns deles foram seguidos como modelo em vários países – o Centre Georges Pompidou, Massachusetts Museum of Contemporary Art, Guggenheim Bilbao, a Tate Modern, o Musée d’Art Contemporain de Montreal, o Arken Museum of Modern Art de Copenhaga, ou o Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Pela sua exuberância arquitectónica, estes museus são eles próprios o conteúdo e a forma da colecção. Estes espaços foram transformados em lugares de atracção peregrina típicos, despertando na mente dos públicos uma curiosidade crescente, convocando hoje a participação de um conjunto alargado de protagonistas, recursos materiais e tecnologia de informação com objectivos semelhantes. Jean Baudrillard (1978) lembra que o fascínio pelo espectacular é evidente. Esta necessidade parece ser um dos reflexos da condição pós-moderna, porque a única coisa que dá sentido às massas é o espectáculo, daí ser necessário produzir os consumidores e a demanda, no âmbito da fruição das artes. A constatação deste fascínio pelo espectacular e pelos fenómenos multitudinários motiva um debate pertinente sobre este assunto. Que “serviço educativo” os museus de arte devem oferecer neste contexto aos diversos públicos? Num ambiente de vivência da pós-modernidade, a possibilidade de as obras de arte existirem como tal reside no facto de serem dadas a ver e apresentadas para a interpretação, de existirem na sua própria finalidade como objectos para a inteligibilidade. Aqui junta-se-lhe uma dificuldade: a de apetrechar o objecto artístico com um conjunto de repertórios de interpretação, possibilitando a abertura a um público mais vasto, a criação e o aprofundamento da sua dimensão pedagógica. Isto é concretizado quando o museu cria para os visitantes espaços e tempos particulares para a interpretação, mas, na realidade, há uma relutância em relação à criação de lugares de crítica ao seu próprio discurso expositivo. Estes espaços de interpretação apenas emergem quando o museu enceta a crítica dos seus próprios discursos interpretativos, isto é, quando modifica o modo como eles são apresentados, diluindo as suas concepções

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de autoridade interpretativa e provocando a autonomia entre os seus desígnios e as suas acções com os visitantes. O êxito do museu de arte depende da qualidade das experiências que proporciona aos seus visitantes, isto é, do modo como lida com o seu próprio currículo, no sentido etimológico do conceito. Estas experiências dependem de factores extrínsecos e intrínsecos. A qualidade física, as condições expositivas do trabalho de curadoria relacionam-se com o primeiro factor e as características socio-psicológicas, culturais e educacionais dos visitantes das exposições, com o segundo. As obras de arte exigem uma explicitação, realidade que se torna numa dificuldade acrescida, porque ao responder ao seu objectivo de despertar o interesse das pessoas para a explanação, por vezes longa e fatigante, exigem do mediador o domínio de saberes transversais. Hoje, assistimos ao surgimento de uma panóplia de serviços supletivos para os vários tipos de público, que incluem visitas guiadas (de vário tipo), actividades hands-on, palestras, programas para as escolas, publicações específicas. Além das visitas guiadas, incluem-se aqui os programas informais de aprendizagem, programas para as famílias, ateliês, cursos de formação, partenariado com outras organizações, programas escolares e programas educacionais online, que visam o êxito e justificam a existência do museu. Por vezes, estas acções ultrapassam a mera acção lúdica, recreativa ou informativa em direcção a “novos modos de agir”, numa procura de novas aproximações com os visitantes. Formas de interacção de novo tipo, como as que ocorrem, para apenas citar alguns exemplos, no Wexner Center for the Arts em Columbus, no Museum of Contemporary Art – Kiasma de Helsínquia, no Museum of Modern Art de Esbjerg, ou no Centre Pompidou em Paris. A dimensão educativa, utilizada na sua multiplicidade de formas e de modelos, é um meio para o desenvolvimento da experiência estética e artística dos visitantes. Para Nelson Goodman (1984), esta dimensão deveria ser assumida como uma acção preventiva e curativa de um certo tipo de “cegueira” e, a partir desse momento, “fazer trabalhar as obras”. Como salientou este filósofo, os museus deparam‑se com a resolução de problemas distintos das bibliotecas. Enquanto a maioria dos leitores dominam o acto de ler literalmente, muitos dos frequentadores de museus, no seu contacto com as artes, sentem reais dificuldades, além de, quase sempre, se encontrarem num ambiente em que as obras são observadas sob vigilância, por vezes, em restrição absurda. Se o museu não consegue auxiliar o visitante a ultrapassar as dificuldades mencionadas, todas as outras missões do museu, a organização da colecção e a conservação, se transformam em funções insignificantes. Por ora, importa salientar que a educação nos museus, desde o seu início, foi imaginada como um auxílio humanizado


à pedagogia da exposição. Isto deve-se em parte ao facto de ter sido configurada no contexto de uma ideologia da falta que, no dizer de Jacques Derrida (1967), apela à lógica do suplemento. Esta ideologia da falta provocou, em muitas situações, como recurso estável, o surgimento da escolarização das práticas dos museus e o domínio da palavra. De facto, essa falta nunca foi preenchida e “resolvida” satisfatoriamente, como escreveu recentemente Cheryl Meszaros (2004), foi sublimada nos discursos e narrativas de autoridade. O discurso educacional, tal como hoje se apresenta, segue a tradição dominante: privilegia o verbal como forma purificada da comunicação do significado. A palavra é o símbolo da experiência mental e do pensamento, por isso, a sua importância é enorme. O mandato educativo do museu de arte, tornou-se, em parte, na sua estrutura operativa, extensão do discurso da educação escolar e, juntos, colonizaram em vários lugares o espaço da interpretação, por vezes infantilizaram os públicos, e, por vezes, “secaram” as artes do seu inerente poder interpretativo na esfera pública. Esta constatação aponta desafios novos para o serviço educativo dos museus que importa pensar e que devem emergir a partir de dentro da entidade museu. Já nos anos trinta, Arthur Melton (1906-1978), autor de Problems of Instalation in Museums of Art (1935), considerou os museus como instituições educativas. Nesse sentido, desenhou e promoveu uma série de estudos, cujo objecto foi o de averiguar a “eficácia educacional” das práticas museológicas. Para Melton, era necessário organizar uma ciência da educação para os museus, fundada no conhecimento do comportamento dos visitantes, relacionado com o modo como as exposições eram organizadas. Para que isso fosse exequível, interessava utilizar métodos de observação rigorosos, como propunha o seu mentor Edward Robinson (1893-1937). Melton trabalhou com Robinson na Universidade de Yale, o autor dos primeiros estudos empíricos nesta área, iniciados em 1928. Esta linha de pesquisa teve como objectivo principal o abandono das generalizações a priori sobre o comportamento dos visitantes de museu, substituindo-o pelo rigor científico. Apesar de Robinson e Melton terem desenvolvido estudos específicos sobre as condições de acesso às colecções de arte e estudado as consequências das mesmas para a função pedagógica dos museus, a investigação nesta área, a partir dos anos setenta, assumiu um lugar de relevância no panorama da museologia contemporânea produzindo estudos de rigor científico disponíveis em artigos e monografias. Por outro lado, esse interesse tem sido coadjuvado pelo desenvolvimento da formação dos protagonistas desta área, em departamentos específicos e em várias universidades. Não é suficiente saber que tipo de públicos visitam os museus. Torna-se necessário saber como é que eles integram

os saberes resultantes dos contactos que estabelecem com as colecções. Importa também saber como é que os actores envolvidos podem potenciar essas possibilidades do museu contemporâneo. Em consequência de estudos semelhantes aos que Robinson e Melton desenvolveram, hoje sabe-se mais sobre as pessoas que frequentam museus e o que elas fazem, na realidade, quando os visitam, considera Holger Höge (2000). Há outras perguntas de interesse, por exemplo, o que se pode dizer sobre o desenvolvimento do processo de aprendizagem nos museus. Existe alguma diferença entre o que os visitantes deviam aprender e o que de facto aprendem? Por outro lado, ainda não se sabe muito sobre a experiência estética e artística no contexto de um museu, e pouco ou nada se sabe sobre as “novas percepções ou um novo tipo de sensibilidade pelas artes que possam ser transmitidos através de visitas a museus, para não falar das consequências que uma visita dessas pode ter para o futuro desenvolvimento destas pessoas, ou mesmo da sociedade em geral” (Höge, 2000: 59). A partir de uma perspectiva sociológica, foi dado a conhecer quem eram os públicos dos museus por Pierre Bourdieu e Alain Darbel em L’amour de l’art (1969). Aí, apresentaram um discurso sociológico sobre uma realidade cultural específica: a origem dos públicos dos museus de arte. Yvonne Bernard em Psycho-Sociologie du goût en matière de peinture (1973) conclui, a partir do cruzamento de variáveis sociais e psicológicas, que a familiaridade com as obras de arte é resultado da educação que recebemos no período da infância e da adolescência, enquanto que as atitudes estéticas, na sua natureza, profundas, são também adquiridas naqueles períodos; se a acção escolar e educacional é importante, a acção familiar é ainda mais importante. Nesta linha de investigação está o estudo sobre os jovens e a arte contemporânea, numa abordagem cruzada sociológica e psicológica, que Hana Gottesdiener e Jean-Christophe Vilatte (2006) realizaram para o Ministério da Cultura de França. Os estudos sobre a problemática da educação nos museus de arte podem ser encontrados actualmente nos seguintes periódicos: Publics et Musées, Journal of Aesthetic Education, Art Education, Journal of Art and Design Education, Journal of Museum Education. Entre 2003 e 2006, foram editadas quatro importantes colectâneas sobre a problemática da investigação educacional nos museus de arte. A primeira, L’Education muséale (2006) organizada por Anne-Marie Émond, agrega textos de investigadores canadianos, europeus e americanos em seis âmbitos: história da educação em museus e centros de arte, psicossociologia dos visitantes, objectos e museografia e educação em museu, o museu como contexto de aprendizagem, outros contextos museológicos.

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Na segunda, editada por Liora Bresler, International Handbook of Research in Arts Education (2006) encontra-se uma secção da responsabilidade de Elizabeth Vallance com o título “Museus e Centros Culturais”. Por último, Maria Xanthoudaki e Veronika Sekules editaram a colectânea Researching Visual Arts Education in Museums and Galleries (2003), com catorze capítulos de vários autores internacionais, organizados em quatro secções: “Os museus e a aprendizagem ao longo da vida”, “Os museus e a educação formal”, “Os museus e a descoberta pessoal” e “Perspectivas futuras para a área da educação em museus de arte”. Damos igualmente, como exemplo, os livros, entre outros autores, editados por Barbara Newsom e Adele Silver, The Art Museum as Educator (1978), por Nancy Berry, Susan Meyer, Museum Education: History, theory, and practice (1989), de John Falk e Lynn Dierking, The Museum Experience (1992), e de Lisa Roberts From Knowledge to Narrative. Educators and the Changing Museum (1997). A expressão “pedagogia em museus de arte” utiliza-se aqui com o mesmo sentido semântico da expressão “educação em museus”. A segunda está mais próxima da expressão, utilizada na literatura específica na língua inglesa, “museum education”, que não é “traduzível” para português. A pedagogia de museu, “museum pedagogy”, foi usada durante a década de 30 do século XX na Alemanha e, como bem notou Boris Stoliarov (1999), foi cunhada em 1934, por Karl Hermann Jacob-Friesen (1886-1960), director do “Museu de Hanôver”. A educação em museu tem como objectivo primordial abrir o museu a diversos públicos, por exemplo, aos mais jovens, na crença de que este tipo de educação deve começar cedo, levá-los a descobrir diferentes universos de modo activo. Pretende formar a sensibilidade estética e artística da criança, as atitudes afectivas, o sentimento positivo em relação aos objectos, favorecer o desenvolvimento de um pensamento crítico em relação ao passado e ao presente, ser activo na procura de inputs sensoriais e informativos e respeitar a condição dos objectos em fruição. À partida, pode ser entendida como uma área multidisciplinar, que inclui as tradições da educação estética e artística e se inscreve num registo de educação não formal. O museu de arte pode ser um lugar privilegiado para a experiência estética. Para Nelson Goodman (1984), este deveria ser um dos seus objectivos primordiais. Para facilitar a compreensão desta ideia, Mihaly Csikszentmihalyi (1989, 1990) sublinhou a urgência da elaboração de uma abordagem teórica específica e considerou quatro dimensões da experiência estética. A primeira dimensão desta estrutura diz respeito ao conhecimento, experiência relacionada com os saberes do visitante; a segunda dimensão respeita à experiência emocional, a curiosidade, a fantasia, e a satisfação; a terceira, ao impacto perceptivo

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que a “beleza” dos objectos, as suas formas e refinamento exercem no observador, as comparações estilísticas e técnicas, que originam no visitante um foco de atenção, e, por último, a dimensão comunicativa, que respeita ao modo como a relação com a arte contribui para a compreensão do próprio sujeito fruidor, à introspecção, à relação, através da arte, com as culturas de vários tempos e lugares. A experiência estética é a fusão equilibrada das quatro dimensões evocadas. Todas elas exigem um envolvimento psicológico e físico complexo com as obras. As inibições que impedem o desenvolvimento “equilibrado” e o diálogo com as artes estão relacionadas prioritariamente, como refere Csikszentmihalyi, com o tratamento pedagógico dos conteúdos da colecção. Essa falta diz respeito à insuficiente informação sobre as biografias dos artistas, ou a iconografia específica de uma determinada obra, com a informação sobre as narrativas da história da arte que se apresentam e do contexto cultural e as técnicas em que são inseridas, sobre a própria organização das exposições e os materiais de informação manipuláveis, e, por último, por alguns deles serem espaços pouco acolhedores. Esta listagem poderia ser maior, mas o que aqui se pretende evidenciar é que o visitante deverá ter para si uma série de objectivos concretos e condições claras sobre o que de si é esperado, para que o seu envolvimento resulte de um modo positivo. Nem sempre a falta de informação se constitui como o obstáculo principal à boa participação do visitante na exposição. Um entendimento mais profundo sobre o que torna uma experiência em contexto de museu significativa para os visitantes é fundamental para o aprofundamento da dimensão pedagógica dos museus. No dizer de Eilean Hooper-Greenhill (2000), as obras de arte, independentemente da sua grandeza ou glória artística, são entidades que, isoladamente, não têm sentido, a não ser que encontrem um olhar atento, uma mente que pensa e um “coração” que sente. A experiência do observador e a sua imaginação torna-se artisticamente significativa quando consegue tratar a obra de arte de um modo relevante em relação às suas características artísticas mais significativas. Elas vivem quando são capazes de suscitar a “formatação” da experiência humana. Os grupos escolares são, entre as audiências dos museus, aqueles que têm maior presença nos museus. Estes grupos são uma prioridade dos serviços educativos. Em geral, as crianças e os jovens gostam de visitar os museus em que é possível uma maior interacção com os objectos e o diálogo com os seus pares. Este gosto radica na obtenção de uma satisfação e do reforço positivo do próprio meio em que se encontram. Em primeiro lugar, o museu pode ser um espaço para o exercício da autonomia, por exemplo, quando as visitas se realizam em família e, em segundo lugar, estes


Fig. 2 Thomas Struth, Louvre 2 Paris, 1989 C-print, 221,5 x 181,0 cm © Thomas Struth, 2008

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momentos são uma ocasião única para o desenvolvimento de comportamentos intrinsecamente motivados, a partir do jogo e das interacções sociais positivas. Por estas razões, os grupos de crianças e jovens não devem ser apenas vistos como futuros visitantes dos museus. Na realidade, eles já são membros da comunidade, com características importantes, como é a natural abertura à aprendizagem. De um modo geral, os programas educativos dos museus de arte têm como objectivo desenvolver as capacidades de proficiência visual dos seus visitantes, sensibilizar, despertar e “formar o gosto” através dos artefactos. Podemos salientar algumas características importantes desse tipo de actividade educativa. Em primeiro lugar trata-se de proporcionar o desenvolvimento das capacidades de observação dos visitantes e possibilitar a exploração e a experimentação de novas situações; em segundo lugar é importante que desenvolvam competências e encontrem uma variedade de significados, possível apenas através do contacto directo com as obras; por último, devem permitir aos observadores a abertura ao que é, na realidade, estranho, à diferença, ao que não é familiar: as obras da arte contemporânea que, por vezes, se confundem com o quotidiano. No entanto, a abertura à educação tem assumido, na lógica do preenchimento da falta, o suplemento que preenche, mas não resolve. Se os museus de arte desejam ser mediadores das experiências estéticas da comunidade, devem propor modos de interacção que articulem o que as obras propõem e as capacidades que os visitantes trazem para o museu. Três aspectos da relação entre educação e aprendizagem em museus de arte dizem respeito à definição dos modelos e do conceito de aprendizagem, os projectos educacionais e a sua avaliação. Os modelos pedagógicos dos museus têm vindo a ser questionados por autores como Eilean Hooper-Greenhill (2000), John Falk (1999), George Hein (1995), Cheryl Meszaros (2004, 2006), Philip Yenawine (1999, 2003), Daniele Rice (2003), Palmire Pierroux (2003). Os modelos adoptados pela educação em museu repetiram os esquemas que a escola tradicional utilizou. Duas teorias da aprendizagem relativas à educação têm vindo a ser teorizadas nos museus de arte em contraponto ao modelo “behaviorista”: o construtivismo e o modelo hermenêutico (ou da compreensibilidade). Autores e educadores articulam diferentes descrições e diferentes abordagens do construtivismo, um género de “guarda-chuva teórico”, estas geralmente associadas a Lev Vygotsky e a Jean Piaget e na educação artística a Maxime Greene. A tese central é que cabe ao sujeito elaborar o seu próprio conhecimento: o conhecimento não pode apenas ser transmitido de uma pessoa a outra; ele é construído por cada sujeito. Todo o conhecimento assenta na sua natureza social.

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O autor que mais enfatiza esta abordagem para a área da educação nos museus é George Hein (1998), para quem os museus devem alterar as suas práticas numa série de modos para promoverem a emergência do “museu construtivista”. Os museus podem activamente apoiar os visitantes. Para isso é necessário provocar a conectividade entre o seu conhecimento anterior e a informação que as exposições disponibilizam. Neste sentido George Hein (1995, 1998) sublinha a necessidade de serem facultadas aos visitantes condições de conforto físico e intelectual; historicamente, poucos museus tiveram em atenção estas ideias. Os diversos estilos de aprendizagem dos públicos devem ser tidos em atenção pelos educadores de museu. É essencial saber como é que o meio social e cultural dos indivíduos influencia as suas experiências como visitantes. Interessa também dar a conhecer aos visitantes o processo de pensamento subjacente à exposição e envolvê-los neste processo de vários modos. Antes de avançarmos para uma clarificação dos contextos em que ocorre aprendizagem, importa ensaiar uma definição operacional do que entendemos por aprendizagem em contexto de museu. A aprendizagem é uma actividade crítica para a nossa sobrevivência. Tradicionalmente, os modelos teóricos da aprendizagem dividem a aprendizagem em três grandes domínios: cognitivo, afectivo e psicomotor, mas a ênfase tem sido posta no primeiro. Como é visível os organizadores de exposições dão grande importância ao primeiro dos domínios; por exemplo, os visitantes aprenderão três características de um determinado estilo artístico, numa exposição temática sobre este estilo artístico. Os visitantes, ao deixarem a exposição, ficarão com o interesse pelo tópico e desejam aprender mais. Este é um resultado que advém do domínio afectivo. O domínio psicomotor levará os visitantes a serem capazes de produzir uma composição do estilo apreendido com vários materiais plásticos. As metodologias procuram então evidências relacionadas com os aspectos citados. No entanto, a investigação mostra que a aprendizagem não pode ser dividida de modo tão simples em três grandes domínios, porque é, na realidade, um complexo diverso de efeitos interconectados. As metodologias de investigação, mesmo nesta área de estudo, procuram dimensões de aprendizagem mais sensíveis do que as que acabámos de aludir. Uma distinção necessária a fazer diz respeito ao conceito de aprendizagem formal e não formal. Donald Norman (1993) considera que a aprendizagem não formal não é estruturada; os objectivos desta aprendizagem são claros para os próprios indivíduos com elevado nível de motivação, a actividade de aprendizagem é cativante e “divertida”; há aqui, com frequência, experiências de fluir, as actividades são autodeterminadas, o próprio sujeito escolhe um tema, o tempo e espaço para a sua consecução, além de as


actividades poderem ser realizadas ao longo da vida em vários ambientes. Por seu turno, a aprendizagem formal é estruturada, é uma actividade individual; os objectivos, a partir da perspectiva do “aluno”, não estão bem motivados, o divertimento não é relevante, há interrupções, raramente experiências de fluir têm lugar. Aqui, as actividades são prefixadas de modo determinado e os tópicos estão predeterminados, tal como o tempo e o espaço, e, por último, as actividades são desenvolvidas num período entre os seis e os vinte anos de idade. As aprendizagens formais e não formais podem facilitar-se mutuamente. O visitante, com saber na área da história da arte, visita com mais facilidade uma exposição de arte porque conhece as particularidades dessa linguagem. Compara-os com a acuidade necessária para tirar partido da exposição. O conhecimento que os alunos obtêm a partir do curriculum escolar, por exemplo, na área da zoologia, facilita certamente o entendimento do sujeito de uma exposição temática num museu de ciência natural. Mas a educação formal e não formal também se inibem porque, por vezes, os conteúdos transmitidos podem ser contraditórios num e noutro espaço de aprendizagem sobre o mesmo assunto. Os programas informais e formais devem ter em atenção que a nossa concepção de aprendizagem é um processo complexo, não se pode esgotar apenas num dos seus aspectos, por mais importante que ele seja. O programa todo deve ser planificado tendo em conta a inclusão dos aspectos implicados, tanto a partir das reflexões de outros autores, como na prática da própria experiência. Para a clarificação enunciada no parágrafo anterior, evocamos a crítica que Jean-Christophe Vilatte (2001, 2005) desenvolveu sobre algumas das propostas educativas de museus de arte em França. A análise dessas propostas educacionais permitiu-lhe concluir que raramente estas acções resultam da vontade e das necessidades das próprias crianças, das suas exigências, representações e sobre os modos de aprender em relação às artes e aos museus. Uma das razões deste desajustamento, e não é menor na sua importância, resulta da ausência de um conhecimento aprofundado geral sobre a relação das crianças com as artes em contexto de museu. Por outro lado, constata-se que programas de aprendizagem informal são, frequentemente, formatados pela “mentalidade” de aprendizagem formal. Muitas vezes faz-se recurso ao jogo com grupos de crianças. No museu este jogo é um jogo dirigido, com um controlo exercido sobre o material e sobre o tempo, organizado em várias dimensões da descoberta: descoberta de um objecto, de um detalhe particular de um objecto ou de uma imagem, procurar as diferenças entre os objectos, descobrir as singularidades dos diversos objectos, comparar objectos e

situações, recolher indícios, sinais diferenciadores, procurar semelhanças e diferenças entre os objectos e as imagens. Os objectivos principais inerentes a estas actividades são, na sua essência, o desenvolvimento da atenção, da percepção, da memória visual e da comunicação socioverbal. As actividades propostas com um registo de jogo são marcadas também por um programa museológico que, quase sempre, impossibilita o desenvolvimento de experiências lúdicas dentro do próprio espaço do museu. Os estudos realizados por Maria Xanthoudaki (1998, 2003), por John Falk e Lynn Dierking (2000) e Susan Witmer (2000), sobre aprendizagem em contexto de museu de arte, concluíram que foi dado um passo não apenas no conteúdo dos programas para as escolas, visitas guiadas, aos objectivos e à metodologia da aprendizagem através dos objectos. As visitas são entendidas como um recurso para a aprendizagem escolar decisiva para a sustentação do ensino, constituindo-se também como um modo de relacionamento durável entre a escola e os territórios circunvizinhos. É importante manter a continuidade de relação entre um determinado museu e uma instituição escolar. A iniciativa parte, quase sempre, do professor que deseja integrar este tipo de acção no currículo da “disciplina” de que é responsável. As investigações referidas confirmam que o “potencial educativo” dos museus aumenta quando se apresentam aos alunos oportunidades para estabelecerem um encadeamento entre a experiência no museu com a experiência na sala de aula. Este potencial é baixo no caso das visitas ao museu que não integram um programa mais vasto e concreto nos seus objectos operacionais. As situações de visita ou de participação não focalizada nas actividades e nos ateliês, nos melhores exemplos, têm dado lugar ao trabalho de colaboração entre as escolas e os museus, e dos projectos que ultrapassam as fronteiras do trabalho na escola, objectos de estudo mais vastos, e reconhecem uma ampla variedade de resultados esperados e surpreendentes, nomeadamente nos museus de ciência e nos museus de arte. Outro aspecto importante para o serviço educativo dos museus é o trabalho a partir dos projectos educacionais, que é muito importante, mas é pouco frequente. Quando acontece, é tripartido: envolve o trabalho preparatório, visita, trabalho de follow-up em sala de aula. O trabalho preliminar destina-se a rentabilizar a própria visita, dela retirar o máximo de proveito. A visita ao museu actua como catalisador da motivação, estimula e proporciona uma experiência física e consolida-a. É essencial que as experiências que ocorreram no espaço do museu sejam trazidas novamente à memória, discutidas, avaliadas na “sala de aula”. Caso contrário, o valor intrínseco da visita será perdido. O aspecto de colaboração do trabalho de projecto enfatiza o valor do da criação de um clima de compreensão e respeito dos vários papéis de cada um dos participantes envolvidos na aprendizagem e no ensino.

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As relações às quais aqui fazemos referência exigem o desenvolvimento do trabalho articulado entre o museu e a escola, a situação de negociação na qual as duas instituições comparam a suas respectivas culturas, sistemas de conhecimento e processos de elaboração de conhecimento, envolvem-se em termos do seu próprio trabalho e recursos, e identificam as metodologias de aprendizagem, estratégias e ferramentas para a aprendizagem. Uma das particularidades da aprendizagem, inerente ao projecto educativo, é a de que ela implica dimensões relacionadas com a produção de sentido dos alunos, tal como o já adquirido conhecimento, a experiência pessoal, interesses, motivações, a interacção social com outros membros do grupo. Estes dois aspectos relacionam-se com o trabalho do professor que organiza o projecto na base do trabalho desenvolvido na escola e as necessidades dos seus alunos. Falamos assim de um processo construído na base da relação entre a visita ao museu e o trabalho dentro da “sala de aula”, antes e depois da visita, uma interacção que permite explorar um potencial único de objectos e do uso do museu, como um recurso de ensino e de aprendizagem, com características específicas a que aludimos anteriormente neste texto. Por último, as estimulações não formais favorecem as aprendizagens escolares; a escola inibe as aprendizagens não formais porque a visita permite ultrapassar o esquema escolar; ao propor actividades interactivas de carácter lúdico, o museu dá a oportunidade de interessar mais o indivíduo sobre o que, até aqui, em meio escolar, surgiu como pouco aliciante. O museu ou a exposição pode ser o meio a partir do qual o indivíduo acede a mais informação, suprindo as suas necessidades cognitivas; a visita escolar ao museu pode suscitar no indivíduo um papel inverso ao esperado pelos serviços educativos dos museus: o de contribuir para a formação de visitantes adultos autónomos. Sabemos que a introdução “compulsiva” da leitura dos clássicos no sistema educativo pode levar à repulsa desses mesmos “clássicos” e ao não acesso da sua leitura livre. Interessa assim saber quais são as formas possíveis de articular as políticas educativas dos museus e os interesses dos seus visitantes. Sobre a avaliação das actividades pedagógicas podemos, com Elizabeth Vallence (1996), assinalar quatro desafios. Em primeiro lugar, é necessário definir quais as medidas de sucesso mais apropriadas para a consecução dessa avaliação, em segundo lugar, é indispensável ter em atenção a natureza fluida dos públicos, em terceiro lugar, deve ser tida em conta a variedade do art-background dos visitantes de museu e, por último, há que atender às dificuldades inerentes à avaliação dos efeitos a longo prazo, das memórias visuais e da partilha do prazer. Um dos critérios de sucesso está relacionado com o número de visitantes, ou de pessoas envolvidas nas actividades; quando o número de visitantes diminui, as

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direcções dos museus ficam preocupadas. Uma das medidas elementares é a “contagem de cabeças”, mas nenhum destes números nos dá qualquer sinal sobre a qualidade das acções desenvolvidas. As medidas de sucesso aplicadas a programas educativos efémeros centram-se nos números, o feedback do público, as visitas de novo ao museu e, às vezes, a renovação da geração de visitantes. Os números, as estatísticas apenas revelam o apelo e a atractividade dos programas educacionais. Mas os números por si só não nos podem informar o modo como uma determinada acção causou alterações cognitivas, emocionais, ou outras, ao nível do próprio sujeito, exigências que devem ser questionadas no trabalho dos museus de arte. De facto, as medidas de avaliação educacionais utilizadas nos museus são, de um modo geral, pontuais. As avaliações centradas nas aprendizagens nos indivíduos, como, por exemplo, a proposta por John Falk (1998, 2007), o “Personal Meaning Map” (PMM), são utilizadas na investigação com a intenção de avaliar as aprendizagens em contextos informais, fundamentado num paradigma “relativista-construtivista”, que reconhece aos indivíduos que visitam e/ou participam em programas em ambientes informais, de livre-escolha, serem portadores para a experiência de backgrounds de conhecimento variados. Este conhecimento diversificado, tal como o contexto social e físico da experiência, dá corpo ao modo como a pessoa percebe e interioriza a própria experiência. O procedimento requer apenas que tempo e meios sejam providenciados ao sujeito para escrever as suas ideias, top-of-mind, sobre um conceito ou imagem, seguido de uma entrevista aprofundada conduzida pelos investigadores. As palavras do próprio sujeito são usadas na entrevista de follow-up. A natureza dos mapas de significação, entretanto criados, “reflectem” a realidade cognitiva do sujeito e não a do investigador. Como exemplificação de alguns dos modelos de educação artística em museus, centramos agora a atenção na diversidade dos dispositivos de mediação educativa que encontramos hoje nos museus de arte, que traduzem o desejo de o museu contemporâneo se adaptar à heterogeneidade dos públicos que o visitam, e revelam, frequentemente, a vontade e o desejo de os educadores dos museus se distanciarem das aprendizagens escolares. Há entendimentos diversos sobre a filosofia de educação dos museus de arte. Para Ralph Smith (1986, 1989) ou Harry Broudy (1987), são centros para a “fruição esclarecida”, cujas audiências estão socialmente e economicamente motivadas de modo muito diverso. Os grupos que visitam os museus são heterogéneos quanto à idade, ao nível de escolaridade, necessidades, aos seus interesses e à experiência individual3. Terry Zeller (1989), ao analisar as práticas dos museus nos Estados Unidos da América no século XX, propôs quatro racionalidades, orientações que devem ser entendidas


como tendências gerais de actuação e não como áreas puras de actividade deste ou daquele museu. Na realidade, nenhum museu, na sua pureza ideológica, utiliza uma ou outra tendência, porque toda a pedagogia de museu está intrinsecamente interligada com as particularidades da colecção, com o tempo e com os protagonistas no tempo em que actuam os programas com os públicos. As quatro racionalidades não se definem apenas através dos métodos e das suas teorias, mas a partir dos valores intrínsecos e conteúdos das colecções. A primeira racionalidade enfatiza a apreciação estética, a segunda, a narrativa da história da arte (na iconografia, cronologia, estilos artísticos e biografias dos artistas), a terceira assenta sobretudo na interdisciplinaridade e a quarta é centrada na “educação social” dos visitantes. Na primeira metade do século XX dominou o primeiro modelo. O método proposto por Albert Barnes enquadra-se nesta racionalidade, mas vai mais longe. A apreciação das obras de arte deveria ter em conta as obras que nos revelam as qualidades dos objectos e os momentos significativos, que têm o poder de nos mover esteticamente. Esta ideia ressoava à proposta teórica de Clive Bell (1913) sobre a “forma significante” e influenciou o modo como Barnes coleccionou as obras e artistas para a sua colecção. Como referiu Harold Mcwhinnie (1994), o Dr. Barnes comprou obras de Cézanne, Renoir e Matisse, quando podia também adquirir obras de Gaugin e Van Gogh ou Seurat. As qualidades analíticas das obras de Cézanne eram mais objectivas na própria técnica pictural. Cézanne dava uma continuidade a Poussin e Lorraine e, no entendimento de Barnes, prestavam-se ao melhor entendimento da obra de Giotto. Na abordagem da história da arte é enfatizada a análise iconográfica, a informação biográfica dos artistas e as narrativas sobre a história da arte. Esta abordagem funde-se, com frequência, com a abordagem interdisciplinar, onde se promovem as relações entre as várias modalidades artísticas. Apenas podemos compreender uma obra de arte se cruzarmos os saberes de igual natureza, as artes visuais com a música ou a literatura. Terry Zeller (1989) referiu que, mesmo nos museus em que o foco é apreciação estética, as considerações de ordem interdisciplinar e histórica desempenham um papel importante para as acções de educação. Por seu turno, na abordagem da educação social, baseada na crença sobre a humanização da arte, o objectivo prioritário consiste em potenciar a compreensão dos indivíduos das problemáticas sociais importantes, o desenvolvimento da própria identidade, aspectos salientados na abordagem de Alfred Lichtwark. Neste sentido, as artes e a apreciação artística devem providenciar meios a todas as pessoas, independentemente da sua origem, alcançando, através do contacto com a arte, uma melhor adaptação social. Detectam-se aqui as ideias principais sobre uma educação popular, dirigida a todos os que se encontram

culturalmente em desvantagem relativamente ao acesso aos bens culturais, a abertura democrática como ela é evidenciada nos programas propostos, por exemplo, pela Dulwich Picture Gallery em Londres. Os modelos baseados na fruição estética e artística, de facto, fundamentaram-se nas narrativas propostas pelos próprios museus e alicerçam-se no discurso, quer do coleccionador, do curador ou dos próprios artistas. A programação pedagógica, quase sempre, é organizada a partir dos pressupostos discursivos que entram como critérios selectivos dessa programação. Além disso, quase sempre, pressupõem que os visitantes têm o mesmo tipo de background educacional e cultural e as mesmas expectativas em relação às aprendizagens. Os protagonistas destes modelos esperam que o visitante assuma um papel passivo, aberto em relação à narrativa proposta, quase sempre linear e cronológica, do simples para o complexo, profusa em relação a pormenores informativos, proposta pelo guia ou a etiqueta e que, deste modo, reconheça a autoridade e o prestígio do discurso proposto pelo museu. Neste sentido, faz-se aqui uma distinção clara entre os públicos: o especialista e o não especialista. Toda a transmissão de elementos informativos disciplinares deverão, pois, promover a estimulação da actividade de apreciação artística, criando “esquemas de percepção” que podem, espera-se, ser transferidos pelo próprio sujeito para outras experiências com a arte. Como finalização deste texto introdutório à problemática do serviço educativo nos museus de arte, importa salientar três aspectos resultantes da apresentação da temática tratada. Em primeiro lugar, salienta-se que, ao longo do século XX, a educação nos museus de arte esteve intrinsecamente relacionada com a estratificação dos públicos e generalizada a partir do acesso à educação e à cultura (artes). Em segundo lugar, é reconhecido que, apesar de a intenção educacional estar presente em muitas entidades, apenas nos finais dos anos setenta a investigação entrou na agenda de alguns museus, concretizada, em parte, devido à pertinência de os museus “gerirem” de modo equilibrado a demanda dos públicos, como demonstrou o estudo realizado por Stephen Dobbs e Elliot Eisner (1987). Hoje, há uma comunidade de investigadores, publicações e áreas específicas de formação universitária, que visam a preparação de mediadores de educação dos museus. Por último, em terceiro lugar, sublinha-se que a área de saber da educação em museu é uma área com vocação multidisciplinar e interdisciplinar, que ao convocar várias áreas do conhecimento, como, por exemplo, a estética, a sociologia da arte, psicologia das artes visuais, história da arte, museologia, apela à necessidade da articulação, não apenas de saberes, mas de acções dentro e fora do contexto do museu. A abertura à investigação e à inovação nesta área coloca-se hoje com toda a pertinência também em Portugal.

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Notas 1 “A

arte na escola” e “Exercícios na observação de obras de arte”.

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Sterling Fishman (1966), Jean Ervasti (2001) e Bjarne Funch (1993) escreveram sobre Alfred Lichtwark.

3 “Enlightened

experience” ou “enlightened cherishing” – para Harry Broudy (1972, 1987) trata-se da fruição com conhecimento de causa, esclarecida e justificada; o “amor” por objectos e acções, que certos princípios e padrões consideram dignos do nosso gosto e atenção.

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Fig. 1 A exposição no espaço público Hamburger Kunsthalle (Hamburgo, Alemanha) fotografia da autora, 2007

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Helena Santos Públicos culturais: algumas notas com museus em fundo 1

Os museus são instituições maiores do campo cultural, sinalizando transformações importantes, em especial nas últimas décadas – também em Portugal, onde acresce uma autonomização das políticas culturais muito recente. O artigo enquadra naquelas transformações algumas notas sobre os públicos culturais e, em particular, as suas relações contemporâneas com as instituições museais. Museums are major cultural institutions, promoting important transformations, especially during the last decades. Portugal is not an exception, being a country where a recent autonomy of the cultural policies has been taking place. Taking as its framework these occurrences, the present article articulates some reflexions on cultural audiences and, most particularly, their contemporary relations towards museums.

PALAVRAS-CHAVE: Públicos culturais, museus.

Faculdade de Economia do Porto e CETAC.media | hsantos@fep.up.pt

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“(...) o museu como instituição [define-se por] um equilíbrio rigoroso entre as funções de investigação, de conservação e de difusão, fundado no reconhecimento de um estatuto específico dos objectos: um estatuto de património.” Jean Davallon, “Une écriture éphémère: l’exposition face au multimédia” 2

A

s preocupações com os públicos constituem, crescentemente, elementos centrais das instituições e dos agentes culturais, e, para o que nos ocupa “em fundo”, dos museus. Não se tratando de uma especificidade portuguesa, aquelas preocupações têm, no entanto, afectado especialmente a (re)estruturação do campo cultural português: as tendências gerais de racionalização (organizacional e financeira) das políticas públicas chegaram à cultura portuguesa no contexto da sua institucionalização tardia e incipiente (lembremos apenas, a este propósito, que a elevação da cultura a Ministério tem pouco mais de uma década) (FORTUNA & SILVA, 2002; SANTOS, 1998). Ao mesmo tempo, e em relação estreita com aquelas tendências, o(s) conceito(s) de cultura têm conhecido transformações, no sentido do alargamento do seu âmbito e da relativa diluição das suas fronteiras, diversificando e complexificando, não apenas o que se considera “cultural”, mas também os modos como se relacionam entre si obras, instituições, práticas, agentes, territórios... (CRANE, 2002; SANTOS, 1994). Referiríamos, em particular para os museus, o alargamento do conceito de património (de tal forma que alguns autores radicalizam a sua crítica, como Hernandez i Martí, ao designá-lo como um conceito “zombi”... – MARTÍ, 2007), pelas consequências directas na produção do valor simbólico e social da cultura institucional, e, nela, da função de patrimonialização própria dos museus (DAVALLON, 1999b). É pela sua função de patrimonialização que os museus permanecem as instituições culturais que definem as fronteiras do valor cultural: entre o que é arte e o que não é; entre o que é patrimonializável e o que não é. Ou seja, continuam a ser instâncias privilegiadas de legitimação cultural, acompanhando embora as mudanças referidas, com os museus de arte no topo da sua hierarquia simbólica (MOULIN, 1992; 1994; TEBOUL & CHAMPARNAUD, 1999). É interessante, a este propósito, assinalar que, segundo a sondagem Eurobarómetro 2007 sobre os valores culturais dos europeus, permanece dominante uma concepção tradicional/conservadora da ideia de cultura (AAVV, 2007b: 5; 110). Representa-se a cultura, em primeiro lugar, como artes visuais e performativas (39%, para a média dos inquiridos nos 27 países da União Europeia); “literatura, poesia, escrita e autores”, e “tradições, língua, costumes e comunidades”, em seguida (24%). Para os portugueses inquiridos, a ordem não é exactamente a mesma, mas traduz idêntica representação: em primeiro lugar, a associação artística, porém ao lado da educação3 (26%; a média europeia é de 20%, correspondendo ao quarto lugar); em segundo lugar, surge a associação entre cultura e ciência e tecnologia (25%; é a quinta categoria na média europeia, com 18%); a literatura e afins surgem em terceiro lugar (20%); as concepções culturais de cariz mais socioantropológico ocupam a quarta e a quinta posições, respectivamente a história (21%; 13% para a média dos europeus, oitava posição) e as tradições (18% de inquiridos). A identificação da cultura com os museus aparece em nono lugar na média europeia, sexto em Portugal – em ambos os casos representando 11% dos inquiridos.

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Fig. 2 Contrastes arquitectónicos Museu de Belas Artes (Lille, França) fotografia da autora, 2007

Valeria, naturalmente, a pena, dispor da ventilação destas categorias, não apenas por país, mas também por um leque de variáveis que sabemos especialmente condicionadoras das representações e práticas de cultura – o nível de instrução, a idade, a categoria socioprofissional, o género... Assim globalmente, o que parece haver de comum naquelas representações da cultura é que as suas categorias principais nos remetem, justamente, para uma representação patrimonial da cultura, seja na perspectiva da sua produção, digamos, prospectiva (as artes, sensu lato), seja numa perspectiva identitária, de enraizamento, memória e herança. Ora, de acordo com os dados que reproduzimos, os museus são percebidos como parte integrante deste escopo representacional, que, assim, dá conta do (elevado) valor social atribuído à instituição museal, isto é, da sua funcionalidade social enquanto instituições de patrimonialização (DAVALLON, 1999a; 2006). Que mudanças, então, assinalamos, agora com os públicos em fundo? Elas seguem os movimentos culturais gerais, e estão estreitamente interligadas – apenas as autonomizamos por razões analíticas. São visíveis o aumento e a

diversificação dos museus (de arte, de ciência, de tecnologia, de sociedade, de etnologia, virtuais, etc.), traduzindo um processo de museologização abrangente, que tanto passa pelas novas simbologias artísticas, como pelas sociais e económicas (acompanhando, designadamente, os valores de imaterialidade, estetização, hedonismo e entretenimento que caracterizam os modos de vida contemporâneos). Em segundo lugar, verificam-se modificações internas às instituições museais, nas últimas décadas, em termos de divisão do trabalho, modelos organizacionais e funcionalidades dirigidas aos públicos: novas profissões e transformações das antigas (por exemplo, os directores de museus já não como conservadores, mas como mais próximos da profissão de gestor) (OCTOBRE, 1999; para uma análise com aplicação ao caso português: SEMEDO, 2003); novos serviços e sua organização interna: relações entre investigação e conservação, educação, comércio, turismo, lazer; novas funcionalidades, designadamente nos diversos espaços simbólicos que atravessam e onde concorrem com outros símbolos culturais (investidos, crescentemente, de emblemas arquitectónicos e paisagísticos próprios, que, em

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Fig. 3 Revitalização de zonas degradadas Museu de Arte Contemporânea de Barcelona fotografia da autora, 2007

termos de projecção e visibilidade sociais, se sobrepõem frequentemente aos valores das colecções). Justamente, e em terceiro lugar, os museus conhecem mudanças de apresentação e programação, traduzidas na centralidade das exposições – em número e rotatividade, em diversidade de conteúdos (inovação), em objectivos de espectacularidade e capital de atracção. Por outro lado, as estratégias expositivas contemporâneas procuram crescentemente a integração, não apenas em circuitos de itinerância reticular de âmbito nacional e internacional, como também a associação a critérios de programação cultural mais ampla, em seu redor e a seu propósito (conferências e colóquios; artes performativas e cinemáticas; ciência, tecnologia e investigação; animação cultural; intervenção social e comunitária...). Numa quarta categorização das mudanças, os museus perpetuam um determinado estatuto público relativamente consensual. Quer isto dizer que, em diversos figurinos de tutela (estatal, ou em diversas parcerias públicoprivado), organização e classificação, as missões museológicas tendem genericamente a referenciar os seus discursos ao modelo de reprodução cultural, produção identitária e patrimonialização da criação. Eles intervêm, crescentemente, na reconfiguração da esfera pública contemporânea, no sentido habermasiano,

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participando na interpenetração entre os domínios público e privado, em particular através do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (por exemplo, a utilização da internet como espaço museológico virtual). Neste contexto, a reflexão sobre os públicos culturais reforça-se de ambiguidade: conhecer o número de visitantes torna-se um elemento funcional incontornável para a gestão e a programação museais, assim como para a indiciação da sua visibilidade. Porém, através dos seus números absolutos, e de uma parca segmentação (que, à excepção da identificação dos visitantes estrangeiros, se prende essencialmente com os preços dos bilhetes, enquanto medida de promoção de determinados tipos de públicos), os visitantes tendem a ser indiferenciadamente assimilados, não apenas a amantes culturais (as práticas indiciando gostos e os gostos competências distintivas, na perspectiva de Bourdieu – BOURDIEU, 1979); mas, cada vez mais, a protagonistas da cultura de consumo contemporânea (FEATHERSTONE, 1994). Nesta última perspectiva, os visitantes respondem a um “produto” (a arquitectura emblemática do edifício, as exposições temporárias, as modalidades de apresentação das colecções, os serviços de restauração e lazer, os espaços de sociabilidade, etc.), “produto” esse previamente concebido para a “adesão”, a “necessidade”, o “divertimento”, o “gosto” ou as “aspirações” dos visitantes (DAVALLON, 2003; TEBOUL & CHAMPARNAUD, 1999).


Na competitividade simbólica (enquanto modalidade da competitividade económica) que caracteriza as economias culturais contemporâneas, o público funciona como um mediador específico (ele próprio mediado) de um star‑system hegemónico (e profundamente hierarquizador). O número de visitantes corresponde, portanto, numa perspectiva essencialmente política e gestionária, a uma certificação pela procura, em dois planos, que a seguir explicitamos. No plano interno, a dimensão da procura é frequentemente, por si só, tomada como sinónimo de qualidade e utilidade, simultaneamente dos conteúdos e dos serviços prestados. Qualidade e utilidade que compõem, naturalmente, dimensões lúdicas, educativas e profissionais, de fruição estética – mas que não deixam de subsumir num indicador grosseiro aquela diversidade de dimensões, assim como a sua composição interna e os seus processos de construção. No plano externo, dois mecanismos interligados compõem a avaliação e a consagração de um valor social que tende, igualmente, a reduzir o espectro das modalidades e significações da procura. O primeiro consiste na notificação e/ou amplificação no espaço público, pela comunicação social, pela publicidade e o marketing, que produz efeitos de notoriedade extremamente selectivos (porém estereotipados) no que respeita ao poder de tornar visível e significante, sobretudo, aquilo que contém antecipadamente garantias de sucesso social e espectacularidade – mais do que relevando de critérios próprios, especializados, dos valores culturais em causa. A procura turística e de entretenimento, neste sentido, canibaliza frequentemente a procura estéticaidentitária e mesmo a educativa, transmutando os signos de cultura em signos de consumo. Neste sentido, consagra-se (de novo, agora pelos potenciais públicos) o que foi prévia e externamente certificado, e induzem-se ofertas que, ao serem homogeneizadas pela dimensão da procura, também a homogeneízam (indistinguem). O segundo mecanismo referencia o público (real e potencial) enquanto elo activo da (re)produção do valor, assente na transmissão através de redes de sociabilidade próxima (amigos, familiares, colegas), as quais constituem o principal contexto de difusão certificada (ou não...) das obras ou dos eventos, ou das instituições de cultura. Neste último sentido, Ethis propôs o conceito de “público mediador” (para os públicos do Festival de Teatro de Avignon, mas também do cinema), assinalando a produção de efeitos de concorrência (nos grupos de amigos, familiares e outros círculos de pares) pelo estatuto de protagonistas de um momento ritualizado e prestigiante – como as estreias – ou de comunhão mais ampla – pertença a um mundo e a uma identidade de símbolo e estatuto, numa configuração que não deixa de ser ostentatória da prática cultural (ETHIS, 2003). Este processo é especialmente importante quando, como tende a acontecer, traduz o reforço das lógicas de

homogeneização (por vezes espectacularização) do primeiro mecanismo, saturando (colonizando...), frequentemente, o espaço público com um “produto” específico que concentra numa parte “incontornável” do mundo social (a inovação conceptual proposta por um novo espaço; a singularidade de uma nova exposição; a oportunidade única de uma comunhão; o sucesso entretanto já justificado pela procura). Os dois mecanismos referidos conjugar-se-ão em efeitos de externalidade, igualmente justificativos dos valores de uma utilidade social e económica – resultados de projecção simbólica (competitiva) para o exterior, que ultrapassam as instituições e as obras, participando em economias (culturais) de aglomeração assentes em “complexos de produção de imagens” (SCOTT, 2000), com efeitos multiplicadores na dinamização dos territórios e ambientes urbanos, e das economias envolventes (vejam‑se, para o caso português: COSTA, 1999; 2004b SILVA, 2002; SILVA ET AL., 1998; SILVA & SANTOS, 2004). Mas estes mecanismos são, ao mesmo tempo, profundamente redutores, no sentido em que ambos se desenvolvem mais por mecanismos de espectacularidade e concentração do que por alastramento e densidade relacional entre as instituições, os agentes e os territórios. Em particular, o aumento da concorrência pela visibilidade constrange a recursos financeiros e humanos que, no caso português, e nos museus em especial, provocam efeitos de concentração e centripetação (num ou em poucos pólos), mais do que de densidade e dimanação... A função comunicacional dos museus (como a das instituições culturais em geral) vem-se revelando, assim, um instrumento nuclear, justamente respondendo à deslocação relativa de uma gestão centrada na conservação e nas colecções para uma gestão centrada no mercado e no “público como consumidor” – proporcionada ainda pelo uso das novas tecnologias de informação na difusão, no acolhimento e no acompanhamento dirigido aos visitantes (a título ilustrativo, vejam-se DYSON, ANDREWS & LEONTOPOULOU, 1995; FLON, 2001). Neste sentido, a necessidade comunicacional releva em grande medida do poder das lógicas financeiras enquanto, elas próprias, mediadoras (elementos do processo comunicacional da cultura – DAVALLON, 2007). E essas lógicas condicionam, ainda, os recursos profissionais disponíveis nas instituições. A pressão à empresaliarização no campo cultural coloca em jogo uma complexidade de actores externos, cujo diálogo com as lógicas próprias da cultura nem sempre é cumprido (acontece frequentemente com o marketing e o design expositivo, por exemplo). O que acabamos de referir leva-nos a um novo questionamento sobre os públicos. O aumento da procura museológica nas últimas décadas, e as alterações dos contextos de visita, têm permitido inferir alguma diversificação dos públicos dos museus, aliada a um maior cosmopolitismo cultural dos visitantes.

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Fig. 4 Públicos vs serviços [de cima para baixo; da esquerda para a direita] Turismo “de terceira idade” (Museu de Cartago, Tunísia, 2006); “jovens públicos escolares” (Museu Nacional Soares dos Reis, 2008); Programa “Férias no museu” (Fundação de Serralves); Programa “Famílias nos Museus” (Município do Porto, 2004) Fotos da autora, excepto Fundação de Serralves: www.serralves.pt/actividades/ detalhes

Esta “renovação” aplica-se, no entanto (e na sequência do que atrás referimos), especialmente aos “novos museus”, para usar a proposta de Kylie Message, referida aos mega-projectos museo-arquitectónicos contemporâneos, espectaculares e (aparentemente) economicamente bem sucedidos, atraindo uma permanente e renovada procura turística e induzindo “externalidades globalizadas” (MESSAGE, 2006; esta classificação aproxima-se do que Bruno Frey designou por superstar museums – FREY, 1998). Apesar do caminho que nos distancia do fechamento analisado por Pierre Bourdieu no seu estudo pioneiro sobre os museus de arte (BOURDIEU & DARBEL, 1966), o aumento de públicos e a pressão às lógicas de mercado não arrastaram tendências efectivas de acessibilidade cultural democrática – aumento e diversidade efectivos de públicos... e de públicos críticos. Os estudos disponíveis mostram como os discursos, por vezes exuberantes por parte de alguns responsáveis, sobre o aumento da procura nos museus portugueses se debatem com a persistência de taxas que continuam longe de uma acessibilidade generalizada; e com estruturas de públicos “teimosamente” selectivas do ponto se vista sociológico: por um lado, o nível de instrução e a categoria socioprofissional permanecem estreita e positivamente correlacionados com

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a procura; por outro lado, a procura cultural permanece fortemente dependente de processos de construção de gostos que tendem a gerar efeitos de cumulatividade e eclectismo culturais, mais do que alargamento do seu espectro sociológico; finalmente, algumas tendências de aparente democratização e alargamento parecem resultar sobretudo de alterações internas às fronteiras culturais e artísticas, verticais (hierarquias de valor social e simbólico) e horizontais (diversificação e hibridização). (Apenas como ilustração, além das referências já sinalizadas, vejam-se: DIMAGGIO & MUKHTAR, 2004; DONNAT, 2004). E, vale a pena referir, não deve confundir-se o conhecimento produzido para a investigação com o orientado para a estratégia e a aplicação – o conhecimento científico e as “sondagens de mercado” respondem, necessariamente, a perspectivas (logo a pressupostos) diferentes, ainda que possam complementar-se. Não queremos com isto desvalorizar as iniciativas que combinem as duas lógicas, no sentido em que tornam possível a visibilidade e, sobretudo, a atractividade de primeiros visitantes (quer dizer, o contacto que poderá prolongar-se em decisão futura de se ser público), sem perda da especificidade cultural. Raquel Henriques da Silva coloca (optimística mas) liminarmente esta


questão: “(...) sem riscos de banalização empobrecedora, os museus podem hoje cumprir melhor as suas nobres funções tradicionais e muitas outras que correspondem aos desígnios do próprio campo cultural e, simultaneamente, ou pelo menos não contraditoriamente, a expectativas e necessidades sociais mais alargadas. Olhando à volta, não vejo, por exemplo, que o turismo de massas ponha em causa o trabalho interno e profundo dos megamuseus mundiais ou que estes retirem espaço de reconhecimento a outras linhas de trabalho museológico, mais vocacionadas para o trabalho de proximidade ou de identidade local e regional.” (SILVA, 2003:12). Por outro lado, não sem algum paradoxo e seguramente desafiando novos olhares sobre os públicos, mas também sobre os não-públicos, o aumento dos tempos livres (beneficiador da procura cultural) tem conhecido, nas últimas décadas, uma inflexão relativa, e em especial entre as categorias sociais tradicionalmente dominantes nas procura culturais (os quadros superiores e médios) (veja-se, por exemplo, MENGER, 2003). Estas questões colocam-se em geral, e portanto também nos países onde a atenção aos mecanismos de aferição e estruturação das procuras culturais constitui já uma tradição, ligada aos diferentes modelos de políticas (na França, no Reino Unido, nos Estados Unidos, nos países nórdicos, apenas para referir alguns exemplos emblemáticos). Em Portugal, apesar do que se tem produzido sobre as práticas e os públicos culturais, estamos longe de um conhecimento aprofundado, sistemático e integrado (nacional e sectorial) dos públicos e das práticas culturais, capaz de enformar, no interior das instituições culturais e na acção política, desenhos estratégicos sustentados pelas “realidades” a que se dirigem... (Veja-se, para uma síntese actualizada sobre o caso dos museus: NEVES, 2004: esp. 235-238.)4 Temos, assim, razões para questionar o lugar e o estatuto dos públicos/visitantes no quadro das instituições museológicas contemporâneas. Noutra dimensão, impõe-se referir que o conhecimento da estrutura (sociológica e dos contextos de práticas, das expectativas e das representações) dos públicos não esgota, como tende a reconhecer-se hoje consensualmente, as questões relacionadas como as relações entre os dispositivos de apresentação e representação museais (DAVALLON, 1999a) e as disposições e os enquadramentos múltiplos dos visitantes, condicionantes da sua apropriação experiencial da prática cultural (PASSERON, 2003; e DA COSTA, 2004a). Se é verdade que os estudos disponíveis, a que já aludimos, nos dão conta da persistência das desigualdades sociais das procuras culturais, e portanto, da persistente selectividade social dos públicos, impõe-se a articulação metodológica com escalas de abordagens específicas das relações entre, como dissemos, dispositivos e disposições. Por outras palavras, e seguindo Jean-Claude Passeron, “a sociologia da recepção não se opõe a uma sociologia do consumo como uma sociologia qualitativa a uma sociologia quantitativa”

(cit. supra: 389): uma e outra deverão mutuamente contribuir para o trabalho de adequação das “medidas” às realidades (diferentes e dinâmicas) que se intenta analisar e interpretar. Debrucemo-nos um pouco mais (se bem que brevemente) sobre os públicos dos museus portugueses, tendo como referência as informações disponibilizadas pelo Instituto dos Museus e da Conservação.5 Às limitações que referimos atrás sobre a produção das estatísticas de visitantes acresce o facto de resultarem ainda largamente de técnicas pouco rigorosas de contabilização: apesar da informatização das bilheteiras (entre os museus da Rede Portuguesa de Museus), ela não permite a contagem relativa aos espaços internos autonomizáveis pelos visitantes (como as diferentes exposições e os diferentes serviços). Na verdade, se, em geral, os museus portugueses parecem atrair cada vez maiores números de visitantes (sobretudo os urbanos, o que se deve em grande medida às relações com as escolas e o turismo), esse aumento não deve ser tomado, nem como regular nem como homogéneo. Além disso, o conhecimento sociográfico da estrutura dos visitantes (origem geográfica que não apenas estrangeiros e nacionais; categorias socioprofissionais, género, idades mais segmentadas...); mas ainda das suas motivações, das suas experiências, dos seus contextos de acção individuais – constituirão elementos essenciais (também) para uma investigação e avaliação sobre o valor simbólico e social dos museus e dos seus públicos. E, no que toca à reorganização funcional que autonomiza, em particular, os serviços educativos e culturais (uma distinção que pretende dar conta da diferença entre o direccionamento propriamente escolar e pedagógico e a orientação para outras segmentações sociológicas, como as famílias, os idosos, os turistas, etc..), ela tem servido porventura mais a pressão instrumental-gestionária sobre as instituições museológicas do que o resultado de uma reflexão profunda sobre elas. Sabemos, finalmente, como são frágeis as condições de modernização dos museus portugueses, no quadro do potencial da reconfiguração normativa recente (a Lei-Quadro de 2004, e em particular a constituição da Rede Portuguesa de Museus – LOPES & SEMEDO, 2006; NEVES, 2004; SANTOS, 2005; SEMEDO, 2004) – e, designadamente para o que nos ocupa, como essa situação fragiliza, por seu turno, as condições de relacionamento com os visitantes. As Fig. 5 e 6 reproduzem algumas taxas de frequência média de museus que pretendem apenas funcionar como um exercício primário de ilustração do que vimos referindo. Tem que sublinhar-se que os dados não são todos igualmente comparáveis. Desde logo, a informação releva de diferentes fontes e, portanto, objectivos (investigação universitária e estatísticas oficiais – Instituto Nacional de Estatística, Eurostat e National Edowment for the Arts –; diferentes momentos (1997, 1998, 2002, 2005, 2007); e diferentes recortes da população (para os Estados Unidos, a idade mínima é a de 18 anos; para os restantes, 15 anos).6

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No último ano, foi pelo menos uma vez a um museu (%)

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5 cidades 1997*

Porto 1997*

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Coimbra 1997*

Braga 1997*

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BD Amadora 2005

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Portugal 2007***

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Portugal 1998**

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Fig. 5 Algumas taxas ilustrativas de frequência de museus em Portugal

* Museus de Arte ** Museus/Exposições ***Museus e galerias de arte 20 Bulgária 24 Portugal 25 Rep. Chipre Não reproduzimos aqui as estruturas dos públicos Em segundo lugar, as taxas dizem25 respeito às declarações Grécia representados na Fig. 5, mas elas contrastam com as das de frequência de museus em dois universos populacionais 27 Estados Unidos 27 territórios (cidades, Roménia populações de que fazem parte, demonstrando o que distintos, o dos residentes em diversos Polónia referimos atrás sobre a tendencial selectividade social (em países, união europeia); e o dos públicos32de um evento 33 Lituânia alta) dos praticantes culturais. cultural específico, que, intencionalmente, não34se enquadra Malta São, portanto, excepcionais os universos de praticantes na classificação institucional estrita de cultura (um festival 34 Itália onde as taxas de frequência declaradas atingem a metade de banda Lisboa). Irlandadesenhada numa cidade da periferia de38 38 não é Espanha lugar, o indicador de prática utilizado da população. A média da União Europeia, 41% em 2007 Em terceiro 39 Eslovénia (Fig. 6) deve-se a uns poucos países (acima de 60% de sempre o mesmo, ora limitando-se aos museu de arte (no 39 Áustria visitantes na Suécia, nos Países Baixos e na Dinamarca). caso Hungria do inquérito de 1997 nas cinco cidades portuguesas); 39 Portugal ocupa o “penúltimo lugar” (menos de um quarto, agregando museus e exposições (no caso do INE), museus e 40 Eslováquia 41 for UE27 de resto uma taxa menor do que a aferida em 1998 pelo galerias (no caso do Eurostat e do National Endowment 42 Bélgica Inquérito à Ocupação do Tempo – Fig. 5: 31%). Porém, das the Arts); museus em sentido amplo (no caso dos inquéritos 43 França considerações que fomos tecendo ao longo deste artigo, em Viana do Castelo e no Festival de Banda Desenhada). 44 Rep. Checa e da observação da hierarquia de países representada na 47 Letónia 48 Estónia desta “combinação” é mostrar como, em Fig. 6, não podemos inferir que se trate de um “evidente O interesse Alemanha termos gerais, a frequência do público (as declarações de 48atraso” português: na verdade, aquela “hierarquia 49 Reino Unido cultural nacional” traduz o cruzamento das lógicas de pelo menos uma visita nos doze meses anteriores) se revela 51 Finlândia funcionamento “pesado” das procuras culturais mais minoritária em relação aos totais populacionais; e como 54 Luxemburgo institucionais com essa relativa 62 os diversos contextos dos museus (e da Suécia homogeneidade é profundamente contrastante 62 cultura) nos respectivos países (modelos de políticas, de com Paises o queBaixos tendemos a observar nos contextos de outras Dinamarca financiamentos, de 65 gestão, de tipologias, de relação com práticas culturais específicas (ilustradas pelos visitantes do

Festival de Banda 0 10 Desenhada 20 da Amadora 30 – Fig. 5).40

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BD A

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Bulgária Portugal Rep. Chipre Grécia Estados Unidos Roménia Polónia Lituânia Malta Itália Irlanda Espanha Eslovénia Áustria Hungria Eslováquia UE27 Bélgica França Rep. Checa Letónia Estónia Alemanha Reino Unido Finlândia Luxemburgo Suécia Paises Baixos Dinamarca

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No último ano, foi pelo menos uma vez a um museu ou galeria: países da União Europeia (Eurostat 2007); e Estados Unidos (National Endowment for the Arts, 2002) (%)

20 24 25 25 27 27 32 33 34 34 38 38 39 39 39 40 41 42 43 44

47 48 48 49 51 54 62 62

Fig. 6 Taxas de frequência de museus na União Europeia e nos Estados Unidos

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20

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Conclusão Do ponto de vista das instituições museais face às mudanças contemporâneas que relevámos, e da ilustração (panorâmica) que apresentámos, é fundamental articular o desenvolvimento de um conhecimento aprofundado sobre os públicos (e os não-públicos) com o desenvolvimento de estratégias a partir dos museus e dos seus responsáveis (vejase, por exemplo, TOBELEM, 2003). Aquelas estratégias deverão integrar-se, por um lado na definição e implementação de políticas estruturais a diferentes escalas (isto é, que cruzem as formas plurais de construção e desenvolvimento da oferta, circulação e procura, nas instituições e nos espaços); por outro lado, na perspectivação de redes territorializadas e dinâmicas de circuitos de cultura, onde a “convivência” entre segmentos internos aos tipos institucionais (diversos tipos de museus, por exemplo) e aos públicos (não apenas por recortes de caracterização sociográfica, mas também relacional e recepcional) deve ser identificada e analisada. Ou, como sintetiza Pierre-Michel Menger: “Sabemos que os instrumentos das ciências sociais não valem o mesmo nos diferentes terrenos e para os diferentes objectos de estudo (...).

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Felizmente, essas relações não são fixadas de uma vez por todas e é próprio da investigação submetê-los a um exame crítico, com o objectivo de identificar as condições de novos protocolos de análise e de novos quadros interpretativos. É nesta condição que a sociologia da cultura (...) [poderá explorar], num quadro coerente, por um lado os termos evolutivos da relação entre desigualdades sociais, estratificadoras e segmentadoras, e por outro as diferenciações horizontais incessantes da produção cultural, que constituem os propulsores da inovação e da transformação das atitudes e dos investimentos individuais e colectivos.” (FABIANI ET AL., 2003: 323). Os museus têm, de facto, protagonizado e reflectido algumas das mais importantes mudanças que assinalámos para o campo cultural contemporâneo. Pela sua função patrimonial, eles tenderão a ocupar um lugar central no futuro daquelas dinâmicas, simultaneamente culturais, económicas e políticas. Permanece, portanto, incontornável o conhecimento dos públicos (reais e potenciais) para a compreensão, multidimensional, daquelas transformações e das possíveis respostas que elas possam condicionar. Maio de 2008

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Fig. 7 Serviços vs públicos [esq. para a dir.] Museu do Têxtil e do Vestuário (Barcelona, 2007) e Museu Nacional do Bardo (Túnis, 2006) Fotos da autora

Notas 1

Este artigo baseia-se na comunicação apresentada na conferência Museus e Sociedade, organizada pelo Museu Municipal de Caminha, a 1/Dez/2007. Agradeço a todos os participantes as apresentações e o profícuo debate, que contribuíram para o texto final. Agradeço ainda: à Maria do Rosário Saraiva e ao José Varejão as reflexões que me têm proporcionado sobre o tema deste artigo; à Dr.ª Maria João Vasconcelos pelas estimulantes conversas e observação que nos tem facultado a propósito do Museu Nacional Soares dos Reis, onde iniciámos um estudo exploratório; e à “equipa de Avignon” coordenada por Jean Davallon, pela partilha da sua longa e sólida experiência neste domínio.

2

In DAVALLON, 1999a: 195.

3 No sentido de socialização ampla, incluindo, portanto, a educação familiar.

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4

Para informação de síntese, onde o papel do Observatório das Actividades Culturais tem sido fundamental, que dá conta da preponderância dos estudos sobre públicos de instituições e eventos, veja-se ainda: SANTOS, DONA & CARDOSO, 2006.

5 Não

apresentamos aqui os resultados da análise da evolução dos visitantes dos museus, tal como disponibilizada pelo Instituto, ainda em curso.

6

Fontes: 1997, cidades: SANTOS ET AL., 1999; Viana do Castelo 2002: SANTOS, 2007; Portugal 1998: GOMES, 2001 (a partir de AAVV, 2001); Portugal, Espanha, França, União Europeia a 27, 2007: AAVV, 2007a; b; Estados Unidos, 2002: AAVV, 2002; BD Amadora 2005: SANTOS, DONA & CARDOSO, 2006.


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Fig. 1 Fachada Casa de José Regio, Vila do Conde

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António Ponte Casas-Museu Museus do Privado versus Espaços de público Nos últimos anos, tem-se assistido a uma forte expansão do tecido museológico português. De entre as muitas unidades museológicas criadas, as casas-museu assumem um papel fundamental, face ao seu número e função na salvaguarda do património nacional. Neste texto procuramos dar resposta a diversas questões, nomeadamente contribuir para a definição teórica destas estruturas museológicas, analisando os seus diversos componentes, formas de estudo e as suas diferentes origens. A gestão, a comunicação e todos os outros serviços de índole museológica tornam-se mais complexos quando nos deparamos com estruturas que necessitam ser conservadas num estado próximo do original, no sentido de apresentarem a personalidade homenageada dentro do seu contexto habitacional e quotidiano. The Portuguese universe of museums has been expanding during the last years. Among the museums that have appeared recently, the museum-houses assume a particular role due both to its number and function as guardians of the national heritage. In this article we try to give an answer to several questions, namely to contribute to define theoretically these museum structures by analysing their numerous components, study approach ad different origins. Management, communication and all other museums’ services become more complex when we are handling with structures that need to be preserved close to their original condition, since the living and daily context of its former owners must be taken into account.

PALAVRAS-CHAVE: Casa-museu,museologia,comunicação,inter-relação,personalidade, vivência, quotidiano, memória, património.

Director do Museu de Vila do Conde | antonio.ponte@cm-viladoconde.pt

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“No, por Dios! Mi casa es mi casa, nada más, una casa en la que he procurado que se vean cosas bellas! Pero un museo, no!...” (LOPEZ REDONDO 2001: 40) Life is not reproduced in a house museum, But it is just represented…” (CABRAL 2000: 37)

1. Contributos para uma definição de Casa-Museu

N

os últimos anos, tem-se assistido a uma forte expansão do tecido museológico português. De entre as muitas unidades museológicas criadas, as casas-museu assumem um papel fundamental, uma vez que o seu número tem aumentado, a sua função se tem mostrado fundamental na preservação de parcelas consideráveis do património nacional. Destinadas à celebração de uma determinada personalidade ou grupo que se destaca no seu tempo, através de actos, trabalhos ou criações, estes espaços do quotidiano, considerados, por muitos, instituições de menor importância, permitem a percepção directa da forma de viver, dos gostos, da educação, assim como do enquadramento sociocultural de um determinado indivíduo. Muitos conceitos são apresentados: uns colocando a tónica no edifício; outros, no ambiente; aqueloutros nas colecções e ainda alguns na vivência de uma determinada pessoa ou grupo social. Provavelmente, ou certamente, perante as muitas ideias a apresentar, a simbiose entre múltiplos factores dará a resposta à necessidade de chegar a um conceito com o máximo de objectividade, assim como à definição das funções, importância e eficácia destes museus que começam a ser frequentes desde o século XIX, como nos refere Pedro Lorente (LORENTE LORENTE 1998: 31), eventualmente substituindo os gabinetes de curiosidades, vindo nos últimos anos a ser questionados no que concerne à sua função e eficácia junto do público, face à transmissão de conhecimentos e à valorização das colecções e informações intrínsecas que possuem. Antes de avançar para a definição daquilo que se nos afigura poder vir a considerar-se uma casa-museu, é fundamental reter a nossa atenção na expressão casa-museu, composta por duas palavras em justaposição, dois conceitos com dimensões completamente opostas quanto à sua abrangência, em relação à sua extensão pública e privada. Estamos perante o conceito casa, que tem um sentido privado, pessoal, de refúgio e intimidade, ao qual se junta o conceito museu com toda a sua carga e dimensão pública. Um museu é criado para receber pessoas, transmitir conhecimentos e interagir com o público, a que se associa a função de conservar, estudar e divulgar as colecções. No âmbito das casas-museu, a própria casa é, também, uma importante e imponente peça do museu a preservar e estudar.

A casa-museu deverá reflectir a vivência de determinada pessoa que, de alguma forma, se distinguiu dos seus contemporâneos, devendo este espaço preservar, o mais fielmente possível, a forma original da casa, os objectos e o ambiente em que o patrono viveu1 (PINNA 2001: 4), ou no qual decorreu qualquer acontecimento de relevância, nacional, regional ou local, e que justificou a criação desta unidade museológica.

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Ao reproduzir estes ambientes e estando abertas como se de uma casa se tratasse, estas unidades museológicas vão musealizar o dia-a-dia (PAVONNI 2001: 6). É este ambiente doméstico representando a maneira como alguém viveu, que reflectirá aspectos tão pessoais, como, por exemplo, a forma de se situar no mundo, transportando os visitantes para os tempos desse quotidiano que suscita interesse e curiosidade2. Ao chegar à casa-museu, o visitante deparar-se-á com o quotidiano da pessoa que dá nome à instituição, percebendo determinada maneira de pensar, de agir, inteirar-se-á do seu ambiente familiar, da sua época, da sua economia, da sua envolvência social e educativa. Todas estas variantes que formam a personalidade dos indivíduos estarão presentes no seu espaço habitacional e doméstico. Este será uma criação de autor, verdadeiro teatro da vida, de quem nessas casas habitou e aí criou o seu cenário diário (BANN 2001: 20). Assim, quando se entra numa casa-museu, para além dos sistemas de vida doméstica, observando os objectos na sua forma original ou próxima dela, penetra-se directamente na intimidade de alguém, uma pessoa muitas vezes introvertida e que nunca pensou nesse espaço para ser fruído por estranhos. A memória pessoal, reflectida no espaço privado, transforma-se em memória colectiva, o espaço pessoal torna-se espaço público, procurado por quem pretender chegar ao íntimo de uma certa personalidade.

Numa casa-museu os objectos têm mais do que o seu valor artístico ou utilitário, valem pelo contacto que estabeleceram com determinada personalidade, não devendo ser estudados desenquadrados da vivência da pessoa que os possuiu. Assim, entende-se que numa casa‑museu deve, sempre que possível, tentar estabelecerse a relação do objecto com a função desempenhada, tendo em conta o respectivo contexto (LOPEZ REDONDO 2002: 42; BOGAARD 2002:17)4. Contacta-se a casa e uma determinada época, período em que certa personalidade viveu5. Poderá observar-se como se organizava o espaço, a vida doméstica em determinada sociedade ou cultura, a época em que se integra a vivência do homem que dá nome à casa-museu (BUTCHERYOUNGHANS 1993: 204; LORENTE LORENTE 1998: 30; LOPEZ REDONDO 2002: 41). Nestas estruturas museológicas apresentam-se histórias dinâmicas, faz-se da história da casa e das suas vivências um puzzle que o visitante vai construindo à medida que vai evoluindo pelo espaço (ELLIS 2002: 67). A casa-museu vai oferecer um conjunto de interpretações, narrativas, símbolos e relações do local com a pessoa que o habitou. A casa-museu é assim o teatro da vida, a visão do mundo, necessariamente fragmentária, de alguém que se transmite pelo seu espaço e pelos objectos que possuiu, numa simbiose de acções e funções desenvolvidas e que estão presentes no ambiente em causa.

2. O que apresentam as Casas-Museu

3. Motivos para a criação de Casas-Museu

Numa casa-museu a colecção será o conjunto de objectos do quotidiano doméstico existente em qualquer habitação, ligados ao gosto pessoal do patrono e peças de artes decorativas, sendo possível determinar acervos mais ou menos valiosos, mais ou menos eruditos, de acordo com o gosto, interesses e situação financeira do patrono3.

Motivos de vária ordem podem ser avançados para justificarem a criação de casas-museu, uns mais de carácter pessoal, outros mais de índole institucional, que passam desde a auto-homenagem até ao enriquecimento do sentido histórico de um país.

Outros objectos também poderão estar presentes nestas instituições, mesmo nada tendo a ver com o quotidiano doméstico, nem com o universo artístico. No entanto, fazem parte da definição do gosto pessoal e terão motivado a curiosidade dessa personalidade. É de certa forma coerente a presença de objectos relacionados com a vida profissional das pessoas que dão o seu nome à casa-museu. As tipologias apresentadas permitem definir algumas colecções: objectos de uso doméstico quotidiano, as alfaias domésticas, objectos de utilização profissional, objectos de arte, colecções etnográficas que podem resultar de uma certa organização social local ou de uma recolha efectuada, conjuntos bibliográficos especializados ou de bibliofilia.

Ao celebrar uma personalidade, legitima-se a memória pessoal de alguém, operando a passagem do domínio privado para o público (MARTINS 1996: 71), consagrando‑se uma determinada memória (CABRAL 2003: 60). A musealização da casa de um determinado político, de um escritor ou artista de qualquer área poderá acontecer face à enorme projecção obtida na época em que viveu e/ou devido à influência que exerceu sobre as gerações vindouras. É legítimo que essa figura seja usada como um símbolo de uma nacionalidade, alguém que agregue em si a vontade de um povo, o seu orgulho. Isto determina que se pretenda criar uma estrutura onde o público possa tomar contacto com essa personagem, onde se perceba a sua realidade, a sua forma de vida, com o objectivo de o conhecer melhor e de consigo criar laços de identidade.

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Fig. 2 Jardim Casa de José Regio, Vila do Conde

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Existem situações em que se verifica uma séria necessidade de auto-homenagem e de perpetuação da própria memória (MARTINS 1996: 71). Esta ideia associa-se à de organização da casa-museu pelo próprio patrono. Implícita a esta necessidade de auto-homenagem pode-se, ainda, agregar a eventual necessidade de reconhecimento social, assim como de um determinado status social (CABRAL 2003: 60). A criação de casas-museu relacionadas com figuras públicas pode ainda pressupor outras razões. Estas instituições são usadas para veicular ideias e ideais de alguém ou de determinado regime (CABRAL 2003: 62). Devido ao seu grande valor simbólico, uma vez que podem representar alguém que identifique uma nação, estas casas foram e continuam a ser usadas pelas ideologias dominantes como símbolos de identidade nacional e para legitimar ou negar a validade de alguns regimes. Pode aceitar-se como justificação para a criação de casasmuseu o facto de determinado indivíduo, que tendo reunido ao longo da sua vida uma significativa colecção de objectos, de arte ou mesmo etnográficos, use a figura da casa-museu como forma de preservar o seu acervo intacto. Estes espaços podem também ser instrumentos utilizados pelas classes dominantes com o objectivo de imporem os seus modelos culturais, a sua visão da história, recorrendo, para o efeito, a altas personalidades, inquestionáveis face ao seu reconhecimento. Através das suas casas e das ideias aí implícitas, tentam influenciar o pensamento e a conduta de um grupo de pessoas que visita uma casa-museu (CABRAL 2003: 62; FACOS 2003: 66).

4. Casas-Museu – Um discurso em directo Espaço | Objecto | Personalidade / Relação Espaço | Visitante Devido ao seu valor simbólico, as casas-museu passam mensagens de certa forma simplificadas, uma vez que o visitante as pode percepcionar directamente, através do contacto visual com determinado cenário (PAVONNI 2001: 19; BUTCHERYOUNGHANS 1993: 207). Simultaneamente, despertam memórias e sentimentos devido à atmosfera envolvente: ao visitar uma casa-museu, o público está a entrar directamente na história do homem (LEONCINI 1997: 9), da família ou de um determinado grupo. Esta intromissão tão directa faz com que as casas‑museu sejam um instrumento de forte poder evocativo e comunicativo, de pessoas ou acontecimentos (MARTINS 1996: 71; VERBRAAK 2001: 29). A casa apresenta a personagem tal e qual ela é, ou a forma como esta quer ser conhecida (LEONCINI 1997: 10).

São evocados hábitos, pessoas, períodos, memórias, todo um património material e imaterial, através das relíquias de uma vida que se esconde dentro das paredes de um edifício (PAVONNI e SELVAFOLTA 1997: 32). É esta memória pessoal que funciona como elemento aglutinador do trabalho de uma casa-museu. Neste tipo de museu, mais do que apresentar o quadro de um pintor, o livro daquele escritor, o mobiliário, deve-se contar a história do homem, grupo ou acontecimento, numa inter-relação de histórias que tornam as casas-museu muito importantes do ponto de vista educativo. Evoca-se o passado de um país, através da exposição de alguns dos seus mais ilustres Homens (WEST 1999: 50; PALMA 2001: 43), contando histórias através de espaços domésticos. As casas-museu são instrumentos de comunicação altamente relevantes (GORGAS 2002: 34). A mais elementar forma de comunicação surge nestas instituições através do seu próprio espaço, do seu conteúdo e ambiente6. Porém, no sentido de credibilizar as mensagens e a forma como estas são transmitidas ao público, são exigidos esforços suplementares no sentido de estabelecer um contacto mais eficaz com o público7. Existem diferentes tipos de casas-museu, tendo cada uma a sua significação cognitiva específica, o que implica, eventualmente, formas de transmissão diferenciada (PAVONNI 2001: 16). A casa-museu vale pelo seu conteúdo, a sua vivência, a personalidade que se reflecte num espaço. Se se proceder a restauros ou intervenções que alterem o espaço, pode-se falsear a mensagem (LEONCINI 2001: 49). As novas tecnologias são hoje uma preciosa ajuda no sistema de comunicação das casas-museu: CD-ROMs, DVDs, audioguias, diaporamas, entre outros, são mecanismos que, postos ao serviço da instituição, podem contribuir para o seu sucesso (BRYANT 2001: 30; CABRAL 2001: 36; ZANNI 2002: 88-89). O uso das novas tecnologias e de outros instrumentos de comunicação exige um grande esforço na produção de conteúdos de qualidade. A comunicação entre a casa-museu e o seu visitante é um elemento fundamental para que o conhecimento se transmita, se credibilize e se valorize a acção da instituição (PIATT 2002: 239). Esta é uma das linhas de acção essenciais nos museus, tornando-se determinante nas casas-museu, devido às suas especificidades. Somente com um sistema de comunicação desenvolvido as casas-museu deixarão de ser consideradas instituições menores ou sem interesse para a generalidade das pessoas. Desenvolvendo novos caminhos, conseguir-se-á a afirmação destas instituições, tornando-as atractivas, apelativas e fundamentais no domínio cultural.

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Fig. 4 Quarto Casa de José Regio, Vila do Conde

Fig. 5 Sala de jantar Casa de José Regio, Vila do Conde

Do nosso ponto de vista a evolução das casas-museu estará na sua capacidade de promoverem actividades culturais, relacionadas como o seu patrono, motivadoras para os diferentes públicos. Apesar de, como referimos, as casas-museu poderem viver da sua estrutura, da sua colecção e da personalidade tutelar, entendemos que, por exemplo, a associação de edifícios anexos, onde se instalem centros de investigação ou de documentação, com salas de exposições temporárias, espaços polivalentes podem ser uma mais valia para a instituição, no sentido da sua maior rentabilização cultural e turística. De entre as muitas especificidades das casas-museu, a ligação entre contentor (casa) e o conteúdo (objectos e vivência) é uma das características que marca de forma significativa estas estruturas (PAVONNI 2001: 17). A casa‑museu pode viver só dos seus materiais originais, não necessitando de uma integração constante de acervo. Os seus objectos não valem pela sua unidade ou raridade, mas pelo conjunto e pela relação com aqueles que habitam ou habitaram a casa8 (PINNA 2001: 4), simbiose que se transforma em documento, permitindo que a partir da sua interpretação seja produzido determinado conteúdo informativo, que se transformará em conhecimento para todos aqueles que visitarem a instituição museológica. No sentido de haver coerência, e para que a casa-museu transmita uma história verdadeira e consistente, é fundamental uma grande convergência entre o móvel (as colecções),

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o imóvel (a casa) e o imaterial (a memória e a personalidade do homenageado). Em paralelo à relação Homem | Espaço verifica-se a relação Espaço | Objecto (LEHMBRUCK 2001: 60). Alexandra Araújo (ARAÚJO 2004: 18) aponta algumas diferenças essenciais entre um museu generalista e uma casa-museu apresentando particularidades muito próprias no domínio dos conceitos: “Uma Casa-Museu é antes de mais um museu. Mas uma observação mais atenta permite-nos evidenciar alguns elementos distintivos das Casas-Museus, nomeadamente a memória pessoal e os seus suportes materiais: o edifício e a sua envolvente (constituindo os bens imóveis) e a colecção (os bens móveis), documentos tangíveis da personalidade e do pensamento do indivíduo. Estes elementos assumemse como um todo indissociável, onde cada elemento estabelece um jogo de relações de influência recíproca.”. Também Ana Margarida Martins defende a relação e interacção destes três factores como elementos distintivos da casa-museu e determinantes para o verdadeiro conhecimento do patrono, onde todos os constituintes têm um papel importante e imprescindível a desempenhar (MARTINS 1996: 67). Como anteriormente foi referido, o valor do objecto afere‑se precisamente pela relação que este teve com o espírito de quem o fruiu (GORGAS 2002: 33), a colecção não é o único nem supremo elemento, mas um elemento


Fig. 6 Quarto de José Regio 1 Casa de José Regio, Vila do Conde

Fig. 7 Sala das Alminhas Casa de José Regio, Vila do Conde

igual na interpretação, devendo caminhar-se no sentido de se entender a relação entre o tangível e intangível desses espaços9. As casas-museu devem contar histórias da vida doméstica, as quais ligam pessoas, eventos, coisas, problemas e soluções (DONNELLY 2002: 4). A relação que o acervo estabelece com os seus proprietários permite-nos concluir que os mesmos funcionam como uma projecção desses indivíduos. A busca de conhecimento sobre determinada figura é o motor para a visita à casa-museu, o visitante procura nesta instituição formas de vida de alguém que admira. As peças que vê aparecem integradas num cenário mais complexo, num todo onde a vivência, a casa e o acervo se relacionam e espelham aquele que habitou esse local. Estabelece-se na casa-museu uma simbiose de equilíbrio entre objecto, casa e homem. A afirmação de Lázaro Galdiano, “No, por Dios! Mi casa es mi casa, nada más, una casa en la que he procurado que se vean cosas bellas! Pero un museo, no!...” (LOPEZ REDONDO 2001: 40), mostra que a sua casa, no seu conjunto, reflecte um modelo de beleza pessoal, estando este conceito subjectivo de beleza muito presente em casas deste tipo, onde se misturam, muitas vezes, obras de arte tão diversas. Estes objectos, com os quais contactamos, estiveram directamente presentes no evoluir da História de alguém, de um grupo ou de um país, tendo interagido com aqueles que protagonizaram essa mesma História.

As casas-museu são lugares especiais. O visitante sente o fascínio de se intrometer no espaço íntimo e privado de outrém (ARAÚJO 2004: 18). Amiudadas vezes sente-se grande prazer em visitar uma casa-museu, por se estar no interior de uma casa, local habitado, e não de um museu clássico (LEHMBRUCK 2001: 60). A observação das colecções processa-se num contexto habitacional que permite o estabelecimento de relações com a actualidade e potencia a forma de observação dos objectos10. Há outros estímulos que motivam a visita a uma casa‑museu. A vontade de conhecer mais profundamente determinada pessoa ou a forma de viver de um certo grupo, num certo espaço (PALMA 2001: 43). A visita à casa-museu vai permitir aprofundar o conhecimento sobre algo ou alguém, com base num ambiente familiar, privado e íntimo (BUTCHER-YOUNGHANS 1993: 6). Ao entrar na casa-museu, devido ao seu carácter de intimidade, o visitante vai sentir o despertar de sentimentos e memórias, sobre a vida pessoal do homenageado11. Também já se referiram as casas-museu como elementos de manipulação das mentalidades, pois a forma como estas são criadas e a relação que se estabelece com o patrono podem levar o visitante a apreciar, negar ou reflectir sobre um determinado sistema político, económico ou social12.

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Fig. 8 Sala de Exposições Temporárias - Centro de Documentação Casa de José Regio, Vila do Conde

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Na casa-museu, o visitante encontra o palco da realidade onde lhe são oferecidas narrativas, interpretações, símbolos e relações. Ao encontrar um cenário perfeito e integral, o público sente um elemento humano de fácil compreensão, aproximando a instituição pública do universo particular do visitante (LEONCINI 2001: 50).

5. Os requisitos de uma Casa-Museu O desenvolvimento da nossa investigação foi sedimentando a possibilidade de estabelecer-se a definição de casa-museu, fundamentada na existência de um espaço de habitação com o seu acervo móvel, elementos que foram fruídos, pelo menos por algum tempo, pelo patrono da instituição, indivíduo ou grupo, reflectindo a sua personalidade, formação cultural e, eventualmente, ideológica, que deve manter-se, o mais possível, no seu estado original. Todavia, podem ainda considerar-se aquelas unidades museológicas representando ambientes domésticos, que contaram com o apoio do homenageado na sua organização ou que resultaram de processos de investigação, permitindo, desta forma, retratar ambientes domésticos específicos. Para além destas especificidades a casa-museu deve dar cumprimento ao serviço de cariz museológico implícito na definição do ICOM. Porém, para tentar conhecer-se o entendimento da comunidade museal portuguesa, foi solicitado a um conjunto de museólogos a colaboração, através da apresentação de uma definição do que cada um entendia ser uma casa-museu e o que esperavam ver quando visitavam uma instituição museológica deste género. A globalidade das respostas vai no sentido de identificar a casa-museu como o espaço onde viveu uma personalidade que se distinguiu numa determinada área e que se rodeou de objectos de acordo com os seus gostos. Nas respostas recebidas, apresentam-se-nos sempre os seguintes conceitos: casa, bens móveis, personalidade e vivência. Estas casas permitirão conhecer o modo de vida de alguém, são evocativas da actividade de uma certa pessoa, devendo, por isso, ser preservadas fielmente como no tempo do seu patrono. A vontade de contactar com determinada realidade específica é o motor que determina a visita a estas unidades museológicas, procurando-se o intimismo que só uma unidade museológica deste tipo pode dar. Foi, para nós, essencial definir quais as estruturas museológicas que são verdadeiras casas-museu no contexto nacional e investir no seu modo de funcionamento, a fim de não mais serem consideradas amorfas e passadistas. Exige-se organização a uma estrutura museológica, respostas, dinamismo, novas tecnologias de informação.

Analisaram-se instituições criadas ao longo do tempo e às quais foi atribuída a terminologia de casa-museu, por as mesmas serem dedicadas a uma personalidade que se destacou numa área da vida pública, tanto no domínio cultural, político como científico, de âmbito internacional, nacional, regional ou local, e noutros casos, por serem representações de quotidianos de um determinado período ou região, com objectivos de perpetuação da memória, de uma obra ou de uma colecção. Todavia, muitas delas não apresentam marcas de vivência efectiva, pelo que deverão dar origem a uma instituição museológica de outra ordem, algo que também é demonstrado pelo seu modo de funcionamento, as suas valências de trabalho, os seus objectivos. Quando se estabeleceram os pressupostos no sentido de definir quais as instituições museológicas que se poderiam enquadrar no domínio das casas-museu procurou aferir-se sobre a originalidade, tanto do edifício como da decoração. A sua definição pressupõe que estas se mantenham, o mais possível, de acordo com a vontade do homenageado, ou que as alterações sofridas não sejam de tal forma que adulterem a sua imagem inicial. Os dados estudados são claros, vão ter influência e revelar-se essenciais, quando se estabelecerem as tipologias das casas-museu e das outras unidades museológicas. A maioria das respostas do inquérito que desenvolvemos, indicam que as decorações e os edifícios foram alterados, verificando-se ainda um significativo número de realidades que mantêm espaços originais ao lado de outros que sofreram alterações, no sentido de, eventualmente, ser prestado um melhor serviço ao visitante. Outro vector determinante para análise e classificação destas instituições museológicas como casas-museu é o facto de apresentarem espaços domésticos, originais ou recriados, que documentam o tipo de vida doméstica do patrono. É através da observação dos espaços por onde circula que se tenta apreender a sua personalidade, os gostos e o modo de pensar de quem habitou naquele lugar e desta forma responder aos desejos de “voyeur” de uma parte do público que visita a casa-museu. Os dados de que dispomos permitem-nos aferir que nem todas as unidades museológicas apresentam espaços domésticos, íntimos ou sociais nas suas estruturas organizacionais e expositivas, não se enquadrando, desta forma, no âmbito das casas-museu segundo o entendemos. Para além do exposto, não se deve deixar de equacionar que algumas das unidades museológicas que apresentam espaços domésticos, estes não se relacionam com nenhuma personalidade em concreto, sendo antes recriações dos

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responsáveis pela criação dos museus, para desta forma apresentarem ao publico espaços representativos de determinada época ou região. A maior predominância de instituições onde se verifica a presença de espaços quotidianos, domésticos e sociais, com um relacionamento directo entre o patrono e a casa, assim como com a colecção é no âmbito das casas-museu tuteladas pelo IMC, Câmaras Municipais e Fundações, as quais apresentam uma actividade museológica mais desenvolvida. Pela observação dos dados referentes à organização do espaço museológico, na sequência de informação obtida, constata-se que os patronos nem sempre estão implicados na criação da casa-museu. Para além deste facto, muitas unidades museológicas deste tipo vêm, ao longo dos anos, a sofrer remodelações e beneficiações que vão sucessivamente alterando o espaço original. As alterações aos espaços de base, vieram, como se referiu, criando uma significativa adaptação das áreas a novas funcionalidades, no sentido de ampliar as áreas de exposição, criar outros serviços ou actividades. Estes novos espaços, segundo se pode determinar pelos dados recolhidos situam-se, em algumas unidades museológicas, nas áreas domésticas originais, ou seja, no seio da casa-museu. Noutras situações, segundo se entende, mais correctamente, em edifícios que se anexam ao primeiro no sentido de ampliar a área e a capacidade de dar novas respostas às exigências do trabalho museológico contemporâneo.

6. Proposta de classificação das Casas-Museu em Portugal Tendo em conta a dificuldade em enquadrar as casas-museu portuguesas no âmbito das propostas de classificação internacional estudadas, é nosso objectivo contribuir com um conjunto de ideias que possam apoiar a comunidade museal nacional a classificar as casas-museu nas suas várias especificidades. De seguida, apresentaremos as definições equacionadas e algumas casas-museu que podem enquadrar cada uma das categorias.

Casa-Museu12 Categoria 1 Casa-Museu Original É uma unidade museológica localizada num edifício onde residiu, por um determinado período de tempo, mais ou menos longo, a personalidade que se pretende homenagear, preservando, o mais fielmente possível, não só o seu aspecto arquitectónico original, mas a decoração dos espaços, onde os objectos devem ser conservados, sem prejuízo da sua conservação nos locais onde foram deixados pelo patrono, documentando assim uma forma de vida, uma personalidade, um certo gosto, permitindo um contacto directo entre o visitante, a figura que habitou esse lugar e as colecções que o integram. Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves IMC Casa-Museu Manuel Mendes IMC – Museu do Chiado Casa-Museu Fernando de Castro IMC – Museu Nacional Soares dos Reis Casa-Museu Leal da Câmara Câmara Municipal de Sintra Casa-Museu Egas Moniz Câmara Municipal de Estarreja Casa-Museu dos Patudos Câmara Municipal de Alpiarça Casa-Museu Pintor José Cercas Câmara Municipal de Aljezur Casa-Museu Teixeira Lopes Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia Casa-Museu José Régio -VC Câmara Municipal de Vila do Conde Casa-Museu José Régio -P Câmara Municipal de Portalegre Casa-Museu Abel Salazar Associação Divulgadora de Abel Salazar Casa da Malta – MN do Vinho Instituto da Vinha e do Vinho Casa-Museu Padre Belo Santa Casa da Misericórdia do Crato Casa-Museu Marieta Solheiro Madureira Fundação Solheiro Madureira Casa-Museu Bissaya Barreto Fundação Bissaya Barreto Casa-Museu Eng.º António de Almeida Fundação Eng.º António de Almeida Casa-Museu Dr. Horácio Bentes Gouveia Particular – Dr. Américo Soares

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Categoria 2 Casa-Museu Reconstituída

Categoria 3 Casa-Museu Estética / Colecção

Estas casas-museu podem localizar-se num edifício onde a personalidade homenageada tenha vivido ou num outro onde se reconstituem os ambientes e a decoração original, recorrendo-se, para isso, a colecções e objectos dessa personalidade ou outros que lhes sejam semelhantes, sendo esta montagem baseada em indicações fornecidas pelo patrono ou fruto de um processo de investigação que permita conhecer de que forma se organizavam os espaços domésticos da figura tutelar que se pretendem reconstituir.

São casas-museu que se localizam nos espaços de vivência do homenageado, sendo, todavia, o seu principal objectivo apresentar as colecções que este reuniu ao longo da sua vida, não sendo a tónica essencial colocada no conhecimento da personalidade do patrono, mas nas suas colecções. Assim, em muitos casos, a decoração pode ser alterada com vista a uma melhor percepção do acervo exposto, mantendo, porém, a organização ao longo dos diferentes espaços domésticos.

O objectivo é que se percepcionem e se possam contactar os espaços íntimos e sociais do quotidiano da personagem que se ilustra na casamuseu, as suas colecções, os seus gostos e a sua personalidade. Apesar de não serem espaços originais, devem representar, fidedignamente, os mesmos, facilitando, desta forma, o contacto directo com a figura homenageada no espaço. Casa-Museu Guerra Junqueiro Câmara Municipal do Porto Casa-Museu de Camilo Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão

Estas unidades museológicas dão um contributo essencial na divulgação, conservação das colecções e na preservação da unidade das mesmas, evitando que estas se dispersem entre herdeiros ou em vendas diversas, quando não existam sucessores. Casa-Museu Soledad Malvar Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão Casa-Museu Frederico de Freitas Direcção Regional dos Assuntos Culturais da Madeira Casa-Museu D.ª Maria Emília Vasconcelos Cabral Fundação D.ª Maria Emilia Vasconcelos Cabral Casa-Museu Nogueira da Silva Universidade do Minho

Casa-Museu Fernando Namora Câmara Municipal de Condeixa-A-Nova Casa-Museu João de Deus Câmara Municipal de Silves Casa-Museu Ferreira de Castro Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis Casa-Museu Bibl. Aquilino Ribeiro Fundação Aquilino Ribeiro

Categoria 4 Casa-Museu de Época “Period Rooms” Estas casas-museu organizam-se em espaços de vivência originais ou noutros que recriam espaços íntimos e sociais do quotidiano doméstico do patrono ou sem referências pessoais específicas, recorrendo a colecções ou acervos do homenageado. A exposição é organizada com o objectivo de transmitir conhecimentos sobre tipos de decoração ou formas de vida em determinada época. A decoração poderá ser original ou reconstituída, podendo promover-se no mesmo edifício a apresentação de várias épocas, sendo, assim, criados vários “period rooms”. Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio Câmara Municipal do Porto Casa-Museu de Monção Universidade do Minho

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Ao analisar a informação referente a estas instituições museológicas, nomeadamente as tutelas dominantes no universo das casas-museu, constata-se que as casas‑museu originais se encontram, predominantemente, no âmbito tutelar das Câmaras Municipais, uma vez que estas recebem legados e doações de personalidades locais, às quais pretendem prestar homenagem, como forma de valorização da localidade, afirmando-se como o berço ou a localidade escolhida para residir por alguém famoso, preservando intacta a sua residência. Por outro lado, pessoas que desenvolveram colecções ao longo da sua vida, umas de grande importância patrimonial, a par de outras de interesse relativo, procuram garantir a salvaguarda dos seus acervos através da doação às autarquias locais, às quais deixam um conjunto de cláusulas de salvaguarda, no sentido de serem mantidos os espaços e as colecções tal como os doadores as deixam. As Câmaras Municipais são sempre muito sensíveis a estes legados, os quais são muitas vezes alvo do controlo das populações locais, o que obriga a um cuidado especial a estas unidades vigiadas pelos concidadãos da terra.

Notas 1 A investigação permitiu a compilação de um conjunto de definições de casa-museu, as quais permitirão, certamente, apresentar um enunciado que agrupe os principais conceitos por forma a determinar-se o que de facto é uma casa-museu: “The historic house is certainly an incomparable and unique museum in that it is used to conserve, exhibit or reconstruct real atmospheres which are difficult to manipulate […] The historic house museum is unlike other museum categories because it can grow only by bringing together original furnishings and collections from one or other of the historic periods in which the house was used.” (PINNA 2001: 4)

“More than a monument that celebrates a lost past, a historic houses is seen as a place where people have lived out their life.” (GORGAS 2001: 10) “Una casa-museo es un ámbito doméstico abierto al público como testimonio ejemplar de la decoración de interiores de una época o como homenaje a alguien que por alguna razón está relacionado con ella.” (LORENTE LORENTE 1998 : 30) “Les musées consacrés à un artiste distinguent l’œuvre d’un créateur, ils en retracent la genèse, ils évoquent le contexte dans lequel elle a été crée. ” (WHITTINGHAM 1996: 4) 2

As casas-museu reconstituídas, mais uma vez, gravitam em torno das Autarquias e das Fundações, reconstituindo espaços de vivência quotidiana de uma figura ilustre da terra ou do Epónimo da Fundação, sendo os objectivos semelhantes exibidos nas casas-museu originais. As casas-museu que apresentam colecções situam-se no âmbito de quatro tipos de tutelas que promovem um trabalho museológico de qualidade, visando preservar a memória, mas, sobretudo, os acervos legados pelos homenageados, conservando objectos artísticos de grande qualidade. As casas-museu que recriam épocas salvaguardam colecções que, para além da sua importância intrínseca, originam instituições museológicas organizadas pelos homenageados ou por sua indicação, recriando períodos cronológicos, podendo dar origem a um conjunto diversificado de “period rooms” no mesmo espaço físico, distribuindo-se, nesta amostra, do ponto de vista da tutela entre Câmaras Municipais e Universidades. O universo específico das casas-museu é, como se pode observar, complexo e merecedor de estudos nas suas diversas valências. Procuramos contribuir para o seu estudo e para a sua modernização apontando metas e formas de análise. Esperamos abrir portas para outras investigações sobre esta temática e complementar outras já realizadas.

O exemplo apresentado materializa a perspectiva de que a casa e, posteriormente, a casa-museu, é fruto da personalidade que a criou e habitou, pois as peças apresentadas e com as quais conviveu quotidianamente demonstram os seus gostos e preferências. “The house contains some very beautiful objects, but also reflects the sometimes unusual taste of its founders. It shows how a wealthy couple of Swiss collectors lived in Switzerland during the twentieth century, and preferred mainly Italian furniture and objects of the eighteenth century for the “noble” and visited portions of the house, while “witnesses” of the local Swiss taste were relegated to “secret” chambers.” (ACKERMANN 2003: 49)

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Os textos que se seguem fundamentam a perspectiva de que apesar da grande diversidade e tipologias de objectos, para além do seu valor intrínseco é fundamental conhecer o seu relacionamento com o patrono da instituição. “… when instead the object’s greatest interpretative contribution is as a piece of the puzzle that, when assembled, presents settings and suggest meanings. Objects, taken collectively, give context and structure to the realities of domestic living. […] The object collection is neither the sole nor the supreme element, but a coequal component of historic house interpretation. It is integral.” (DONNELLY 2002: 2) “The object per se has no intrinsic value. The object is defined instead by its relationships with humankind, which attributes different values to it. […] In the context of the house museum, an object’s significance depends not on its stylistic, artistic or technological values, but on its capacity to be consistent with the narrative or discourse, and to transmit a message.” (GORGAS 2001: 14) “Dans le contexte de la maison-musée, la signification des objects ne dépend pas de leur valeur stylistique ou technologique, mais de leur harmonie avec une histoire ou une présentation et du message qu’ils peuvent transmettre. ” (PAVONNI 2001: 17)

4 Luca Leoncini apresenta-nos, também, a sua perspectiva na análise das casas-museu. “The heritage handed down by stately home museum is not limited to the collections shown there. It includes, as part of a consistent system, a system of signs, its paitings, sculptures, decorations, decorative arts and items of artistic craftsmanship such as doors, handles, bolts […]

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This is why people visiting a stately home museum find a vast offering of interpretations, narratives, symbols, suggestions and opportunities for striking up an immediate and personal relationship with the place and with the many genies who still inhabit it.” (LEONCINI 2001: 48) 5A

forma como se organiza uma casa-museu, nomeadamente o seu discurso expositivo, deve aproximar-se do seu estado original, no sentido de testemunhar uma vivência em concreto. Este pressuposto encontra fundamento na citação seguinte: “Now these buildings are furnished to represent an evocative “moment in time”, infused with things that can help interpret the variety of characters who lived within, their important relationships, and their activities.” (BRYK 2002: 144)

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Por entender que as casas-museu não devem ser povoadas de tabelas de legendagem e por textos explicativos, Magaly Cabral, uma das maiores investigadoras do processo de comunicação nas casas-museu, apresenta nos seus textos as razões identificadas para colmatar estas dificuldades: “Como comunicar num museu-casa? Sabemos que em todo e qualquer museu não podemos transformar suas paredes num livro, colocando grande quantidade de texto nelas. Mas as dificuldades nos parecem maiores num museu-casa que, em geral, é arrumado como era num determinado período quando alguém nele morou: quarto de dormir, sala de jantar, quarto de trabalho, etc., arrumados como teriam sido e, muitas vezes, muitos cômodos cobertos com papel de parede.”( CABRAL 1996: s/p)

12 Podemos observar um exemplo de uma casa-museu utilizada no sentido de valorizar uma reforma social que se operou e que está a ser promovida pelo Estado para dar a conhecer esse fenómeno : “La maison de Mary Ann et Thomas M’Cclintock est en cours de restauration, et l’on prévoit d’en faire le symbole de l’importance du travail de réforme des quakers pour le mouvement féministe avant la guerre civil. Chaque site donne une dimension supplémentaire à la mission centrale du parc, telle que le Congrès l’a définie dans une loi ; à savoir inspirer les visiteurs et leur apprendre ce que fut «la lutte des femmes pour obtenir des droits égaux» .“ (ROSE 2001: 32). 13

Ao analisar as definições de museus apresentadas no Relatório ao Inquérito dos Museus em Portugal, nomeadamente as definições apresentadas para os diferentes tipos de unidades museológicas existentes, entende-se enquadrar as casas-museu no âmbito dos museus especializados, pois das definições apresentadas, é nesta que melhor se enquadram estas instituições museológicas. A definição criada pelos autores deste estudo para museus especializados contempla: “museus preocupados com a pesquisa e exposição de todos os aspectos relativos ao tema ou sujeito particular...”. A UNESCO entende que estes museus são: “museus preocupados com a pesquisa e exposição de todos os aspectos relativos a um tema ou sujeito particular...” (SILVA e SANTOS 2000: 171)

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A apresentação dos estudos efectuados pela equipa, nomeadamente, no que se refere à relação espaço/objecto/patrono é a forma de comunicação que produzirá mais resultados numa casa-museu: « In a house museum, the document (object/cultural asset) is the actual space/setting (the building), the collection and the owner […] the relations established between them favour communication, allow greater interaction with space to be visited and, fundamentally, enable the possibility of appreciating a determined historic period and the society that it comprised.” (CABRAL 2001: 36)

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Mónica Risnicoff Gorgas expressa, na seguinte citação, de que modo o objecto pode ser valorizado, no momento em que se torna parte integrante da casa-museu e da sua vivência:“We are more interested in processes than in objects, and we are interested in them not for their capacity to remain pure, always authentic, but because they represent certain ways of seeing and experiencing the world and life per se…”(GORGAS 2001: 11)

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Segundo Marta Rocha Moreira (MOREIRA 2006: 310), é necessário definir “ valores de memória, relativos ao passado e valores de contemporaneidade, referentes ao presente, a aplicar ao património móvel, imóvel e ao intangível. Os primeiros conferem ao lugar valor de antiguidade, valor histórico e valor comemorativo. Os segundos apreciam esse lugar considerando o seu valor de uso, artístico novo e artístico relativo.”

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Nas casas-museu os objectos podem, em muitos casos, ser apreendidos no seu modo de utilização, contextualizados no espaço doméstico e não expostos em vitrines isolados da realidade: “ In historic houses, however, there is a tradition not only of living history, but also of displaying decorative arts collections. Visitors to houses come not only to learn about life style, but also to learn how to look at objects.” (BRYANT 2002: 23)

11

Devido ao facto de as casas-museu estarem tal como as deixaram os seus patronos, verifica-se no visitante uma sensação de regresso ao passado: “ ... the historic house museum in fact has the power to evoke and create links between the visitor and the history present in the house itself, or which it seeks to represent.” (PINNA 2001: 7)

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projectos e experiências



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Fig. 1 Museu do Neorealismo Exposição Uma arte do Povo, pelo Povo e para o Povo © MN


Fig. 2 Museu Colecção Berardo Roberto Matta © MCB

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Raquel Henriques da Silva Museus de Arte Contemporânea: uma extraordinária dinâmica No decurso de pouco mais de um ano, surgiu, em Portugal, um considerável número de museus e centros de arte moderna. Em Junho de 2006, abria ao público a Ellipse Foundation, em Alcabideche (Estoril) e, em Dezembro, o Centro de Arte Manuel de Brito, no Palácio Anjos em Algés; até ao Verão de 2007, inauguraram o Museu Colecção Berardo, instalado no Centro Cultural de Belém, a Fundação António Prates, em Ponte de Sor, o Museu de Arte Contemporânea de Elvas e o Museu do Neorealismo, em Vila Franca de Xira. Acrescentarei, a esta lista, uma inauguração de 2004: o Núcleo de Arte Contemporânea do Museu Municipal de Tomar. Embora muito distintos, em termos de história e de estratégia, eles constituem uma poderosa manifestação cultural. O que me proponho, neste artigo, é dar a conhecer estes novos museus, através de alguns aspectos comuns e outras tantas particularidades. For over a year a considerable number of modern art museums and centres have emerged in Portugal. In June 2006 the Ellipse Foundation opened its doors in Alcabideche (Estoril), followed, in December, by the Centro de Arte Manuel de Brito, at the Palácio Anjos, in Algés. Until the summer 2007 other museums emerged: Museu Colecção Berardo, settled in the Centro Cultural de Belém; Fundação António Prates, in Ponte de Sor; Museu de Arte Contemporânea in Elvas and the Museu do Neorealismo, in Vila Franca de Xira. To this already considerable list should be added an opening that has occurred in 2004: the contemporary art nucleus of the Museu Municipal in Tomar. Although being quite diverse, these institutions are a powerful cultural manifestation from the historic and strategic point of view. The aim of this article is to divulge these new museums through some common features and a number of particularities.

PALAVRAS-CHAVE: Arte contemporânea, museus privados, museus municipais, coleccionismo privado, arquitectura de museus.

Professora do Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa | rhs@fcsh.unl.pt

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Pontos de partida: o predomínio das colecções privadas

S

eis de um lado, um de outro: assim podemos agrupar os museus em análise, tendo em conta os seus pontos de partida. O núcleo de Arte Contemporânea do Museu Municipal de Tomar alberga a colecção de José-Augusto França; o Centro de Arte Manuel de Brito apresenta a colecção que Manuel de Brito foi reunindo, ao longo da sua actividade profissional de galerista (a célebre 111, no Campo Grande, Lisboa) e que a sua mulher Maria Arlete Alves da Silva e o filho Rui Brito continuam, com entusiasmo e profissionalismo. Colecção em nome próprio é também a de António Prates, constituída igualmente em tempo extenso e agora doada à Câmara Municipal de Ponte de Sor. Do mesmo modo, o Museu Berardo é a colecção do, actualmente, maior coleccionador português. Sem ostentar a clara filiação, também a Ellipse Foundation é a Colecção do Banco Privado, protogonizada por João Rendeiro, e o Museu de Arte Contemporânea de Elvas alberga a colecção de António Cachola. Do outro lado, está o Museu do Neorealismo, sonhado e impulsionado, há décadas, pela Associação Promotora do Museu e viabilizado pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira. Ele é o único cujas colecções têm proveniências diversas, envolvendo legados, aquisições e depósitos de um número impressivo de personalidades. Se pensarmos na história dos museus de arte, a preponderância de iniciativa privada sobre a pública tem, aparentemente, um amplo espaço de inscrição. A maioria dos museus nasceu desse modo, respondendo a uma característica preocupação dos coleccionadores: garantir às suas colecções a eternidade que eles não possuem, apontando-lhes uma vida pública que, em aparente paradoxo, contraria o gesto (o gosto) privado de coleccionar. Existem, no entanto, actuais diferenças de peso. Entre os seis museus cujas colecções são de origem privada, António Prates legou a colecção à Fundação que ostenta o seu nome e que, portanto, é, actualmente, a sua plena proprietária. José-Augusto França fez também uma doação ao município de Tomar, sem criar qualquer fundação mas exigindo que a colecção seja permanentemente exposta e conservada, sob orientação de um Conselho Científico, desde logo instituído e presidido por aquele ilustre historiador da arte. De outro modo, a família de Manuel de Brito, José Berardo e António Cachola cederam as suas colecções, mediante protocolos de vigência limitada, entre os dez e os treze anos, celebrados respectivamente com a Câmara Municipal de Oeiras, o Estado Português (via Ministério da Cultura) e a Câmara Municipal de Elvas que cederam as instalações e asseguram o funcionamento. Em todas as situações – e o mesmo acontece com a Fundação António Prates e o Núcleo JoséAugusto França – trata-se de colecções abertas que continuam a crescer, pela iniciativa dos fundadores e dos seus herdeiros, no que se refere ao Centro de Arte Manuel de Brito. Mas há um caso muito peculiar: o Museu Berardo onde o Estado intervém, anualmente com uma verba de 500 000 Euros para enriquecimento de uma colecção que não lhe pertence1. Talvez, por isso, esta é, creio, a única situação em que a entidade pública manifesta, no texto do Protocolo, a vontade de vir a adquirir a colecção. Em relação às colecções António Cachola e Manuel de Brito, há, por parte das autarquias envolvidas, uma forte convicção da importância patrimonial destas colecções que os seus proprietários também possuem, alicerçada em generoso empenho cívico. No entanto, nada pode actualmente garantir que deixem de ser propriedade privada. O caso da Ellipse Foundation é mais incerto ainda, pelo menos para o cidadão comum que, como acontece comigo, não dispõe senão da informação que é publicamente disponibilizada. Há por um lado, a generosidade discreta de João Rendeiro, muitas vezes exercida através do mecenato. Mas o facto de se tratar da propriedade de um banco e de, ao contrário das outras situações, não haver aqui nenhuma partilha nem de investimento nem de gestão, reforça o carácter privado da Fundação cujo teor cosmopolita sugere uma natural vontade de viagem.

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Fig. 3 Centro de Arte Manuel de Brito Vista exterior do Palácio Anjos © CAMB

No final deste primeiro tópico de reflexão, gostaria de afirmar, com clareza, que considero como absoluta positividade, merecedora de aplauso cívico, o facto das referidas colecções privadas terem encontrado uma vocação ao serviço dos públicos, independentemente de continuarem a ser propriedade privada. Sendo evidente que essa propriedade adquire assim um modo de valorização, ele é inteiramente legítimo. Apreciamos gestos imediatamente generosos como o de José-Augusto França ou António Prates; desejamos que as outras colecções os venham a ter, mas, se não seguirem esse

caminho, a disponibilização pública dos seus bens é que releva. Interessa então incentivar os organismos envolvidos a saberem negociar, com empenho e eficácia, a renovação dos contratos de depósito.

Os edifícios e o âmbito das colecções Um dos aspectos mais gratificantes dos museus em análise é a qualidade com que a sua arquitectura foi assumida, garantindo a adequada instalação das colecções.

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Fig. 4 Núcleo de Arte Contemporânea Museu Municipal de Tomar © MMT

Bem de acordo com a tradição portuguesa nesta matéria, predomina o reaproveitamento de edifícios. Em primeiro lugar, casas privadas: é o caso da Col. José-Augusto França – que ocupa uma pequena moradia no centro histórico de Tomar, com a escala característica de «casa portuguesa», discretamente requalificada e adaptada pelo arq. Jorge Mascarenhas – e da Col. Manuel de Brito, instalada no Palácio Anjos de Algés, peça de referência da arquitectura de veraneio dos arredores de Lisboa, com uma adaptação empenhada (que compreende o amplo e acolhedor parque), embora nem sempre plenamente conseguida, realizada pelos serviços da Câmara Municipal de Oeiras. A Fundação António Prates está instalada num conjunto fabril oitocentista, a Fábrica de Descasque e Moagem de Arroz, de que foram musealizados alguns espaços que

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mantêm a maquinaria in situ. Com algumas soluções menos felizes nas salas de exposição (refiro-me, sobretudo, ao mezanino que reduz, sem vantagem, o pé direito de uma sala importante) o projecto veio, no entanto, a adquirir poderosa marca própria, sob a coordenação do artista Leonel Moura que pintou os alçados de azul intenso, numa homenagem ao Alentejo e valorizando o ritmo e geometria das cantarias; no parque, nasceu um lúdico conjunto de “jardins portáteis” que envolvem o auditório e as residências para artistas, prolongando-se, no exterior, numa “parede de água” de fresca sonoridade2. Quando se atravessa a cidade, é impossível não ver este inesperado equipamento que transmuta os corpos da pretérita fábrica – decisiva para a vida económica da região durante décadas – com marcas esfusiantes da arte e das suas incertas utopias.


De modo diverso, o Museu Nacional de Arte Contemporânea de Elvas (sob o curioso nome de MACE) é também um caso notabilíssimo de reorientação de uso. O edifício setecentista foi, desde a sua edificação na primeira metade do século XVIII, reinado do Magnânimo D. João V, o Hospital e Mesa da Misericórdia da cidade, bem inserido no casario do centro histórico. Lembro-me de o ter visitado antes do início das obras e ter ficado impressionada com a grandeza da escadaria interna, anunciada na fachada pelo portal de discreto barroco alentejano, e, sobretudo, com os vestígios de um hospital de Antigo Regime, nesse tempo pré-iluminista que viu definirem-se novas tipologias arquitectónicas: hospitais, prisões, museus ou fábricas. As obras realizadas – na sequência de um concurso público amplamente participado – pelo arq. Pedro Reis (com a colaboração, ao nível do design, de Filipe Alarcão e Henrique Cayatte), sublinharam a grandeza edificatória inicial, salvaguardando, e valorizando, os vestígios que servem as novas funções, numa espécie feliz de pé de igualdade entre antigo e moderno. A majestade da escadaria, as salas de elevado pé direito, a luz filtrada pelas amplas janelas, envolvem a exposição numa dimensão aurática. Mas houve o cuidado de garantir espaços adequados para a equipa de trabalho, para os serviços educativos e para a fruição dos visitantes que, no último andar, no terraço da cafetaria, dispõem de encantatória vista sobre a cidade: as casas e as fortalezas, sob escaldante luz azul. Em relação ao Museu Berardo, não se pode, evidentemente, falar de reconversão de uso. No entanto, convém lembrar que o vasto módulo de exposições do Centro Cultural de Belém, inaugurado em 1993 (arq.s Manuel Salgado e Vittorio Gregotti) nunca havia encontrado antes destino adequado. Desde 1994, quando a colecção Berardo foi revelada, através da estratégia de Francisco Capelo, pertenci ao grupo, então bastante minoritário, dos que defenderam a sua instalação em parte do espaço expositivo do CCB. Foi, afinal, o que aconteceu mais de dez anos depois, em condições menos favoráveis para o Estado. No entanto, do ponto de vista dos públicos e de uma política afirmativa da contemporaneidade, os ganhos são imensos: há finalmente, em Lisboa, uma panorâmica relevante da produção artística de mais de meio século, marcada por algumas peças antológicas que qualquer museu do mundo desejaria. Elas respiram e espelham-se na qualidade da arquitectura, variável e eficaz, que se anuncia desde os circuitos de entrada e, em momentos muito bons (por exemplo, a actual sala do Minimalismo) dialoga com os pequenos jardins interiores. Resta referir os dois edifícios de raiz que se inscrevem em estratégias totalmente distintas. A Ellipse Foundation está instalada numa descaracterizada e problemática zona suburbana do concelho de Cascais, sem acesso digno nem fácil de identificar, não fora a sinalização, de

beira de estrada, entretanto colocada. Trata-se de um vasto armazém, integralmente reconvertido pelo talento do arq. Pedro Gadanho que o transformou numa enigmática caixa preta, parecendo ironizar o “cubo branco” definidor do ideal expositivo da modernidade3. O requinte neo-moderno do espaço fechado é uma poderosa metáfora (ou o palco conivente) da radicalidade das obras expostas que dialogam entre si com autonomia; somos, no entanto, benevolamente acolhidos e, algumas vezes sugados, como aconteceu durante a instalação de Bob Wilson. Resta o belo edifício do Museu do Neorealismo, projectado pelo arq. Alcino Soutinho, numa esquina sem profundidade do centro histórico de Vila Franca de Xira. Olhamo-lo de baixo para cima: tem algo de branco paquete modernista ali encalhado, esquinado e convidativo. A geometria é estrutura e estética mas não dominadora, traço próprio deste arquitecto que, como poucos, transforma a retórica em afectividade. Dentro, uma redonda escada central distribui-nos pelos vários andares, glosando o motivo que, nos anos do meio do século XX, Frank Lloyd Wright inventou para o Museu Guggenheim de Nova Iorque. A luz é ampla e não intrusiva, o clima festivo, as articulações de espaços, abertas pelo nosso olhar e o nosso andar, muito estimulantes. As salas suspendem-se sobre o grande vão, transmutando os clássicos percursos axiais em lateralidades ora encaixadas, ora desdobradas. Na cidade periférica à capital, ferida por ruídos urbanísticos, arquitectónicos e vivenciais, este é um raro momento de apaziguamento e de esperança. Na breve história da arquitectura de museus em Portugal, é um marco que retoma a poética do Museu Amadeo de Sousa Cardoso em Amarante, também projectado por Soutinho, então no corpo exigente de um velho convento. Todos estes museus de arte contemporânea expõem mais as incertezas do presente do que as certezas legitimadas pela História, não poucas vezes através da capacidade discursiva dos museus. Há a dimensão internacional, sobretudo no Museu Berardo e na Ellipse Foundation (e, em menor escala, na Fundação António Prates) que, ao longo do século XX, foi, em Portugal, uma penosa ausência. E há, com enfoques diferenciados mas susceptíveis de interessantes cruzamentos – nas colecções históricas de JoséAugusto França e Manuel de Brito, na produção artística e documental do Neorealismo – a circulação dos movimentos do século, entre as resistências do naturalismo aos modernismos, a figuração e a abstracção, as particularidades do surrealismo e as aberturas de campo, meios e técnicas a partir dos anos sessenta. Deste momento axial da modernidade arrancam as heterodoxias do nosso tempo, pós-moderno mesmo antes de conceptualmente o ser. Não é este o lugar adequado para salientar peças inesperadas ou outras que confirmam ou infirmam narratividades que, historicamente, não estão fechadas.

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Refiro apenas, em relação ao Museu Berardo, a importância de, pela primeira vez, podermos ver, com continuidade e extensão, obras de artistas portugueses em diálogo com grandes nomes da cena internacional4. Trata-se, pode dizer-se, de uma ruptura epistemológica que positivamente esconjura quase um século de tremendas impossibilidades e incapacidades, tanto por parte dos quase inexistentes coleccionadores, como dos organismos públicos. As colecções que os museus em análise apresentam são eclécticas e geram, como já disse, diversas possibilidades de abordagem e valorização da arte portuguesa. Há mais “jovens artistas” do que os mestres já desaparecidos ou ainda em actividade, de acordo com a cultura do momento e a exigência da rápida circulação dos produtos, na economia global em que nós e os museus nos movemos.

As linhas de trabalho: comunicação e animação A qualidade dos espaços arquitectónicos dos novos museus em análise serve, não só ao conforto das obras, dos públicos e dos lugares onde se situam, mas a dinâmicas equipas de trabalho. Há, naturalmente, diferenças substanciais de museu para museu mas também um activo adquirido comum. E faço desde já uma declaração, de interesses como se costuma dizer: tenho colegas e amigos entre os responsáveis destes equipamentos, integro o Conselho Científico do Núcleo de Arte Contemporânea do Museu Municipal de Tomar (Col. José-Augusto França, como também a tenho designado) mas tal não me impede de ser objectiva e destacar factos que são determinantes para os bons resultados existentes. O primeiro facto a considerar é que os responsáveis destes museus, com ou sem título de directores, foram criteriosamente seleccionados com um objectivo bem evidente: serem capazes de fazer articulações com a cena artística, nacional e/ou internacional, considerando o museu não um lugar exclusivo e auto-centrado mas uma plataforma de trocas culturais, sociais e políticas. Assim acontece com a Fundação António Prates, dirigida por Graça Fonseca que, há alguns anos, fez uma referencial galeria de arte em Lisboa por onde passaram muitos artistas igualmente referenciais; agora, deixou Lisboa, fixouse em Ponte de Sor com os filhos e vive concentrada no projecto, procurando ultrapassar os constrangimentos da distância e da solidão. O seu grande investimento pessoal concentra-se na formação da equipa, com recursos locais, e nos serviços educativos que servem não só as escolas da região, mas os idosos, os desempregados, os que querem reconverter-se. Não é trabalho fácil. Há muito a fazer, também ao serviço dos visitantes eventuais que

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precisam de mais informação nas sucessivas salas, quer através de legendas desenvolvidas ou de textos de sala. Outro sector que precisa de atenção, como Graça Fonseca reconhece e pretende, é o núcleo museológico da fábrica que muito beneficiaria de articulações com outros museus de indústria, ligados à história de comunidades concretas. Na minha opinião, o Ecomuseu do Seixal poderia ajudar a delinear e a concretizar o programa de trabalhos deste sector, capaz de atrair e representar um aspecto importante da memória da cidade e da região. No Museu de Arte Contemporânea de Elvas, o responsável científico pela programação é João Pinharanda, uma das figuras mais destacadas da crítica da arte portuguesa desde os anos de 1980. A escolha terá sido certamente sugerida pelo coleccionador António Cachola mas o Presidente da Câmara acolheu-o com entusiasmo, respondendo bem a um programa ambicioso que envolve serviços educativos muito activos, nomeadamente para as escolas do concelho; reconfigurações regulares da exposição permanente, sob temas específicos (é memorável a actual, “Sobre a defesa e o ataque” homenageando o património defensivo da cidade); realização de exposições temporárias no Paiol de Nossa Senhora da Conceição (albergando, em Maio, quando escrevo este artigo, Manuel Botelho); conferências com personalidades diversas; inaugurações festivas, envolvendo a cidade; exigência em pensar as insuficiências das reservas; articulação cúmplice com artistas e curadores que ali são bem recebidos, acarinhados e envolvidos. Do outro lado da fronteira, tudo há esperar do aprofundamento das relações consolidadas com o Museu Estremenho Ibero Americano de Arte Contemporânea (MEIAC), sedeado em Babajoz e dirigido por António Franco. O site é bom, embora insuficientemente actualizado, os textos de sala melhores ainda, o catálogo cumpre o que é devido, mas deverá ser mais ambicioso em futura edição, e, na pequena loja, há excelentes publicações sobre história da arte portuguesa, difíceis de encontrar nas livrarias de Lisboa… Actividade fervilhante caracteriza também o Museu do Neorealismo de que a referência incontornável é o seu coordenador, David Santos, historiador da arte, crítico e professor, convidado em boa hora pela Presidente da Câmara de Vila Franca de Xira e contando com o apoio da Associação Promotora do Museu, dirigida por António Mota Redol. Além da eficácia das exposições (organizadas em três domínios: artes plásticas, documentais e novos artistas), saliento o dinamismo dos serviços educativos e o brilhante programa de conferências, conversas, debates e leituras que, desde há um ano, tem levado, a Vila Franca, diversas personalidades da cultura portuguesa contemporânea, seniores e juniores. Peço aos leitores que consultem o actualizado site do Museu (tenho a certeza que assim vai continuar, entre o tempo da minha escrita e o dos eventuais leitores…) e mergulhem no livro


Fig. 5 Museu do Neorealismo Exposição Batalha pelo Conteúdo. Movimento neo-realista © MN

Batalha pelo conteúdo. Exposição documental. Movimento neo-realista português, publicado no dia da inauguração do museu, com centenas de páginas de documentos e ensaios que actualizam a reflexão sobre este tema crucial da nossa história próxima que não se restringe, como se sabe, às artes plásticas, envolvendo a arquitectura, a literatura, a música, o teatro e a luta política contra o Estado Novo. Tudo isso está no livro e na exposição com a mesma designação. O Núcleo de Arte Contemporânea da Câmara Municipal de Tomar nunca teve, e continua a não ter, o reconhecimento mediático que está a acompanhar a jovem vida dos museus de Elvas e Vila Franca de Xira. Sob este aspecto, aproximarse-á da situação de Ponte de Sor: trabalha-se muito bem mas não tem havido possibilidade de comunicar eficazmente

para o exterior, questão que é crucial para motivar as equipas, reforçar as estratégias e comprometer as tutelas. No entanto, o pequeno museu de Tomar ali está, oferecendo à cidade – onde há estudantes de todos os graus de ensino e afluxos turísticos consideráveis – uma visão sensível de um século de arte portuguesa, através da personalidade de JoséAugusto França que, é bom recordar, inventou e estruturou, na universidade e na crítica, este domínio cultural. A par da colecção permanente – que, muito em breve, disporá de reservas qualificadas –, realizam-se, na Galeria dos Paços do Concelho (numa das praças mais belas de Portugal!), exposições temporárias (está actualmente patente a 29ª, dedicada a Fernando Lanhas), pensadas e concretizadas por José-Augusto França e Rui Mário Gonçalves.

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Fig. 6 Fundação António Prates Fachada principal © FAP

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Creio que a qualidade deste trabalho sólido e continuado muito beneficiaria de uma rede de comunicação solidária entre estes e outros novos museus. Voltarei a este assunto no final do artigo. Os outros museus são menos susceptíveis de análise detalhada. No caso do Centro de Arte Manuel de Brito falta informação autonomizada. De modo idêntico à Col. JoséAugusto França, não possui site específico, diluindo-se na comunicação geral das respectivas câmaras municipais, bem como no seu funcionamento tendencialmente rígido. Claro que, neste caso, as figuras predominantes são Arlete e Rui Brito que estruturam a programação, através de ciclos de exposições temporárias temáticas. Mas, não podendo ali estar em permanência, seria necessário, creio eu, um rosto próprio para o museu, apostado em garantir-lhe uma centralidade na activa vida cultural do concelho de Oeiras. Precisaria, por exemplo, de rever os horários de funcionamento, alargando-os ao fim do dia, com visitas ou conferências bem divulgadas, capazes de atrair o interesse por aquela colecção magnífica que possui peças referenciais do século XX português. Em relação ao Museu Colecção Berardo, há que salientar alguns factos extremamente positivos: a pessoa do director, François Chougnet que possui um entendimento seguro e activo das potencialidades da colecção; a dinâmica das exposições temporárias que ampliam sentidos da exposição permanente e, simultaneamente, articulam o Museu com outras instituições, nacionais ou internacionais; sobretudo, a entrada gratuita ao longo do ano da inauguração, envolvendo todas as exposições, e o prolongamento do horário aos fins de semana. Mas há legítimas expectativas para os próximos anos: as novas aquisições, resultantes também do considerável contributo estatal, e a produção própria de exposições temporárias, ou, pelo menos, em parceria com relevante intervenção autoral. Resta a Ellipse Foundation. Devemos-lhe interessantes exposições de arte contemporânea de nível internacional, bem como, no seu âmbito, novos relacionamentos para a cena artística portuguesa. No entanto, embora haja serviço educativo, percebe-se, após dois anos de funcionamento, que a comunicação com o exterior não é uma prioridade. Tendo em conta a relevância das exposições, o número de visitantes é muito baixo. É verdade que a localização, excessivamente periférica, não ajuda mas se houvesse um trabalho de maior envolvimento com os serviços culturais da Câmara Municipal de Cascais, tenho a certeza que a situação poderia ser alterada, com grande proveito da formação de públicos (não só escolares!) para a arte contemporânea. Com o actual funcionamento, a Ellipse parece-me um nicho auto-suficiente, uma espécie de sofisticadas reservas visitáveis que mereceriam ser um palco mais democrático.

Pontos de chegada A importância, qualidade e dinamismo dos museus e centros de arte contemporânea que seleccionei têm uma inscrição mais vasta. Uma, sociológica, relaciona-se com a moda da contemporaneidade que, em geral, atrai mais públicos e cria mais dinamismos institucionais, embora a questão da plena fruição dos visitantes esteja longe de estar resolvida. Sinal dessa moda do presente é o facto de museus de arte antiga, ou de outros domínios, recorrerem crescentemente à aliança com a produção contemporânea. Mas é preciso reconhecer que se trata também de uma questão de custos. A arte contemporânea, sobretudo quando envolve artistas jovens, é mais barata do que a do passado. E, como se sabe, nunca nenhuma instituição em Portugal, pública ou privada, nos proporcionou exposições referenciais de mestres do passado, mesmo os mais novos deles, como os fundadores da arte contemporânea. Esta questão financeira pesará certamente nas opções das tutelas que procuram a sua espécie de audiências. Sob este aspecto, a contemporaneidade pode ser, por mais que custe aos artistas, o “circo” popular do império romano. Mas para lá da razão sociológica, mais ou menos eivada de finanças e de política, deve considerar-se o domínio museológico e a figura modelar do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Na última década, ele tem sido considerado, pela opinião pública e, em particular, os media, o museu exemplar: pela originalidade do modelo fundacional, onde o Estado é financiador (cerca de 50% do orçamento total) mas não impõe as suas constrangentes regras de funcionamento administrativo, atraindo uma dimensão mecenática única em Portugal; pela qualidade dinâmica da equipa que o gere, separando as funções científicas e as de gestão, estando estas inteiramente ao serviço daquelas e ambas bem pagas, quando confrontadas com os ordenados dos directores dos outros museus; pela opção clara, mesmo militante, pela cultura contemporânea, elegendo, muitas vezes, as suas dobras e margens menos institucionalizadas; pela batalha da conquista de todos os tipos de públicos, através de operações festivas de sedução; pela dimensão pluridisicplinar dos projectos que envolvem as artes plásticas com a música, o cinema, o teatro, a filosofia, as ciências; pelo ritmo trepidante da sucessão dos eventos que nos faz ter que ir a Serralves imensas vezes. Este é o modelo que, idealmente, os novos museus gostariam de seguir e que as tutelas, nomeadamente as municipais, pretendem implementar. Auguro-lhes sucesso substancial, caso não invertam as estratégias que estão delineadas. Quanto às equipas responsáveis pela afirmação e irradiação do trabalho destes museus, gostaria de deixar uma sugestão que, aliás, já formulei, no ano passado, num debate sobre o mesmo tema, na Feira de Arte de Lisboa.

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Trata-se da criação de uma rede de museus de arte contemporânea que, eventualmente, poderia ser um sub conjunto, com considerável autonomia, da Rede Portuguesa de Museus. Ela seria, na primeira fase, apenas um aprofundar normativo das boas relações que existem já entre os diversos museus, núcleos ou centros. Com o objectivo singelo de, a par das actividades próprias, poderem ser, atempadamente, delineadas outras a realizar conjuntamente, através das itinerâncias e das coproduções ou, meramente, da divulgação e reforço imagético. Para chegar a bom porto, os museus de arte contemporânea têm uma imensa e determinante vantagem: os interesses, cumplicidades e inesgotável empenho dos próprios artistas e, à sua volta – bem na tradição modernista – uma nova e excelente geração de curadores e críticos, alguns com vocação museológica. O trabalho de uns e outros permite percepcionar que, em Portugal, vai continuar a crescer esta tipologia de museus. Em acerto com idêntico dinamismo internacional (veja-se Espanha…) ele é um sinal definitivo que enterrámos uma cultura feita de lamentos e falsas saudades.

Reflexão final A positividade e excelentes expectativas que envolvem estes museus parece ser uma outra face, até provocatória, do desânimo das equipas dos museus mais velhos, nomeadamente dos tutelados pelo IMC, permanentemente frustradas pelas graves insuficiências orçamentais e falta de pessoal conducentes a programas de actividades amputados ou adiados. Mas as coisas não são dicotómicas nem é desejável que os campos se enfrentem como inimigos que, definitivamente, não são. Interessa, em primeiro lugar, relevar que a qualidade do trabalho museológico, realizado nos museus em análise, muito deve a exemplos, modelos e adquiridos que, desde os anos de 1980, foram renovando os museus tutelados pelo Ministério da Cultura.

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O contexto desse verdadeiro salto para a modernidade nasceu, em grande parte, da preparação e realização, sempre com assinalável êxito, de grandes eventos expositivos de que a Décima Sétima Exposição de Arte e Cultura e o Festival Europália foram os mais importantes, bem continuados com o início da renovação arquitectónica e programática de museus históricos (com os primeiros financiamentos da Comunidade Europeia), iniciativas da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e a programação de Lisboa Capital Europeia da Cultura, 19945. Implementaram-se e desenvolveram-se, nesse âmbito, formas de trabalho mais eficazes, ambiciosas e actualizadas, verdadeiro cadilho da formação de excelentes recursos humanos nem sempre depois aproveitados. Se os novos museus muito devem às boas experiências acumuladas, hoje é indispensável admitir-se que há que aprender com eles. Não em termos de métodos de trabalho, nem de rigor do entendimento das funções do museu, nem de entusiasmo e dedicação das equipas. Neste campo, afirmo-o com clareza, ou há qualidade idêntica ou ainda são ”os velhos” (museus) que podem dar lições. A diferença que existe é de modelos de governação. Os casos antes analisados são, administrativamente, mais livres, no recrutamento de pessoal, na gestão orçamental, na elaboração da programação, na resolução atempada dos pequenos problemas do dia-a-dia, na angariação e exponenciação do mecenato. Por outro lado, na maioria dos casos e por enquanto, há, por parte das tutelas, a convicção de que é preciso investir continuadamente para alcançar bons resultados. Por isso, creio que os relativos oásis de optimismo que eles sugerem só podem ter efeitos positivos no conjunto do universo dos museus em Portugal. Assim os governos se apostem em perceber que a crise hoje agravada dos museus referenciais em Portugal não se deve só há falta de recursos orçamentais. Na minha opinião, deve-se, cada vez mais, ao esgotamento dos modelos administrativos que gravemente coartam a sua indispensável iniciativa.


Fig. 7 Fundação Ellipse Instalação de Olafur Eliasson © FE

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Notas 1 Tendo, por diversas vezes, manifestado a minha discordância sobre

o acordo vigente entre o Estado e o Museu Berardo, prefiro citar aqui a opinião de João Rendeiro, o fundador da Ellipse Foundation: “O ponto mais frágil do acordo é a contribuição anual de 500 mil euros que o Estado faz para compras, no quadro daquela colecção. Acho que esse é o ponto mais frágil, no sentido em que, se o Estado não comprar a Colecção Berardo, as compras entretanto feitas - que, num horizonte de dez anos, ainda são 5 milhões de euros, o que é uma verba significativa do ponto de vista do montante que o Estado gasta anualmente em aquisições em Portugal - ficam sem lógica do ponto de vista da sua aquisição. Esse lado é talvez o mais vulnerável em termos conceptuais do acordo. O Estado poderá não exercer a sua opção de compra e durante dez anos usufrui da Colecção, em termos da sua colocação no CCB e das suas potencialidades de circulação internacional”, entrevista a Sandra Jürgens, www.artecapital.net, 30 de Maio de 2006. 2 Ver Leonel Moura, “Arte+Arquitectura” in Fundação António Prates.

Ponte de Sor. Fundação António Prates, 2007, p. 39. 3 Ver, para a definição do conceito, Brian O’Doherty, Inside the white

cube. The ideology of the gallery space. University of Califórnia Press, 1999. 4

Vale a pena citar o director do Museu Berardo, François Chougnet: “(…) Acho que é melhor fazer alguma confrontação: mostrar Lourdes Castro dentro da corrente pop, mostrar Paula Rego no contexto Bacon e Kosovski, mostrar os minimalistas portugueses dentro do minimalismo, etc. É mais interessante para o público e para a promoção dos artistas portugueses serem apresentados dentro desse contexto do que fora desse contexto, dentro de uma sala com a bandeira nacional, por exemplo…”, entrevista a Sandra Jürgens, www.artecapital.net, 15 de Maio de 2007.

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Ver, a este propósito, o meu artigo “Os museus: Histórias e prospectiva” in Século XX. Panorama da cultura portuguesa. Porto, Edições Afrontamento/ Sociedade Porto 2001/Fundação de Serralves, 2002 (coordenação: Fernando Pernes), 3º vol., p. 65-108.

Fig. 8 Museu de Arte Contemprânea de Elvas Fernanda Fragateiro, Expectativa de uma Paisagem de Acontecimento III Cortiça e ferro galvanizado, dimensões variáveis 2007

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João Brigola e Luís Raposo Entrevista ao Professor Fernando Bragança Gil Biblioteca do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, 5 de Maio de 2008

Fotografia: Carla Rodrigues, 2008

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P: Qual é a mais remota lembrança que tem do seu interesse por museus? R: Não sei exactamente. Mas desde muito novo que me interessava por tudo o que dizia respeito ao passado. Lembro-me de passar junto às janelas do r/c da Biblioteca de Évora, onde então funcionava uma secção do Museu de Évora antes da remodelação realizada por Mário Tavares Chico, nos anos 40. Essa secção encontrava-se num estado caótico em termos museológicos, destacando-se, entretanto, pela sua presença, duas carruagens. Na ida para a escola, passava sempre por lá. É a minha lembrança mais remota do interesse pelos museus. Esse interesse foi muito fomentado pelo meu pai, que era advogado e professor de Liceu, com um grande interesse pela cultura humanista com uma larga influência sobre mim nesse aspecto. Todas as vezes que vínhamos a Lisboa, a casa dos meus avós – o que sucedia no Verão – visitávamos sempre vários museus que o meu pai considerava importantes: isto à volta dos meus 10 anos. Tenho impressão que vem daí o meu interesse. P: Que lembrança guarda dos museus de Lisboa? R: Eram espaços vazios de visitantes. A primeira vivência de que me recordo associada a uma exposição com pessoas foi a do Mundo Português, em 1940. O meu pai levou-me lá várias vezes, visitei-a em pormenor; nas restantes, não se via ninguém em parte nenhuma. E como o turismo ainda era muito pouco desenvolvido, nem sequer se viam estrangeiros, ao contrário do que se passa hoje. P: Mais tarde, nos anos 50, visitou alguns museus fora do país. Visitou, por exemplo, o Science Museum, em Londres… R: A minha primeira ida ao estrangeiro foi a Madrid, em 1954. Nessa altura já tinha uma certa “embalagem” museológica. Nos quinze dias que passei em Madrid fui todas as manhãs ao Museu do Prado. Todas. Não ficava o dia inteiro porque não tinha capacidade de absorção para tanto. À tarde, fazia outras coisas, visitava outros museus, como o Museu Arqueológico Nacional (que me impressionou de maneira espantosa comparativamente com o nosso museu arqueológico), o Museu da América – dedicado às civilizações pré-colombianas – ou o Museu de História Natural, então o único museu científico de Madrid. Foi aí que vi um dinossáurio pela primeira vez. Mas o meu primeiro contacto com um museu de ciência, segundo a classificação do ICOM* (isto é, de ciências exactas, os museus de ciências naturais estão noutra secção deste organismo), foi em Londres, em 1957 (onde fui por motivos profissionais), no Science Museum: foi, para mim, um deslumbramento. Aproveitei essa ocasião para visitar, pela primeira vez, também em Inglaterra, o Museu de História da Ciência da Universidade de Oxford e, mais tarde, o Whipple Museum of History of Science da

Universidade de Cambridge: São dois museus científicos de carácter exclusivamente histórico mas em que as peças não estão contextualizadas nem tratadas do ponto de vista museográfico. É bem patente que os responsáveis pela apresentação das colecções destes museus preocupam-se mais com o valor testemunhal de cada peça do acervo, considerada individualmente, do que com a informação que possa ser extraída do seu conjunto, para a compreensão da sua inserção na marcha da ciência e tecnologia. Mas, para mim, a primeira grande revelação, no que respeita a museus de ciência, foi observada em Paris, durante a minha estadia nesta cidade onde, de 1959 a 1961, em diversas visitas, pude fazer o estudo comparativo de dois museus com concepções e objectivos assaz díspares: o Conservatoire National des Arts et Métiers (hoje, Musée des Arts et Métiers) e o Palais de la Découverte. Este último, que não adoptou a designação de “museu”, nasceu de uma encomenda do Governo da Frente Popular, em 1936, quando se estava a preparar a Exposição Universal de Paris realizada em 1937. Foi o Prémio Nobel da Física – Jean Perrin – quem o concebeu. O êxito foi tal que continuou patente ao público após o encerramento da exposição, continuando até aos dias de hoje. Em minha opinião, e ao contrário do que diz a maioria dos museólogos das ciências, aquilo que hoje é corrente designar por “centro de ciência” nasceu ali, na sua concepção original. Não foi com os americanos, por muita consideração que tenha pelo Frank Oppenheimer e as suas ideias inovadoras, que concebeu o Exploratorium de São Francisco. Mas a origem do conceito de exposição participativa surgiu com o Palais. Foi o primeiro museu em que não se exibiram peças originais. O que estava em causa não era exibir equipamento, mas explicar ideias. Ali, o que é importante não são as peças mas os conceitos físicos que elas mostram. E isso foi feito, pela primeira vez, no Palais, se bem que Berlim reivindique que começou muitos antes, mas sem a desenvoltura e a continuidade do Palais de la Découverte, com o Jean Perrin. Uma dos confrontos que tive no ECSITE [European Collaborative for Science, Industry and Technology Exhibitions], a cuja direcção pertenci entre 1992 e 1994, foi a de procurar fomentar a colaboração entre os “centros de ciência” e os museus de ciência tradicionais, como o Conservatoire de Paris, antes evocado: havia realmente (e, em grande parte, continua a haver) dois mundos separados: o mundo dos museus de ciência tradicionais e o dos centros de ciência. O que notei, logo desde o início da minha participação na direcção do ECSITE, foi que, para a maior parte dos indivíduos do ECSITE, os “centros de ciência” não seriam museus, esquecendo que ambas as instituições – “centros” e museus tradicionais – têm o mesmo objectivo através de abordagens museais distintas: o aumento da literacia científica dos seus visitantes.

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Contudo, afastavam a ideia de uma colaboração entre o ECSITE e o CIMUSET (a comissão do ICOM que agrupa os museus de ciências tradicionais) e havia quem duvidasse do interesse da adesão ao ECSITE dos museus tradicionais, mesmo grandes, como o Conservatoire National des Arts et Métiers. Não o caso do Science Museum de Londres, porque quando começou o movimento da criação dos centros de ciência, nos anos 80, este museu evitou que se fundasse outra “coisa” em Londres criando uma secção virada para a “participatividade”. Por essa razão, o Science Museum foi sempre considerado, para o ECSITE, como uma instituição “interessante”. O mesmo não aconteceu com outros grandes museus, nomeadamente os de carácter histórico (embora também, por vezes, com módulos participativos), como é o caso do Museo Nazionale della Scienza e della Tecnica Leonardo da Vinci, em Milão. Entretanto, o Conservatoire de Paris aderiu ao ECSITE. Numa reunião de directores de museus e centros de ciência integrados no ECSITE, ocorrida em Nápoles, após a adesão do Conservatoire des Arts et Métiers, então ainda dirigido por Dominique Ferriot (que esteve à frente da renovação deste museu), tive ocasião de debater, com ela, o significado e interesse da adesão ao ECSITE, numa conversa durante uma visita que fizemos juntos às Ruínas de Pompeia. Ela manifestou grandes dúvidas relativamente à situação do Conservatoire face ao ECSITE, isto é, se o museu que dirigia estaria no sítio correcto. Procurei convencê-la que assim era. Mas, de facto, a sensação que se tinha ainda nessa altura – a existência de dois mundos complemente diferentes, a dos museus de ciência, por um lado, e a dos centros de ciência, por outro – tem-se vindo a diluir, embora continue a existir. No primeiro daqueles mundos estão os museus tradicionais que valem pelas suas colecções e não estão, na maior parte dos casos, devidamente contextualizadas de modo a um conveniente aproveitamento informativo e educativo. Não é o caso do Conservatoire, que tem uma colecção muitíssimo valiosa pela qualidade e pela quantidade, recentemente requalificada e reorganizada. Apesar disso, Dominique Ferriot foi afastada da direcção do Musée des Arts et Métiers. Outros museus: o Museu da História da Ciência em Leiden (recentemente renovado), que tem o nome de Boerhaave, grande médico e professor de medicina holandês, de quem foi discípulo o nosso Ribeiro Sanches. Entre as tentativa de modernização da Rússia, o czar quis contratar Boerhaave, que era considerado o melhor médico da Europa, para exercer a sua actividade na corte e nos exércitos imperiais, e para realizar estudos na área da medicina. Boerhaave recusou a oferta, mas indicou Ribeiro Sanches, seu discípulo, que acabou por exercer todas aquelas funções.

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P: Acabou por se dedicar à Ciência. Como é que isso se associa à sua curiosidade pelo passado? R: Antes optava-se no 6º ano do liceu pela área de estudos e foi uma surpresa quando anunciei que ia para Ciências. A curiosidade que sempre tive pelo passado traduziu-se numa curiosidade por conhecer fundamentos do conhecimento, do cosmos, e das leis da Natureza: tudo isso despertava a minha atenção. E acabei por optar por essa via… Curiosamente, o que mais despertou a minha atenção na altura foi a Química e cheguei a entrar no curso de Engenharia Química no Instituto Superior Técnico, mas acabei por desistir porque deixou de me interessar. E só mais tarde me veio parar às mãos o livro A Evolução das Ideias em Física de Einstein e do seu colaborador L. Infeld que foi, para mim, um “Abre-te Sésamo” da cultura. Foi um deslumbramento. Foi a partir desse momento que me decidi pela Física, mas sem nunca perder o interesse pelo conhecimento histórico e, dentro da História, dos ramos mais “científicos” e recuados, como é o caso da Arqueologia. Acabei por ligar as duas vertentes, história e ciência. Um dos domínios que investiguei foi a Física aplicada à análise não destrutiva de materiais por meio da identificação das suas radiações X características excitadas por meio de um bombardeamento com radiação gama (método XRF) ou com protões acelerados (método PIXE). Em 1970, um sueco escreveu um artigo sobre isso, li esse artigo e achei que era algo que poderíamos fazer cá. Mas, para o segundo daqueles métodos, é necessário um acelerador de protões, como um que existe em Sacavém: foi com ele que promovi a realização de ensaios pelo método PIXE, no nosso país. Previamente, realizei análises pelo método XRF, para o que fui motivado por diversos arqueólogos, entre os quais João Luís Cardoso, com quem publiquei (juntamente com Gaspar Ferreira, então meu colaborador no Centro de Física Nuclear da Universidade de Lisboa) o primeiro trabalho neste domínio com o estudo dos materiais de Leceia. Nos trabalhos deste tipo não me limitei a fazer análises, procurando aperfeiçoar o método, o que realizei juntamente com Gaspar Ferreira, que, mais tarde, se tornou um físico iminente, em domínio bem diferente. O meu interesse pela história mantém-se. Precisava de várias vidas… Continuo a ser “um rato de museus”, sobretudo de ciência e de arqueologia, apesar das minhas limitações de mobilidade. P: Já doutorado por Paris, regressou a Portugal. Em 1967 partiu com Rómulo de Carvalho numa missão científica a museus europeus que durou dois meses. R: Tudo começou porque em 1961, ao regressar de Paris, iniciei a minha participação num seminário de física, organizado no Instituto Superior Técnico pelo professor António da Silveira.


Após as sessões, alguns dos participantes cavaqueavam num dos cafés das redondezas, sobretudo na “Mexicana”. Nas conversas que então tivemos, discorremos, a determinada altura, acerca da história e divulgação da Física através dos museus, ideia que o entusiasmava, lembrando a propósito o exemplo do Palais de la Découverte, que conhecia. Foi António da Silveira quem criou o Instituto de Física e de Matemática e que, para o proteger dos ataques provenientes de Coimbra (e não só), aceitou o convite que lhe foi feito pelo então ministro Galvão Teles para ser Presidente do Instituto de Alta Cultura. Já nessa qualidade, e durante uma das nossas conversas sobre museus, ele propôs que eu fosse estudar, na companhia de Rómulo de Carvalho, professor do liceu e reputado pedagogo de física, os principais museus de ciência, para depois se fazer um em Lisboa. Uma vez que já conhecia bem o Science Museum, de Londres, sugeri que nos fixássemos no Deutsches Museum, de Munique e no Museo Leonardo da Vinci, de Milão. No seguimento da viagem iríamos passar por Paris, havendo assim ocasião para revisitar o Palais. Não nos esqueçamos que a explosão dos museus de ciência de tipo participativo deu-se nos anos 1980 (de que o museu de Barcelona é um bom exemplo). Assim, Rómulo de Carvalho e eu visitámos três museus em dois meses. Em Munique entrávamos todos os dias às 9:00 horas e saíamos às 18:00. Era uma espécie de emprego. Levávamos o dia inteiro e mesmo assim a única coisa que vimos em pormenor foi a parte dedicada à Física, que começava com um diorama espantoso que reproduzia o gabinete de Galileu à escala natural. Foram dez dias fechados dentro do Deutsches, de manhã à noite. O resto fomos vendo “à la americaine”, tirando umas “notazitas”. Mas a secção estudada em pormenor foi a de Física. Estava previsto que, no final da viagem, fizéssemos um relatório a ser entregue ao ministro Galvão Teles, através de António da Silveira. Quando se soube em Coimbra que se estava a projectar um museu de ciência em Lisboa houve logo problemas. Deste modo, quando Rómulo de Carvalho estava prestes a deixar Paris para regressar a Lisboa (eu voltaria um mês mais tarde), António Silveira pediu que, para poupar tempo, redigíssemos ambos o relatório da viagem, ainda em Paris. Assim foi, e dias depois, António da Silveira entregava-o pessoalmente a Galvão Teles. A partir daí perdeu-se-lhe o rasto. Se não fosse ter ficado com uma cópia e tê-lo publicado mais tarde, ninguém o conheceria. Estaria perdido. Aliás, e muito curiosamente, um dia em Munique, quando estávamos no Deutsches (contemplando o magnífico diorama reproduzindo o gabinete de Galileu) Rómulo de Carvalho virou-se para mim e perguntou: “Sabe quem vai beneficiar desta viagem?”. Eu respondi que seria o público, as pessoas que tivessem acesso ao museu. E ele rapidamente contestou: “Está enganado; apenas nós dois”.

Foi realista. Foi a partir dessa ocasião que começou o meu grande combate, pela criação de um museu de ciência em Lisboa, que durou décadas: foi preciso muita paciência e persistência para levar esse combate até ao fim. As pessoas não queriam, efectivamente, que o museu se fizesse. As razões foram diversas. P: Mas porquê? A oposição veio também de dentro da própria instituição, da Universidade de Lisboa? R: A maior parte das pessoas só vê o seu “petit coin” e, quando não está envolvida num projecto, desconfia da realização dos outros; não gosta e, é uma coisa visível, têm inveja do seu parceiro. P: O museu de ciência é por natureza um museu transversal, que cruza diferentes saberes. Isso terá contribuído para essa reacção? R: Sim, creio que esse facto acabou por jogar contra o projecto. Aliás, Pereira Forjaz, destacado professor de química da Faculdade de Ciências na primeira metade do século XX chegou, mesmo, a aventar a ideia da criação de um museu da Química, que foi, aliás, esquecida. Mas, já depois da criação do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa – que, evidentemente incluía o vetusto e grandioso laboratório de química e instalações complementares – houve quem, esquecendo deliberadamente o alcance do projecto do Museu, procurasse apoios para concretizar um espaço museológico separado no âmbito do departamento de química da Faculdade, o que felizmente não foi conseguido. De contrário, o projecto do Museu teria sido seriamente comprometido. Para além das dificuldades materiais em pôr de pé um museu da ciência, há que ter em conta que se atravessava também o período do (chamado) PREC. Os ministros (e os Secretários de Estado) sucediam-se amiudadamente, provindo ou da Universidade de Coimbra ou do Instituto Superior Técnico: ninguém estava interessado na criação do museu, no âmbito da Universidade de Lisboa. Um exemplo (entre muitos) ilustrativo das obstruções levantadas veio de Victor Crespo, professor de Coimbra, quando ministro: em conversa informal comigo, concordou com a criação do Museu mas, confrontado com o relatório com esse objectivo, despachou… desfavoravelmente! P: Quando é que começou a “ver luz ao fundo do túnel”? R: Numa altura em que Virgílio Meira Soares, professor de Química da Universidade de Lisboa, foi convidado para ser Secretário de Estado do Ensino Superior, por Mário Soares. Quando o convite foi feito ele colocou duas condições: a realização acelerada das obras de construção da Faculdade de Ciências na Cidade Universitária e o avanço do projecto do Museu da Ciência. Mário Soares aceitou e foi publicado o Decreto-Lei 146/85, de 8 de Maio, que funda o Museu.

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Mas os inimigos deste não desistiram: naquele decreto previa-se que, 8 meses depois, seria publicado o documento legal com a regulamentação do funcionamento do Museu, mas isso só veio efectivamente a suceder muito mais tarde: assim, o Museu tinha existência legal, mas não orgânica. Até que um dia, Meira Soares telefona-me a dizer: “O documento vai ser publicado. A Universidade tem a prerrogativa para tomar essas decisões e já não é o Ministério que trata disso. Vou propor ao Senado que o faça” E, de facto, passado pouco tempo, a 17 de Setembro de 1990, os Estatutos do Museu de Ciência eram publicados no Diário da República, mais de cinco anos após a saída do diploma legal que criou o Museu! P: O museu pertence à Universidade de Lisboa. O Instituto Superior Técnico aparentemente não encontra destino para o acervo dos seus dois museus: o Alfredo Bensaúde e o Décio Thadeu, além de um imenso espólio por estudar e documentar, mas acabou por não aceitar o protocolo com o novo museu, ou seja, acabou por inviabilizar a possibilidade de se fazer um Museu de Ciência transversal a várias instituições de ensino. R: Não sei se será possível dar a volta a isso… Lamentavelmente, quando não há entidades responsáveis interessadas, sucedem-se situações como esta: um excelente modelo de locomotiva, feito pelos aprendizes das oficinas dos Caminhos de Ferros Portugueses – CP do Barreiro, oferecido ao Instituto Superior Técnico (que me recordo de ver lá num corredor do pavilhão central) encontra-se hoje destruído porque ninguém se preocupou com ele. Procurei que as colecções das ciências exactas, nomeadamente da área da Física, fossem integradas no Museu, e tomei algumas iniciativas nesse sentido, inclusivamente com Matos Ferreira que era, na ocasião, o director do Departamento de Física, posteriormente director do Instituto. Mas, aquando da preparação de um protocolo nesse sentido, tudo foi “furado”. Contudo, nessa altura surgiu a preocupação de organizar minimamente as colecções. Efectuou-se um inventário, as colecções ficaram protegidas, mas continuam a não estar integradas num projecto museológico coerente. A este respeito, tive grandes ambições que não se mostraram exequíveis… Por exemplo, achei durante muito tempo que era possível integrar no Museu da Ciência as colecções científicas do Museu de Metrologia do Instituto Português de Qualidade. Aliás, isso até chegou a estar acordado com o director desse Instituto, mas isso não se concretizou. Só foi possível fazer, em comum, uma exposição temporária de pesos e medidas; ele saiu e o novo director acabou por não dar seguimento a esta ideia. Não acredito que seja possível hoje fazer um museu de ciência que vá congregar o acervo histórico-científico existente em Lisboa.

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Julgo que o principal obstáculo provém do sentimento de posse que as pessoas têm das colecções que têm à sua guarda, julgando que vão ficar eternamente ligadas a elas, quando são apenas seus guardiões. As colecções são do povo português e essas pessoas só têm a responsabilidade de preservá-las convenientemente. Tão diferente do habitual foi a atitude de uma professora da Escola Secundária de Fonseca Benevides. Esta história é deliciosa, e merece ser divulgada. Um dia, estava eu no museu, recebo um telefonema de uma professora a dizer qualquer coisa como isto: “Existe nesta escola equipamento antigo de Física que me parece relevante; contudo, os meus colegas acham que estou a ocupar uma sala, a que pomposamente chamo museu, necessária para as aulas. Não é nenhum museu, mas é onde conservo aquelas peças que reputo com interesse; que lhes vai acontecer quando me aposentar? Gostaria que me desse um parecer. Quero saber se tenho ou não razão, isto é, se existem peças interessantes que devam ser conservadas”. Combinámos um encontro na Escola, fui lá ver as peças e fiquei surpreendidíssimo com a quantidade de coisas boas que lá havia (e que agora estão aqui, no Museu). Esta escola parece ter sido a única que beneficiou de equipamento que pertenceu ao Rei D. Luís, que era um homem interessado por muitas coisas, entre elas a Física e a Astronomia, de que tinha uma colecção de instrumentos que guardava num gabinete do Palácio da Ajuda. A certa altura a entidade responsável pelo acervo do Palácio quis desfazer-se desses instrumentos (não sei quais foram as vicissitudes) indo o material parar ao Instituto Comercial de Lisboa. Este teria oferecido esse equipamento aos liceus e escolas do País, porque não interessava às suas actividades: a única que respondeu foi a Escola Secundária Fonseca Benevides. Como exemplo notável, entre vários, cito a peça escolhida para ilustrar a exposição temporária da Biblioteca Nacional – “Sphaera Mundi: A Ciência na Aula da Esfera. Manuscritos científicos do Colégio de Santo Antão nas Colecções da BNP” – que fazia parte desse espólio e se encontra hoje no Museu de Ciência. Na ficha de inventário tinha-a classificado, embora com interrogação, como sendo do século XVIII. Porém, numa excursão realizada a Portugal pela Scientific Instruments Society, Gerard Turner identificou-a como sendo do século XVII, mais precisamente do período compreendido entre 1630 e 1640 e como sendo um equipamento muito raro. Esta peça estaria hoje provavelmente perdida se não tivesse sido recolhida no Museu. Ora, este tipo de situação é excepcional no nosso país, mas noutros é prática comum. Por exemplo, no Whipple Museum de Cambridge as peças têm, além da indicação da proveniência, o nome da pessoa ou entidade que provocou a sua incorporação no Museu.


P: Existe outra dimensão que ainda não abordámos e que é paralela aos temas que falámos: a sua relação com a comunidade dos museus e com os seus profissionais. Toda a história que nos contou incide mais na perspectiva institucional para afirmação e realização do Museu da Ciência, incide nas dificuldades que teve. Mas sabemos que, pelo menos no início, foi preciso também abrir espaço junto dos profissionais para afirmar as suas ideias. Conte-nos como foi… R: Também foi uma luta árdua… Primeiro é preciso notar que eu não tinha nenhuma relação oficial com os museus; era apenas um curioso, um “rato de museus”. Nunca tinha feito nenhum curso de museologia, nem tinha tido um emprego em museus, mas era, como já confessei, um mundo que me provocava um certo fascínio… Quando se formou a Associação Portuguesa de Museus (APOM), pensei que era só para profissionais, mas não. Era para todas as pessoas que se interessavam por museus, e foi assim que aderi a esta Associação, mas sempre com sensação que era um “outsider”. Porém, ia a todas as sessões, que eram no Museu Nacional de Arte Antiga. Ora esta situação só se alterou em 1970 quando foi lançado um inquérito pelo Ministério da Educação Nacional, no tempo de Veiga Simão (que pretendia apresentar-se como pessoa muito aberta, em pleno Estado Novo, em relação às ideias democráticas…) Ele lançou a ideia para uma reforma do ensino superior e fez um largo inquérito sobre o que deveria ser alterado no ensino português. Foi uma “coisa ambiciosa” … Maria José Mendonça, directora do curso de conservadores de museus que funcionava no Museu Nacional de Arte Antiga, convocou uma sessão da APOM para examinar o problema da formação de conservadores, tema sobre o qual eu meditava há algum tempo. Foi aí que consegui vencer a minha timidez e falar sobre o assunto. As pessoas ficaram um tanto impressionadas com as minhas intervenções. Expus o que pensava sobre o curso de conservadores de museus e no fim pediram-me para redigir umas notas sobre o assunto, o que fiz e apresentei na reunião seguinte. Aquelas notas (posteriormente publicadas) foram discutidas e, como as ideias expostas tiveram concordância generalizada dos participantes na reunião, foi decidido que constituiriam a resposta da APOM ao tal inquérito de Veiga Simão. Foi assim que comecei a participar mais neste meio. Após o 25 de Abril, a APOM começa a abordar uma série de iniciativas. Maria Manuela Mota, activa presidente desta Associação, durante vários anos, fez coisas muito interessantes, nomeadamente, em 1975, o primeiro colóquio da APOM, realizado na Figueira da Foz, com o título algo provocatório – “Museus para quê?” A partir do 25 de Abril houve dois vectores em que colaborei activamente: por um lado participei nos colóquios e, por outro, efectuei as viagens de estudo ao estrangeiro. No colóquio da APOM, no Museu Municipal Dr. Santos Rocha na Figueira a Foz, em 1975, apresentei a comunicação “Museus de ciência para quê?”.

Foi a primeira vez que escrevi sobre o assunto. A partir desse colóquio e dos que se seguiram, nasceu uma dinâmica dentro da APOM em prol do desenvolvimento das ideias ligadas ao Museu e ao seu pessoal. O Ministério aproveitava estas ideias e formava comissões baseadas naquilo que a APOM ia construindo. Participei em diversas comissões desta associação e, depois, por convite do Ministério, fiz também parte de comissões constituídas por este. Uma das comissões criadas na APOM estudou o problema da formação de conservador de museus. O curso no Museu Nacional de Arte Antiga foi suspenso por proposta assinada pelos alunos e pela própria directora, Maria José Mendonça. E havia receptividade às novas ideias que estava apresentando, que assentavam no pressuposto de que o curso deveria de ser ensinado numa Universidade. Foi criado um grupo para estudar este assunto, e a pouco e pouco as pessoas foram aderindo às minhas ideias… Mas outras não queriam de maneira nenhuma retirar a formação do Museu Nacional de Arte Antiga. Das duas, uma: ou consideram a museologia uma ciência e, como ciência, deve ser ensinada na universidade, ou consideram a museologia como um trabalho prático de museu e aí o museu mais adequado para esse feito seria eventualmente o Museu Nacional de Arte Antiga. Muito esquematicamente, foi a frente de batalha que tive. Queriam que a museologia fosse considerada uma ciência, queriam que fosse um curso universitário, mas… não queriam que fosse leccionada numa Universidade. Ernesto Veiga de Oliveira, autor do primeiro curso impresso de museologia que se fez em Portugal, concordava comigo. Outra pessoa que aderiu rapidamente ao meu ponto de vista foi Manuela Mota. Mas houve outras que resistiram até ao fim, duas delas reputadas conservadoras de museu, Madalena Cagigal e Silva e a Maria Alice Beaumont. Foi uma luta que, mais tarde, veio a dar origem ao primeiro curso de pós-graduação em museologia, inicialmente previsto para a Universidade de Lisboa mas que acabou por ir para a Universidade Nova. P: Como é que o Professor vê hoje o ensino da museologia nas nossas universidades, qual é a sua perspectiva, como é que as coisas evoluíram e em que ponto é que estamos? R: Um dos males da nossa museologia é estar dependente de outras ciências e ser considerada uma ciência menor, auxiliar de outras. A museologia é ensinada associada à Antropologia, à Arqueologia, à História… e não como uma disciplina independente como acontece em diversas universidades estrangeiras, como foi a de Brnö, na República Checa, pioneira neste domínio. Entre nós, apenas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto existe o Departamento de Ciências e Património com uma secção de museologia muito bem concebida.

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International Council of Museums

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Fig. 1 Museu José Malhoa O museu na actualidade

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Dóris Joana Santos História, discurso e ideologia – Como se fez o Museu José Malhoa A história do Museu José Malhoa reflecte o percurso administrativo, político, artístico e museológico português do século XX. Neste artigo, aborda-se a sua criação, em 1933, como resultado da vontade comunitária, numa estratégia de desenvolvimento regional de raiz republicana, persistente durante o Estado Novo. Não havendo colecções prévias, analisase um acervo de doações e a sua apresentação através dum discurso circunstanciado sobre a arte sua contemporânea, bem como o seu papel na continuidade da fortuna crítica sobre o pintor José Malhoa e o Naturalismo. O seu edifício, construído de raiz para o efeito, é questionado enquanto singular exercício de arquitectura de museus em Portugal, síntese dum modelo teórico e ensaio das últimas tendências museográficas. O estudo das suas soluções pioneiras aporta intentos comparativos que corroboram no conhecimento sobre o pensamento museológico português. The history of the Museu José Malhoa reflects the Portuguese 20th century administrative, political, artistic and museums’ context. In this communication we focus on the foundation of the museum (1933), as a result of a persistent demand based on a local development plan. As no collections existed before, we analyse a considerable lot of donations, which led to a representation of art of that time, as well as the role played in the critical production on José Malhoa and Naturalism. The Musem’s building, specifically planned and erected for this purpose, is here assessed as a unique example of architecture in Portugal, being both a synthesis of a theorical tendency and a test tube of the latest museographic models. The innovative solutions lead to a comparative approach, allowing a wider knowledge of museums throughout Portugal.

PALAVRAS-CHAVE: José Malhoa, Naturalismo e arte contemporânea, Caldas da Rainha, identidade local, desenvolvimento regional, Estado Novo, colecções e política de incorporação, discurso expositivo, arquitectura de museus.

Técnica Superior no Museu José Malhoa e Mestre em Museologia e Património | dorisjoana@gmail.com

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O

conhecimento sobre o fazer-histórico dos museus portugueses é importante para melhor compreender o seu poder de intervenção e a realidade actual. A identificação do que é património subentende a existência de uma entidade que o seleccione e o faça transitar para outro contexto; definidores de património e processadores de informação, os museus encerram um peso ideológico que os afasta de uma suposta neutralidade. Sobretudo através das suas colecções e dos seus discursos expositivos, condicionam o modo como a comunidade elabora a sua história e estabelecem a imagem de uma época, o que os envolve nas mais inquietantes questões sobre quem é essa comunidade e com que poder determinam a sua identidade e passado. A 17 de Junho de 1933, por despacho ministerial1 pronunciado sobre “parecer favorável” do Conselho Superior de Belas Artes, era criado o “Museu José Malhoa” (MJM), nas Caldas da Rainha, inaugurado provisoriamente na Casa dos Barcos, a 28 de Abril de 1934. A sua fundação traduziu a vontade comunitária de criar um museu de arte, com fins identitários e de desenvolvimento regional, partindo da reunião de obras dispersas por coleccionadores e artistas, convertendo-as numa nova colecção, através de uma acção orientada por critérios patrimoniais. Ora, a perspectiva histórica facilita-nos a noção de que os princípios de classificação têm evoluído ao longo dos tempos e que todas as apresentações são discursos circunstanciados. Esta reflexão importa a todos os museus, mas em particular aos de arte contemporânea e de ciência e técnica, instados a uma permanente selecção, expressiva da realidade coeva para as gerações vindouras. Durante os seus primeiros 40 anos, o MJM assumiu-se como um “museu de arte contemporânea”. 70 anos volvidos, legitimamente questionamos esta classificação, hoje não aplicável e, na época, por certo também não! O MJM era um “museu de arte contemporânea”, em conformidade com o sentido que o País oficial lhe dava e enquanto atento à produção criativa em curso, nomeadamente à de feição oitocentista que o Naturalismo assumiu. No quadro desta definição, para além do MJM e do Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC), era diminuto o número de unidades que lhe dedicavam algumas salas, frequentemente movidas por desvelos de protecção bairrista ou regional. Ao longo da sua primeira direcção (1934-66), o MJM surpreendera pelo dinamismo da sua programação cultural, mas não apontara novas linguagens. Qual foi o museu que o fez?! Os raros sintomas de perturbação oriundos do próprio MNAC advinham sobretudo de algumas ausências de autores e da nomeação política de um director como Eduardo Malta, em 1959. Assim como José Malhoa (1855-1933) fora um “artista de consensos”, o museu que o tinha como patrono também o era. Nos anos 1960, à medida que o meio artístico português ganhava maior expressividade crítica, o Museu tentaria pontualmente acompanhar a marcha inovadora através da acção da sua conservadora Helena Coimbra; no entanto, em 1968, quando esta pretendeu “romper com determinados preconceitos” através da Exposição de Arte Moderna – 44-68, organizada a partir do convite dirigido a artistas de todo o País, o público local reagiu negativamente, por não reconhecer valor artístico aos trabalhos expostos. Já sob a direcção de Saavedra Machado, nos anos 1970-80, tencionou-se desfazer a imagem de museu “démodé” e inaugurar uma sala de arte moderna; mas, sentiu-se que este talvez não fosse o projecto para o MJM, que permaneceu numa procura de definição até que, nos anos 1990, sob a direcção de Paulo Henriques, se anunciou a necessidade de avaliar o seu percurso e foi arredada a pretensão de incrementar o espólio com arte efectivamente contemporânea, uma vez conseguida a unidade artística e sociológica da exposição permanente, paradigmática da sensibilidade portuguesa entre finais do século XIX – meados do século XX: “claramente tradicionalista, avessa aos movimentos de ruptura estética, insistente nas linguagens figurativas miméticas do real” (HENRIQUES, 1996, pp. 113-120). O seu núcleo de José Malhoa, o maior do País, e o de estatuária oficial do Estado Novo definem duas situações-chave, com interesse para um público nacional.

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A articulação com os artistas deve ser incentivada, mas sem a pretensão demagógica de chamar a si o encargo de se apresentar como museu de arte contemporânea; essa aproximação deverá fazer-se através de novas perspectivas sobre o acervo ou da apresentação de actuais experiências artísticas, onde o Museu possa estar implicado como produtor de acontecimentos de interesse nacional, sem esquecer o público local, mais próximo e assíduo, e para quem, durante décadas, o MJM fora de facto uma das poucas instituições culturais. A figuração regional, reformulada à luz da concepção actual de desenvolvimento, permanece sobretudo através da presença da cerâmica e de artistas caldenses. Entender a missão actual do MJM leva-nos à análise de “como se fez este museu de arte” e de como a sua colecção promoveu vários discursos sobre a realidade que intentou conservar. Se a decisão acerca do que é património nos diz muito sobre a sociedade que a toma, a história do MJM espelha também a realidade local e nacional, no plano histórico e museológico. Além disso, o pintor José Malhoa ocupa um lugar incontornável na História da Arte Portuguesa; o modo como o seu nome se associou a um museu e o que significou ao longo dos tempos para o seu desempenho articula-se com o propósito de verificar como os museus modelam o conhecimento sobre a realidade.

Um museu como pólo de desenvolvimento local: José Malhoa e o Museu de Artes Nas Caldas da Rainha, a ideia de museu era anterior à de MJM. Existia em projecto o “Museu das Caldas”, ou, melhor dizendo, um “museu para as Caldas”. Já em finais do século XIX, Joaquim de Vasconcelos alvitrava a criação de um museu de cerâmica. No início dos anos 1920, as elites caldenses insistiam no desígnio de organizar um museu regional, no seio de uma estratégia de desenvolvimento assente no turismo, nas termas e na dotação de uma série de infra-estruturas sociais e culturais. Nesses anos, uma indefinição programática expressava-se nas variadas designações que foram sendo sugeridas. O projecto oscilava entre um museu regional de arte e arqueologia – filiado na concepção de Leite de Vasconcelos e na tendência da museologia regional e local de finais do século XIX / inícios do século XX (GOUVEIA, 1997) –; um museu de cerâmica, a que se atribuiria o nome de Mestre Rafael Bordalo Pinheiro; até se fixar num “Museu de Artes”, aqui cabendo artistas, disciplinas e épocas várias, correlacionadas com a anotação dos autores e das vivências regionais. Os protagonistas também se diversificam – desde o Ministério da Instrução Pública, a Câmara Municipal das Caldas da Rainha, a Comissão de Iniciativa ou a Associação Comercial e Industrial.

Em 1927, perante a intenção do Ministro da Instrução Pública de criar na cidade um “museu regional, arqueológico e artístico”, a Câmara Municipal dirige um convite a dois homens de cultura, ligados às Caldas e à arqueologia – Joaquim Manuel Correia e Major Luís da Gama –, na tentativa de encontrar “indivíduos que gratuitamente desempenhem as competentes funções”2. Desconhecem-se as suas respostas, sendo outros nomes que fazem avançar o projecto. Uma vez silenciadas as vozes institucionais, deve atribuir-se à Liga dos Amigos3, criada em 1929, e sobretudo a António Montês (1896-1967) a vontade inabalável de concretizar esse sonho. Impedimentos administrativos e financeiros entravaram a concretização dos primitivos projectos nos inícios dos anos 1920. Finalmente, os seus mentores encontraram em José Malhoa o interlocutor necessário para pressionar as autoridades competentes. O museu criado em 1933 designava-se então Museu José Malhoa, embora possamos questionar se esta nova denominação afastou a instituição criada em relação ao seu propósito teórico inicial. A par da Rainha D. Leonor e de Rafael Bordalo Pinheiro (18461905), Malhoa era uma das “três figuras caldenses” – expressão de Manuel de Sousa Pinto (1880-1934) –, nas quais se suportou a orientação que entroncava o desenvolvimento regional nas artes e na “glorificação” de grandes personalidades da história local. A partir de 1924, através de um processo de identidade local nitidamente construída, Caldas da Rainha foi redescobrindo Malhoa como “filho caldense” e o artista foi reencontrando a sua terra natal, da qual saíra em criança. Em 1926, oferecia “ao Povo das Caldas” a tela da Rainha D. Leonor, em resposta ao pedido que Montês lhe dirigira dois anos antes, em nome da Associação Comercial e Industrial. Em 1928, deslocava-se à cidade para inaugurar um monumento em sua honra e, em 1932, oferecia as primeiras pinturas para o futuro “Museu de Artes”. Mas, apenas em Janeiro de 1933, António Montês, José de Sousa (1897-1987), Carlos Neves (1893-1962) e Paulino Montês (1897-1988) formalmente requeriam ao Ministro da Instrução Pública a criação de um museu com o nome de José Malhoa e os projectos de fundar um museu nas Caldas da Rainha e de glorificar o pintor se acertam. A história da criação do Museu passava a identificar-se só com a história de Malhoa e com o pedido de Montês para representar a soberana fundadora da povoação, tornando-se no primeiro artista vivo a ter o seu nome associado à denominação de um museu (embora Malhoa morra logo em Outubro de 1933), o que nos permite falar de uma intencional evolução discursiva. Por isso, o MJM ergueu-se nas Caldas da Rainha e não em Figueiró dos Vinhos, onde Malhoa naturalmente fazia parte da identidade local. E porque não foi criado em jeito de homenagem póstuma e preservação de espaços de memória, como pressupostamente o seria naquela vila do Norte da Estremadura, onde também faltaram as “forças vivas” caldenses, o MJM nunca foi “um templo exclusivamente dedicado ao culto do pintor caldense” (PINTO, 1934, p. 7).

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Fig. 2 Museu Provincial de José Malhoa O museu nos anos 1940 Edição de postais Passaporte

O Museu Provincial de José Malhoa (1940-59). O discurso regionalista de António Montês O percurso do MJM e a evolução das suas tutelas espelham o trajecto administrativo e político português no século XX. Esboçado pela acção regionalista republicana ou, se quisermos, filiado mesmo na mentalidade fino-oitocentista e até liberal, certo é que a insistente aspiração caldense encontrou afinidades com as preocupações da nova ditadura instaurada em 1926 que, nos seus primeiros tempos, não rompeu com o desígnio regional do período anterior. Em termos cronológicos, o MJM acaba por ser o primeiro museu do Estado Novo. No entanto, como acima foi exposto, não lhe podemos reconhecer iniciativa estatal, porquanto a sua organização se deveu somente a um “grupo de amigos” que obteve o parecer favorável do Conselho Superior de Belas Artes, com a ressalva do novo museu não implicar “encargos para o Estado”. Após a morte de Malhoa, aos muitos artistas e personalidades caldenses e nacionais, juntaram-se os dois testamenteiros do pintor, Agostinho Fernandes (1886-1972)

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e José Filipe Rodrigues (1886-1952). No dia da inauguração, com António Montês e o pintor José de Sousa, estes são os quatro nomes inscritos numa lápide como os quatro fundadores do MJM. Foram estes “amigos” que garantiram não só a sua abertura, como o crescimento da colecção e do edifício ao longo dos anos, face à incipiente acção do Estado Novo para prover o sustento ou assumir uma política para o sector (SILVA, 2002). A sobrevivência dos museus radicava na iniciativa local, geralmente personalizada. Para além das interferências previstas na vida dos organismos sob um regime de ditadura, o Estado Novo não foi directivamente interveniente na gestão quotidiana do Museu. Nunca encontrámos recusas estatais de incorporações de obras, nem intromissões ideológicas ou exigências de representação orientadas por contentamentos políticos; as cerimónias laudativas de artistas, homens da cultura ou da política nacional partiam do seu próprio director. Todavia, espontaneamente, os artistas presentes e as actividades organizadas foram identificando o Museu com a “Política do Espírito”. Os artistas eram os consensualmente aceites, que se repetiam nos salões da Sociedade Nacional de Belas-Artes e no MNAC; mas, no


Fig. 3 Museu José Malhoa Sala Francisco Franco, 1961 Arquivo do MJM

MJM, mais do que neste museu nacional, encontraram espaço escultores como Francisco Franco (1885-1955) e Leopoldo de Almeida (1898-1975), onde depositaram ou doaram as maquetas e os modelos dos grandes monumentos encomendados pelo regime. A exposição destas estátuas acabou por emprestar ao MJM uma aura ideológica que ultrapassava a intenção de representar a identidade regional, de divulgar e proteger a arte portuguesa ou participar na tarefa de “reaportuguesamento” (RAMOS, 1994) para a qual pintores como Malhoa tinham contribuído. Por outro lado, a construção do edifício do Museu em 1940, como pavilhão da Exposição das Comemorações Centenárias na Província da Estremadura, associou-o a mais uma das obras públicas e da acção cultural do Estado, desta feita através da Junta de Província da Estremadura (JPE)4. Caldas da Rainha foi a cidade escolhida para aquelas comemorações e Montês o nomeado para as organizar. No seu programa nacional previra-se a inauguração de museus regionais, essencialmente etnográficos, cuja construção seria confiada às Juntas de Província. Montês vê então a oportunidade de erguer um edifício para o MJM. A 11 de Agosto de 1940, o edifício e “todo o recheio” reunido foram entregues à JPE e nasce o Museu Provincial de José

Malhoa (MPJM) – “o primeiro e único museu provincial do País”, como várias vezes se repetiu. Tendo o apoio da JPE e solicitando o precário auxílio dos municípios estremenhos, o Museu irá consolidar o seu lugar no panorama caldense e nacional, resultando os 20 anos seguintes em tempos de efectivo crescimento. A classificação de “museu provincial” não estava contemplada no Decreto n.º 20985, de Março de 1932, considerado por João Couto e por outros museólogos da época como a “carta orgânica dos museus portugueses”. Em 1936, o Ministério da Instrução Pública é remodelado e passa a denominar-se Ministério da Educação Nacional, sendo instituída a Junta Nacional de Educação, cuja 6ª Secção respeitava às Belas Artes e, dentro desta, a 1ª Subsecção às Artes Plásticas, Museus e Monumentos. Esta devia “estimular” a instituição de um museu na sede de cada concelho, no qual teriam “representação os trabalhos dos artistas contemporâneos de mérito, a começar nos que dele sejam originários”5. Por sua vez, o novo Código Administrativo daquele ano permitia que as Juntas de Província deliberassem sobre a criação e manutenção de museus de arte regional; é neste enquadramento que a JPE, para além do MPJM, apoia ou impulsiona o Museu

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Arqueológico de Alenquer (1944) e o Museu Oceanográfico e de Pesca, em Setúbal (1950-55). Num interessante artigo sobre o que devia ser um museu regional, Montês justifica a classificação de provincial atribuída ao museu pelo qual era responsável: “Até então, os museus portugueses classificavam-se como municipais, regionais e nacionais. Os organizadores do Museu das Caldas entenderam dever chamar-lhe provincial. A designação teve unicamente em vista mostrar aos visitantes que o Museu de José Malhoa pertence à Junta de Província da Estremadura, a quem foi oferecido em 11 de Agosto de 1940” (MONTÊS, 1943, pp. 155-160). Tornar o MJM num museu provincial fora, antes de mais, uma solução última lançada por António Montês para garantir a construção de edifício próprio e a sobrevivência da instituição, após seis anos de reais dificuldades. Essa categoria remetia para uma definição de tutela e não exclusivamente para fins de revisão de um património comum. Aliás, as indefinições quanto à coincidência dos limites geográficos da Estremadura e da sua identidade, paradigmáticas das dificuldades de divisão políticoadministrativa que sempre afectaram o País, problematizam as tentativas de classificar os museus portugueses com base em noções territoriais. Montês acabaria, no entanto, por “explorar” a dimensão provincial, na organização da colecção, sua apresentação e programa cultural.

Fig. 4 e 5 Museu José Malhoa Anteprojecto de Paulino Montês para o edifício Arquivo do Museu Municipal de Peniche

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Em 1960, após uma nova remodelação do Código Administrativo ter extinguido as Juntas de Província, o receio de encerrar um espaço que, ao longo dos anos, garantira a animação cultural à população caldense e a colocara nos roteiros turísticos e artísticos do País, mobilizou junto do poder político todos aqueles que, desde o início, haviam apoiado o projecto – as elites locais, os artistas e os “amigos”. Fruto da sua audácia, mas talvez resultado da avaliação do que verdadeiramente o Museu tinha significado nas últimas duas décadas, a 22 de Abril de 1960 o Estado reconhecia o dever de sustentar a sua continuidade, uma vez comprovada a incapacidade financeira de uma estrutura local ou regional que o gerisse. Passava a ser Museu de José Malhoa6 e a sua tutela era transferida directamente para o Ministério da Educação Nacional, embora não se convertesse em museu nacional. Nesses anos, quando as bases do Estado Novo indiciam sinais de enfraquecimento, a orientação seguida pelo Museu começa também a debilitar-se, acompanhando a doença e o envelhecimento do seu mentor, sancionando o desajuste das homenagens e condecorações, dos nomes das salas e cerimónias com representações estatais. O MJM caía numa incerteza entre a perpetuidade naturalista e a tímida abertura artística.


O MPJM tinha sido realmente o “Museu de António Montês” e, nesta medida, também um “museu do Estado Novo”, enquanto partilha de uma actuação e de preferências culturais que convenientemente o integravam na “Política do Espírito”. Nos finais dos anos 1960, o projecto de Montês já não tinha espaço na sociedade portuguesa. Era a falência de um sistema que terminava em 1974.

Esse era também o ano do Cinquentenário da criação do Museu; para além de inquirir sobre o lugar de Malhoa e de toda uma plêiade de naturalistas e de gerações atemporais, que aqui tinham encontrado um pilar de acolhimento, aquelas comemorações deveriam ter sido o momento para reflectir sobre o desempenho do Museu na construção de um discurso sobre o Portugal artístico e social coevo.

Um museu de doações

O discurso da exposição: da globalidade à selecção

Quando o MJM é criado, a colecção limitava-se às quatro pinturas oferecidas por Malhoa. Havia apenas intenções, entre as quais a de incluir a tela da Rainha D. Leonor e os quadros do Hospital representando os antigos administradores e a soberana. Contudo, em 28 de Abril de 1934, a Casa dos Barcos era já exígua para as pinturas e esculturas expostas. A reunião de tão elevado número de obras em poucos meses só foi possível graças às doações de artistas, amigos de Malhoa e coleccionadores – com as reservas com que este último termo deve ser empregue em Portugal, à época. Num panorama museológico em que a maior parte dos espólios provinha de fundos das extintas ordens religiosas ou de achados arqueológicos, os fundadores do museu caldense primaram pela singularidade de uma iniciativa que, em Portugal, apenas teria paralelo nos anos 1950, no Museu do Caramulo. No entanto, o reverso da medalha acarretou laivos de fragilidade para uma colecção que se foi tendo que sujeitar a vontades de terceiros e à qualidade ou pertinência dos trabalhos generosamente oferecidos. Engendrava-se uma relação de mútua dependência, em que o Museu era o intermediário do louvor público para um grupo de artistas e beneméritos, de cuja acção decorria o enriquecimento e mesmo a sobrevivência da instituição. As raras aquisições e os depósitos foram procurando colmatar lacunas, mas não desbloqueavam sujeições; por outro lado, criaram equívocos de riqueza patrimonial quando sistemas documentais precários inseriram, indistintamente, objectos doados, legados, comprados e depositados. Malhoa fora uma influência elementar no incentivo a essas doações. Colegas e discípulos cederam obras da sua própria autoria para figurarem num museu com o nome do “pintor de Portugal e dos portugueses”. A existência do MJM e a acção que desenvolveu sobretudo nos anos 1930-50 foram vitais à continuidade da memória de Malhoa e do Naturalismo. Ainda que não monográfico, foi assumidamente responsável pelo alimentar de uma fortuna crítica em relação ao pintor, de forte conotação panegírica. Em 1983, num dos catálogos das Comemorações do Cinquentenário da sua morte, a proposta de “esquecer Malhoa” (FRANÇA, 1983) questionava pela primeira vez a obra do pintor, em posição liberta dos discursos laudatórios. Mas, mesmo nesse ano, essa postura vinha de um grupo exterior à unidade museal.

Ao longo dos anos foi-se esboçando uma linha expositiva ao sabor das ligações afectivas com os artistas e beneméritos. A personalização das salas reflectia a sua percepção como espaço celebratório, coabitando com a organização por escolas, disciplinas ou temas. As montagens sucessivamente apresentadas redundavam em aproximações de autores e de gerações nem sempre compreensíveis para a historiografia e a crítica da arte actual. Não desfasado da orientação da época, Montês apoiouse num modelo enumerativo que o instigava a expor toda a colecção e a destacar o objecto artístico, num ritmo contínuo e sem acréscimo informativo, sendo necessário esperar pelos anos 1960 para se editarem os primeiros catálogos, que, no entanto, não eram mais do que simples relações sequenciais. A museografia de 1940 acertava-se pelos recentes ditames internacionais, diferindo da maioria do cenário nacional, onde as colecções tinham de conviver com a sumptuosidade de salas outrora idealizadas como divisões palacianas ou conventuais. Inovava pela sobriedade dos suportes e pela clareza de circulação, apoiadas por um edifício construído para o efeito, que cedia todas as paredes à exposição, graças à redução dos vãos e à iluminação zenital. Um terço do Museu era dedicado ao seu patrono; pelo restante espaço, Montês ilustrava o desígnio regionalista: “Espalhados pelas salas, tanto em pintura como em aguarela, há notas de grande sabor, trechos conhecidos da Estremadura que dão carácter regional ao museu (...)”, descreve na sua tese para conservador7. As primeiras doações tinham sido de pintura e desenho, imediatamente seguidas pela escultura; nos anos 1950-60, Montês promoveu as colecções de medalhística e cerâmica. As novas ofertas e depósitos e a actividade do Museu vão alterando a exposição e obrigam ao crescimento do edifício, até se fixar, em 1957, em 18 salas, que reforçam o ritmo de sucessão dos espaços, embora diversifiquem a circularidade do percurso inicial. Em Maio de 1964, a exposição interrompe a sua horizontalidade e prolonga-se pela cave, onde uma entrada exterior dá acesso ao desejado “Museu de Cerâmica” e liberta as salas das peças desta especialidade.

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No entanto, Montês continuaria a ansiar por um museu de cerâmica autónomo, com edifício próprio, chegando o arquitecto Eugénio Correia (1897-1987) a realizar um projecto para a zona do ringue, com ligação à Quinta da Boneca; este “sonho” ficaria por concretizar, sendo que, em 1983, é criado efectivamente o “Museu de Cerâmica”, instalado no Palacete do Visconde de Sacavém, para onde são transferidas muitas peças da colecção reunida pelo MJM. Humildemente, Montês tentava consumar o que lia ou observava em visitas a museus estrangeiros. Na secção de cerâmica, conseguiu materializar a ideia narrativa que o perseguira ao longo dos anos, com a apresentação em panorama da “Paixão de Cristo”, de Rafael Bordalo Pinheiro, como a “Crucificação de Cristo”, em Einsiedeln, na Suíça, que visitara em 1958. A Exposição de Escultura ao Ar Livre, inaugurada provisoriamente em 1957, e tornada definitiva em 1959, aportou mais uma inovação. Para além de satisfazer intentos de embelezamento do espaço, a distribuição das esculturas pelo Parque D. Carlos I obedeceu a um programa educativo, de iniciação ou complemento da exposição confinada às paredes do edifício. Esta solução exigiu a duplicação, para pedra ou bronze, de peças em gesso da colecção, o que acarretou questões singulares sobre o registo da sua incorporação, interessantes para o estudo dos sistemas de documentação. A programação definida a partir dos anos 1990 (actualmente em revisão, no momento em que o Museu prepara a reabertura do edifício, encerrado para obras desde 2006) libertou-se dos imperativos da história das incorporações e pôde abandonar a distribuição das peças pela exclusividade de autores ou doadores. Centrou-se num intuito didáctico, que permitia ao público descortinar os antecedentes e as continuidades do Naturalismo português, com inevitável atenção à realidade local sobretudo através da mostra da cerâmica caldense. Mas os objectos que figuram na exposição corroboram apenas um dos discursos possíveis, pelo que esta estrutura do percurso não pode deixar de ser entendida como a que mais se ajusta, por agora, ao actual patamar da historiografia da arte e da museologia, ficando-nos a sensação do indispensável apoio da produção teórica e da acção educativa para efectivamente ajudar o visitante a interpretar o discurso proposto. Ao longo dos seus 40 anos, o Serviço Educativo do MJM foi aproximando as colecções do visitante. A partir de 196264, o MJM abria-se à “segunda revolução museológica – a pedagogia” (Juan Carlos Rico), com um “Serviço de Educação pela Arte”, filiado no modelo do MNAA. De centro de ocupação de tempos livres, onde as actividades se prendiam sobretudo com a formação artística e moral da criança, a acção educativa foi cedendo lugar a uma modalidade relacional com as colecções que, a partir dos anos 1980, e sobretudo dos anos 1990, tem preconizado o avanço do museu como espaço de aprendizagem não só na infância, mas ao longo de toda a vida.

Fig. 6 Museu José Malhoa Exposição de Escultura ao Ar Livre

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O edifício, um espaço de exposição na incipiente arquitectura de museus em Portugal A imagem do MJM reflecte obrigatoriamente a percepção da sua arquitectura e de como esta pode ser agente de afirmação pública de um museu. O edifício é, ele próprio, um “objecto museológico”, classificado, desde 2002, como Imóvel de Interesse Público. O objectivo de construir um novo edifício acompanhou a génese do MJM. As Caldas da Rainha não ofereciam espaços amplos para receber uma colecção e Montês não era partidário de museus instalados em edifícios prévios, cuja adaptação era dispendiosa e trazia múltiplos inconvenientes. Paulino Montês gizou um anteprojecto em 1934, documentado por reproduções fotográficas existentes nos arquivos do MJM e do Museu Municipal de Peniche. Nascido em Peniche, primo de António Montês e diplomado em 1923, o jovem arquitecto encontrava-se ligado às Caldas e ao projecto do “Museu de Artes” desde a V Exposição, realizada no Parque (1927), e do plano de urbanização para a cidade (1928), onde incluíra a localização de um edifício destinado a museu. Logo no início, nascera não só a ideia de dar um edifício próprio ao MJM, como também uma posição condigna no espaço citadino. A decisão da sua abertura provisória na Casa dos Barcos e da construção do futuro edifício no Parque, pertencente ao Hospital Termal, inscreveu-o num conjunto paisagístico e social vivido intensamente pela população caldense desde finais do século XIX. Uma mais-valia que acabou, no entanto, por limitar o seu pleno crescimento arquitectónico e impor constrangimentos sentidos até à actualidade. A data de elaboração do anteprojecto (1934) e a da construção do edifício (1940) são determinantes para a museologia e para a arquitectura nacional. Em 1934, decorre em Madrid a Conferencia Internacional de Estudios de Arquitectura y Servicios de los Museos de Arte, organizada pelo Office International des Musées8. Entre esse ano e o da sua construção, define-se o rumo da arquitectura portuguesa e realizam-se importantes obras em museus nacionais. Em termos políticos, esses são ainda os anos de consolidação do Estado Novo. Arquitectonicamente, o edifício era um compromisso. A fachada do anteprojecto fazia prever um acerto entre uma tímida concepção modernista, uma matriz de feição clássica e a revisão do formulário da presumida “arquitectura portuguesa”. Cada uma destas tendências patenteava, respectivamente, o espírito das primeiras experiências modernistas do jovem arquitecto, a tradição museológica e o enquadramento paisagístico e regional que se pretendia para o museu.

Sucessivos impedimentos financeiros adiaram a construção para 1940, ano de charneira em que a maioria dos autores vê o início da presumível “arquitectura do Estado Novo”. Se é certo que a sua edificação ocorre no âmbito das Comemorações Centenárias na Província da Estremadura, em termos formais o edifício do MJM não é um exemplar daquela arquitectura. Depois de se ter anunciado a construção de um edifício de 10 salas, em casa de tipo regional estremenho, confiada ao arquitecto Gonçalo Mello Breyner, a partir de Março de 1940, Eugénio Correia, arquitecto da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e colega de Paulino Montês desde a Escola de Belas Artes de Lisboa, seria o responsável pelos trabalhos da exposição e ergueria o edifício do Museu a partir do anteprojecto de 1934. Simplificava-o e acentuava a sua volumetria através do despojamento das superfícies exteriores; desapareciam as floreiras e os baixos-relevos projectados e a entrada era marcada por pórtico saliente, que passava a ser hexastilo e encimado por largo entablamento recto onde se inscrevia o nome do Museu. “Com tal secura, esta arquitectura sugere-se como peça virada sobre si própria” e o volume-cego afirma-a como “museu-contentor” (GUIMARÃES, 1998, p. 545). Enquanto objecto museológico, o edifício decorreu de uma reflexão programática entre o arquitecto e António Montês, o que o colocou na resolução de uma longa dialéctica tipológica e o fez herdeiro da clássica concepção de museu como “templo de artes”. A planta gizada no anteprojecto retratava o conhecimento das discussões na área, sintetizadas na conferência de Madrid e marcadas pelo confronto entre o esquema rectilíneo da exposição da galeria e a disposição radial da rotunda encimada por cúpula. Inspirava-se no modelo tipológico de Algarotti / Durand / Gliptoteca de Leo Von Klenze, embora a sua escala estivesse longe da monumentalidade e da decoração palaciana propostas por aqueles exemplos dos séculos XVIII e XIX (CARLOS RICO, 1999). Combinava-se antes com as recentes orientações tendentes à simplicidade e resumia-se a um quadrado, desenvolvido a partir de outro quadrado central a céu aberto, que tanto celebrava princípios de harmonia e de circulação ininterrupta e fechada do visitante, quanto recuperava o claustro conventual. O edifício do MJM era, pois, um peculiar exercício de teoria dos museus, operado a par e passo com as tendências estrangeiras, o que demonstra que, nos anos 1930-40, estas corriam generalizadamente no País; a proximidade teórica não era, no entanto, acompanhada pela prática, retardada pela rarefacção de iniciativas museológicas de raiz. Até 1940, os projectos arquitectónicos resumiam-se a edifícios pombalinos de história natural ou a modestos anexos de residência: o Jardim Botânico e o Museu de História Natural (1768-77), dirigidos pelo naturalista paduano Vandelli, junto à “Real Barraca”, no Alto da Ajuda; o Museu de História Natural e o Gabinete de Física

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Experimental da Universidade de Coimbra (1773-75), sob a direcção de Vandelli e construção de Guilherme Elsden; o projecto do Marquês de Angeja para o Museu de História Natural (1782-85), que ficou inacabado, sendo hoje o restaurante do Museu Nacional do Traje; e o anexo, já não existente, construído em 1836 por João Allen (1781-1848), no jardim da sua moradia, no Porto. A esporadicidade e a modéstia das construções de raiz para museus autorizam afirmar que o edifício do MJM é o primeiro pensado e construído para ser museu de arte em Portugal, como edifício autónomo e equipamento urbano, independente de interesses académicos do seu tempo, de particulares, nobres ou príncipes, reflectindo as orientações museográficas e ainda hoje existente. Inovador na história da museologia nacional, mas tardio e modesto, o edifício do MJM permaneceu, durante anos, como caso isolado e sem valias para o pensamento museológico português. As condicionantes programáticas sobrepuseram-se à inovação da iluminação, ventilação e simplicidade museográfica e dissimularam a importância que poderia ter assumido. As deficiências construtivas, como o frio e a excessiva humidade, para além das limitações de organização do espaço, condicionaram desde cedo a actividade do Museu. Erguido para “pavilhão” de exposição, o edifício de 1940 era acima de tudo um “contentor” para expor a colecção. De igual modo, as ampliações dos anos 1950 decorreram em função do volume da colecção e não para suprir a carência de espaços administrativos, técnicos, de conservação e educação. Com estas ampliações, ficava assente a sua imagem externa, numa unidade certificada pelo mesmo arquitecto; os novos volumes perpendiculares à fachada alteravam a “lógica da peça solta no terreno” (GUIMARÃES, Carlos, 1998, p. 546) sugerida pelo quadrado inicial, mas os seus contrafortes reforçavam a percepção do edifício como uma fortaleza, baluarte do tesouro artístico. Estas insuficiências foram-se agravando à medida que as funções exigidas ao Museu iam para além da exposição,

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que a sua equipa técnica aumentava e os requisitos dos visitantes cresciam em termos de conforto e diversidade cultural. Novas funções reflectiram-se numa diferente compartimentação. A inviabilização dos projectos de ampliação ou requalificação dos anos 1960-80, da autoria de Eugénio Correia e Richard Clark (arquitecto inglês que integrava o gabinete responsável pela edificação do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1983), sempre refreados pela falta de verbas, foi implicando a supressão de áreas de exposição em favor da Biblioteca de Arte, das reservas, dos serviços técnicos e educativos, etc.; a contaminação dos espaços públicos, semi-públicos e privados resultou na promiscuidade da circulação de pessoal de serviço, públicos e objectos, que colocava em causa a sua segurança e conservação. Já na década de 1990, os arquitectos José Daniel e João Santa-Rita foram convidados a conceber um projecto de remodelação, um compromisso na impossibilidade de ampliar o edifício. Encontra-se já concluído desde Setembro de 2006, esperando-se finalmente colmatar parte daquelas deficiências, sem deixar de se acautelar o respeito pelo valor documental do edifício. O MJM é a expressão da proximidade que a instituiçãomuseu pode desenvolver com a comunidade em geral e artística em particular. Daí resultaram leituras que explanaram o seu comprometimento como suporte de memória colectiva e local. Por outro lado, museus como o MJM têm sido acima de tudo os “museus de um homem só” ou das “devoções” das suas equipas técnicas. Conscientes de que essa realidade dificilmente será por completo invertida, o seu rumo deverá agenciar outras alternativas, promover o diálogo inter-institucional, insistir na iniciativa privada e no estreitamento efectivo com a comunidade. Além de uma construção no espaço, o MJM é também uma inscrição no tempo; a sua história e a história que pretende contar nunca estão terminadas...


Notas 1

Publicado no Diário do Governo, em 9 de Novembro de 1933.

2

Of. 334, 9 Novembro 1927 [Arquivo CMCR].

3

A Liga dos Amigos era um organismo particular, sem estatutos, e visava criar e organizar o museu, até à sua passagem para o Estado.

4 Em 1959, pela alteração à Constituição, a JPE deu lugar à Junta Distrital de Lisboa, a qual, por sua vez, em 1977, passou a Assembleia Distrital de Lisboa. 5

Decreto-Lei n.º 26611, de 19 de Maio de 1936, com fundamento na Lei n.º 1941, de 11 de Abril de 1936.

6

Em 2007, no quadro das orientações definidas pelo Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado, que cria o Instituto dos Museus e da Conservação, o Museu retoma a sua denominação original, voltando a designar-se Museu José Malhoa.

7 “Como

se faz um museu”, Tese final do estágio para conservador dos Museus por António Montês, MNAA, Lisboa, 1946 [Arquivo MJM].

8

Muitas das questões focadas permanecem actuais e foram compiladas em Muséographie – Architecture et aménagement des musées d’art: Conférence International d’Études. Madrid: Société des Nations, OIM, Institut de Coopération Intellectuelle, 1934.

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dossiĂŞ gestĂŁo de museus



Clara Frayão Camacho Gestão de Museus: modelos, desafios e mudanças

Q

uando em 2007 foi lançada a revista Museologia.pt, o tema Gestão de Museus foi desde logo anunciado como escolha do dossiê central deste segundo número. O contínuo crescimento de museus no nosso País, a experimentação de novos modelos de gestão à escala internacional e a imparável complexificação organizacional desta instituição cultural, foram alguns dos factores que nos levaram a colocar no centro do debate a “gestão de museus”. Enquanto organização cultural de grande especificidade técnica, em consequência das suas obrigações patrimoniais, e enquanto organismo social, que comunica e educa, promovendo uma forte inter-acção com a sua envolvente, o museu dos dias de hoje tem responsabilidades acrescidas face ao património cultural (exige-se mais e melhor conhecimento, conservação adequada e sem riscos, segurança reforçada) e face ao público (novas e renovadas exposições, conforto no acolhimento, abrangência multicultural, favorecimento da inclusão social, inter‑acção com recurso à tecnologia, lojas atractivas, presença nos media). Para re-centrar e re-situar o museu no mundo contemporâneo, a gestão desempenha um papel crucial, talvez insuficientemente valorizado, devendo merecer uma atenção redobrada da parte de todos os envolvidos: decisores políticos, responsáveis das entidades de tutela, directores de museus e responsáveis pela formação em meio universitário. Ao abordar este tema, quisemos dar voz às pessoas que no terreno diariamente se confrontam com acções de planeamento, de programação, de organização, de direcção, de tomada de decisão, de gestão financeira, de monitorização, de controlo, de avaliação, de mensuração, de correcção, de liderança de equipas. Pessoas que nos museus gerem outras pessoas, pessoas que formam equipas, de cujo trabalho resultam acções de conservação dos

acervos, organização e manutenção de reservas, inventário e documentação das colecções, concepção e produção de exposições, escrita de guias, de roteiros e de catálogos, preparação de visitas orientadas, criação de materiais pedagógicos, websites, CD-ROMs e DVDs, contactos com a comunicação social, angariação de mecenato... Não são pequenas as tarefas que hoje se pedem aos directores dos museus: conhecer bem o acervo, possuir aprofundadas noções de Museologia, comunicar activamente com o público, liderar a equipa, promover e estimular o grupo de amigos, ser activos na angariação de fundos, gerir administrativa e financeiramente os museus dentro de contextos de contínua escassez de recursos e de condicionalismos legais, que frequentemente não contribuem para a agilização de procedimentos. Provenientes maioritariamente da área das Humanidades e das Artes, é com alguma relutância que muitos directores encaram as áreas da gestão, que progressivamente se tornaram mais exigentes, mais especializadas e mais controladas. Algumas mudanças legislativas ocorridas recentemente no âmbito do Programa de Reforma da Administração Central do Estado (PRACE) e o próprio quadro legislativo dos museus portugueses têm concorrido para uma maior atenção à área da gestão dos museus. Da formação de dirigentes à criação de instrumentos de apoio à gestão, passando pela maior autonomia de gestão financeira dos museus dependentes da administração central: eis alguns dos passos que têm sido dados. Os directores dos museus da administração central têm frequentado nos últimos anos massivamente os cursos de gestão promovidos pelo Instituto Nacional de Administração (INA), numa tentativa de aproximar os métodos de gestão dos dirigentes da administração pública dos gestores privados.

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Museu Nacional de Etnologia Reservas fotografia de Jo達o Herdade


Se de uma forma geral os cursos tiveram o mérito de introduzir aos formandos as ferramentas da gestão privada, sem que, contudo, em contrapartida, se ativessem às particularidades e aos constrangimentos legais da administração pública, e não estando ainda feito o balanço e apurados os resultados da frequência destes cursos na gestão quotidiana dos museus, queremos crer que alguns dos conhecimentos adquiridos terão influenciado as práticas dos directores de museus. Convém a este propósito recordar que do lado da formação universitária em Museologia não existe no nosso País qualquer Pós-Graduação ou Mestrado na área da Gestão de Museus, a qual apenas se encontra representada ao nível de cadeira nalguns dos cursos existentes. Também a gestão por objectivos e a introdução do Sistema de Avaliação Integrado da Administração Pública (SIADAP), criado em 2004 e reformulado no final de 2007, trouxeram aos directores dos museus públicos novos mecanismos de monitorização e de avaliação, sem que, contudo, se atendesse às especificidades do campo de acção museológico. A Lei-Quadro dos Museus Portugueses cuidou de regular alguns relevantes instrumentos de apoio à gestão dos museus, tornando obrigatórios os seguintes documentos para os museus credenciados e consequentemente integrados na Rede Portuguesa de Museus (RPM): Regulamento Interno, Política de Incorporações, Plano de Conservação Preventiva e Plano de Segurança. Nesta matéria, o papel do Instituto dos Museus e da Conservação, e até 2007 do Instituto Português de Museus, é o de orientar e de regular a acção dos museus portugueses, com a produção de normas e de procedimentos técnicos de referência, designadamente para a elaboração dos documentos referidos. A par da definição da Missão e Objectivos e da Vocação do Museu, estes documentos têm sido sistematicamente produzidos, desde 2004, pelos museus da RPM com posterior aprovação das entidades de tutela, funcionando como importantes ferramentas de apoio à gestão que têm sido crescentemente adoptados por outros museus portugueses que prosseguem a via da qualificação. Como recente medida, no âmbito da criação do IMC e da regulamentação dos museus e palácios dependentes deste instituto, foi introduzida a possibilidade de gestão directa das receitas provenientes de mecenato, de acções de serviços educativo e de cedência de espaços por parte dos respectivos directores e a sua aplicação nas actividades do respectivo museu. Com o enquadramento legislativo referido, cujas medidas atingem, ora o universo dos museus da RPM (documentos obrigatórios no âmbito da Lei-Quadro), ora os museus públicos (SIADAP), ou, por enquanto, os museus da

administração central (cursos de formação do INA) ou mesmo apenas os do IMC (utilização das receitas), qual o panorama geral da gestão de museus em Portugal? Para nos ajudar a responder a esta questão contamos neste caderno central da revista com contributos variados e de diferentes proveniências. São autores dos artigos deste dossiê directores de museus que reflectem a diversidade de tutelas da paisagem museológica nacional: de museus públicos dependentes da administração central (Silvana Bessone e Pedro Lapa) ou da administração local (Graça Filipe) e de um museu privado de índole associativa (José Arnaud). Da administração pública, em representação do organismo de tutela, o IMC (Manuel Oleiro). E ainda uma gestora numa Fundação (Odete Patrício) e um académico (Filipe Serra). Do exterior chega-nos o contributo de David Fleming (Presidente do Comité de Gestão de Museus do ICOM e Director dos Museus de Liverpool), de Judith Ara Lázaro (Coordenadora do Departamento de Conservação do Museu do Prado) e de Roger Marcet i Barbé (Director do Museu Marítimo de Barcelona). Abre-se este dossiê com um luminoso texto de João Brigola sobre A crise institucional e simbólica do museu nas sociedades contemporâneas por onde perpassam algumas das questões que hoje se colocam à instituição: o museu em confronto com a mediatização e o entretenimento, em tempos de forte escrutínio da opinião pública, o museu que se redefine e se ultrapassa conceptualmente, o museu em crise que se interroga sobre a sua missão. Algumas destas questões irão permitir enquadrar os artigos seguintes: Como se gere este “novo” museu? Que desafios se colocam? Que mudanças se preconizam? Na diversidade de experiências e de perspectivas deste dossiê, por um lado, reflexo dos diferentes enquadramentos jurídicos das entidades de tutela e da variedade das respectivas realidades museológicas, e, por outro, fruto das ideologias e das reflexões dos seus autores, que traços comuns, que preocupações e que sugestões podemos encontrar? Três palavras-chave transparecem da leitura destes textos: modelos, desafios e mudanças. Os modelos que enquadram a gestão dos museus públicos são exemplarmente apresentados e problematizados no artigo de Manuel Bairrão Oleiro: museus públicos sob gestão privada; museus públicos geridos no quadro da administração pública; museus públicos apoiados pelo Estado e geridos com regras da administração privada. Também Filipe Serra aborda os modelos de gestão, quer públicos, quer privados dos museus portugueses, questiona o “museu - empresa” e propõe um modelo de articulação interna das funções executivas e de gestão financeira, a par da gestão das colecções e das actividades.

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A partir de um Museu Nacional, Silvana Bessone questiona igualmente os modelos de gestão públicos e de fundações para concluir pela gestão centralizada dos museus nacionais por parte do Estado. Já Pedro Lapa reclama para o Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea um modelo de gestão com maior autonomia e com financiamento plurianual. Começando por analisar as diferenças da gestão cultural face à gestão empresarial, Odete Patrício traça o modelo institucional da gestão do Museu de Serralves, no âmbito da Fundação de que depende, que preconizou no seu documento fundador “uma gestão especialmente flexível e com um certo grau de autonomia”. Flexibilidade é também um denominador comum ao Museu Arqueológico do Carmo, cujo Director, José Arnaud, defende este modelo de agilização da decisão, colocando no reverso da medalha as dificuldades em assegurar a sustentabilidade financeira do museu. Voltando aos museus públicos, necessariamente diverso é o modelo de gestão apresentado por Graça Filipe para o Ecomuseu Municipal do Seixal, organicamente dependente da autarquia, e cuja estrutura corresponde, por um lado, à das funções museológicas e, por outro, às necessidades decorrentes da disseminação territorial do próprio modelo ecomuseológico. Para Silvana Bessone são seis os desafios que se colocam à actual gestão dos museus nacionais: do provimento do quadro de pessoal passa-se a assegurar os trabalhadores imprescindíveis; da função pública passa-se ao modelo de gestão; do funcionamento aos objectivos; do museu como unidade cultural ao museu como pólo de desenvolvimento e da programação de actividades à definição de estratégias. Para Graça Filipe o desafio de reorganização dos serviços do Ecomuseu inscreve-se na atenção, por um lado, à dimensão da administração do museu na perspectiva da planificação estratégica e, por outro, ao envolvimento da comunidade como factor de mudança. Já para José Arnaud o equilíbrio entre o modelo associativo, voluntário, ágil e flexível da gestão, e a sustentabilidade financeira, dependente da volubilidade dos ingressos e das receitas originadas, constitui o principal desafio de gestão do museu. Filipe Serra resume no título do seu artigo o desafio maior que de forma quase generalizada se coloca aos museus portugueses: “a gestão dos recursos ou a arte de gerir a escassez.” Face aos modelos de gestão existentes e aos desafios que se colocam, mudança parece ser a palavra de ordem comum a uma substancial parte dos artigos deste dossiê. É de mudança que falam os autores que preenchem a rubrica Internacional, também ela dedicada ao tema da gestão. David Fleming, num texto inspirador e precisamente intitulado “Ideia chave: estratégias para conseguir a mudança nos museus”, baseia-se na sua experiência profissional de direcção de três museus

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no Reino Unido para reflectir sobre a necessidade de mudança nos museus, as estratégias utilizadas, os problemas encontrados e os resultados atingidos. De dois reconhecidos museus espanhóis – o Museu Nacional do Prado e o Museu Marítimo de Barcelona – chegamnos análises dos respectivos processos de mudança institucional. No Prado, e na sequência da alteração da natureza jurídica da instituição, operada desde 2003, busca-se dotar o museu de maior autonomia administrativa e flexibilidade para utilizar os recursos que gera em proveito próprio. No Museu Marítimo de Barcelona a criação, em 1993, de um Consórcio, constituído pela Deputación, pelo Município e pela Autoridade Portuária, conduziu a uma maior autonomia de gestão e de obtenção de recursos, rapidez na tomada de decisão, controlo dos recursos humanos e capacidade de gerar receitas. Mudança de paradigma, mudança de modelos: sugerem alguns dos autores portugueses. João Brigola coloca a tónica na necessidade de os museus enfrentarem a crise institucional e simbólica da instituição, “reinventando um modelo de gestão que respeite a especificidade do património cultural”. Mudança de políticas para os museus e para a arte contemporânea constituem o traço marcante do artigo de Pedro Lapa. Manuel Bairrão Oleiro lança pistas e apresenta uma proposta de alteração do modelo de gestão de alguns dos museus nacionais, seleccionados a partir de firmes e rigorosos critérios, através de uma experiência-piloto, baseada em contratosprograma com o Estado. Alterações na reformatação do instituto de tutela, na reconfiguração do mapa de museus dependentes e no financiamento do sector concorrem e completam o perfil das mudanças preconizadas. Num tempo de crise global à dimensão planetária e com abrangência no campo social, económico, político e cultural, os museus atravessam também uma crise de identidade para reencontrarem o seu lugar, enquanto instituições do tempo longo e da suposta perenidade e enquanto organizações abertas e atentas à mudança acelerada da envolvente. A busca deste difícil equilíbrio levanta inúmeras questões e dá azo a diferentes respostas sobre o modo como o museu se posiciona e o lugar que lhe cabe no xadrez social contemporâneo: templo ou fórum, lugar de conhecimento ou de divertimento, catedral da cultura ou centro comercial do património. Nesta conjuntura a gestão pode desempenhar um papel decisivo, ao definir com clareza a missão do museu, ao delinear a visão estratégica da instituição e ao articular os instrumentos e as ferramentas que melhor concorrerão para a rentabilização dos recursos existentes. As possibilidades abertas pelas diferentes configurações dos modelos de gestão devem constituir matéria de reflexão para decisores políticos e responsáveis de tutelas,


para que sem receios da experimentação que outros têm buscado com sucesso, também em Portugal se diversifiquem as práticas e se agilizem os procedimentos que permitam designadamente a alguns museus da administração central uma gestão enquadrada por parâmetros de maior autonomia e de maior eficácia. Mas também nos museus de tutela autárquica será interessante repensar os modelos existentes, desde o degrau mais básico que é o de considerar claramente adquirida a figura de “director” de museu que, apesar do disposto na Lei-Quadro dos Museus Portugueses, continua omissa na orgânica interna das autarquias, até à experimentação de modelos de parceria formal que possam associar diferentes municípios, ou, dentro destes, entidades públicas e privadas em modelos de colaboração jurídica a desbravar. Nos museus privados, cuja gestão parece constituir para muitos a utopia desejável, os perigos da liberalização avassaladora e o domínio das metas quantitativas nem sempre encontram justa correspondência na qualidade da investigação produzida ou na atenção às áreas mais ocultas do trabalho museológico, como o inventário, a conservação ou as reservas, tornando-se necessário rever alguns dos pressupostos deste modelo, alavancando-o mais estreitamente às funções museológicas. Introduzido o dossiê, esperamos que a riqueza e a diversidade dos artigos possam contribuir para o debate de ideias e para repensar com novos dados e argumentos a importante dimensão de gestão dos museus portugueses.

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Galeria do Rei D. Luís - Palácio Nacional da Ajuda Montagem da exposição do Museu do Hermitage fotografia de João Herdade


João Carlos Brigola A crise institucional e simbólica do museu nas sociedades contemporâneas O museu, tal como a cultura ocidental o herdou do séc. XVIII, atravessa uma profunda crise de identidade, não apenas institucional mas igualmente de representação simbólica. O coleccionismo e os museus são um dos instrumentos da crítica do contemporâneo, uma das chaves para a compreensão da post-modernidade. A explosão museal das últimas décadas tem colocado em evidência a efemeridade e a fragilidade de grande parte destas novas iniciativas museológicas, e acentuado o fosso que as separa dos museus já consolidados. É no quadro ético que a crise do museu nas sociedades contemporâneas, permeável à concorrência das indústrias do entretenimento e às leis do mercado e do marketing, ameaça corroer a sua base normativa e conceptual enquanto instituição central da cultura. Museums, as western culture knows it from the 18th century, are going through a severe crisis of identity, both institutional and of symbolic representation. Collections and museums are one of the tools of contemporary critic, one of the keys to understand post-modernity. The museum’s outburst of the last decades has put in evidence the briefness and fragility of these new initiatives, emphasizing the ditch between the new institutions and the already well-established museums. It’s from the ethic point of view that the museums’ crisis in the contemporary societies threatens to corrode its normative and conceptual basis as a central cultural institution. This is due to its permeability both to the competition of the entertainment industries and the marketing laws.

PALAVRAS-CHAVE: Museu, crise, globalização, pensamento contemporâneo, regeneração urbana, arte contemporânea, arquitectura de museus, código deontológico, gestão de museus, entretenimento, serviço público.

Universidade de Évora | joaobrigola@uevora.pt

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á duas décadas atrás, nos inícios dos anos oitenta, poucos seriam os que acreditariam num futuro prometedor para a instituição museológica, mas o debate actual encontra-a no centro da crítica da condição contemporânea. A avaliação do museu parece hoje oscilar entre eros e tanatos. Para uns o museu está mais sexy, mais atraente, enquanto para outros o museu pós-moderno se encontra irreversivelmente em ruínas. O museólogo francês André Desvalées, que tinha acompanhado de perto o intenso movimento doutrinário da Nova Museologia, defendeu em 2003 que “o museu [se] tornou uma droga para as populações, um modo para os políticos e uma mais valia para os arquitectos”.

instrumentos da crítica do contemporâneo, uma das chaves para a compreensão da post-modernidade. E esta crise, institucional e simbólica, não pode deixar de ser associada a duas características intrínsecas do museu enquanto lugar de produção, legitimação e divulgação de cultura, enquanto sistema global de informação: permeável, como um sensível sismógrafo, às mais ligeiras alterações de ordem cultural, política ou social, tem evidenciado uma surpreendente capacidade de adaptação à mudança. Permeabilidade e adaptabilidade que o deixam frequentemente desprotegido na crescente instrumentalização e manipulação das tutelas e dos poderes. Espaço de distinção e de prestígio, o museu ostenta um status symbol que talvez ajude a explicar o seu uso e abuso político.

Seja qual for o lado em que nos coloquemos, a perspectiva que adoptemos, parece indubitável que o museu tal como a cultura ocidental o herdou do séc. XVIII atravessa uma profunda crise de identidade, não apenas institucional mas – e o que é mais inquietante – uma crise de representação simbólica. O coleccionismo e os museus são pois um dos

A explosão museal das últimas décadas, registada um pouco por todo o mundo globalizado, incluindo os grandes países emergentes na Ásia e na América Latina, tem colocado em evidência a efemeridade e a fragilidade de grande parte destas novas iniciativas museológicas, e acentuado o fosso que as separa dos museus já consolidados.

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Os inquéritos mais exigentes, com critérios rigorosos de observação, têm desvendado um universo onde tantas vezes impera a inexistência de programação, a deficiente formulação da missão do museu, a ausência de sustentabilidade financeira, a carência de recursos humanos com formação adequada ou a sobreposição da arquitectura, do design e da cenografia face aos conteúdos museológicos, aos objectos e às colecções. Em muitas iniciativas locais, o museu pode até ser apresentado como uma razoável alternativa desculpabilizadora à destruição de contextos, sob a pressão do crescimento urbanístico. Frequentemente, abrir um museu constitui uma operação piedosa de luto post-mortem: primeiro alteram-se os territórios originais de produção e de usufruto dos bens culturais e depois exilam-se, desterram-se, os despojos em ‘museus/armazéns’. A crescente competitividade das cidades, apostando na criatividade e na inovação como factores estratégicos distintivos, tem invariavelmente utilizado o museu como âncora em vultuosas operações de regeneração urbana. Estas novas catedrais urbanas desconsagradas têm sido desenhadas, nem sempre com o sucesso imediato espectável, para servirem projectos de revalorização social de tecidos urbanos tradicionais ou degradados. O extraordinário crescimento demográfico fixado pelo MET em Nova York, a partir da sua edificação num bairro quase inabitado na década de setenta do séc. XIX, tem sido invocado como matriz histórica. Mas, mutatis mutandis, a sua repetição um século depois, com a experiência socialmente perturbante do Centro Pompidou no parisiense Beaubourg, revelou a fragilidade do modelo ao propiciar uma especulação urbanística que modificou para sempre o espírito e a matéria de um bairro popular. Cidades portuárias europeias com extensas zonas alteradas pelo abandono de actividades industriais tradicionais – casos de Liverpool, Marselha e Bilbao – transformaram-se em importantes case study ao confiarem à construção de equipamentos museológicos de grande escala programas de revitalização social. Estudos recentes têm evidenciado bem os efeitos dinamizadores que a arte moderna e contemporânea (a tipologia recorrente nestes museus) consegue transmitir ao mundo urbano, cerzindo tecidos sociais e económicos frágeis, atraindo o universo empreendedor e profissional da criação artística, abrindo portas à modernidade, real ou simbólica, até em áreas geográfica e culturalmente periféricas. Subsistem, é certo, como no caso de extremo mediatismo do Guggenheim-Bilbao, sombras de contestação que convocam argumentos quase sempre relacionados com a excessiva autoria arquitectural destes novos museus.

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Os seus críticos contestam a submissão da programação museológica ao programa icónico de uma extraordinária peça de arquitectura, denunciando a equação aparentemente mal resolvida entre a imagem esmagadora de escultura urbana e a leveza da política de conteúdos expositivos. Contudo, o que se nos afigura mais inquietante nestas imensas operações de intervenção no desenho do território é o modelo de expansionismo económico em que o museu se vê envolvido. O crescente escrutínio mediático destes casos tem ajudado a opinião pública a entender o que caracteriza este novo fenómeno mercantil à escala planetária: desde a formação da ‘Galáxia Guggenheim’, passando pelos conglomerados de museus – visível no fracassado negócio entre o Guggenheim e o Hermitage, em Las Vegas –, até à milionária operação de franchising do Louvre e do Guggenheim em Abou Dahbi, e às antenas do Centro Pompidou na China e à do Museu Rodin em São Salvador da Baía. Sendo certo que sempre se poderá argumentar ser esta uma estratégia apenas praticável pelos grandes museus do mundo, estamos em crer que nenhum país, mesmo o mais periférico se poderá considerar imune a esta tendência que ameaça contaminar as políticas culturais públicas. Na verdade, são entre nós já muito evidentes os sinais de adesão a projectos de internacionalização, e de criação de novos e inesperados espaços museais, mais pautados por critérios de mediatização da imagem do que pelo bem fundado argumento da valia artística e científica dos acervos disponibilizados. Este modelo expansionista é contestável na exacta medida em que impede, ou dificulta, um programa de investimentos na consolidação do património museológico nacional e porque introduz motivos de perturbação na definição de critérios e de prioridades culturais. Num polémico artigo publicado em Agosto de 1990, na New Review of Books, Francis Haskell introduziu um novo tema de juízo das práticas museológicas contemporâneas: o da excessiva frequência de cedência de quadros de grandes mestres para exposições temporárias e os seus efeitos colaterais. O pretexto para a expressão de tão contundentes opiniões – à época geralmente consideradas elitistas e incoerentes com o seu estatuto de comissário de exposições – foi a mostra dedicada a Tiziano, inaugurada no Palácio Ducal de Veneza e, mais tarde, na National Gallery of Art de Washington. O catedrático de História de Arte da Universidade de Oxford considerava deplorável a decisão de permitir que A festa dos deuses, de Bellini, uma das grandes obras primas da arte europeia, cruzasse o oceano para ser incluída numa exposição em que desempenharia um papel apenas marginal.


Pode argumentar-se que, em circunstâncias excepcionais, não nos deveríamos preocupar, mas quando as decisões de ceder quadros são uma consequência da política internacional ou da diplomacia artística (quer dizer, do desejo de conseguir em contrapartida empréstimos equiparáveis, como presumivelemente sucede neste caso), essa preocupação deveria converter-se em escândalo (HASKELL 2002 [2000]: 10-11) Esta prática, ainda hoje pouco contrariada, de implícita aceitação de reciprocidade de empréstimo entre museus sem prévia avaliação de riscos, e sem argumentos artísticos e científicos que justifiquem o movimento da obra, é um dos maiores perigos a que se encontram sujeitos tantos tesouros da cultura ocidental. Estará porventura por fazer o balanço crítico do que tem representado para a estabilidade física de muitas obras de arte – entre elas algumas obras-primas da humanidade – a sua intensa circulação nas últimas duas décadas. Mas, o principal potencial crítico destas posições dirigia-se, todavia, para outras áreas da actividade dos museus. O citado artigo denunciava o facto de grande parte dos museus italianos se encontrar fechada ou quase fechada, enquanto que a exposição de Tiziano poderia ser visitada quotidianamente entre as nove da manhã e as onze da noite. A conclusão mais alarmante era a de que, neste contexto, o trabalho dos conservadores estaria a ser desviado da produção de catálogos das colecções permanentes para os das exposições temporárias, tendo como consequência na gestão dos museus a utilização de largos recursos humanos e financeiros em produções efémeras, com prejuízo de outras funções estruturantes como o inventário e a documentação, o estudo, a investigação e a divulgação dos acervos. Ou seja, o novo paradigma empresarial, adoptado sobremaneira no mundo da cultura a partir da década de oitenta e baseado no aumento imperioso de receitas, de publicidade, e de patrocínios, estaria a empurrar os museus para o frenesim mercantil das exposições temporárias. Hoje, o aumento incontrolável de áreas expositivas e a hiperactividade programática dos grandes museus – que já levou alguns dos seus críticos mais mordazes a aconselharem uma cura de emagrecimento e de tranquilizantes – produziu um circuito internacional impossível de abrandar. Atente-se, por exemplo, no trânsito intenso das exposições itinerantes de chave-na-mão e nas rendosas actividades de transportes, embalagens e seguros, bem como nos efeitos multiplicadores nos fluxos turísticos e na promoção dos prestígios nacionais. Seria, contudo, apressada a conclusão de que estes critérios de gestão afectariam apenas os grandes museus de influência do mundo ocidental e, em particular, os que detêm colecções de arte, já que o trend envolve museus de menores dimensões e ambições e de todas as tipologias.

No que à Arte em particular diz respeito, seria indesculpável não equacionar todavia, nesta apreciação crítica, as considerações que F. Haskell deixou expressas no seu derradeiro escrito, O museu efémero. Em sua opinião, deve ser colocado a crédito das exposições temporárias a reunião de colecções privadas e públicas de grande qualidade e provenientes de todo o mundo, tal como pinturas realizadas por um único artista ao longo da sua carreira mostrando os estádios sucessivos do seu processo criativo, e ainda a apresentação ao público de artistas escassamente conhecidos, ou até a divulgação de escolas artísticas na íntegra. A face mais perceptível das opções preferenciais pelas actividades de forte mediatização e entretenimento – como o são as exposições temporárias e todo o merchandising associado – deriva do que o economista Georges Soros apelidou de ‘marketing fundamentalista’. Nos museus em geral, e em particular nos do mundo anglo-saxónico, verifica-se já um maior recrutamento, com a fruição de melhores salários, de técnicos com funções comunicacionais. Noutro registo, o Código Deontológico dos Museus e dos Profissionais, aprovado pelo ICOM, alerta para o perigo de desestruturação da profissão com o excessivo recurso ao out-sourcing, por motivos de lógica de racionalidade empresarial, com preocupantes efeitos no desaparecimento de algumas das profissões tradicionalmente ligadas à museologia e à museografia. Alguns críticos encaram com preocupação o facto de se contabilizarem frequentemente mais visitantes no conjunto de exposições temporárias, lojas, quiosques multimédia, restaurante, bar, esplanadas etc, do que nas salas das colecções permanentes. Contudo, os novos espaços museais (tantas vezes associados a outros equipamentos culturais) participam hoje de processos de sociabilidade e de deambulação urbanas, tais como os encontros amorosos ou a simples flânerie ociosa. Alguns directores de museus, perante um fenómeno que aparentemente não controlam, interrogam-se mesmo sobre os efeitos da passagem gradual do conceito de museu-templo ao conceito de museu-forum, com prejuízo das condições comummente associadas à boa fruição dos objectos e do discurso expositivo: tempo, atenção e concentração. Mas, é no quadro ético que a crise do museu nas sociedades contemporâneas se aproxima de tanatos, de uma danação que ameaça corroer a sua base normativa e conceptual enquanto instituição central da cultura: missão, confiança, integridade, autoridade e credibilidade. Com excessiva frequência, museus são notícia nos media pelos piores motivos, não sendo inusitado vê-los mais tratados nas páginas de polícia do que nas páginas culturais:

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Galeria do Rei D. Luís - Palácio Nacional da Ajuda Desembalagem das peças para a exposição do Museu do Hermitage fotografia de João Herdade

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conflito de interesses (em período de forte sobreaquecimento do mercado) nas relações dos museus com os universos do antiquariato, da actividade leiloeira e da peritagem de obras de arte; receptação de obras sem certificação de origem; participação de alguns profissionais no tráfico ilegal de antiguidades; roubos espectaculares de objectos expostos em desafio à sofisticação de meios de segurança; resistência à devolução aos países de origem de objectos saqueados em contexto de conflitos militares; intervenção directa de interesses comerciais nos conteúdos da exposição; etc. James N. Wood, ex‑director do Art Institute de Chicago, a encerrar o artigo dedicado à autoridade nos museus, texto que escreveu para a obra colectiva Whose Muse? Art museums and the public trust, considera que alguns sinais preocupantes estão a alterar perigosamente conceitos tradicionais e a questionar a essência do museu enquanto serviço público, nomeadamente a mudança da imagem como alimento espiritual para a de gratificação imediatista, conforme às indústrias do entretenimento; o ensino e a especialização substituídos pela celebridade e pelo imediatismo; a memória pela manipulação; a preservação dos objectos pelo seu consumo; a hierarquia dando lugar à promoção individual; e, finalmente, a arquitectura colocada ao serviço do espectáculo. Por todas as razões aqui sumariamente invocadas, o museu contemporâneo encontra-se sob suspeita. Ao longo da história da cultura ocidental - da civilização romana às vanguardas artísticas de novecentos - tinha sido possível documentar uma crítica continuada e consistente a comportamentos de coleccionadores privados e institucionais considerados cultural e socialmente desviantes. Mas era um juízo invariavelmente proveniente das elites intelectuais, de artistas, de cientistas e de escritores.

O que há de novo neste fenómeno de museofobia contemporânea é o de se basear num apertado e exigente escrutínio da comunicação social e da opinião pública, simultaneamente atraídos pelo escândalo, pelo sensacionalismo e pelas expectativas ambíguas alimentadas pelos novos museus. O conceito de crise é um dos mais estimulantes instrumentos de análise ao serviço das ciências sociais e humanas. Longe de significar uma avaliação irremediavelmente negativa, um juízo de valor sobre as tendências de uma época, permite outrossim iluminar períodos históricos conturbados e complexos, de transição, em que cesuras na tradição e na coesão preparam o terreno da novidade e da mudança. A ideia que fomos construindo da instituição museu ao longo dos dois últimos séculos tem sofrido nos anos mais recentes afrontamentos que a têm obrigado a superar, com evidente sucesso, alguns dos seus mais arreigados atavismos sociais. Contudo, o conceito de museu não poderá ser continuamente ultrapassado sem cessar. E estamos em crer existir mesmo uma margem de transgressão que não poderá ser trilhada, sob risco de se perder definitivamente o seu genius, a sua identidade. Por vezes, as instituições são historicamente confrontadas com o desafio da sobrevivência, obrigadas a assumir escolhas, a recusar caminhos e a optar por outros. No caso do museu contemporâneo, tendemos a acreditar na actualidade de um combate de ideias, na urgência de um movimento intelectual de renovação teórica, e no retorno ao ethos primacial que sublinhe a missão original da instituição. Tudo isto, que não é pouco, temperado pela prudente e pragmática necessidade de tornar sustentáveis os projectos, reinventando um modelo de gestão que respeite a especificidade do património cultural.

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Museu de Aveiro Obra de remodelação e ampliação fotografia de João Herdade

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Manuel Bairrão Oleiro Gestão e Museus – Contributo para uma reflexão Num momento em que se colocam questões e dúvidas sobre o papel dos museus e sobre o respectivo modelo de gestão, é importante debater e reflectir novas formas de financiamento das instituições museológicas, bem como a intervenção do Estado e do sector privado nesse processo. With the emergence of several questions and doubts concerning the museums’ role and management politics it is important to debate and discuss about new ways of financing these institutions. A reflection on the public intervention in this process, as well as the private one, is also hereby considered.

PALAVRAS-CHAVE: Modelos de gestão, privatização, Estado, financiamento, público.

Director do Instituto dos Museus e da Conservação | manueloleiro@imc-ip.pt

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s museus atravessam, um pouco por todo o lado, um tempo de interrogações, de dúvidas, de opções, para as quais têm sido encontradas as soluções mais díspares, provocando, quase sempre, reacções públicas ou privadas – de agrado ou de repúdio – de grupos profissionais ou do público mais atento. A abertura de novas extensões dos grandes museus, numa lógica de quase “franchising” museológico, as questões de afirmação e rendibilização da “marca” que surge associada aos museus de prestigio internacional, são alguns dos aspectos mais visíveis dessas mudanças que estreitamente se relacionam com a gestão dos museus, já que são sobretudo determinadas pela necessidade de obtenção de novos meios de financiamento. Consoante o lado do prisma com que se encara a existência e a função dos museus, a dicotomia salvaguarda do património e salvaguarda da efectiva capacidade de fruição das colecções vs sustentabilidade financeira e necessidade de acréscimo de públicos e de receitas, gera perplexidades, incompreensões, desconforto polvilhado de animosidade, ou satisfação, adesão e aplauso. Estando ainda distante de algumas dessas questões mais amplas, o debate sobre modelos de gestão para os museus públicos portugueses é, como a experiência internacional nos indica, uma questão sempre em aberto, desejavelmente sempre em evolução, para a qual não há respostas únicas nem permanentes, antes uma multiplicidade de possibilidades teóricas, nem sempre bem aceites ou compreendidas pelos vários actores.

Os modelos de gestão equacionáveis para estes museus serão, sob esta perspectiva, tantos quanto maior for a nossa capacidade de imaginação. Todos eles terão aspectos positivos que se confrontarão com os inevitáveis pontos menos bem conseguidos, igualmente presentes em todas as soluções. Sendo a gestão dos museus portugueses o tema do dossier deste número de “Museologia.pt”, considero oportuno dar o meu contributo para esse debate. Por questões de economia de espaço abordarei apenas três hipóteses de modelos de gestão, que serão deliberadamente apresentados em traços gerais, sem aprofundar os seus detalhes. Num dos extremos dessas possibilidades encontra‑se a privatização da gestão dos museus públicos. Mantendo-se a propriedade pública das colecções, o Estado entrega a gestão à iniciativa privada, com a correspondente responsabilidade pela sustentabilidade do museu, alheando-se das questões relacionadas com o financiamento da instituição. Afirmam os defensores desta tese que a iniciativa privada sabe gerir, ao contrário do Estado que, por definição, não será bom gestor, antes permite, quando não a fomenta mesmo, uma cultura de desperdício. De acordo com esta tese, um museu público entregue à gestão privada verá aumentar as suas receitas, crescer os seus públicos, alargar a sua capacidade de comunicação e optimizar os seus recursos humanos.

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Nesta perspectiva, a ênfase é claramente colocada na capacidade de gerar receitas, através de todos os meios, por forma a assegurar a sustentabilidade plena do museu, dela decorrendo que a principal figura do museu será o gestor financeiro, em relação ao qual o director do museu fica subalternizado na sua capacidade de decisão técnica e científica. Ficam, ou podem ficar, subalternizadas funções sociais que competem à instituição – por não serem imediatamente rentáveis – ficam, ou podem ficar, subalternizadas preocupações quanto à eficaz conservação das colecções – dado que a tónica é a da captação de mais e mais públicos – sem a preocupação de verificar qual o limite a partir do qual o património é, com esse acréscimo de visitantes, prejudicado, ou qual o limite a partir do qual o público deixa de ter uma efectiva capacidade de apreciação das colecções, tão grande é o número de visitantes que se concentra nas salas de exposição. Ficam, ou podem ficar, subalternizadas as capacidades endógenas de investigação sobre as colecções – por ser mais imediatamente gerador de receitas a apresentação de exposições “compradas em pacote”, de múltipla itinerância, de fácil compreensão e imediata adesão por todos os tipos de públicos. Fica, ou pode ficar, subalternizada a função educativa do museu, com o recurso sistemático a outsourcing sem um mínimo de recursos humanos com carácter de permanência, que assegurem as tarefas dos serviços educativos, verdadeiramente conhecedores das colecções e da missão do museu. Fica claramente subalternizada a função do director do museu, actor secundário num desempenho em que o papel principal – e decisivo – é do gestor, o qual tenderá a minimizar a gestão cultural em favor da gestão financeira, sempre que não sejam compatíveis. Sujeita às regras do sector privado, claramente mais maleáveis e adaptadas à realidade que as pesadas e constritivas regras que o Estado impõe a si mesmo, a gestão privada de um museu público, permite ultrapassar as conhecidas e crónicas dificuldades de recrutamento e gestão de recursos humanos, e possibilita uma facilidade de gestão orçamental e financeira que a rigidez de procedimentos da Administração Pública não permite. No extremo oposto encontra-se o museu público gerido no estrito quadro da Administração Pública. Não abdicando nem da propriedade das colecções, nem da sua gestão, o Estado escolhe (por concurso ou nomeação) um director que é simultaneamente o responsável pela gestão dos recursos humanos e financeiros e o responsável pelo cumprimento da totalidade das funções museológicas que cabem à instituição.

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Quase inteiramente dependente das dotações orçamentais atribuídas pelo Estado, sempre associadas a flutuações e ciclos em que os museus são parte envolvida e interessada, mas em relação aos quais não têm qualquer capacidade de intervenção, o director desse museu vive na permanente esperança que o Estado não esqueça as obrigações que tem perante o património cultural de que é detentor e se impôs salvaguardar. Podendo e devendo assegurar a capacidade de investigação sobre as colecções, as funções sociais, educativas e de divulgação junto dos vários públicos, não estando cerceado por meros critérios de procura de sustentabilidade a qualquer preço, o director do museu público confrontase com a incerteza de desconhecer o orçamento que lhe será atribuído no ano seguinte, não tendo possibilidade de promover uma programação plurianual, garante de afirmação e visibilidade constante da instituição pela qual é responsável. Impedido de utilizar as regras de gestão privadas, o director do museu público é obrigado a seguir uma inconsequente política de gestão de recursos humanos, rígida e plena de escolhos, que muitas vezes limita fortemente a sua capacidade de prestar um bom serviço público. Entre um extremo e outro, e sob enquadramentos legais que podem ser diversos, incluindo diferentes tipos de tutelas, encontra-se o museu financeiramente apoiado pelo Estado, de forma continuada, regular e significativa, mas gerido de acordo com regras de gestão privada. Não necessitando de assegurar a todo o custo e a qualquer preço a sua sustentabilidade – já que conta com o suporte anual que lhe é assegurado pelo Estado – a gestão deste museu contém em si o melhor dos dois extremos. O seu director consegue assegurar uma programação plurianual, pois conhece com antecedência qual o apoio orçamental do Estado nos anos seguintes, e pode desenvolver a totalidade das funções museológicas, sem excluir aquelas que não sejam imediatamente rentáveis. O seu gestor, seja ou não o director, tem a possibilidade de prosseguir uma eficaz gestão privada de recursos humanos, não necessita de fazer cedências patrimonialmente contraproducentes para garantir a sustentabilidade do museu, e consegue assegurar uma eficaz gestão orçamental, procurando, sem a pressão da subsistência – assegurada total ou parcialmente pelo Estado – complementar as suas fontes de financiamento, alargando dessa forma a capacidade de realização do museu. Em tons de “preto e branco”, omitindo propositadamente as muitas matizes que se podem conseguir entre os três principais modelos de gestão que sinteticamente referi, devo deixar claro que não sou adepto da primeira alternativa.


Considero que o Estado tem responsabilidades em relação ao património cultural, das quais não se pode alhear por completo, defendo que os museus públicos – apesar de terem ainda um longo caminho a fazer na conquista e fidelização de novos públicos, na diversificação das suas fontes de financiamento e na obtenção de mais receitas – não podem, nem devem, ser transformados em instituições descaracterizadas que a tudo se prestem para garantir a sustentabilidade orçamental, e considero também não ser evidente que – em igualdade de circunstâncias – a gestão pública não se possa equiparar à gestão privada. Não será por acaso que o interesse privado se manifesta sempre e apenas em relação aos museus públicos de grande valia patrimonial que, à partida e sob gestão do Estado, são geradores de significativas receitas, e nunca existiu qualquer manifestação de interesse privado na gestão de museus públicos localizados em zonas do interior, de pequena dimensão ou de menor valia patrimonial, cujas dificuldades em captar visitantes e gerar receitas seriam idênticas, fosse a sua gestão pública ou privada. A terceira das alternativas que acima refiro seria a mais interessante e aquela que melhores garantias de sucesso poderia trazer aos museus públicos. Não parecendo, no entanto, que o Estado esteja em ocasião de multiplicar indefinidamente compromissos firmes de incidência plurianual, e sendo evidente que nem todos os museus públicos estariam em condições de corresponder às diferentes exigências desse modelo, seria interessante testá-lo nalguns museus nacionais que reunissem simultaneamente o seguinte conjunto de condições – receberem já um número elevado de visitantes e possuírem uma significativa capacidade de crescimento desse número, quer pela valia patrimonial das colecções, quer pela dinâmica de programação demonstrada em anos anteriores; serem actualmente geradores de receita numa percentagem superior a sessenta por cento dos seus custos de funcionamento; possuírem uma equipa técnica adequada aos objectivos a atingir e receptiva à mudança; serem dirigidos por pessoas que aliem a capacidade técnica e científica (referidas aqui no sentido do conhecimento sobre a área temática das colecções) à capacidade gestionária (no sentido restrito de gestão financeira e de recursos humanos). O estabelecimento de contratos-programa entre a tutela e esses museus, com uma duração de três anos – incluindo a definição de objectivos mensuráveis (quantitativos e qualitativos), associada ao estabelecimento de regras de gestão flexível de recursos humanos, idênticas às da gestão privada, tendo por contrapartida a garantia plurianual de um determinado orçamento, o qual deveria ser obrigatoriamente complementado por outras fontes

de financiamento a assegurar pelo museu – constituiria seguramente um desafio e a possibilidade de demonstrar que, em igualdade de circunstâncias, os museus podem ser geridos pelo sector público com eficiência equiparável à gestão privada, sem perderem as suas características de serviço público cultural, necessário à afirmação da responsabilidade do Estado nesta matéria. Um museu com o qual fosse, nesses termos, celebrado um contrato-programa, ficaria com a responsabilidade de gerir a totalidade das receitas por si geradas, ficando também com a responsabilidade de prover à totalidade das suas despesas, fossem elas de funcionamento ou de investimento, sendo certo que o Estado não asseguraria qualquer outra dotação orçamental para além da que fosse fixada no respectivo contrato-programa. A definição das prioridades na afectação dos recursos conseguidos seria pois da inteira responsabilidade do director do museu, que apenas teria como limite mínimo a obrigatoriedade de cumprir os objectivos fixados nesse contrato-programa. Como atrás refiro, uma experiência deste tipo apenas poderia ser concretizada em dois ou três dos principais museus nacionais. Os outros museus públicos teriam de continuar a trabalhar no sentido de alcançarem os parâmetros indispensáveis à celebração dos contratosprograma, acima enunciados. A perspectiva dos directores dos museus públicos sobre esta questão será, naturalmente, diferenciada, em função das capacidades das instituições que gerem. Os directores dos museus mais visitados e com maior capacidade de gerar receitas vê-la-ão, porventura, como positiva, pelas possibilidades que lhes seriam abertas, enquanto os directores dos museus menos visitados ou com menor capacidade de gerar receita, a poderão ver como preocupante, por saberem que actualmente as instituições que dirigem são orçamentalmente subsidiárias das que se encontram no primeiro grupo. Por parte de quem dirige o IMC, que obrigatoriamente tem de ter em conta as diversas realidades dos museus públicos e tem de assegurar as suas capacidades de funcionamento, a possibilidade de celebração de tais contratos-programa teria necessariamente de ser acompanhada de um compromisso do Estado no sentido de serem encontradas soluções de financiamento para substituir as receitas que deixariam de ser afectas ao seu orçamento, por ficarem desde logo integradas no orçamento dos museus objecto de contrato-programa. Com efeito, sendo esses museus actualmente geradores de receitas significativas que, na sua maioria são afectas ao IMC e por este redistribuídas por forma a prover

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necessidades de museus públicos que não possuem as mesmas condições de atracção de públicos, seria indispensável que o Estado encontrasse as soluções orçamentais necessárias para manter em funcionamento esses outros museus, no quadro das suas obrigações para com o património cultural e os cidadãos. A lógica de subsidariedade orçamental que actualmente define o funcionamento do conjunto dos museus dependentes do IMC teria aqui o seu epílogo, devendo constituir uma oportunidade para que o Estado repensasse a coerência, ou a falta dela, que actualmente existe no que respeita ao conjunto de museus dependentes da Administração Central. Não fará sentido, numa lógica de recentragem de funções, que a Administração Central tutele directamente museus cujas colecções são de importância local e que, tendo sido, nalguns casos, criados a partir de iniciativas de grupos de cidadãos ou entidades localmente relevantes, acabaram por passar para a esfera da Administração Central por inexistência de condições, ao nível da Administração Local, para os manter em funcionamento. Nas últimas décadas temos vindo a assistir, de forma generalizada, à capacitação dos serviços da Administração Local direccionados para a gestão de equipamentos culturais. O número e a qualidade dos museus municipais aumentou significativamente, sobretudo a partir da década de 80 do século passado, e existem actualmente museus municipais que se constituem como referenciais nas respectivas áreas de intervenção. A transição negociada de alguns dos museus dependentes da Administração Central para a esfera de dependência da Administração Local, constituiria um passo importante na melhoria das condições de funcionamento e gestão do conjunto dos museus públicos, libertando recursos humanos e orçamentais a reafectar aos museus que permanecessem sob tutela da Administração Central. Não se restringindo às questões de recursos humanos e financeiros, uma decisão nesse sentido contribuiria para a criação de uma maior coerência/ homogeneidade no universo dos museus dependentes da Administração Central. Mas enquanto o futuro não chega e novos modelos de gestão não são experimentados, cabe ao IMC, tal como tem vindo a fazer e lhe compete no actual quadro legislativo, utilizar e aprofundar os instrumentos e meios actualmente ao dispor do Instituto e dos seus serviços dependentes. Sobretudo porque isso corresponde a um objectivo consequente, que deve estar sempre presente nas equipas técnicas: os museus públicos têm a obrigação de conquistar novos públicos e fidelizar a sua relação com o museu, no quadro da concretização das funções museológicas definidas por lei.

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Com a possível excepção de um ou dois casos, estes museus estão muito longe ainda de terem esgotado a sua capacidade de recepção de visitantes. A esse acréscimo de visitantes e de visibilidade pública deverá corresponder igualmente um aumento de receitas próprias, cada vez mais indispensáveis para permitir uma adequada gestão das instituições museológicas, atendendo às limitações orçamentais que o Estado vem evidenciando. Se é claramente exigível que o Estado cumpra as suas obrigações para com os cidadãos, fomentando a fruição do património cultural de que é detentor e dessa forma incrementando uma mais sólida formação cultural e social, é da mesma forma exigível que os museus públicos sejam instituições cada vez mais activas, abertas às comunidades onde se inserem, e interessadas em encontrar as melhores soluções para se posicionarem como agentes activos no incremento do turismo cultural de qualidade e como parceiros actuantes do desenvolvimento económico e cultural. Compete aos directores dos museus públicos, que são e devem ser simultaneamente os seus gestores, olhar para as instituições de que são responsáveis como unidades culturalmente produtivas, socialmente activas, patrimonialmente responsáveis, cuja eficácia pode e deve ser medida em função de critérios claros e adaptados às distintas capacidades de cada uma delas. A formação em gestão pública (CAGEP e/ou FORGEP), que todos os dirigentes têm de possuir, associada aos actuais instrumentos de gestão por objectivos, componente essencial das obrigatórias avaliações, individual e colectiva, de desempenho, constituem ferramentas que os directores de museus têm de utilizar de forma cada vez mais eficaz, para poderem cumprir as suas obrigações na área da gestão. Sob pena de darem razão àqueles que acham que os museus deveriam ser dirigidos por gestores e não por especialistas na respectiva área de actuação, os directores dos museus públicos têm de prestar às questões relacionadas com a gestão dos recursos humanos e orçamentais uma atenção idêntica à que prestam às questões relacionadas com a gestão museológica (referida aqui num sentido restrito, englobando a programação, a investigação, a conservação e a divulgação das colecções). Os directores têm, por isso, de se empenhar na captação de novos públicos, na procura de mais parcerias, na angariação de mais receitas, com o mesmo empenho com que se dedicam à preparação de novas exposições, ou à investigação sobre as colecções. Os que não o fizerem estarão a afirmar que não pretendem senão assumir responsabilidades científicas, técnicas ou artísticas, alheando-se de outras componentes que constituem parte integrante das responsabilidades de um director/gestor de museu.


O avanço conseguido no diploma orgânico do IMC, no que respeita à afectação directa a cada museu das receitas provenientes de um determinado conjunto de actividades, sendo inovador – no sentido em que pela primeira vez tal se encontra inscrito num diploma orgânico, assegurando a permanência dessa opção independentemente de alterações na direcção do Instituto – deve ser encarada pelos directores como um primeiro passo no sentido de um alargamento futuro de possibilidades dessa afectação directa, mas não pode deixar de ser vista também como um desafio à capacidade de cada museu encontrar fontes alternativas de financiamento que complementem o seu orçamento. Esta perspectiva é primordial para garantirmos coerência e eficácia nas mudanças que os tempos impõem. Competirá ao Estado, por seu turno, desbloquear os constrangimentos e dificuldades que ao longo dos últimos anos têm feito parte da vida quotidiana dos museus. Quer no que se refere às impossibilidades de contratação de novos recursos humanos que substituam os que se vão retirando da vida activa, quer às dificuldades de contratação de recursos que sazonalmente são indispensáveis para fazer face a acréscimos de públicos e à concretização de projectos pontuais. Se não é publicamente compreensível que os museus sejam obrigados a encerrar portas durante alguns períodos em que deveriam estar abertos ao público, apesar de tal se justificar por falta de pessoal que garanta a segurança das suas colecções, não é igualmente compreensível que o Estado não agilize procedimentos com vista à resolução célere das situações atrás apontadas e perpetue constrangimentos processuais e administrativos, distantes das formas eficazes de gestão que se pretendem. Também no que se refere às dotações orçamentais que anualmente são atribuídas ao sector, não é igualmente perceptível que o mesmo Estado que aposta no desenvolvimento do turismo cultural, não acompanhe essa aposta com o financiamento indispensável à prestação dos serviços públicos que os museus devem prestar, para poderem ser parceiros mais activos desse desenvolvimento.

Os orçamentos atribuídos aos museus devem assim ultrapassar a crónica suborçamentação que tem sido seu apanágio, contribuindo para alguma desresponsabilização dos seus directores. É aliás motivo de perplexidade que, atendendo ao papel relevante que os museus desempenham em matéria de resposta turística, constituindo-se nalguns casos como agentes incontornáveis de fomento turístico, se verifique não haver retorno financeiro do sector do turismo para apoio a esse papel, o qual ajudaria a resolver alguns dos constrangimentos existentes. Surpreendente é também o facto de, apesar do aumento do número de visitantes dos museus públicos registado nos últimos anos, o Estado diminuir as verbas necessárias ao funcionamento do sector, como que penalizando (ao invés de incentivar, como seria expectável) os ganhos de eficiência verificados. A multiplicação de dificuldades e constrangimentos, quando ultrapassa o limite do aceitável, constitui factor gravoso de desmotivação das equipas, que não vêm qualquer reconhecimento do Estado para a dedicação que têm para com as instituições onde trabalham, nem para os esforços de melhor gestão que vêm fazendo, com resultados positivos mensuráveis. Tendo os museus públicos percorrido um longo caminho nas últimas décadas, existindo uma percepção clara das suas obrigações de serviço público, e havendo interessantes dinâmicas em muitos deles, importa dotá-los das condições indispensáveis para que possam desenvolver a totalidade das suas capacidades e responsabilidades de desenvolvimento cultural, educativo, formativo, social e também económico. Mais urgente ainda que a alteração do seu modelo de gestão, é a necessidade de uma definição clara de qual o efectivo papel que o Estado pretende que os museus públicos desempenhem, a qual terá de ser obrigatoriamente acompanhada das condições mínimas para que o possam cumprir, de acordo aliás com o que estabelece a Lei-Quadro dos Museus Portugueses, aprovada – recorde-se – por voto unânime dos deputados à Assembleia da República.

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Museu Grão Vasco, Viseu Reservas fotografia de João Herdade

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Filipe N. B. Mascarenhas Serra Museus: a gestão dos recursos ou a arte de gerir a escassez Os museus portugueses, públicos e não públicos, apesar da notável evolução das últimas décadas, caracterizam-se, no geral, por uma insuficiência de meios e uma indefinição de modelos avançados de gestão, com consequências directas na qualidade do serviço cultural, educativo e social prestado à comunidade. No presente artigo, propomos uma abordagem necessariamente breve sobre os desafios colocados às autoridades de tutela, responsáveis e gestores na formulação de uma política eficiente de gestão dos recursos, deixando ainda algumas questões para reflexão. Trata-se de um humilde contibuto numa área ainda tão carenciada de massa crítica. The portuguese museums, either public or not, in spite of its remarkable evolution in the last decades, on the whole are characterized by insufficient means and indefinition of advanced administration models, with direct consequences on the quality of the cultural, educational and social service to the community. In this article we propose an inevitable brief approach about the challenges they create to its tutorial authorities, to those who have their responsability and to its administrators, in what concerns the formulation of an efficient management resources politic, although leaving some other questions for further reflection. This un humble contribution to an area still in deficit of great critical analysis.

PALAVRAS-CHAVE: Escassez, gestão, organização, recursos, investimento, comunicação, marketing, museu-empresa, qualificação, formação, profissionalismo, deontologia, parcerias, carreiras, financiamento, fundações.

Assessor principal de carreira do IGESPAR (Ministério da Cultura), Mestre em Património Cultural UCP, Professor universitário, Jurista FDL | fms2@sapo.pt

1. Enquadramento ou a acepção do museu enquanto organização

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iz-se, em linguagem comum, que a economia significa poupar. Os economistas dizem que a Economia é a ciência que permite gerir racionalmente a escassez de bens e de meios. Os agentes económicos dizem que a Economia deve permitir, regular e facilitar o funcionamento do mercado na perspectiva do lucro ou, mais modernamente, na obtenção de um elevado grau de satisfação dos clientes ou de fidelização. Nos museus de hoje, mesmo que alguns teimem em não o reconhecer, há um pouco de todos estes conceitos. Com a deselitização no pós-guerra (1945), os museus começaram a chegar a camadas alargadas de públicos, tornando-se, gradualmente, em casos bem sucedidos de interacção com a comunidade, de mais-valia cultural e de factor de crescimento económico. Gerar emprego, contribuir decisivamente para o desenvolvimento do turismo internacional e, sobretudo, tornar-se num poderoso meio educativo e social, passaram a ser a imagem de marca dos museus um pouco por todo o lado.

São estes os museus modernos: instituições populares, acarinhadas, exigentes, cada vez mais procuradas e reconhecidas como espaços onde se aprende e onde se colhe igualmente uma componente de lazer, a qual pode funcionar como gancho para os públicos relativos, irregulares ou até retraídos. Um pouco por todo o mundo civilizado, onde a Cultura não é uma menoridade, cidades grandes e pequenas, territórios, empresas, associações, confissões religiosas, clubes desportivos, particulares, todos querem ter o seu museu. Inevitável como a necessidade de pôr um corpo inteiro a funcionar, a gestão das colecções convoca, necessariamente, a gestão dos recursos. Com todas as mutações conceptuais, tecnológicas e de exigência crescente dos públicos, especializados ou não, os gestores sentem a pressão de uma absoluta necessidade de acompanhar a mudança, formando os seus profissionais e angariando novos apoios, novas e diversificadas fontes de financiamento, tendo em vista a tão desejada e anunciada auto-sustentabilidade. É essa a adaptação que se pretende de quem tem a responsabilidade de gerir os recursos, sem que se comprometam os objectivos científicos e educativos das instituições museológicas.

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Ou seja, a gestão dos museus, lato sensu, deverá ter como desiderato fundamental encontrar os caminhos mais pragmáticos e eficazes para a tomada de decisões que permitam a prossecução competente das missões do museu, a planificação e a execução do seu programa, e a satisfação tão plena quanto possível das necessidades culturais, sociais e lúdicas dos públicos, justamente ao encontro do conceito de grau de satisfação dos clientes. É neste contexto que surgem as interrogações essenciais: a gestão como instrumento de racionalidade; a figura institucional e funcional do gestor e o respectivo papel; a estrutura organizativa; os recursos humanos (não há museus sem as pessoas); os recursos financeiros e os recursos logísticos (porque é de uma verdadeira guerra que se trata); e, ainda, a comunicação e, o marketing, em particular. A designada boa gestão é hoje uma realidade multifacetada nas diferentes latitudes e pode corresponder a experiências muito particulares. Na Martinique, por exemplo, ilha do Caribe sob administração francesa, encontramos o Museu da Banana e o Museu do Rum. E porque não? Os papéis interpretativo, formativo e turístico estão presentes. A gestão dos recursos, por modestos que sejam, também. Apesar de o conceito tradicional de museu, enquanto instituição cultural prestigiada, continuar relativamente estabilizado em torno das colecções e da respectiva conservação, inventariação, investigação, divulgação, e do cumprimento de fins educativos e sociais, para além do carácter não lucrativo, verificamos que esse mesmo conceito é actualmente objecto de uma reflexão. Não há, todavia, incompatibilidade com o facto de que os museus são hoje igualmente avaliados pela qualidade da gestão como critério elegível e escrutinado por todos os actores: autoridades de tutela, responsáveis, profissionais, investigadores, públicos, potenciais financiadores e os media. A boa gestão dos museus alicerça-se na definição clara do interesse público/interesse cultural que se pretende prosseguir prioritariamente, pelo estabelecimento de competências devidamente circunscritas, pela fixação de metas estratégicas e objectivos a médio e longo prazo, mediante uma planificação cuidadosa, séria e exequível das actividades anuais e ou plurianuais. Tendo sempre presente que os museus devem ser instituições não lucrativas, acresce que a boa gestão pressupõe ainda um lado ético e deontológico, bastas vezes ignorado ou mal interpretado. É desta forma, já quase pacífica, que as tutelas e os responsáveis dos principais museus mundiais comprenderam há muito a conveniência em reconhecer a necessária relevância dos instrumentos básicos de gestão administrativa (sem a tradicional conotação pejorativa mas, ao invés, entendida como um

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conjunto nobre, eficaz e avançado de instrumentos e procedimentos), constitutindo, por sua vez, complemento fundamental das tarefas de gestão das colecções a cargo dos conservadores, conservadores-restauradores e demais técnicos. É este, afinal, o conceito de gestão museológica integrada. Fazer escolhas de acordo com os meios disponíveis – escassos, por regra ou, no caso português, por natureza - e incrementá-los, eis o grande desafio. A organização administrativa dos museus deverá servir, assim, os propósitos da boa gestão e não constituir-se como um factor de ineficácia; para isso necessita de uma direcção competente (mais preocupada com a instituição do que com a promoção pessoal), de profissionais vinculados e de colaboradores externos, como núcleo fundamental dos recursos humanos, a que acrescem as vertentes da gestão financeira, logística e a divulgação/marketing. Todos devem encontrar-se ao serviço dos sectores ligados à gestão científica, como o tratamento das colecções, os serviços educativos, os centros de documentação e multimédia, as exposições e as publicações. Por outro lado, a gestão deverá ser equacionada no âmbito das actividades internas, envolvendo as autoridades de tutela e os responsáveis, o pessoal permanente e precário, os voluntários e outros colaboradores e, no relacionamento com o exterior, os poderes públicos, os mecenas e ou patrocinadores, instituições, Fundações, Escolas e Universidades, a comunicação social e mesmo os prestadores de serviços/fornecedores que trabalham regularmente com museus. Os responsáveis, como os directores, os conservadores, os gestores culturais, os gestores administrativos, as chefias intermédias de departamentos, os gestores de projectos ou coordenadores de equipas, deverão assumir-se como protagonistas, cabendo-lhes especiais responsabilidades perante os novos desafios e exigências. A gestão depende, assim, de uma liderança forte, autorizada e competente, que deverá seguir uma política bem definida, uma missão correctamente balizada, um controlo efectivo da execução das referidas metas, uma avaliação permanente do cumprimento das principais funções estabelecidas e ainda uma política eficiente de comunicação, interna e externa. Os Museus são organizações e, nessa qualidade, não se compadecem com o conformismo, a lamúria ou a desresponsabilização. Ao invés, o mérito advém do que se consegue alcançar a partir da escassez, sem recurso a estatísticas deturpadas, desvirtuação de objectivos, eventos de fachada, jogos mesquinhos de poder ou de vaidades pessoais. Se os museus devem gerar o saber, a investigação, a informação, a conquista de públicos, a criação de parcerias e de plataformas, devem também ser


capazes de angariar e gerir os meios que lhes confiram uma retaguarda sólida. De uma verdade insofismável não adianta tentar escapar: qualquer museu, por excepcionais colecções que possua, jamais terá qualidade sem uma estrutura organizativa e uma gestão eficiente dos recursos (o mesmo é dizer, sem entropias inúteis ou desperdícios), competente, moderna e ousada.

2. Os museus e os modelos de gestão Os museus em Portugal, muito em resultado da sua diversidade quanto a tipologias e tutelas, apresentam situações assaz variadas em matéria de organização orçamental. O financiamento de base, partindo de uma entidade exterior ao museu, ainda que tutelado por ela, não é muitas vezes sinónimo da existência de orçamento privativo. Com efeito, verifica-se que a realidade orçamental dos museus portugueses, públicos e não públicos, é diversificada, complexa e, em muitos casos, incoerente e de grande fragilidade. Permitidas pelo Código do ICOM, os museus devem promover actividades geradoras de receitas, distinguidas das suas funções culturais, dando-lhes embora sustentabilidade. Relativamente às “receitas próprias”, realidade em relação à qual existe ainda alguma resistência, umas vezes por ignorância, outras por preconceito, outras ainda por incompreensão do funcionamento do mercado, urge conseguir a sua incrementação e diversificação. Curiosamente, um economista americano de prestígio, Prémio Nobel de Economia, afirmava, no dealbar dos anos 60, que o mercado empresarial jamais se cruzaria com o mercado cultural, por incompatibilidade de regras, princípios e objectivos. Veja-se como o tempo veio a provar justamente o contrário. Assistimos hoje à crescente interdependência e ao fomento das relações entre os agentes e as instituições culturais e os agentes económicos, criando sinergias das quais a Cultura, em geral, e o Património, em particular, só podem beneficiar. A exigência dos nossos dias traduz-se, pois, na procura de ideias e sugestões de fontes adicionais de financiamento adaptáveis aos museus. Sendo afinal uma questão de imaginação e de dinamismo, passa igualmente pela sua viabilização prática e pela habitual cautela no que concerne à defesa intransigente dos superiores interesses dos museus. Estamos colocados perante um novo paradigma, pelo que a ideia principal será a de os responsáveis, mormente os gestores, serem capazes de criar e acrescentar novas valências

aos museus, como verdadeiros prestadores de serviços no mercado, para além das diversas modalidades já praticadas, até por pequenas instituições. Mesmo que no universo dos museus portugueses, a médio ou longo prazo, se caminhe para um modelo de “museu-empresa”, a organização orçamental e contabilística deverá sempre acolher as necessárias particularidades. Só com o respectivo reconhecimento, o que nem sempre é fácil obter, será possível flexibilizar os procedimentos, facilitando as tarefas dos profissionais e melhorando o seu desempenho, sem nunca deixar de prosseguir o interesse público (mesmo pelos museus não públicos). No que concerne ainda ao conceito de “museu-empresa”, caberá dar aqui um pequeno contributo para desfazer equívocos ou interpretações distorcidas: o modelo para que caminhamos poderá implicar a transposição gradual de metodologias e critérios de gestão das organizações empresariais, sem que daí resulte a conversão do museu numa empresa. De resto, tem sido essa a tendência mais recente na administração pública, com a aproximação, ou mesmo uniformização, ao mundo do empresariado privado em matérias de racionalidade na utilização dos meios, fixação de objectivos e respectiva avaliação, procedimentos, e mesmo no plano dos direitos e deveres. Sendo certo que não existem bitolas únicas, podemos sugerir, em termos práticos, um modelo de articulação interna, tão legítimo como qualquer outro (desde que coerente e funcional): I - Função executiva e de gestão financeira: 1. Planificação/Investimento; 2. Estratégias e procedimentos; 3. Financiamento; 4. Recursos humanos; 5. Relações com o exterior; 6. Comunicação / II - Tutela das colecções: 1. Conservação; 2. Política das colecções; 3. Gestão da informação e do inventário / III - Política de actividades: 1. Exposições ou outros eventos; 2. Serviços educativos; 3. Publicações; 4. Marketing / IV – Instalações: Manutenção. Ao Estado, enfim, através do Instituto dos Museus e da Conservação (IMC) e da Rede Portuguesa de Museus (RPM), caberá desempenhar, junto da generalidade das instituições e não apenas dos museus públicos, um papel crucial de enquadramento, orientação, apoio técnico e, não menos importante, de forte estímulo, no respeito pelo universo desigual dos museus portugueses. Essa diversidade reflecte-se, aliás, na tipologia, na titularidade e ou propriedade, dimensões dos espaços físicos, quantidade e qualidade dos espólios, nível de qualificação dos profissionais, interacção com a comunidade, política de comunicação, entre outros.

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Museu Abade de Baçal Colocação da suspensão dos telões na entrada fotografia de João Herdade


3. Os recursos humanos ou a aposta na qualificação Deve ser esse o pressuposto e o animus: criar, manter e fomentar, em qualquer museu, um elevado padrão de qualificações de todos os grupos profissionais. A formação e a valorização profissionais devem constar sempre de todos os planos de actividades, não como uma despesa residual que se tolera como um vizinho incómodo, mas como investimento na formação de capital humano, ou melhor ainda, como o investimento. Ninguém pode exigir um serviço de qualidade se funcionários e colaboradores não receberem formação profissional adequada e atempada. O objectivo é habilitar os profissionais tendo em vista dar uma resposta eficaz às necessidades do museu e dos públicos e, em última instância, contribuir para o desenvolvimento de todas as actividades do museu. Apesar das teses que defendem que as organizações não se devem centrar excessivamente nos colaboradores (há mais vida para além das pessoas, dizem), somos partidários da tese contrária, continuando a dar o primado aos profissionais. O sucesso das organizações resulta também e muito da excelência dos recursos humanos. De um outro ponto de vista, mais básico, entendemos a qualificação como um binómio: a formação profissional e as habilitações académicas, vistas como um factor de enriquecimento pessoal, profissional e institucional. Olhada desta forma ampla, a formação e a valorização profissionais são também um indicativo de gestão, o que nos leva, necessariamente, ao envolvimento dos gestores. Estes devem interessar-se no sentido de que os profissionais possam usufruir de uma formação inicial e de formação contínua, e ser estimulados para uma crescente preparação académica. Tal empenhamento só pode reger-se por um objectivo essencial: a melhoria da qualidade do serviço que é prestado pelas instituições museológicas. Não haverá melhoria sem qualificação. E aqui entram os profissionais: nesta, como em outras matérias, terão de ser, eles próprios, mais proactivos e exigentes. Da carência de meios, são responsáveis as autoridades de tutela e os gestores. Da omissão e da passividade, são todos responsáveis. Esperemos que o QREN, última oportunidade, tão virado para a qualificação, não esqueça os recursos humanos das instituições culturais, e dos museus, em particular. De resto, se a própria Lei-Quadro dos Museus (Lei nº 47/2004, de 19 de Agosto) define, logo no início do seu articulado, como princípio basilar, a prossecução do interesse público por todos os museus, só podemos concluir que aquele se prende com a qualidade do serviço prestado.

Pugnar pela formação profissional é também garantir a qualidade, é dar verdadeiro sentido ao interesse público. Ainda no seio da Lei-Quadro, a defesa da promoção do rigor técnico e profissional das práticas museológicas conduz à necessidade de qualificar e preparar o respectivo pessoal. O diploma reconhece igualmente que, qualquer museu, de acordo com a sua vocação, características e dimensão, deverá proporcionar formação especializada ao pessoal, de acordo com a legislação aplicável. Com mais convicção, o Código de Ética do ICOM (actual versão, Seul, 2004) coloca a formação profissional em dois planos: por um lado, a competência e, por outro, reconhece que a formação profissional tem influência, ainda que indirecta, no próprio desempenho deontológico dos profissionais. Podemos ir mais longe: a repercussão poderá ser até muito directa. A deontologia e o cumprimento das obrigações profissionais passam também pela actualização de conhecimentos. Um profissional melhor preparado e habilitado, do ponto de vista da competência, estará teoricamente em melhores condições para ver reforçada a sua capacidade de aplicação dos princípios deontológicos essenciais. Nesta perspectiva, faz sentido que o Código do ICOM se preocupe em tratar da formação, partindo do princípio de que um profissional competente saberá igualmente observar e respeitar as regras deontológicas para além de adoptar um comportamento ético desejavelmente irrepreensível. São estas três valências que fazem um bom profissional e não apenas a competência, soit disant, “técnica”. Será ainda de referir que a formação profissional, quando promovida pelo museu, através das suas estruturas e formadores (que podem aliás ser profissionais do próprio museu ou de outros museus), e sejam quais forem os grupos de pessoal envolvidos, deve depender sempre de uma malha apertada de critérios de qualidade. Entre fazer formação interna sem qualidade ou não fazer, será de optar pela segunda, solução seguramente menos perversa. Nesse caso e em função da capacidade financeira disponível (leia-se orçamental), torna-se preferível recorrer a entidades externas, desde que estas estejam devidamente credenciadas e constituam um corpo de formadores experiente, com currículo adequado e, insistimos, experiência absolutamente comprovada na área da museologia. Deve atalhar-se algum oportunismo e incompetência que grassam um pouco por todo o mercado da prestação de serviços de formação profissional, sobretudo quando sabemos que a situação da formação na área específica da cultura é ainda deficitária. Ainda e outra vez, apesar da pobreza dos meios, é possível fazer mais e melhor. De resto, um novo conceito começa a ganhar contornos com a oferta da designada “formação avançada”, ministrada por universidades, e que se perfila como uma excelente solução para colmatar as habituais e conhecidas insuficiências.

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4. As carreiras, as necessidades funcionais e o novo desenho legal Após um processo longo e acidentado, as carreiras profissionais foram sofrendo, desde a década de 60, as mutações próprias dos sucessivos períodos políticos e respectivas orientações ideológicas bem como a instabilidade governativa, designadamente, no Ministério da Cultura. Curiosamente, este Ministério veio a revelar-se dos mais flutuantes do ponto de vista da sua titularidade, evidenciando bem como as apetências partidárias e pessoais bastas vezes se enganam quanto a uma aparente facilidade da gestão política. Os museus e o património em geral não são excepção. Na área da Cultura, os parcos meios, ou mesmo a penúria, por um lado, e os poderosos lobbies, por outro, bem como o acesso directo aos media, constituem um desafio para o qual a classe política, no geral, não se encontra preparada. E nas autarquias locais igual raciocínio é facilmente aplicável, apesar da proximidade. Nestas condições e em síntese, confirma-se o paradigma de que os museus portugueses, públicos e não públicos, precisam forçosamente de pessoal próprio, em número conveniente, com qualificações específicas e quadros de pessoal adequados (embora neste particular haja uma evolução legal recente que cria um novo figurino formal a que voltaremos). Assim, deste imperativo, insistimos na defesa do princípio orientador segundo o qual os conservadores deverão continuar a pugnar por uma valorização remuneratória que os distinga de outras carreiras generalistas de técnico superior, tarefa bem mais difícil agora com o novo nivelamento salarial na administração pública. Confluindo com esta questão, e com a definição/articulação dos museólogos, encontramos uma outra reivindicação relativa à criação de uma carreira na área da investigação, havendo quem defenda, com legitimidade, que haveria espaço e justificação para um carreira autónoma de investigador nos museus e nos monumentos musealizados. Ainda assim, os contornos de uma eventual carreira com esse perfil teriam de ser ajustados a idênticas carreiras que encontramos no universo das instituições científicas e do ensino superior, tendo em vista evitar novos desfasamentos com essas áreas do saber. Também aqui as dificuldades e restrições legais aumentaram recentemente. Por outro lado e seguindo uma tendência que começa a afirmar-se nos serviços públicos, devemos continuar a admitir a possibilidade de se recorrer a pessoal externo, expediente muitas vezes necessário e desejável, desde que fundamentado.

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Esta externalização (adoptando já a nova terminologia), exige, de igual forma, qualificações, competências e grau de preparação em tudo semelhantes aos requeridos, teoricamente, ao pessoal que trabalha nos museus em regime permanente. Do ponto de vista puramente orçamental, parece continuar por provar que o crescente recurso ao outsourcing represente qualquer economia efectiva em matéria de despesas. Obviamente que toda esta lógica de funcionamento, ou seja, a dicotomia “pessoal permanente-aquisição de serviços externos” cairá pela base se o futuro trouxer, como parece, a implementação de um conceito de gestão concessionada. Nesse cenário, o pessoal vinculado, ou pessoal dos quadros na acepção convencional, será objecto de uma progressiva redução, como aliás já se verifica com a mencionada evolução legal. As instituições culturais públicas não foram reportadas às designadas funções de soberania, pelo que o respectivo pessoal passará a regime de contrato. Assim, parece, vai ser afastado de vez o conceito tradicional de carreira, reforçando a crescente volatilidade do mercado de trabalho. Independentemente destas evoluções, deve fomentar‑se o voluntariado cuja prática continua a revelar-se um tanto incipiente nos museus portugueses. Referimo-nos a verdadeiro voluntariado, devidamente enquadrado, e não a meros apontamentos mundanos. Aquilo que se pretende é que os voluntários sejam pessoas com disponibilidade e respeitem deveres essenciais e regras de funcionamento dos museus que os acolhem. Deverão actuar de uma forma isenta e solidária, participar activamente nos programas e acções que lhes forem destinados, zelar pela boa utilização dos bens e dos equipamentos e dos recursos materiais que estiverem ao seu cuidado e colaborar de forma pronta com os responsáveis e colegas que trabalham no museu onde prestam serviço. Para além disso, é suposto que o voluntário receba formação específica que lhe permita estar melhor preparado e habilitado a prestar um serviço útil e de qualidade. Finalmente, importa salvaguardar sempre o estabelecimento de um forte nexo de responsabilidade e de confiança de todos os voluntários com os respectivos gestores/orientadores. Quanto aos museus tutelados pela administração local, deve pugnar-se pela criação de quadros de pessoal privativos (ou, a partir de agora, mapas de pessoal) e combater a tendência persistente de os profissionais que trabalham nos museus municipais continuarem integrados nos quadros de pessoal centrais das Câmaras Municipais. Também neste ponto tudo vai depender da observância do âmbito de aplicação objectiva que as autarquias derem ao novel normativo legal.


A referida aplicabilidade encontra-se prevista, embora admitindo as necessárias adaptações. Nessa sequência, estamos convictos de que, mais tarde ou mais cedo, a estrutura das carreiras de museologia, conservação e restauro, desenhada pelo Decreto-Lei nº 55/2001, de 15 de Fevereiro, acabará por sofrer alterações em resultado de variadas ordens de razão: o facto de haver responsáveis e profissionais que não foram devidamente auscultados, como é possível constatar no que concerne, por exemplo, à polémica extinção da carreira de monitor ou à supra mencionada reivindicação dos conservadores, ou ao enquadramento formal (e não apenas de facto) de conteúdos funcionais inovadores relacionados com a sociedade da informação e as novas tecnologias, ou ainda com o marketing, para citar apenas algumas. As resistências são várias, não sendo sequer um diploma consensual, pelo que as tutelas políticas (central, regional e local) acabarão por ser pressionadas no sentido de introduzir modificações, não apenas de mero aperfeiçoamento, mas, em diversos casos, de alterações mais profundas. No que respeita à nova carreira de vigilante-recepcionista, julgamos que a mesma será irreversível em matéria de direitos adquiridos, embora estejamos convencidos de que vamos igualmente assistir à introdução de algumas alterações. Esse timing dependerá sempre da evolução política, mormente da tutela da Cultura, bem como da sensibilidade, dos interesses e das prioridades entretanto introduzidas. No conjunto, não acreditamos que seja um diploma a alterar radicalmente no curto prazo, mas não podemos ignorar que o futuro trará novas concepções e abordagens as quais, de resto, traduzirão a mais do que provável inovação na área da gestão das instituições museológicas. Para esse efeito, uma das questões que vai ser seguramente colocada com frequência será a das parcerias, tão ao jeito das novas correntes de opinião. A própria Lei-Quadro, no n.º 2 do artigo 45º, menciona a necessidade de os pequenos museus fazerem parcerias com outros museus, ou com outras instituições públicas ou privadas, também na área da gestão do pessoal. A este nível – nada temos contra as parcerias, esclareça-se – reconhecemos que essa é uma tendência, mas não podemos deixar de prever algumas dificuldades de ordem prática, sobretudo em razão de os grandes museus, no geral, continuarem igualmente mergulhados nas crises persistentes de carências de pessoal.

A nova Lei-Quadro, aliás, é parca em matéria de recursos humanos, dedicando-lhe apenas alguns artigos e deles não se retira propriamente uma posição de crítica ou de abertura para a necessidade absoluta de alterar ou de corrigir o actual diploma das carreiras. Ainda assim, o n.º1 do artigo 45º, ao prever que o museu deve dispor de pessoal devidamente habilitado, nos termos de diploma regulador específico, podemos colocar em dúvida o respectivo significado e a necessidade da sua referência, quando existe um diploma próprio e em vigor desde 2001. Aguardemos por desenvolvimentos ou por uma clarificação. Todavia, alertamos ainda para a necessidade de introduzir uma outra lógica de funcionamento hierarquizado, mormente nos museus públicos, mais atreitos a entropias: na pirâmide profissional é urgente delegar competências, criar faixas de responsabilidade intermédia, tendo em vista evitar uma sobrecarga inútil de decisões que habitualmente recaem na direcção. Finalmente, deixamos uma breve nota sobre o recente diploma legal, Lei nº 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, que consagra os novos regimes de vinculações, de carreiras e de remunerações na administração pública. No momento em que o presente artigo é redigido, não temos ainda um estudo aprofundado de toda a extensão das consequências práticas da introdução do diploma em causa no ordenamento jurídico e, muito menos, na esfera concreta das carreiras de museologia. Todavia, podemos desde já indicar alguns aspectos estruturantes e decisivos na futura aplicação deste novo figurino legal: • como foi acima referido, a Cultura não se encontra

elencada sob o regime da nomeação, pelo que, por exclusão de partes, passará para o regime da contratação (por tempo indeterminado ou a termo resolutivo); • os quadros de pessoal e respectivas dotações, na

acepção convencional, serão substituídos por mapas de pessoal cuja gestão será flexível, de acordo com a Missão e as necessidades funcionais de cada organismo, e ainda a respectiva disponibilidade orçamental, desmontando, de vez, o paradigma da estabilidade e da vinculação definitiva a um quadro de pessoal, tal como o conhecíamos há décadas; • são criadas apenas 3 carreiras gerais – técnico superior, assistente técnico e assistente operacional que agregarão as centenas de carreiras existentes no universo da função pública, tendo em vista, parece, racionalizar e flexibilizar a respectiva gestão; • por outro lado, admite-se a criação de carreiras especiais em função de um conjunto de requisitos já estabelecidos; será curioso verificar até que ponto

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Museu Nacional Soares dos Reis Oficina fotografia de Joรฃo Herdade

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as carreiras de museologia, conservação e restauro, poderão vir a ser consideradas no âmbito das novas carreiras especiais; de uma primeira leitura, ainda não amadurecida, julgamos que se poderá fundamentar no sentido pretendido, ou seja, no reconhecimento das particularidades destas carreiras, embora venha a depender, necessariamente, da capacidade política de negociação das actuais ou futuras tutelas da Cultura (aos níveis central, regional e local). Esse vai ser, sem dúvida, um ponto de conflito muito sensível. Salientem-se os três critérios cumulativos definidos para a justificação da eventual criação de carreiras especiais: os conteúdos funcionais não poderem ser absorvidos pelas carreiras gerais; os deveres funcionais serem mais exigentes do que os previstos nas carreiras gerais; e, finalmente, a exigência de um curso de formação específica mínimo de 6 meses, ou de um grau académico, ou ainda de um título profissional. Veja‑se como todos estes critérios poderão ou não ser objecto de negociação profissional e política. É este o próximo repto lançado a todos os profissionais dos museus, classe ou grupo, geralmente desunidos.

5. Financiamento - as realidades e os exemplos Permitidas pelo Código do ICOM, como foi já mencionado, os museus devem promover actividades geradoras de receitas, distinguidas das suas funções culturais, dando‑lhes embora sustentabilidade. É um princípio geral que inclui todos os museus. Relativamente às designadas “receitas próprias”, encontramos hoje um leque alargado de fontes adicionais de financiamento adaptáveis aos museus, para além da receita tradicional resultante de ingressos (leia-se, bilheteira): financiamento privado, em numerário, em espécie ou em serviços, traduzido pela prática mecenática e pelos patrocínios; a actividade comercial traduzida no incremento das lojas e do merchandising associado; as concessões; as cedências de espaços; os cartões de amigo; as filmagens e as fotografias; ou ainda as associações de amigos. Acrescem outras modalidades, que dependerão do perfil de cada museu e da sua capacidade instalada de produção tendo em vista obter receitas interessantes. Sendo, afinal, uma questão de imaginação e de dinamismo, a obtenção deste tipo de fontes alternativas passa igualmente pela sua viabilização prática e pela habitual cautela no que concerne à defesa intransigente dos interesses dos museus. A ideia principal será a de criarem e acrescentarem novas valências que os habilitem a tornar-se verdadeiros prestadores de serviços no mercado, para além das diversas modalidades descritas.

A nova Lei-Quadro dedica apenas dois preceitos específicos aos recursos financeiros: os artigos 48º e 49º. Esta escassez normativa pode eventualmente ser explicada pelo facto de a Lei não ter particular vocação para as questões da gestão justamente por ter uma natureza de enquadramento e não regulamentar. Ainda assim, reconhecemos que é importante constarem estas orientações gerais que, em matéria de recursos financeiros, constituem igualmente um requisito de credenciação dos museus, bem como uma das razões elencáveis que podem conduzir ao respectivo cancelamento. Assim, determina‑se que o museu deve dispor de recursos financeiros “especialmente consignados” e adequados à sua vocação, dimensão e características. Prevê-se igualmente que estes recursos financeiros devem ser suficientes por forma a garantir a sustentabilidade do museu e o cumprimento cabal das suas funções fundamentais. Note-se a exigência de que os recursos financeiros devem estar “consignados”, o que se traduz na sua utilização para fins específicos, articulados e devidamente reconhecidos. Esta determinação, constante do n.º 1 do citado artigo 48º, acaba por reproduzir, no essencial, o princípio geral previsto no Código do ICOM sobre a mesma matéria. Por outro lado, quando se estabelece que o cumprimento das funções museológicas depende da existência de recursos financeiros adequados, pretende clarificar-se a ideia da necessidade de estabelecer uma proporção directa entre o financiamento disponível e a qualidade do serviço cultural e social do museu ou, em última instância, da própria prossecução do interesse público. Relativamente à angariação dos recursos financeiros em apreço, os responsáveis dos museus devem preparar, no âmbito dos já mencionados programas de actividades, projectos que se revelem de tal forma credíveis e consistentes que justifiquem merecer o apoio mecenático ou de patrocinadores, embora o n.º 1 do artigo 49º não refira especialmente estes últimos. No n.º 2 do mesmo artigo define-se um princípio segundo o qual as receitas devem ser “parcialmente consignadas” às respectivas despesas, princípio este que, longe de ser pacífico, corresponde ao modelo seguido desde há décadas. Não propomos modelos perfeitos, considerando que todos apresentam um deve e haver legítimo. Julgamos, todavia, que esta continua a ser uma discussão adiada por ausência de uma reflexão aprofundada e sistematizada das questões envolvidas. A este propósito confundem-se interesses corporativos com critérios de influência política, menos do que com critérios de eficácia e racionalidade financeira. Trata-se, insistimos, de uma temática que merece uma crescente atenção e maior clareza. Saliente-se que os museus ou o património lato sensu adquiriram um estatuto irreversível como recurso económico. A rentabilização do património passou a estar fortemente ligada ao crescimento do chamado “turismo cultural”, quer em

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países do primeiro mundo, quer em países subdesenvolvidos, integrando-se e impondo-se num designado “4º sector” da economia relativa às indústrias culturais e do lazer. De resto, trata-se precisamente do sector da actividade económica que mais tem crescido e mais rapidamente contribui para a criação de emprego, directo e indirecto. Aumentam, assim, da mesma forma, as responsabilidades dos gestores dos museus e do património musealizado. No âmbito dos museus tutelados pelo Ministério da Cultura, verificamos que, no plano dos Orçamentos de Funcionamento, as verbas transferidas, oriundas do Orçamento de Estado, vão por sua vez ser divididas pelos orçamentos dos Serviços Centrais (sedes dos actuais IMC e IGESPAR) e pelos orçamentos privativos dos museus e monumentos que funcionam, para este e outros efeitos, como Serviços Dependentes. Os orçamentos em causa acabam apenas por conter despesas e transferências do Orçamento de Estado, já que as “receitas próprias” são arrecadadas e geridas pelos Serviços Centrais, precisamente numa perspectiva de gestão integrada. Ou seja e em termos práticos, as receitas geradas por um museu ou por um monumento não são directamente afectadas ao respectivo orçamento. Este é um modelo tão defensável quanto criticável, dependendo apenas dos objectivos, dos critérios, da racionalidade, enfim, de uma política de gestão cuja consistência dependa ou não da existência de organismos de tutela. Estes, note-se, têm competências que ultrapassam em muito a mera gestão orçamental. Mais do que a definição propriamente dita dos modelos escolhidos pelo poder político em cada conjuntura, importa sobretudo que os museus funcionem não só de uma forma competente e dinâmica, mas cumpram igualmente os objectivos para que foram criados, tendo sempre presente a necessidade de defender o interesse público e a melhoria progressiva do serviço cultural e social que prestam. De qualquer modo, reconheçamos, o não retorno directo e palpável das receitas geradas por um determinado museu ou monumento ao respectivo organismo pode implicar uma legítima desmotivação para o director e corpo profissional, que vêem assim o seu esforço diluído num todo cuja gestão e repartição nem sempre beneficia esse mesmo museu ou monumento, ou cuja redistribuição não poderá, sob alguns pontos de vista, ser considerada como a mais justa. Verifica-se, igualmente, que os Orçamentos de Funcionamento têm vindo a receber cada vez menos verbas do Orçamento de Estado, diminuindo, assim, o respectivo grau de dependência. Os referidos Serviços Dependentes (Museus, Palácios Nacionais, Mosteiros, Estações Arqueológicas) continuam a ser claramente suborçamentados. Chegou-se à situação, crónica e absurda, de os orçamentos apresentarem uma situação deficitária em Janeiro (no início do ano económico, portanto).

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Desta forma, os responsáveis do Ministério da Cultura, ao transferirem as verbas destinadas aos Orçamentos de Funcionamento sabem, à partida, que tais verbas são insuficientes para satisfazer as necessidades essenciais e incomprimíveis. Confiam excessivamente nas estimativas relativas às “receitas próprias” quando estas, na realidade, oscilam às vezes de forma inesperada e apresentam, por isso, uma razoável margem de incerteza. Basta que o fluxo turístico não corresponda às previsões, por exemplo, ou se verifiquem ou não outras condições aleatórias (por vezes, aparentemente irrelevantes). É preciso dizer-se que uma relativa incompetência, aliada a alguma insensibilidade, têm sido muitas vezes a marca deste tipo de gestão das tutelas políticas ao longo de sucessivos anos. De facto, as prioridades vão com frequência para as iniciativas ou eventos de “fachada”, os que politicamente darão mais visibilidade, julgam, ou os que “socialmente” darão mais protagonismo (leia-se mundanismo). Pelo menos assim parece decorrer dos critérios daqueles que os promovem. No que concerne aos Orçamentos de Investimento e no âmbito dos Quadros Comunitários de Apoio, temos de reconhecer que, apesar do incremento destes fundos comunitários, a sua execução e o seu aproveitamento nem sempre são os mais esperados e desejáveis. Não podemos, contudo, esquecer que tais verbas comunitárias, a par do PIDDAC nacional, têm crescido de forma significativa na área da Cultura, exigindo uma maior capacidade de resposta na apresentação das candidaturas, no acompanhamento técnico dos projectos, na formação e especialização dos recursos humanos, em suma, exigindo mais profissionalismo e maior eficiência. Por outro lado, a criação do POC (cujo terminus está previsto para o final do corrente ano) veio aumentar as responsabilidades em matéria de preparação e desenvolvimento de projectos mais diversificados e alargados no seu âmbito. Com efeito, a taxa de candidaturas aprovadas aumentou, bem como os montantes de investimento elegíveis. Deixa, assim, uma marca muito favorável. Finalmente, e no concerne a modelos de gestão, e nesta como em outras matérias, o futuro já chegou. Urge não continuar a olhar para a gestão como sinónimo de intendência, tão necessária como complementar, mas nunca como opção estratégica. Maximizar a eficiência, introduzir índices de produtividade, planificar, potenciar os meios, minimizar as insuficiências, investir, eis as armas para fazer da gestão uma verdadeira política de recursos. Qualquer modelo de gestão privada continuará, nos museus públicos, a confrontar-se com os condicionalismos legais ainda pouco flexíveis no seu conjunto. A aparente flexibilidade agora introduzida em matéria de gestão dos


recursos humanos não chegou ainda aos mecanismos orçamentais e contabilísticos, por exemplo. Mais autonomia, precisa-se. E lembramos aqui que o Governo italiano tentou, no início dos anos 2000, a total privatização da gestão nos principais museus e monumentos públicos. Apesar de ter sido obrigado a recuar, o desafio está aí. O paradigma está a mudar. Encontramo-nos, aliás, num limbo ainda mais perigoso. Alguns começam mesmo a defender que o financiamento pode começar a adoptar o modelo americano, em que as receitas resultam igualmente de venda de peças do próprio espólio do museu, contrariando princípios científicos e éticos fundamentais. Por outro lado, as parcerias público-privadas, como em Portugal podemos exemplificar com as Fundações de Serralves e Colecção Berardo, poderão gradualmente constituir-se como alternativa sólida e eficaz. O Estado guarda um certo droit de regard, os privados potenciam imagem e prestígio, o investimento é garantido, a profissionalização da gestão ganha corpo. Deixamos aqui a ressalva em que insistimos: melhor liderança, mais qualificação, mais competência, mais estratégia, mais comunicação, melhor gestão.

6. A interrogação final E nos museus portugueses, a gestão dos recursos é ou não, afinal, a arte de gerir a escassez? Façam dela o futuro dos museus portugueses.

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Fig. 1 Café-Concerto no Salão Nobre Museu Nacional dos Coches © MNC

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Silvana Bessone Museu Nacional dos Coches O desafio da gestão de um Museu Nacional Com o presente artigo propõe-se uma reflexão sobre os desafios de gestão colocados aos museus nacionais incidindo sobre seis aspectos considerados determinantes: o financiamento, o pessoal, o modelo de gestão, a avaliação de resultados, o impacto económico do museu e as estratégias para o futuro. Partindo da experiência vivida na direcção do Museu Nacional dos Coches e na oportunidade que representa a construção de um novo museu, abordam-se os principais aspectos de mudança verificados no universo museal nos últimos anos, e que configuram uma nova idade dos museus. With the present article a reflexion is proposed considering the challenges of management in the national museums. They are focused on six important points: the financing; the staff; the model of management; the evaluation of results; the economic impact of the museum and the future strategies. Based on the experience acquired in the guidance of the National Coach Museum and with the opportunity that the building of a new museum represents we made an approach concerning the main aspects of change in the museum world.

PALAVRAS-CHAVE: Museu Nacional, Modelo de Gestão, Financiamento, Recursos Humanos, Formação, Avaliação, Estratégia, Novo Museu Nacional dos Coches.

Directora do Museu Nacional dos Coches | mncoches.directora@ipmuseus.pt

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unca, como hoje, a questão da gestão dos museus foi tão participada pelos mais diversos especialistas e tanto interesse despertou junto da generalidade da opinião pública. A comprová-lo basta introduzir o tema no motor de busca Google e, apenas em língua portuguesa, aparecem mais de 797.000 páginas com referências à matéria. Satisfazer tamanha pertinência em gerir os museus tornou-se, portanto, uma obrigação praticamente colectiva, na qual nós, os directores dos museus nacionais, somos, por maioria de razões, os principais interessados. Distantes do tempo em que as colecções dominavam as preocupações das tutelas dos museus, quer no domínio da sua conservação, quer no da sua investigação, o léxico museológico enriqueceu-se com vocábulos novos, como públicos, eventos, mecenas, marketing e merchandising que representam bem o paradigma da mudança, substituindo aceleradamente os antigos conceitos de visitantes, exposições, doadores, divulgação e réplicas de objectos de arte, directamente ligados às colecções

do museu, por uma nova linguagem de mercado, em que a necessidade de «gestão» se manifesta com grande intensidade. Estamos, efectivamente, noutra época que Jean-Michel Tobelem, investigador francês, director do Instituto de Estudo e Investigação Option Culture, classifica como terceira idade dos museus. Depois de um primeiro «Tempo dos Proprietários» situado desde a origem até 1950, seguido pelo «Tempo dos Gerentes» de 1950 até 1990-2000, chegámos agora ao «Tempo dos Accionistas» com início nos anos de 1990-2000. (TOBELEM, 2007: 20). Estas três idades dos museus representam, no entender de Tobelem, outras tantas formas de gestão correspondendo a cada uma delas um perfil diferenciado de director: o conservador (ou um ilustre erudito ou artista) para a primeira fase; o director com formação especializada em conservação para a segunda; o director com competências de gestão e/ou assistido por um administrador, para a terceira.

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Na primeira destas idades eu ainda não existia, mas à segunda e terceira, não só assisti como fui, e sou, protagonista. É, por isso, interessante ver sistematizado num quadro classificativo com intenções históricas aquilo que ainda há bem pouco tempo, em Portugal, fez parte de um intenso debate do quotidiano dos profissionais dos museus, nomeadamente quanto à definição das carreiras profissionais e às habilitações dos directores de museu. Em pouco tempo o cenário mudou e a palavra «gestão» impôs-se nos museus de todo o mundo, Portugal incluído, e com inúmeras implicações. Ultrapassando ideias feitas sobre o divórcio entre as humanidades e os números, os directores dos museus nacionais, qualquer que seja a sua formação académica de base, já há muitos anos que avaliam, com números, os resultados da actividade dos seus museus e também as suas dificuldades. Já não se trata de administrar o orçamento mas de garantir o financiamento, já não se fala em prover o Quadro de Pessoal mas em assegurar o número de trabalhadores imprescindíveis, já não se pensa em Função Pública mas em modelo de gestão, já não se trabalha para garantir o simples funcionamento mas luta‑se por atingir objectivos quantificáveis, já não se encara o museu apenas como uma unidade de cultura mas como um pólo de desenvolvimento cultural e económico e, finalmente, já não se programam actividades, definem‑se estratégias. São estas seis dimensões que em minha opinião constituem o verdadeiro desafio de gestão que se coloca aos museus nacionais. E pelo o que conheço, não há receitas. Há experiências e reflexões que, em cada caso, podem ajudar a encontrar a melhor solução.

O financiamento À cabeça das preocupações de gestão de um museu surge, naturalmente, a questão do seu financiamento. E neste domínio, a evolução tem sido significativa e o debate de ideias intenso, não só a nível nacional como internacional. Todos sabemos que a definição de museu instituída pelos Estatutos do ICOM refere expressamente que «um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, ao serviço da comunidade e do seu desenvolvimento…». Conhecemos, igualmente, que sob esta definição se desenvolveu, durante algum tempo, uma razoável inércia na obtenção de receitas próprias por parte dos museus nacionais que confiavam ao Estado a «obrigação» do seu quase completo financiamento. Mas também todos sentimos que esses tempos acabaram.

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Actualmente, os museus nacionais, sem excepção, trabalham arduamente na diversificação das suas fontes de financiamento, quer na obtenção de financiamento externo (fundos comunitários), quer, e sobretudo, no aumento das suas receitas próprias, nomeadamente as provenientes dos apoios mecenáticos angariados. O que será talvez uma reflexão ainda pouco frequente no âmbito da gestão dos museus nacionais é a efectiva concorrência comercial que tal procura na obtenção de maiores receitas introduziu no universo dos museus. Hoje, os museus nacionais concorrem entre si, tanto na sedução e conquista dos eventuais mecenas, como no mercado da prestação de serviços em sectores tão diversificados que vão, por exemplo, da realização de festas de aniversário para crianças à exibição de exposições «de sucesso» encomendadas no estrangeiro. De facto, aí está um novo desafio de gestão dos museus nacionais. Enfrentar a concorrência crescente dos seus parceiros, mantendo «o segredo como a alma do negócio», apesar da tutela centralizada do Instituto dos Museus e da Conservação (IMC). Importa pois definir, em cada museu, uma verdadeira estratégia de marketing comercial que desenvolva uma ampla flexibilidade, visando o aumento das suas receitas próprias, sobretudo aquelas que, em função da aplicação do disposto no n.º 4, do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 97/2007, de 29 de Março (Lei orgânica do IMC), são agora mais importantes no domínio da autonomia de gestão de cada museu. Mas também o próprio IMC deverá garantir o aumento das suas receitas próprias, implicando nesse objectivo os museus que tutela, nomeadamente os museus nacionais, revendo, por exemplo, a própria política de preços de entrada em alguns museus. A este propósito refira-se que já Filipe Mascarenhas Serra no seu trabalho de investigação sobre Práticas de Gestão nos Museus Portugueses se interrogava sobre o preço das entradas praticado nos Museus Nacionais de Arte Antiga e dos Coches, comparado com o valor substancialmente superior praticado em Monumentos Nacionais como o Mosteiro dos Jerónimos ou da Batalha (SERRA, 2007: 140). No contexto actual dos museus nacionais, a reintrodução do debate sobre o princípio de gratuitidade do acesso aos museus, relançado por um equipamento cultural tão poderoso como o Centro Cultural de Belém que oferece de forma gratuita a entrada num museu privado fortemente apoiado financeiramente pelo Estado é, no mínimo, inoportuna e introduz mesmo um factor de distorção na concorrência da oferta cultural que, em minha opinião, não beneficia o desejado acesso à cultura. Defendo claramente, e com convicção, o carácter de serviço público que orienta os museus portugueses e o seu inequívoco objectivo dirigido ao conhecimento,


educação e lazer e não ao lucro, que constitui o objectivo central do universo empresarial. Por isto mesmo contesto o próprio conceito da evolução do museu no sentido da sua transformação em «empresa cultural». O universo dos museus deverá ser o da Cultura e não o da Economia, apesar da Cultura representar, felizmente, um papel cada vez mais relevante na Economia. No entanto distingo, também de forma clara, o objectivo da obtenção de lucro da necessidade de obter receita. E os museus devem procurar meios de financiamento próprios que, mesmo que ultrapassem a despesa executada, o que não é muito provável, seriam sempre reinvestidos no exercício da sua actividade cultural e não para a distribuição de dividendos entre quaisquer accionistas. Entendo, assim, que a actual ampliação do conceito de museu «…ao serviço da comunidade…», tornando-o num verdadeiro prestador de serviços diversificados no sector da cultura (educação formal e informal, entretenimento e lazer, marketing corporativo e shopping) representa apenas uma resposta às exigências do público, ou seja, dos cidadãos que, em última instância, são os seus verdadeiros proprietários. Mas esta ampliação conceptual trouxe para os museus nacionais novos aspectos no domínio da sua gestão económica, sobretudo no que respeita à formação das receitas próprias. O orçamento dos museus deixou de ser apenas um orçamento de gestão de despesa para incorporar, igualmente, a gestão de receita que até ao momento era domínio exclusivo do organismo de tutela. Um dos sectores da actividade dos museus nacionais em que o espírito do velho «Tempo dos Proprietários» se manifesta de forma significativa é o das Lojas onde vigora ainda, em muitos casos, a pratica pouco comercial do «não tocar nos objectos expostos», onde se guardam os produtos em «vitrinas» como se de peças de museu se tratassem e onde o próprio espaço comercial resulta do aproveitamento de um qualquer «cantinho» disponível. Claro que há excepções. Mas não deviam ser excepções. A área comercial dos museus nacionais devia ser potenciada, eventualmente com uma parceria pública/ privada, mas permanecer centralizada no IMC, uma vez que constitui receita própria do Instituto e atendendo à economia de escala que o conjunto dos museus representa face a uma ainda fraca afluência de público em alguns museus, cujo potencial comercial seria desinteressante considerados autonomamente. Com certeza que os produtos deveriam ser referenciados a cada museu onde seriam colocados à venda e, nalguns casos, serem mesmo «exclusivos», mas apenas nos locais onde a sua venda o justificasse. Haveria, também, que desagregar da área comercial a política editorial de cada museu, quer no que respeita

a estudos monográficos ou publicações de carácter científico, onde se incluem os catálogos, guias e catálogos de exposições temporárias, cujo retorno do investimento só muito excepcionalmente é possível. Embora seja um produto que deve ser colocado à venda nas lojas dos museus, é obviamente uma actividade de serviço público directamente ligada à própria função dos museus que não pode, nem deve, ser confundida com a actividade comercial que os museus podem e devem desenvolver no sentido de reforçar o seu financiamento, que no caso das lojas se reflecte de forma indirecta através do IMC. As lojas dos museus nacionais só poderão adquirir o aspecto interessante das congéneres que encontramos nos museus no estrangeiro se forem encaradas como unidades comerciais com produtos que correspondam à procura, tenham venda lucrativa que obtenha receitas, sejam geridos com agilidade (repostos os stocks e eliminados os «monos») e apresentados ao público como em qualquer outra loja e não como fazendo parte do acervo museológico. Eventualmente há um passo a dar para a profissionalização ou especialização da actividade comercial que deverá ser claramente separada da função de director. Claro que é essencial ouvir os responsáveis de cada museu sobre a matéria, quer pelos contributos que seguramente darão relativos ao conhecimento das colecções e da sua potencial exploração comercial, quer pelo conhecimento relativo aos seus públicos que introduz as necessárias adaptações aos mercados locais. Mas a actividade das lojas dos museus revelou ser, nos últimos anos, um potencial a explorar com mais rigor técnico e comercial.

O pessoal Um outro aspecto necessariamente influente na gestão dos museus nacionais diz respeito, sem qualquer dúvida, à qualidade e quantidade dos seus recursos humanos. Quando entrei para o Museu Nacional dos Coches, em 1985, o Quadro de Pessoal contava com 48 funcionários ao serviço. Actualmente trabalham no Museu 28 pessoas, independentemente das características do seu vínculo laboral. O que mudou? O que é que se fazia e deixou de fazer ou se faz agora de forma automática? Ganhou-se em eficiência e eficácia ou perdeu-se em qualidade? Para estas perguntas, que se colocam igualmente em vários museus nacionais onde a evolução dos recursos humanos seguiu o mesmo modelo, a minha resposta é imediata: no caso do Museu Nacional dos Coches prejudicaram-se as tarefas de manutenção das colecções no que respeita à sua conservação preventiva.

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Fig. 2 Fachada Museu Nacional dos Coches © MNC

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Paralelamente, a falta de pessoal e a maior afluência de público fragiliza a vigilância e segurança dos objectos museológicos da colecção que, no caso das viaturas, se traduz na manipulação indevida das peças com consequentes efeitos de desgaste e destruição ou desaparecimento de pequenos componentes que as integram. Claro que se ganhou em eficácia no domínio do trabalho administrativo com a introdução da informática e, também, uma elevada dedicação dos funcionários permite assegurar um eficiente atendimento do público, nomeadamente na área do Serviço Educativo. Mas alguma coisa teve de ficar para trás e, neste caso, foram as colecções. A possibilidade de envolver nestas tarefas pessoal voluntário, à semelhança do que se verifica em alguns museus no estrangeiro, sobretudo nos países nórdicos, parece-me ainda distante no tempo, atendendo à prática social existente em Portugal neste domínio. Acresce o facto de que essa participação dos voluntários nas tarefas de conservação e tratamento das colecções exige qualificações próprias e, mesmo nos países com maior sucesso nesta matéria, aplica‑se a certo tipo de colecções de museus ligadas a actividades de carácter profissional que ainda se desempenham ou desempenhavam recentemente (museus ferroviários, da aviação, da electricidade, etc.) envolvendo geralmente profissionais reformados. E nestes casos, temos também bons exemplos em Portugal (museus da CP, da Carris, da Aviação, o Ecomuseu do Seixal, etc.) Aliás, em outras áreas que não a conservação e tratamento das colecções, o voluntariado, e especialmente a constituição dos Grupos de Amigos do Museu, representa já um interessante papel na gestão de recursos humanos dos museus nas áreas de divulgação e organização de actividades culturais, indispensáveis à sobrevivência de um museu do século XXI. No entanto, a questão dos recursos humanos dos museus portugueses é um problema de gestão com particular relevância nos museus nacionais. A proliferação de cursos superiores na área da museologia, museografia, conservação e restauro, gestão cultural, comunicação cultural, corresponde não só a uma generalizada, e por vezes inútil, especialização, mas também a um conjunto de necessidades que se fazem sentir para um novo posicionamento dos museus na sociedade actual. Depois de uma morte anunciada, em que foram considerados locais fora de moda, os museus ganharam, nos últimos 30 anos, um invejável lugar na sociedade tanto a nível internacional como em Portugal, o que, por um lado, os tornou mais atractivos para o desenvolvimento de uma actividade profissional e, por outro, com maiores responsabilidades operacionais para manterem o lugar que atingiram numa apertada concorrência na captação da atenção dos públicos. Importa enquadrar nos museus nacionais estas novas competências, nomeadamente no que diz respeito aos

conservadores-restauradores que deveriam assegurar a conservação preventiva, tratamento e restauro das peças, quando tantas referências se fazem à valorização das colecções sobretudo nos museus que detêm verdadeiros tesouros não só nacionais mas mesmo universais. Também a introdução de novas tecnologias no domínio da museografia que actualmente se generaliza em todas as exposições e as questões atrás colocadas no domínio administrativo e financeiro, com destaque para as tarefas de controlo contabilístico, não tiveram ainda resposta no recrutamento de pessoal especializado nestas áreas para os museus. Para além, claro, da tão mediatizada e dramática falta de vigilantes recepcionistas. Mas nesta matéria dos recursos humanos, a gestão centralizada dos museus nacionais no IMC representa uma vantagem considerável ainda pouco explorada, uma vez que torna possível a disponibilização de técnicos especializados, por exemplo em informática ou contabilidade (técnico oficial de contas), que prestem serviços não num, mas em dois ou três museus em simultâneo, nos casos em que a proximidade geográfica das instituições o permita fazer com eficácia. Estou a pensar nos museus nacionais de Arqueologia, Coches e Etnologia ou da Música, Teatro e Traje. Mas com presença diária e permanente nos museus e não perdidos na absorvente distância do IMC. Seria, sem dúvida, uma forma de rentabilizar os sempre, e cada vez mais, escassos recursos humanos nos museus. Quanto à questão dos vigilantes recepcionistas, torna-se também indispensável adoptar medidas mais eficazes. As soluções encontradas até agora para assegurar as condições mínimas de funcionamento penalizaram não só a segurança mas, e sobretudo, a imagem dos museus nacionais e aumentaram significativamente as reclamações do público relativamente à forma como é acolhido e tratado durante a visita aos museus. Uma formação mais exigente, e continuada ao longo da carreira profissional, bem como uma maior estabilidade no posto de trabalho serão a solução para a qual há que tentar encontrar os meios necessários, entre os quais não se afasta a hipótese da autonomização desta função numa entidade empresarial que assegure uma prestação de serviços ao conjunto dos museus nacionais. Um pormenor aparentemente insignificante, mas que se reveste da maior importância no desempenho da profissão de vigilante recepcionista nos museus, é a utilização de um fardamento de serviço. Todos conhecemos o papel normalizador da farda e o seu efeito psicológico no desempenho de certas funções. Implica, certamente, um investimento considerável, direi mesmo insuportável no actual quadro de prestações de serviço a curtíssimo termo, mas esta precariedade terá de mudar a curto prazo em benefício da qualidade do serviço público prestado pelos museus nacionais.

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Modelo de gestão Um terceiro aspecto inevitável nos desafios que se colocam aos museus nacionais é o de saber qual o modelo que deverá ser utilizado na sua gestão e autonomia de funcionamento. Em confronto colocam-se essencialmente duas opções: • Uma administração centralizada integrada no regime de administração pública actualmente existente, embora no domínio da administração indirecta do Estado através da figura jurídica do Instituto Público; • Ou uma administração autonomizada através da constituição, por exemplo, de fundações públicas.

As fundações existentes em Portugal com intervenção na gestão de unidades museológicas, quer tenham origem pública ou privada, permitem já estabelecer algumas comparações entre os dois modelos. Numa reflexão sobre a matéria o antropólogo e museólogo Alberto Guerreiro salienta o facto dos museus de fundação «representarem um claro intuito estratégico uma vez que se trata do enquadramento orgânico que mais claramente autoriza a flexibilidade de gestão» (GUERREIRO, 2007) mas adverte para o facto de serem «poucas as fundações cujo capital garante, por si só, uma produção regular de receitas» ficando deste modo «feridas» de uma relativa ambiguidade nos planos do investimento e de funcionamento. O autor destaca ainda: «Sobre esta matéria apontem-se os exemplos do Museu da Fundação de Serralves, em que o investimento do Estado representa, em média, o dobro do valor atribuído ao Museu Nacional de Arte Antiga; o exemplo da Fundação Arpad Szènes-Vieira da Silva, cuja sustentabilidade está dependente em 2/3 do subsídio anual do MC, ou a nível local, o exemplo da Casa-Museu João Soares da Fundação Mário Soares, suportada em grande medida pela Câmara Municipal de Leiria. Esta via de investimento é de tal ordem importante que a irregular atribuição de subsídios anuais, consignados nos estatutos destas fundações, afectaria seguramente o funcionamento dos respectivos museus a seu cargo». (GUERREIRO, 2007) Para além da «relativa ambiguidade» apontada ao modelo das fundações e independentemente das vantagens assinaladas quanto ao maior número de soluções aplicadas à sua gestão corrente, as fundações, mesmo públicas, ou seja constituídas por iniciativa do Estado, com meios públicos, para a prossecução de finalidades de natureza pública, representam sempre os legítimos e diversificados interesses dos vários instituidores nem sempre coincidentes com as específicas funções do museu tal como são definidas na Lei-Quadro dos Museus Portugueses.

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Igualmente, a fórmula da «gestão privada» centrada na «rentabilização do funcionamento» contraria, em muitos casos, a missão de serviço público atribuída aos museus nacionais, sobretudo nos domínios da investigação, (menos estudos, mais actividades), conservação (menos manutenção, menos pessoal), educação (menos escolas, mais operadores turísticos), etc. Parece-me, assim, ser uma responsabilidade do Estado assegurar de forma centralizada a gestão dos seus museus nacionais, garantindo a prevalência da sua inequívoca missão de serviço público inerente ao próprio conceito de museu. As experiências de «privatização» realizadas noutros países europeus como no caso da Holanda não asseguraram os resultados esperados obrigando mesmo, em alguns casos, à retoma do controlo público. Há, no entanto, evidentes estrangulamentos na gestão pública, nomeadamente no regime jurídico que até hoje rege a contratação pública que data de 1999, ainda do «Tempo dos Gerentes» atribuído à classificação cronológica das fases por que passaram os museus, já atrás referida, e, por conseguinte, longe de satisfazer os actuais imperativos de gestão dos museus nacionais. Mas também neste domínio há mudanças. O novo regime jurídico do Código da Contratação Pública recentemente aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008 de 29 de Janeiro, que entrará em vigor no final do próximo mês de Julho, altera substancialmente os procedimentos, permitindo agilizar significativamente as tarefas administrativas.

Avaliação de resultados Mais do que no passado, mas eventualmente menos do que no futuro, os museus nacionais inserem-se hoje num movimento de modernização organizativa do Estado voltado para a obtenção de metas sobre as quais importa prestar contas. Independentemente do sistema utilizado, a avaliação de desempenho, há muito utilizada no sector privado, veio para ficar no sector público e, por conseguinte, também nos museus. Não se compreende, aliás, que assim não fosse uma vez que a avaliação de resultados é um dos indispensáveis instrumentos de gestão em qualquer sector de actividade e, mais ainda, naqueles que determinam o desenvolvimento integral e a concretização dos direitos fundamentais da pessoa como são, por princípio, os museus. Trata-se, assim, de mais um desafio colocado aos museus nacionais: avaliarem o seu desempenho, definindo metas e objectivos quantificáveis e contabilizando os resultados obtidos.


Sobre esta questão já não se colocam dúvidas. Importa agora estabelecer os critérios para a avaliação da actividade museológica nacional. E aqui tornam a cruzar-se as influências dos mecanismos de mercado às quais os museus não podem, nem devem, fugir e as responsabilidades científicas, culturais e pedagógicas essenciais à concretização da sua missão. Uma vez mais ressalta a importância da conjugação de competências profissionais na área da museologia e da gestão e, sobretudo, a aplicação de ferramentas baseadas no bom senso utilizadas na generalidade dos Sistemas de Qualidade. É precisamente a qualificação dos museus portugueses que o IMC coloca em primeiro lugar nos objectivos estratégicos do seu Plano de Actividades de 2008 e dos serviços dependentes, nos quais se inclui o Museu Nacional dos Coches. Ora, consequentemente, é a qualificação do Museu Nacional dos Coches que mais me preocupa no momento actual. E não só como objectivo estratégico, mas também como objectivo táctico da actividade diária. Como é do conhecimento público, o longo processo de ampliação do Museu Nacional dos Coches iniciado pela própria fundadora, a rainha D. Amélia, em 1906, um ano após a sua inauguração, aproxima-se agora da sua possível concretização com a construção de um novo edifício localizado num terreno próximo, anteriormente ocupado pelas Oficinas Gerais de Material de Engenharia do Exército, e cuja aquisição pela então Secretaria de Estado da Cultura eu própria promovi precisamente para a possível edificação da tão desejada ampliação como aconteceu noutros importantes museus internacionais de que são exemplo a National Gallery, em Washington, com a ligação do «West Building» de 1935 ao «East Building» de 1978; o projecto de ampliação do Museu do Louvre, centrado no grande espaço de distribuição de visitantes sob a Pirâmide de vidro, de 1989 ou, mais recentemente, o Museu do Prado em Madrid que em Outubro de 2007 inaugurou a nova extensão contemporânea. Conhecendo-se as vantagens que resultam da pormenorizada programação museológica e da indispensável relação estratégica entre a tutela e o museu na definição dos seus objectivos, cumpre agora estimular uma participação efectiva dos actores culturais, nomeadamente o MC, o IMC e a direcção e técnicos do Museu Nacional dos Coches, em todo o processo de projecto e acompanhamento técnico das vertentes de âmbito museológico e museográfico (naquilo que hoje engloba a actividade e competência gestionária dos museus nacionais definida na Lei‑Quadro dos Museus Portugueses) para uma clara responsabilização futura no que respeita à avaliação de resultados.

O Novo Museu Nacional dos Coches Uma dimensão seguramente a considerar na gestão de um museu nacional é o seu impacto económico enquanto «entidade produtiva» mesmo se acima de tudo o museu constitua uma entidade cultural e educativa produtora de conhecimentos científicos. A este propósito a recente Resolução do Conselho de Ministros n.º78/2008, de 15 de Maio, referente à valorização da frente ribeirinha de Lisboa determina: «…se reforce a oferta museológica, instalando adequadamente o valioso espólio do Museu dos Coches, e por essa via também se produza novo património arquitectónico e se estimule a actividade criativa e a dinamização cultural.» O Museu Nacional dos Coches constituirá, assim, «uma âncora fundamental» do projecto de intervenção definido naquele diploma legal nos seguintes termos: «São objectivos desta intervenção: • Construção do novo Museu Nacional dos Coches; (...) • (...) Reabilitação do actual edifício do Museu Nacional dos Coches permitindo a sua múltipla utilização institucional; (...) • (...) Valorização do grande espaço público entre o novo Museu Nacional dos Coches e o Centro Cultural de Belém, integrando e respeitando a diversidade dos seus espaços; (...) • (...) Reforço do pólo cultural e monumental Ajuda/ Belém, enquanto o mais importante pólo cultural e turístico de Lisboa, de molde a conferir-lhe uma importante dimensão internacional; • Criação de condições para que este pólo constitua não só uma alavanca de desenvolvimento turístico de Lisboa como, directa e indirectamente, um instrumento de desenvolvimento económico, social e cultural; (...)»

Esta importante dimensão atribuída pela Resolução do Conselho de Ministros ao Museu Nacional dos Coches não poderá deixar de ter significativas implicações na sua gestão não só futura como presente uma vez que se trata de implementar todo o projecto num horizonte temporal limitado a 5 de Outubro de 2010, para comemoração do Centenário da Implantação da República. A mesma Resolução determina também os objectivos e acções a desenvolver que, no que respeita ao Museu Nacional dos Coches são as seguintes: «Objectivos e acções a desenvolver: • As acções serão desenvolvidas em torno de três dimensões fundamentais: dimensão física, dimensão

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programação/animação e dimensão comunicação e marketing territorial. • Novo Museu Nacional dos Coches - construção de raiz, com uma área aproximada de 11 470 m², será localizado nos terrenos entre a Rua da Junqueira, a Avenida da Índia e o Jardim de Afonso de Albuquerque, e será concebido com base num programa preestabelecido que visa expor toda a colecção do Museu, incluindo o espólio actualmente existente em Vila Viçosa. Este equipamento constituirá uma âncora fundamental do actual programa de intervenção. (...) • (...) Actual edifício do Museu Nacional dos Coches - reabilitação e refuncionalização, permitindo a sua múltipla utilização institucional.» Fig. 3 Fachada Museu Nacional dos Coches © MNC

Não podemos no entanto deixar de nos questionar, com apreensão, sobre esta necessidade manifestada na Resolução de «refuncionalizar» o espaço ocupado há mais de cem anos pelo Museu e que é, sem sombra de dúvida, uma das suas imagens de prestígio nacional e internacional. Na verdade o Museu Nacional dos Coches, à semelhança de outros importantes museus europeus, há longos anos que cumpre uma «múltipla utilização institucional» servindo com a sua colecção, de cenário a inúmeros eventos de prestígio, o último dos quais, no âmbito da assinatura do Tratado de Lisboa. O Museu Nacional dos Coches encontra-se, deste modo, perante um enorme desafio de gestão considerando as responsabilidades científicas, culturais e pedagógicas que lhe advêm da sua missão enquanto museu detentor de «um valioso espólio» em grande parte classificado como Tesouro Nacional e as potencialidades que o mesmo representa no domínio da «rentabilidade» turística e comercial.

Fig. 4 Loja do Museu Museu Nacional dos Coches © MNC

Estratégia para o futuro Se tomarmos como exemplo, com as devidas proporções, que a renovação do Museu do Louvre fez passar de imediato o seu orçamento anual de funcionamento de 45 milhões de euros para 119 milhões de euros poderemos reflectir também nas significativas alterações orçamentais que se avizinham para o Museu Nacional dos Coches. Este é, igualmente, um importante desafio de gestão, talvez mesmo o maior, que se coloca desde já, tanto ao nível de planeamento financeiro como ao nível de recursos humanos. O que se pode esperar do novo Museu Nacional dos Coches atendendo à actual situação de pessoal, tanto a nível técnico superior como a nível de assistente técnico e de assistente operacional.

Fig. 5 Visitas de grupo no Salão Nobre Museu Nacional dos Coches © MNC

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No sentido de viabilizar a execução do projecto e obra do novo Museu Nacional dos Coches a Resolução do Conselho de Ministros acima referida determinou no seu ponto 2 «... que as operações de requalificação e reabilitação urbana da frente ribeirinha de Lisboa sejam executadas por uma empresa pública a constituir sob a forma de sociedade de capitais exclusivamente públicos, a qual disporá de poderes excepcionais, designadamente em matéria de contratação pública e de utilização, fruição e administração de bens do domínio público.» No seguimento desta determinação, o Governo aprovou o Decreto-Lei que constitui a sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos Frente Tejo S.A. dotando-a de poderes de intervenção que permitam alcançar os objectivos fixados.

Sente-se, agora, a necessidade de dotar o Museu Nacional dos Coches de uma estrutura de pessoal que permita, igualmente, atingir os objectivos fixados, nomeadamente, de carácter científico, cultural e pedagógico. A constituição, preparação e formação de uma equipa de reforço do pessoal actualmente existente, que será indispensável na fase de instalação do museu no novo edifício prevista para os primeiros meses de 2010, carece de um período de tempo não inferior a um ano pelo que nos aproximamos, rapidamente, das datas exigidas por todas as normas de boa gestão. A preocupação existe, assim existam os instrumentos para a sua concretização.

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Fig. 1 Exposição Erwin Wurm Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado © MNAC-MC

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Pedro Lapa Panorama museológico da arte contemporânea em Portugal, 2008 Este artigo pretende traçar algumas considerações sobre os desenvolvimentos mais recentes das políticas de arte contemporânea e das respectivas instituições museológicas em Portugal. Os últimos 15 anos têm assistido a uma incapacidade por parte do poder central em definir o seu papel e lugar no sector. O desinvestimento nas instituições que tutela – adiando, por exemplo, a renovação do MNAC-MChiado – e o financiamento, questionável, em parcerias que não resolvem um problema estrutural são analisados neste artigo. Este alheamento dos poderes públicos tem ainda uma outra contrapartida, que é a de uma crescente visão comercial do papel destas instituições, pelo que é contraposta uma outra alternativa, centrada na investigação e respectiva divulgação. This article focuses on the most recent improvements concerning contemporary art policies and museums in Portugal. In the last 15 years public administration has been unable to define its role and place regarding the sector. The article analyses the decreasing public funding of museums which are dependent on central administration – postponing, for instance, the refurbishment of MNAC-Museu do Chiado (the National Museum of Contemporary Art) – and the questionable partnerships and their results which do not solve structural problems. The lack of attention from public responsibilities raises another issue, which is an increasing commercial view of the role of museums. The article suggests an alternative, based on research and divulgation.

PALAVRAS-CHAVE: Autonomia, colecção, disciplina, gestão, investigação, mecenato, museus, orçamento, privado, público, públicos, racionalidade.

Director do Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea | mchiado.director@ipmuseus.pt

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ontrariamente a outros domínios disciplinares em Portugal, a arte contemporânea só encontrou uma realidade museográfica minimamente diversificada e ainda assim problemática, no último decénio do século XX. Herdou os problemas causados por décadas de repressão e de ignorância relativamente ao mundo moderno e um adiamento contínuo do seu enquadramento, sugerido por Salazar numa entrevista a António Ferro: “Diga, portanto a esses rapazes que tenham confiança e saibam esperar...”. As sucessivas políticas culturais ou, mais regularmente, a sua inconsistência, verificada desde a implantação da democracia, têm mitigado a falta de projectos para o sector com operações por vezes estritamente festivaleiras e mediáticas, de alcance limitado e comprometedoras de um mínimo de racionalidade necessário. O isolamento do contexto nacional relativamente a outras realidades não só bloqueou a perspectivação de horizontes consistentes para o panorama da arte contemporânea em Portugal, como continua a dar lugar a acções avulsas, quase sempre subprodutos geridos entre contingências.

A acrescentar a isto a forte hierarquização do poder de decisão, que ainda estrutura as instituições, tem colocado no lado administrativo e político muitas das decisões científicas, com as consequentes limitações que vieram a dar origem a este panorama. Salvo raras excepções e pelo anteriormente descrito, não houve ainda tempo de formar uma classe de gestores e administradores culturais com conhecimento e curriculum específico da matéria capazes de consultar os técnicos e elaborar uma visão estratégica para este domínio.

O estado das coisas

O institucional, aos poucochinhos De 1911 a 1969 existiu apenas o Museu Nacional de Arte Contemporânea, que coleccionava obras artísticas com um recuo máximo de 50 anos, ideia extremamente avançada em termos mundiais, embora a sua história posterior tenha sido mais marcada por vicissitudes e resistências do que por uma efectiva actualidade relativamente à produção.

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A partir da década de 1960 a Fundação Calouste Gulbenkian deu início a aquisições para uma colecção de um museu que foi inaugurado em 1983, o Centro de Arte Moderna – J.A.P., com uma colecção nacional e outra britânica mais lacunar. Entretanto em 1990 é constituída a Fundação de Serralves e é dado início a uma colecção contemporânea internacional que só viria a ter expressão a partir de 1999 quando o museu é finalmente inaugurado. Outras instituições como a Caixa Geral de Depósitos construíram a partir da última década do século passado colecções contemporâneas que são casualmente apresentadas. O Ministério da Cultura, desde o final da década de 70, teve uma vaga percepção da gravidade da situação e na incapacidade de definir uma solução articulada adiou parcialmente o problema, construindo uma colecção, através da ex-Direcção Geral de Acção Cultural, que sem espaço próprio serviu para decorar gabinetes ou realizar depósitos em função de conveniências momentâneas, em vez de refundar o Museu Nacional de Arte Contemporânea, então encerrado por absoluta demissão de responsabilidades e dotá-lo dessa incumbência. Tal só viria a acontecer em 1994, sob a ambígua e tímida designação de Museu do Chiado, mas entretanto um terço da colecção do ministério, com cerca de 1500 espécies, havia sido depositado na Fundação de Serralves, que ainda não fixara um âmbito cronológico específico para a sua actuação. Posteriormente, em 2007, foi decidido atribuir a titularidade desta colecção ao Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado. Também o Instituto de Arte Contemporânea, criado em 1995 e extinto em 2003, cuja missão consistia em apoiar e promover a criação artística contemporânea, apesar de uma relevante e muito significativa acção junto dos criadores que importa ressalvar, optou por coleccionar – em vez de se posicionar no domínio da produção e deixar a recepção para as instituições coleccionadoras, actuou simultaneamente nas duas frentes, com perda substancial de eficácia da sua missão, deixando mais uma colecção dispersa sem destino e condições de preservação, apresentação e investigação que só podem competir a um museu. Naturalmente que a indefinição geral da situação, por parte das instâncias políticas, constituiu a razão dominante destes problemas. Chegamos assim ao século XXI com uma situação irracional no que respeita, por um lado, a proliferação de colecções incompletas do Estado, sem espaço museográfico próprio e dispersas; por outro, um museu nacional com responsabilidades de representação patrimonial contemporânea, que herdou profundas lacunas e sem meios para aquisições nem espaço para expor. Não existe hoje nenhum país da UE ou da América do Norte cujo Estado não possua um museu nacional de arte contemporânea com a função atribuída ao MNAC‑MC ou seja, fazer o acompanhamento patrimonial

Fig. 2 Montagem de obra © MNAC-MC

Fig. 3 Serviços educativos © MNAC-MC

Fig. 4 Inauguração Percurso Táctil-Cegos © MNAC-MC

Fig. 5 Concerto Technoshaman © MNAC-MC

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dos desenvolvimentos da contemporaneidade no seu país e na maior parte dos casos também de forma ampliada e confrontada com outras nacionalidades. Não existe hoje um museu onde um visitante nacional ou estrangeiro, um estudante ou um especialista possa encontrar exposto o desenvolvimento e as complexidades próprias do panorama artístico nacional. É esta a missão do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado adiada desde sempre e por uns tempos delegada à Fundação Calouste Gulbenkian, à falta de soluções políticas, mas bastou que esta procedesse a alterações para que o problema se revelasse de novo. O privado, titubeante sinal dos tempos No domínio privado o século XX assistiu maioritariamente à criação de pequenas e médias colecções, do que hoje já não designamos de contemporâneo mas moderno e das quais a mais relevante, num primeiro momento, foi talvez a de Jorge de Brito, todavia raríssimas foram as colecções que sobreviveram a mais de uma geração, tal como esta, não existindo assim complexificação e acumulação, antes pelo contrário, uma infinita dispersão. O primeiro e mais significativo caso será a colecção Manuel de Brito, que encontrou numa segunda geração continuidade e, mais que isso, uma parceria que lhe permite exposição pública. A própria criação da Fundação Arpad Szènes – Vieira da Silva, feita na base do empréstimo de uma colecção de obras da artista demasiado tardias e selada pela amizade de um director com um coleccionador, infelizmente desaparecidos, encontra hoje o seu epílogo na inexistência de meios capazes de garantir a sua sobrevivência. Quando esta fundação foi criada e mesmo ao longo da sua existência, não foram adquiridas pinturas fundamentais da carreira da artista capazes de reportar o seu percurso nos momentos mais significativos, logo a pertinência da sua existência tende a relativizar-se e pior que tudo a diminuir a eficácia da apresentação da obra da artista. Entretanto, quer a própria colecção do CAM‑JAP da Fundação Calouste Gulbenkian, quer o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, onde as obras deveriam ter sido integradas de forma a enriquecer e complexificar as respectivas colecções que reportam os desenvolvimentos da arte portuguesa ficaram de fora neste movimento de deserção de uma política de integração estruturada, antes devolvida às contingências do improviso político. Também só na última década do século XX apareceu uma primeira colecção privada com uma dimensão internacional, a colecção Berardo. Ainda que dispersa por um período cronológico mal definido – inicialmente os desenvolvimentos da década de 60 para cá eram o

seu alvo mas posteriormente alargou-se até ao início do século XX – o que se tornou demasiado ambicioso para os meios de aquisição e deu lugar a uma colecção com grandes lacunas – como a previsível ausência de obras significativas das vanguardas históricas da arte moderna articuladas de forma a dar uma panorâmica dos diversos movimentos – e vastos núcleos de qualidade secundária – como seja o núcleo surrealista ou o construtivista – a par de outros muito qualificados, como acontece com a Arte Povera, esta colecção serviu, contudo, no contexto nacional, de modelo a muitas outras, que no início deste século se estão a construir numa base mais internacional e esperemos que venham a ter visibilidade pública prolongada. O caso da colecção Ellipse Foundation, fundada em 2003, veio concentrar a sua cronologia nos últimos 25 anos da produção artística internacional. Construída por três curadores e um Conselho Consultivo internacional de nomes prestigiados, organizou-se dentro do novo modelo das colecções privadas. Estas, ancestralmente organizadas pelo próprio coleccionador, quase sempre influenciado por pareceres amadorísticos e dispersos, salvo fantásticas excepções e que, numa fase posterior, passaram a apoiar‑se em galeristas ou dealers, construindo as colecções sobre acasos e interesses muito heterogéneos, deram lugar, por todo o mundo, à participação de especialistas integrados num corpus de saber próprio, a história de arte contemporânea. Outros casos semelhantes entretanto aparecidos são a Colecção Cachola, a Colecção Manuel de Brito definitivamente configurada como tal e o escritório de advogados PLMJ, que conjugam a paixão dos coleccionadores com o trabalho especializado dos curadores e apresentam por isso perfis bem definidos. Será ainda relevante analisar a forma como estas colecções privadas têm encontrado formas de apresentação pública. A entrega da principal instituição do Estado a uma colecção privada – a Fundação Berardo –, custeada parcialmente pelo próprio Estado na sua manutenção e actividade, configura do meu ponto de vista um processo de resolução que não estimula no privado uma complementaridade e concorrência saudável. Sublinho que não está em causa o grande mérito do coleccionador, mas as opções da política cultural nacional para a arte contemporânea. Por seu turno a Ellipse Foundation construiu um espaço próprio aberto ao público com entrada gratuita, actividades temporárias e pedagógicas, sem recurso a qualquer tipo de participação de fundos públicos, demonstrando o papel da iniciativa privada na sua verdadeira acepção. Também a colecção PLMJ encontrou formas de apresentação da colecção com meios próprios e doando à cidade de Lisboa uma importante escultura.

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A colecção Cachola encontrou um justo equilíbrio com uma autarquia que cedeu e reconverteu um espaço para museu num processo de parceria com profundas vantagens para Elvas e para a região e o mesmo é válido para a colecção Manuel de Brito. Penso que este poderá ser um bom modelo para várias autarquias e colecções de arte contemporânea, que se constituam na base do profissionalismo e qualidade em que estas o foram. E o Instituto dos Museus e da Conservação? O IMC sucede ao Instituto Português de Museus, cuja criação em 1991 correspondeu à necessidade de dar um tratamento específico à realidade museológica relativamente aos outros aspectos patrimoniais. Desde esse período que a arte contemporânea foi secundarizada no conjunto dos 29 museus tutelados. Uma análise das aquisições realizadas desde essa altura até ao actual IMC bastaria para fundamentar esta posição. Também a assumpção das responsabilidades da ex-Direcção Geral de Acção Cultural por parte do IPM, na primeira metade da década de 90, nunca foi assumida, nem uma política museológica para a contemporaneidade foi nesse período ou nos seguintes delineada, ainda que em finais de 90’s algumas colaborações com o IAC tenham tido lugar. Infelizmente o IMC não encontrou ainda os meios mínimos para desenvolver um projecto para a arte contemporânea, apesar de ter a tutela de uma rede ampla de museus. Esta indefinição tem tido repercussão no baixo número de exposições que os museus apresentam neste domínio e por vezes na sua qualidade dúbia. Seria talvez mais produtivo dar início a um programa de exposições temporárias por diversos museus da rede do IMC contratando curadores, quando fosse o caso, para desenvolverem por determinado período uma programação. A parceria com as autarquias na realização destes projectos seria importante e sobretudo o estabelecimento de um período de transição de tutela dos museus que têm um âmbito regional e que são a maioria esmagadora do IMC (provavelmente apenas 12 museus têm um âmbito disciplinar específico e apenas estes deveriam ser considerados museus nacionais). Ainda assim o problema actual não será tanto o de uma opção que privilegia esta ou aquela área no seio do instituto, mas a viabilidade de uma estrutura como o IMC, que me parece estar em causa, independentemente do valor, das acções e do empenho dos seus dirigentes, até porque desde sempre teve os melhores nomes nas sucessivas direcções, que sobreviveram com independência aos diversos ciclos políticos.

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Fig. 6 Participantes do atelier O Século XIX na Colecção do Museu do Chiado © MNAC-MC

O modelo de um instituto que tutela administrativa e financeiramente 29 museus e 6 palácios absolutamente suborçamentado e subdimensionado de recursos humanos inscreve-se numa política incompatível com qualquer projecto que pretenda alterar substancialmente a realidade institucional nacional. Não existirá qualidade e projecção internacional se não for possível a cada director programar com antecipação de três anos, pelo que os orçamentos deveriam ser trienais; não é possível responder e articular com instituições internacionais, artistas e outros agentes sem o poder de decisão e compromisso imediatos, o que implica autonomia financeira; não é possível estabelecer parcerias de forma a partilhar custos com outras instituições congéneres e integrar redes internacionais de circulação de exposições de importância capital para a afirmação dos nossos artistas sem ambas, ou seja, autonomia e orçamentos plurianuais. Naturalmente que este problema está longe de se cingir ao domínio da arte contemporânea, mas no que respeita esta realidade, que tem os seus agentes no activo e com grande papel interveniente e uma profusão de circulações internacionais, o problema da incapacidade de resposta torna-se ainda mais flagrante. A actual situação só tem paralelo num quadro político que privilegie uma profunda concentração do poder central e de total indiferença perante os resultados do magro orçamento público que é atribuído a esta área.


Fig. 7 Visitas de grupo Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado © MNAC-MC

Medidas prioritárias A inversão desta situação passará inevitavelmente pela definição das tipologias dos museus até aqui tutelados pelo poder central, de forma a separar aqueles que se reportam a um âmbito disciplinar, e por isso têm interesse nacional, dos que são constituídos por colecções mistas de interesse regional. Num segundo momento complementar deste, a autonomização dos museus nacionais é urgente para que estes possam cumprir a sua missão, enquanto os museus de colecções mistas e regionais deveriam ser transferidos gradualmente para o poder autárquico. Muitos destes museus têm desenvolvido um qualificado trabalho sem meios suficientes, facto que poderia ser colmatado com os recursos autárquicos dirigidos para a actividade destas estruturas e menos para a compulsiva criação de novas estruturas sem programas nem missões relevantes. Estes museus têm geralmente condições aceitáveis, se não mesmo correctas, para acolherem exposições de arte contemporânea, pelo que a realização de parcerias com outras instituições poderia constituir um vector estratégico das respectivas programações, permitindo com isso a circulação de artistas e exposições por regiões ainda muito arredadas da produção artística do presente. Por outro lado, paralelamente à alteração de modelo de gestão dos museus nacionais, nesta área subsistem três questões que importa resolver. São elas: a reconstituição

do museu nacional de arte contemporânea, a de um museu internacional de arte contemporânea e a acção de um instituto de apoio à criação artística. 1. A contínua indefinição e adiamento da ampliação do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado tem vindo a dar lugar a sucessivos engodos, sendo que muitos deles deveriam ser resolvidos por iniciativa privada e outros têm longos custos para o sector público que aí acorre por falta de política concertada e inviabilizando meios para o que efectivamente urge estruturar. Torna-se fundamental constituir um museu com espaço suficiente para apresentar em permanência os desenvolvimentos da arte portuguesa e simultaneamente dotar esta instituição de meios básicos para aquisições capazes de reportar a diversidade do panorama nacional; 2. A constituição de um museu de arte contemporânea internacional em Lisboa, uma vez que Serralves ocupa essa posição para o Porto, é outro aspecto fulcral e que a instalação da Fundação Berardo no CCB não poderia resolver, mas apenas adiar. A constituição de um museu internacional terá de ser equacionada em função dos meios disponíveis para aquisições e que dificilmente permitem um recuo superior a 15 anos relativamente à actual produção artística, outros períodos são incomportáveis em termos financeiros no actual quadro económico que o país atravessa. Importa por isso que a definição de curiosos com os seus escassos

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conhecimentos não interfira de forma a repor horizontes inviáveis de um tempo remoto, o único que normalmente conhecem, que na prática redundaria em obras de terceira categoria. A aquisição deverá ser realizada numa base mista de meios, ou seja, através de encomendas e produções aos/ e com os artistas, em galerias comerciais, através de doações, dações, patrocínios e mecenatos e ainda complementada com depósitos privados a longo prazo. A actual situação a que foi votado o CCB é o maior obstáculo para a concretização deste projecto e a multiplicação de estruturas parece-me uma solução perigosa para os escassos meios do país. É por isso muito importante que a colecção que o Estado vai comprar para a Fundação Berardo, caso não se concretize o erro da aquisição desta pelo Estado, seja dirigida para o presente e não para as lacunas da colecção de forma a ter utilidade futura e minorar a habitual compulsão à criação de mais uma colecção sem lugar nem destino específicos. 3. A política de apoio à criação artística deveria concentrar-se nos apoios à produção, às representações portuguesas em eventos internacionais e à promoção da situação artística nacional junto dos agentes principais do meio, desenvolvendo programas para curadores internacionais visitarem o país – sobretudo antecipando convenientemente aqueles que serão os futuros curadores de relevantes eventos mundiais –, bem como residências para artistas internacionais trabalharem, leccionarem e exporem no nosso país. Trazer os jovens protagonistas do mundo contemporâneo ao país, suportar acções individuais ou de grupo e organizar atempadamente as representações nas bienais internacionais com os convites aos curadores e nunca directamente aos artistas – pois que o Estado não escolhe artistas oficiais, esta é de competência científica – contribuiria para alterar o desconhecimento profundo que o mundo internacional tem sobre a realidade portuguesa. Os apoios a galerias poderiam fazer parte de acções e programas articulados com o Ministério da Economia.

Fig. 8 Colecção Pompidou no Chiado Armazéns do Chiado © MNAC-MC

A emergência dos modelos de gestão neo-liberais e a destituição disciplinar Com a destituição dos modelos de um Estado interventivo e a proliferação no campo cultural de instituições privadas, as duas últimas décadas têm assistido a modelos de participação mista dos vários poderes públicos e privados na gestão dos museus de arte contemporânea e não só. Se esta realidade tem possibilidades de importância capital na flexibilização da gestão e reconfiguração do museu às novas necessidades, ela só se torna efectiva

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Fig. 9 Montagem da Exposição Centre Pompidou - Novos media 1965 - 2005 Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado © MNAC-MC

na base de algumas condições, o mais das vezes pouco relevadas: uma lei de mecenato verdadeiramente atractiva e que seja uma verdadeira alternativa à tributação fiscal regulada pelo Estado também em função das necessidades do sector cultural, quando existe uma avaliação por parte das empresas e da opinião pública da qualidade do mecenato prestado, quando existe produção económica para que isso seja possível e quando o Estado assegura os seus serviços racionalmente no domínio através de museus estatais, de forma exemplar à semelhança dos EUA. Importa ainda considerar o facto de que este modelo de participação na vida pública se alicerça numa cultura saída da Reforma, por isso tão significativa no norte da Europa e da América e tão limitada no sul. Infelizmente a tendência generalizada tem sido para descurar os aspectos referidos e escamotear algumas falhas com a sobreposição de outros aspectos, por isso o patrocínio e o mecenato são tendencialmente equiparados a um segmento publicitário especial das empresas e não a uma forma alternativa de tributação fiscal de livre escolha do cidadão. Em países como Portugal assiste-se a uma demissão da racionalidade do sector público, de resto quase nunca constituída, e a um improviso com a sobreposição de mecenatos ou patrocínios de curta duração encontrados ao sabor das amizades e que mascaram as falhas estruturais num primeiro momento e num segundo, com a sua deserção (tão legítima como qualquer outra opção estratégica de uma empresa que se move num território vagamente regulamentado), deixam mais um encargo

quase sempre resolvido do mesmo modo ou nas piores hipóteses eternamente adiado. Uma vez mais, talvez fosse conveniente analisar os próprios modelos neo-liberais norte-americanos e realçar o facto de que os mecenas das instituições são em número limitado e fixo, têm obrigações estatutariamente definidas relativamente à sua participação anual e esta desenvolve‑se por um período que pode mesmo ser vitalício ou dá lugar a uma substituição capaz de assumir os mesmos encargos. Uma rápida panorâmica da situação nacional bastaria para se perceber como é antes um incipiente modelo brasileiro que tem mais afinidades com aquela. A alteração da participação das empresas no coleccionismo e actividades temporárias constitui outro problema, recente e ainda pouco reflectido, que se sobrepõe àquele e tendencialmente lhe reduz as possibilidades. Do meu ponto de vista, advém de dois factores complementares: por um lado, a eficácia limitada em termos de visibilidade da participação das empresas na vida dos museus e centros de arte, independentemente de qualquer ordem de juízo que façamos sobre este facto; por outro lado, a consequente assumpção do seu interesse neste domínio, manifestado na constituição não só de colecções de âmbito museológico, como de espaços expositivos com programas próprios. Assim, nos últimos vinte anos, muitas são as empresas que prescindem da sua actividade mecenática junto de instituições do Estado para se dedicarem à constituição de colecções próprias.

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Não encontram por vezes naqueles organismos feedback suficiente para as suas expectativas, uma vez que, como vimos, o enquadramento jurídico-fiscal é insuficiente, a cultura de uma cidadania participante, bem como o enquadramento fundamentador da actividade económica ao serviço do bem público varia e, como tal, a acção é essencialmente dominada pelo valor publicitário. Tenho experiência de mecenas que ofereceram valiosíssimas colecções ao Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado e que não só o gesto teve contrapartidas limitadas em termos fiscais mas, provavelmente pior que isso, essas colecções doadas não têm uma visibilidade continuada porque os sucessivos governos adiaram a necessária ampliação do espaço do museu que permitiria em última instância a todos quanto o visitassem aferir a relevância do acto de cidadania e desfrutar das obras. Naturalmente depois desta acção o passo seguinte para o referido mecenas foi o da constituição de colecção própria de empresa e posteriormente de uma fundação, o museu nacional perdeu assim uma óptima oportunidade de fixar um mecenas e de auferir de uma colaboração significativa. Creio que infelizmente este exemplo é crescente, independentemente da insensibilidade com que a política cultural nacional trata por vezes este tipo de atitudes, devido ao facto de uma incapacidade de dar resposta e estabelecer legislação adequada. Hoje a esmagadora fatia de aquisições no mercado de arte contemporânea internacional, e não me refiro apenas em termos quantitativos mas qualitativos, vai para instituições privadas, sendo que os museus só chegam às obras mais relevantes quando os próprios artistas definem ser essa a sua prioridade contra a impaciência dos galeristas que têm de esperar que os museus reúnam, quando o conseguem ao fim de seis meses, as verbas necessárias para a sua aquisição com desconto especial (falo de uma realidade nos EUA e que na Europa é ainda mais penosa). Tendencialmente os museus públicos como instituições de referência disciplinar arriscam-se a ser ultrapassados por esta dinâmica privada que tem interesses diferentes dos científicos e neste momento constitui o grosso do coleccionismo da produção contemporânea. Se a proliferação de instituições privadas de visibilidade pública é sem dúvida um importante complemento e desafio para os museus públicos, a ausência de enquadramentos efectivos na captação de meios verdadeiramente produtivos constitui uma das maiores ameaças para que o museu possa ser um laboratório disciplinar vivo e aberto a todos. Outro problema, maior que o anterior, é a insistente demanda de aumento de públicos por parte de políticos, administradores, gestores e que os directores e, de um modo geral, o senso comum, começaram a interiorizar como um imperativo de sobrevivência das instituições.

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Dos antigos sonhos de uma esquerda marxista-leninista culpabilizada pelo afastamento e alheamento do proletariado relativamente às instituições culturais e suas propostas, passou-se à realidade consensualista de um capitalismo tardio centrado na proliferação de serviços e numa indústria do entretenimento de grandes massas, que tende a absorver as manifestações públicas de um campo disciplinar qualquer, como seja por exemplo o museu de arte contemporânea, e a transformá-las em produto de consumo passivo, retirando ao fenómeno artístico a sua resistência à apropriação redutora e mercantil ou mesmo exterminando a constituição de uma subjectividade. Se os departamentos pedagógicos foram vitimizados pela ideologia dos primeiros, os departamentos de marketing, fundraising e comunicação são hoje instrumentalizados pelos segundos. De uma realidade para a outra se tem estreitado e condicionado de forma crescente a programação dos museus, que deveria decorrer da investigação e troca disciplinar. O papel do director enquanto programador transformou-se no de um angariador de fundos, que tem como contrapartida a oferta de uma banalidade capaz de cobrir o maior número possível de vastos segmentos do público. Esta realidade atingiu tal ponto que, em Dezembro de 2007, nos EUA, vinte museus estavam sem director disponível para o cargo, uma vez que a função de angariador de verbas para causas humanitárias é provavelmente mais compensadora e eficaz para quem a tal se dedica e muito distinta para um director de museu que tem como saber e projecto configurar diversas perspectivas sobre as práticas artísticas. A permanente exigência de mais público, em número capaz de sustentar a totalidade das actividades dos museus, tem assim como contrapartida a demissão da experimentação, da dissensão, do particular, ou seja, do que caracteriza a inovação e o distintivo que toda a manifestação artística implica, sobretudo num domínio tão particular como é o da contemporaneidade. Naturalmente que nenhum director, conservador ou artista deseja ter as portas da instituição abertas para ninguém. Proporcionar uma diversidade de dispositivos de mediação capazes de promover e estimular a reflexão sobre o trabalho artístico ou procurar alargar uma comunidade de interessados são tarefas próprias de uma qualquer instituição, que desejamos tão implicada na vida quanto a obra de arte. O panorama museográfico da arte contemporânea internacional é muito vasto e tem cambiantes muito diversificadas sobre estes problemas, mas raros são hoje os grandes museus que têm possibilidades de ultrapassar as limitações referidas, perdendo com isso a prazo a qualidade associada à inovação que constituiu parte das suas histórias que hoje admiramos.


Fig. 10 Sala da exposição Revolução Cinética Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado © MNAC-MC

Por isso os pequenos museus e centros de exposições com menos exigências e encargos, mas com estruturas de sustentabilidade estabilizadas oferecem programas mais qualificados e complexos sobre o mundo artístico actual. Num contexto mais desestruturado, vivendo apenas das conjunturas, como é o português, estes problemas tendem a gerar uma total incapacidade de programação, pelo menos com um nível mais ambicioso e consequentemente a abrir caminho a uma cultura do entretenimento, acrítica e auto-complacente com uma subjectividade do consumo. Ironia suprema num país com escassez de recursos. Creio que para se atingir um nível mais relevante em Portugal é necessário definir objectivos por especialistas e não pelo improviso político e concentrar os recursos do sector público, de forma a organizar outros enquadramentos mais favoráveis e responsáveis para a participação de empresas e devolver à iniciativa privada o seu papel complementar de um panorama articulado, por quem tem de o fazer.

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Fig. 1 Espaço municipal e Núcleo do EMS da Mundet Seixal © EMS-CDI

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Graça Filipe Património e museologia, planeamento e gestão para o desenvolvimento. Conceitos e práticas em mudança no Ecomuseu Municipal do Seixal O percurso de existência do Ecomuseu Municipal do Seixal (EMS) insere-se num contexto de mudança, em que os museus têm procurado desempenhar um papel social e definir uma missão ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento. Neste artigo tentaremos evidenciar algumas das suas especificidades e caracterizar sucintamente o seu actual sistema de gestão, considerado um processo de certo modo flexível e em evolução, que se tem procurado adequar às mudanças vividas pela organização, à sua complexidade, às necessidades do seu desenvolvimento e à sua missão. Relevamos a indissociabilidade entre o funcionamento, a equipa do EMS e a forma como este interage com o exterior. A par de uma visão integradora para o EMS - um Concelho, um território e uma região em que se promova o desenvolvimento das populações, das comunidades e das suas culturas a par da protecção e reconhecendo a importância, actual e futura, dos recursos naturais e do património cultural, material e imaterial, imóvel e móvel – reconhecem-se no seu sistema de gestão três grupos de unidades patrimoniais ou subsistemas temáticos: de património arqueológico; de património técnico e industrial e de património e cultura flúvio-marítimos. Embora pretendendo continuar a explorar as potencialidades da relação entre a valorização de património e a gestão museológica, da avaliação da experiência do EMS conclui-se pela necessidade da diversificação de práticas e de interacção com as comunidades nos processos de salvaguarda e apropriação de património. The Ecomuseu Municipal do Seixal (SEM) has been developing its activity in a context in which the museums aim at achieving a social role as well as setting the purpose of paying a service to the development of the community. This article aims to enhance some of the museum’s specificities and to briefly characterize its present management system. This system is seen both as an on-going process that, at some extent, is a flexible one and that has been doing its best to adapt to the organization’s changes, complexity, needs and mission. A special note is put on the inextricable gathering of the working method, EMS’s team and the museum’s interaction with the exterior. With the EMC’s integrating policy – one council, one area and one district - to promote the development of the community and its various cultural references and roots, by preserving and acknowledging the unique importance of the natural resources and the cultural heritage, three main areas have been identified and are to be researched: one archaeological, one technical / industrial and a fluvial/maritime one. Although this team intends to keep on studying the stimulating relations between the heritage appraisal and the museum management, we were led to conclude, from the assessment of results achieved so far, that a diversity of heritage safeguard and protection interacting processes are strongly needed.

PALAVRAS-CHAVE: Ecomuseu, património cultural, desenvolvimento, patrimonialização, gestão museológica, plano estratégico, sistema museológico, programa museológico, modelo de gestão.

Directora do Ecomuseu Municipal do Seixal | graça.filipe.ecomuseu@cm-seixal.pt

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orrespondendo às significativas transformações operadas ao longo das últimas décadas nos museus, a reflexão e o estudo sobre as suas formas de organização e a gestão museológica têm ganho um crescente interesse não só dos próprios profissionais destas instituições, mas também dos especialistas em ciências sociais e humanas, nomeadamente dos que se dedicam à história das organizações e aos métodos de gestão. Entre os principais factores de atenção sobre a história institucional dos museus identificamos o seu estatuto público, a sua notável extensão em números absolutos e a diversificação dos seus campos e modelos de actuação, quanto a tipologias, actividades, contactos e/ou inserção no meio em que se localizam e relações que estabelecem com outros organismos (BALLÉ 2003). O percurso de existência do Ecomuseu Municipal do Seixal (EMS) insere-se neste contexto de mudança, em que os museus têm procurado desempenhar um papel social e definir uma missão ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento. Neste artigo tentaremos evidenciar algumas das suas especificidades e caracterizar sucintamente o seu actual sistema de gestão, considerado um processo de certo modo flexível e em evolução, que se tem procurado adequar às mudanças vividas pela organização, à sua complexidade, às necessidades do seu desenvolvimento e à missão patrimonial e cultural do EMS. O funcionamento deste, englobando os problemas de financiamento e de gestão, é reconhecidamente um desafio maior que se coloca no presente e de que depende o seu futuro. «O futuro dos museus – e o seu sucesso – dependerá da sua capacidade de preservar a sua vocação patrimonial, manter os seus objectivos culturais e sociais, mas terá também como fundamento uma melhoria dos seus modos de funcionamento. (...) A organização é um desafio maior que os museus enfrentam para o futuro». (BALLÉ 2003: 29).1

No EMS, relevamos ainda a preocupação em aplicar sempre os conhecimentos e as boas práticas de gestão e administração de modo atento à especificidade da organização e do seu funcionamento interior, indissociável das pessoas que nela trabalham, em interacção com o exterior. O Museu Municipal do Seixal foi criado em 1982, por deliberações da Câmara e da Assembleia Municipais do Seixal, com base num programa museológico apoiado no levantamento histórico-cultural do Concelho efectuado precedentemente, entre 1979 e 1981, em que se reflectiu uma importante componente de participação da comunidade local. Em 1983, a tutela acolheu a comparação feita por Hugues de Varine, entre a experiência museológica emergente no Seixal e os conceitos da ecomuseologia e adoptou a denominação de Ecomuseu Municipal do Seixal (EMS). Foram assumidas como ideias estruturantes do projecto: a programação museológica referente ao território concelhio, a conservação do património in situ e a participação da comunidade. Começando por estar enquadrado no Sector de Património Histórico e Cultural dos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Seixal (CMS), o EMS deu lugar à constituição, em 1988, de uma nova unidade orgânica, denominada Divisão de Património Histórico e Natural/Ecomuseu Municipal (DPHN/EM), no Departamento de Cultura, Desporto e Juventude instituído no mesmo ano, através de regulamento reestruturador dos serviços municipais, publicado em Diário da República (II série, nº 37, 13.02.1988). Aquela unidade orgânica passou por uma fase de transição, até 1995, em que à responsabilidade técnica e científica do EMS corresponderam funções de coordenação atribuídas pela CMS a uma técnica superior, integrada no respectivo quadro de pessoal. Só a partir daquele ano (1995), a DPHN/EM passou a ser dirigida por chefia nomeada pela CMS, realizando-se para tal concurso público conforme a legislação vigente. O EMS tinha treze anos de existência. De acordo com o Regulamento da Câmara Municipal do Seixal publicado em Diário da República – II série, nº 103, de 4.05.1993 (revogando o regulamento anterior, de 13.02.1988), o EMS permanece uma unidade orgânica da CMS.

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O artigo 82º descreve as suas atribuições e competências funcionais e confere-lhe a designação - Divisão de Património Histórico-Natural/Ecomuseu (DPHN/EM). É nesse Regulamento e servindo-se das competências que consagrou ao EMS que, até hoje, se tem desenvolvido a pesquisa e experimentação da aplicação de um quadro legal e normativo tradicional a um modelo de gestão dinâmico e potenciador dos recursos patrimoniais, usando as ferramentas do trabalho museal e aproveitando todas as oportunidades que a participação da comunidade e a construção de parcerias lhes possa proporcionar. Na década de 1990 verificou-se uma significativa extensão territorial e funcional do EMS, particularmente devida à estruturação e à instalação de serviços destinados à activação ou à consolidação de funções museais (tais como a investigação, a conservação, a documentação e o inventário, a comunicação e a educação), assim como ao incremento de incorporações, predominantemente de património industrial (com relevância para a aquisição do imóvel e espólio da antiga corticeira Mundet, no Seixal) e de espólios arqueológicos. Não obstante o crescimento da equipa técnica e de, como referimos atrás, a partir de 1995 se ter consolidado um órgão de gestão directa do EMS e de mediação hierárquica com a tutela, só através de um esforço de estruturação interna em que se destacaram alguns elementos da equipa, foi possível adaptar as estruturas da organização, seguindo uma estratégia de reprogramação – funcional, espacial e de actividades a priorizar pelo EMS. Tornando-se então necessário reperspectivar a organização e a programação museológicas, procurou-se fazer convergir uma fase importante desse processo com a adesão do EMS à Rede Portuguesa de Museus (RPM), em que a tutela se empenhou desde a sua instituição. Com o Programa de Qualificação e Desenvolvimento do EMS, aprovado pela CMS em 2001, foi declarada a missão do Ecomuseu: investigar, conservar, documentar, interpretar, valorizar e difundir testemunhos do homem e do meio, reportados ao território e à população do concelho do Seixal com vista a contribuir para a construção e a transmissão das memórias colectivas e para um desenvolvimento local sustentado. O Programa de Qualificação e Desenvolvimento de 2001 clarificou a estrutura territorial descentralizada do EMS, composta pelos denominados núcleos museológicos (constituintes de gestão directa, onde este aplica as diversas funções museológicas) e por recursos patrimoniais de uso e gestão mistos (em que o EMS articula a aplicação de funções museológicas em parceria com outras entidades), que se passaram a designar por extensões. Aquele Programa definiu dois eixos estratégicos no desenvolvimento do EMS: o primeiro, de qualificação dos núcleos existentes e

musealização da Mundet (Seixal) e o segundo, do Circuito Museológico Industrial, como meio de valorização e gestão de recursos patrimoniais técnicos e industriais. Na conjuntura vivida àquela data no contexto local e numa perspectiva de desenvolvimento museológico para que acreditámos conseguir obter um significativo reforço de recursos externos, os dois eixos estratégicos foram delineados como resposta às mudanças em curso no território, que se estavam a reflectir no campo de acção do EMS, cada vez mais solicitado pela comunidade a intervir numa perspectiva patrimonial e de salvaguarda identitária. Coincidindo praticamente com a especialização e, sobretudo, com a formalização do Serviço de Arqueologia do EMS, aproveitando as mais valias do novo quadro legal de 1997, que consagrou as carreiras profissionais para esta importantíssima área de investigação e de protecção do património cultural português, foi também entre 1996 e 2001, que, fruto da necessidade de adaptar a actuação e a constituição da equipa técnica e científica inicialmente criada para um projecto temporário, se constituiu outro novo serviço, para o Estudo e Inventário de Património Industrial. Esta equipa, multidisciplinar e baseando as suas metodologias de trabalho quer na transversalidade do projecto em relação às outras funções museais (nomeadamente a conservação, a interpretação e a comunicação), actuou de modo a facilitar o reconhecimento público do projecto, quer na cooperação e nas parcerias com os principais implicados no destino dos sítios em estudo e nos patrimónios (materiais e imateriais) em causa ou, à data, intervenientes directos nos processos de patrimonialização em curso. Referimo-nos, principalmente, aos casos do sítio industrial e de todo o espólio da antiga fábrica corticeira da Mundet & Cª Lda, no Seixal (municipalizados em Dezembro de 1996), à fábrica de pólvora negra em Vale de Milhaços, da Sociedade Africana de Pólvora (cujo estudo e inventário pelo EMS teve início em 1998) e à Siderurgia Nacional e ao vasto conjunto industrial da produção de aço pela via integrada, em que se incluía o Alto Forno, na Aldeia de Paio Pires (registado pelo EMS entre 1999 e 2001, até à sua desactivação). Enquanto procurou responder às necessidades de extensão e diversificação da aplicação de diversas funções museais a um sistema alargado de sítios patrimoniais, desenvolvendo também várias formas de interacção com a comunidade, foi necessário regular o modelo de gestão do EMS tendo em conta, no contexto orgânico, a sustentabilidade da sua estrutura funcional. Manteve-se assim uma estrutura funcional centralizada, segundo a qual procurámos organizar serviços mais adequados à dinâmica de qualificação e ao reforço dos recursos humanos, facilitando e promovendo a sua valorização técnica e científica.

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Fig. 2 Edifício central do circuito da pólvora negra Extensão do EMS - Vale de Milhaços © EMS-CDI

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Em simultâneo, foi dada importância à componente operacional e administrativa da gestão. Embora numa dinâmica de trabalho aparentemente autónoma, mas fazendo parte duma visão estratégica que acompanhou a declaração de missão do EMS, foi gizado o seu sistema de documentação e informação, projecto que se manteve entre as prioridades transversais e de articulação de toda a equipa técnica, tornando-se basilar para a sua interacção com os utilizadores e os parceiros da organização. Este percurso foi de facto muito importante para o desenvolvimento do EMS e nele empregámos consideráveis energias em termos de liderança. Não obstante por parte da tutela a ênfase dada ao projecto não se manifestar publicamente de forma tão expressiva como no caso de outros projectos municipais, assumimos a necessidade de que fosse sistematicamente documentado e preocupámo‑nos em divulgar sempre os principais tópicos de reflexão ou de debate interno, utilizando por exemplo o boletim informativo do EMS, edição trimestral de publicação ininterrupta desde o último trimestre de 1996. A nossa experiência permite-nos equacionar, entre outros, dois aspectos verdadeiramente relevantes e de grande actualidade no complexo universo da gestão museológica: um, o da profissionalização e outro, o do perfil profissional e das funções gestionárias do ‘director de museu’. Embora o papel deste esteja hoje relativamente clarificado na Lei‑Quadro dos Museus Portugueses e sejam praticamente consensuais as competências que deve exercer na organização museal - «zela pelo funcionamento, a eficácia e a irradiação do museu, dá conta à autoridade de tutela das actividades da instituição e submete-lhe os programas de desenvolvimento do museu» (PATTYN 1989: 330, citando G.H. Rivière [1970]), alguns autores têm abordado e defendido diferentes perspectivas quanto a esta questão, em que consideramos pertinente quer relevar a necessidade de preparação face à mudança, quer os riscos de deriva tecnocrática na gestão dos museus. O problema, analisado no contexto português, certamente passa ora pela formação em museologia, ora pela capacidade de diagnosticar a especificidade e as necessidades de governação de cada museu (cf. SERRA 2007). Sublinharíamos que, «(...) nem individualmente, nem colectivamente, a profissão dos conservadores parece hoje realmente à medida de propor uma visão normativa da organização e da gestão dos museus. O desafio consiste portanto em apreender a dimensão gestora, não na sua estreita dimensão de administração, mas no conjunto das suas componentes jurídica, organizacional, financeira e estratégica (…)» (TOBELEM 2003: 96)2

Por outro lado, relevamos não só a dimensão da administração de museu, na perspectiva da planificação estratégica, como «interacção progressiva entre as funções museais centradas nas colecções e as funções museais centradas na comunicação, para atingir os objectivos estabelecidos tendo em vista o desenvolvimento da instituição» (LORD e MARKERT 2007: 137), mas também o envolvimento da comunidade e a interacção do museu com a comunidade, como um dos seus principais factores de mudança (CROOKE 2006). Assim, a avaliação da nossa experiência e da evolução do EMS torna pertinente corroborar a seguinte conclusão: «as instituições patrimoniais que, efectivamente e eficazmente, mais contribuem para o desenvolvimento do território e da comunidade onde estão implantadas são aquelas em que a equipa funciona como uma cooperativa de especialistas de disciplinas e profissões diversas partilhando saberes e experiência, regulando linguagens e acções de difusão, colocando-se ao serviço dos visitantes e também das populações (…)». (VARINE 2002: 169). À formação dos membros da equipa do EMS tem sido dada uma importância permanente, numa perspectiva dinâmica, quer de integração na estrutura da organização, quer de valorização profissional e pessoal. Como praticamente tudo na vida duma organização, e atendendo ao tipo de instituição, tutela e quadro legal, os recursos humanos constituem uma variável em constante movimento, obrigando à frequente revisão e actualização de diversos aspectos do funcionamento, de objectivos e até de projectos de trabalho, procurando salvaguardar o essencial da planificação e dos programas do EMS, ancorada na respectiva declaração de missão. Reportando-nos à data de conclusão deste artigo (Maio de 2008), a equipa permanente e exclusiva do EMS é constituída por 45 profissionais, dos quais 75,5% são do quadro da CMS, 2,2 % são contratados a termo certo e 22, 2 % são contratados em regime de avença. Dos 45 profissionais, 40% são técnicos superiores, 31,1% são técnicos profissionais e 28,8% são auxiliares e operários. Na equipa, incluindo a função de director, 17,7% dos profissionais fazem parte dos órgãos de gestão interna do EMS (abarcando a coordenação de serviços e áreas funcionais). A totalidade dos profissionais está inserida ora em Serviços (a que competem áreas funcionais específicas) e em Áreas de projecto de longa duração, ora em Grupos de Trabalho (GT - realizando projectos transversais com objectivos definidos a prazo). Participam nestes GT (de composição transversal àqueles serviços e/ou áreas – GT para a Carta do Património do Concelho do Seixal; GT para o Sistema de Informação e GT para a Internet ) 20% dos profissionais da equipa.

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Através dos recursos humanos de que está dotado o EMS, usando espaços que classificamos de pouco adequados a bem equipados, tendo por referência de aplicação o Código Deontológico do ICOM para os museus3, encontram-se instaladas as seguintes funções museológicas previstas pela Lei-Quadro dos Museus Portugueses (Lei 47/2004, de 19 de Agosto): estudo e investigação, incorporação, inventário e documentação, conservação, segurança, interpretação e exposição, educação, através dos seguintes serviços e áreas: Serviço de Conservação e Inventário Geral; Centro de Documentação e Informação; Serviço de Arqueologia; Serviço de Património Marítimo; Serviço de Estudo e Inventário de Património Industrial; Serviço Educativo; Área de Arquitectura e Património Cultural Imóvel; Área de Investigação e de Projecto sobre Património e Cultura Flúvio-Marítimos; Área de Investigação e de Projectos sobre Moinhos de Maré. O sistema museal do EMS integra também o Serviço Administrativo e de Atendimento Público, indissociável do funcionamento de todos os que referimos atrás. Para além dos vários serviços prestados ao público e decorrentes da comunicação entre os Serviços do Ecomuseu e os seus utilizadores, à maioria dos profissionais da equipa é conferido um papel quotidiano, no âmbito da realização dos diferentes programas e projectos do EMS, de interacção com comunidades e indivíduos, que formal ou informalmente se repercutem na gestão museológica, como processo de tomada de decisões conducentes ao cumprimento da missão do museu e à execução dos seus objectivos a curto, médio e longo prazo, respeitantes a cada uma das suas funções, para o desenvolvimento das comunidades e a satisfação dos públicos e utilizadores. Conquanto esta organização funcional esteja documentada, ao longo dos anos, em planos e programas, relatórios e outros instrumentos de gestão, sendo na prática reconhecida por inúmeros despachos respeitantes à administração municipal e ao EMS enquanto unidade orgânica, não se encontra de facto consignada na estrutura organizacional da CMS, na medida em que tem sido protelado o seu processo de reestruturação. Por este motivo também não teve prossecução a proposta apresentada, de reformulação da unidade orgânica e constituição de um Departamento de Património e Museologia, em que fosse integrada a gestão municipal do Ecomuseu. A DPHN/EM depende actualmente do Pelouro de Recursos Humanos, Património e Acção Social. Apesar disso, permanece simultaneamente inserida no Departamento da Cultura, Educação e Juventude, cujas restantes unidades orgânicas reportam a um Pelouro distinto daquele a que reporta o Ecomuseu. Esta terá sido uma opção conjuntural, sobretudo decorrente de um

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critério político, apresentando-se pouco operativa, mas em face da sólida estrutura interna e de relacionamento com o exterior, que o EMS agilizou ao longo dos anos, com base num plano estratégico e de desenvolvimento de funções, não constituiu problema significativo para os serviços. No actual quadro de gestão e de funcionamento, colocamos porém bastante expectativa na deliberação dos órgãos superiores municipais que se venha a concretizar quanto às propostas, elaboradas e apresentadas em 2007, em que se aplicaram resultados de anos de experiência do EMS, particularmente no que concerne o Regulamento e a Política de Incorporações do Ecomuseu. Tais documentos são também parte do processo de aplicação da Lei nº 47/2004, de 19 de Agosto - Lei-Quadro dos Museus Portugueses – para a permanência do EMS na Rede Portuguesa de Museus. Apesar de defendermos uma visão integradora para o EMS - um Concelho, um território e uma região em que se promova o desenvolvimento das populações, das comunidades e das suas culturas a par da protecção e reconhecendo a importância, actual e futura, dos recursos naturais e do património cultural, material e imaterial, imóvel e móvel – reconhecem-se no seu sistema de gestão três grupos de unidades patrimoniais, potenciando três subsistemas temáticos: de património arqueológico; de património técnico e industrial e de património e cultura flúvio-marítimos. Com o desenvolvimento de vários projectos de investigação centrados nas referidas temáticas, das incorporações decorrentes principalmente da investigação arqueológica e da patrimonialização de bens técnicos e sítios industriais (em que se relevam, na sequência dos projectos que já atrás referimos, as antigas fábricas de cortiça Mundet e de pólvora negra de Vale de Milhaços) e da interacção entre o trabalho museal e as comunidades, o âmbito territorial do EMS evoluiu, ganhando um incidência patrimonial de âmbito mais alargado, quer regional, quer nacional. Estão constituídas unidades expositivas e de interpretação de património no Núcleo da Mundet – sobre temática industrial corticeira – e no Núcleo Naval – sobre temática marítima. A este último núcleo associa-se a preservação e/ou a reutilização, a navegar no Tejo, das embarcações tradicionais que integram o acervo do EMS – dois botes de fragata (Gaivotas e Baía do Seixal) e um varino (Amoroso). Estão a ser programadas unidades expositivas e de interpretação no Núcleo do Moinho de Maré de Corroios (a reabrir brevemente ao público) e na Extensão na antiga Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços – Circuito da Pólvora Negra – embora este se encontre visitável, graças ao seu razoável estado de conservação e privilegiando a autenticidade com que o sítio se apresenta.


Fig. 3 Tripulação do bote de fragata Baía do Seixal, a navegar © EMS-CDI

Preparam-se programas específicos e projectos de execução para o Núcleo da Quinta da Trindade, para o Núcleo da Olaria Romana da Quinta do Rouxinol e para a Extensão na Quinta de S. Pedro – Necrópole medieval‑moderna (séculos XIII-XVII). Para além do património flutuante e navegante que o integra, o EMS gere um vasto património cultural, imóvel e móvel, descentralizado por seis sítios, abrangendo três freguesias, das seis que constituem o Concelho. Entre aqueles seis sítios, três têm registo arqueológico. Quatro desses seis sítios ou conjuntos constituem Património Cultural Imóvel Classificado, ou como Monumento Nacional (a Olaria Romana da Quinta do Rouxinol) ou de Interesse Público (a Quinta da Trindade, o Moinho de Maré de Corroios e a antiga Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços). Os Serviços Centrais (também sede administrativa) do EMS localizam-se no Núcleo da Mundet, mas alguns serviços

museológicos e de gestão patrimonial encontram-se instalados no Núcleo da Quinta Trindade. Ambos os núcleos se situam na cidade e na freguesia do Seixal. Para o desenvolvimento das actividades do EMS contribui, além da multidisciplinaridade do trabalho das equipas em vários dos seus projectos, a articulação com recursos científicos e técnicos exteriores, nomeadamente através de parcerias, tanto estabelecidas informalmente, como através de protocolos institucionais. Constituindo um factor importante de identidade do EMS, sublinhamos a coexistência e a combinação, na programação desenvolvida, entre as diversas disciplinas abarcadas pela sua equipa técnica e científica (como a História, a Arqueologia, a Antropologia, ou a Arquitectura, a Conservação e a Museologia), com certas áreas de saber-fazer decorrentes de processos de transmissão activados pelo próprio Ecomuseu ou de que este tem podido beneficiar, contribuindo mesmo para processos de

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Fig. 4 Sistema EMS © EMS-CDI

patrimonialização, tais como a mecânica (e a mecânica aplicada ao vapor), a navegação tradicional à vela e a construção naval em madeira. O EMS é um sistema museológico territorialmente descentralizado tendo por principais objectivos gerais: a preservação, a interpretação e a divulgação do património cultural, material (imóvel, móvel e flutuante) e imaterial, como recurso de desenvolvimento; o registo e a transmissão de conhecimentos, técnicas e saberes‑fazer; a prestação de serviços ao público, através de uma equipa multidisciplinar, com a participação de comunidades interessadas em promover o património cultural e natural, entre as quais se inscrevem os Amigos e Doadores do Ecomuseu. Pretendendo continuar a explorar as potencialidades da relação entre a valorização de património e a gestão museológica, com relevância para os aspectos jurídico, conceptual e metodológico (cf. MORENTE DEL MONTE 2007), consideramos contudo necessário prosseguir com práticas diversas para aquela valorização, em alternativa à musealização, entendida esta como processo pelo qual um bem cultural (nomeadamente imóvel) se torna um bem museal, no nosso caso por incorporação no acervo do EMS e mediante a aplicação das funções museológicas que este desenvolve. A par das propostas de Regulamento do EMS e de uma Política de Incorporações, foi igualmente apresentada à tutela uma proposta de Regulamento da Carta do Património do Concelho do Seixal, na perspectiva da sua associação ao Plano Director Municipal (em processo de revisão). Também esta proposta, que sequenciou um vasto

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trabalho de levantamento e inventário de património, em vários momentos partilhado com a comunidade e articulado, no plano técnico, com outros serviços municipais, nomeadamente no que concerne o Sistema de Informação Geográfica, aguarda deliberação por parte da CMS. Se e quando formalmente regulamentada, a Carta do Património do Seixal (CPS) consistirá num instrumento de gestão territorial, patrimonial e urbanística, que compreende a identificação, localização e caracterização, bem como medidas de salvaguarda e valorização, de Monumentos, Conjuntos e Sítios que, numa perspectiva patrimonial holística, constituem referências culturais e identitárias para o Município. Como referido, o Património Cultural Imóvel constante na Carta do Património do Seixal encontra-se inventariado e georreferenciado e a respectiva informação integra-se na base de dados do Sistema de Informação Geográfica (SIG) – Seixal, sendo para além disso acessível aos utilizadores do Centro de Documentação e Informação do EMS. O EMS integra e gere espaços, sítios e acervos como recursos de desenvolvimento, enquanto espaços vivenciáveis e/ou fruíveis, que potenciam a transmissão de memórias e podem ser elementos dinâmicos de construção da memória social. A actividade presente e futura e a gestão do património ligado ao EMS, num território em mudança, devem ancorar-se em princípios e métodos de trabalho fundamentados na avaliação dos projectos que continuam em vias de concretização e dos processos de patrimonialização, diagnosticando os problemas enfrentados, de que resulta por exemplo a adiada devolução à comunidade, como espaço de


vivências urbanas, de sítios industriais identificados pelo seu valor patrimonial, com a inerente quebra da cadeia transmissora de memórias associadas a importantes meios técnicos. A sustentabilidade da valorização de património como recurso de desenvolvimento local implica a oportunidade de envolvimento por parte da comunidade, para o qual o EMS visa contribuir. Quanto a perspectivas de futuro, o nosso elenco de questões fundamentais inclui: • a vocação territorial e comunitária do projecto

museológico em construção e o reforço da dimensão do seu papel social; • a possibilidade e o interesse de ser acentuada a

identificação dos acervos dominantes - arqueológicos; industriais e técnicos; náuticos e flúvio-marítimos; • o

desenvolvimento e a aplicação das funções museológicas essenciais – investigação, conservação, documentação e difusão – através da qualificação de serviços e equipamentos centrais do sistema;

• o desenvolvimento e a qualificação da comunicação

através da exposição, com recursos museográficos e uma expressão plástica e arquitectónica adequados à identidade do território, procurando levar a cabo uma crescente integração quer dos núcleos e extensões do EMS, quer de outros sítios patrimoniais, na dinâmica de valorização desse mesmo território, através da fruição e da apropriação pela população; • a evolução do modelo de gestão do EMS para um

sistema misto de gestão, incluindo a participação dos utilizadores e da comunidade local.

Quando concluídos os processos de aplicação plena dos referidos regulamentos – do EMS e da Carta do Património do Concelho – poder-se-á estruturar a organização e o desenvolvimento da acção patrimonial e museológica a partir desses dois vectores principais, mas de forma flexível, aberta à participação da comunidade e à mudança. Relevaríamos a importância da criação e constituição de um órgão de participação cívica, em ligação com a clara definição da supervisão científica e técnica destes projectos. Por último, para uma abordagem mais aprofundada sobre o sistema e o modelo de gestão do EMS, seriam interessantes outras vertentes de análise, que ultrapassam o âmbito que nos propusemos tratar neste artigo. Referimo-nos nomeadamente às questões inerentes ao financiamento e a uma estratégia económica (e política da tutela) ligada à cultura e ao património, às confluências do trabalho do EMS com dinâmicas e processos de gestão patrimonial fora dos limites administrativos do Concelho (e da tutela autárquica municipal) e, enfim, à avaliação do EMS não só através da sua relação com o território, como também da projecção da sua actuação, em estruturas reticulares alargadas e em projectos ou acções realizados em cooperação (nacionais e internacionais). Consideramos o potencial de cooperação e de trabalho em parceria como uma das principais mais-valias do sistema de gestão e das capacidades desenvolvidas pela equipa do EMS, sublinhando que a sua concretização alia, mas simultaneamente afirma a importância e as especificidades, distintos patrimónios, cuja apropriação pela população pode tornar recursos do seu desenvolvimento.

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Fig. 5 Embarcações tradicionais na baía do Seixal por ocasião do 25º aniversário do EMS (2007) © EMS-CDI

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Notas 1

Tradução da nossa responsabilidade.

2

Tradução da nossa responsabilidade.

3 O Código Deontológico do ICOM para os Museus foi aprovado por unanimidade na XV Assembleia

Geral de Buenos Aires (Novembro de 1986), sofrendo alterações na XX Assembleia Geral, em Barcelona, em Junho de 2001 e também na XXI Assembleia Geral, em Seul, em Outubro de 2004.

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Fig. 1 Portal de ingresso do Museu Fundação de Serralves © Moritz Elbert, 2005


Odete Patrício A Gestão de Museus - uma abordagem a partir da Fundação de Serralves Este texto aborda a temática da Gestão aplicada a museus. Começa por uma análise sobre que é a gestão, descrevendo o seu percurso enquanto disciplina que começou nas empresas e após uma explicitação do que diferencia as instituições culturais (IC) das empresas, conclui-se que as técnicas de gestão são passíveis de ser utilizadas nas IC. A segunda parte do texto examina extensivamente as principais tarefas da gestão – planeamento, marketing, orçamentação, avaliação do desempenho organizacional e recursos humanos. A terceira parte do texto explícita como a Fundação de Serralves aplica na prática as metodologias descritas no capítulo anterior. Por último, o texto apresenta, à guisa de conclusão, alguns indicadores de desempenho que avaliam o impacto da Fundação. Será que as metodologias de gestão aplicadas na Fundação atingem os seus objectivos? This article focuses on Management applied to museums. It starts with an analysis on “What is management?” as a subject that started in the business world and, after an explanation about what distinguishes cultural institutions from companies, it concludes that management techniques are also liable to be used in cultural institutions. The second chapter thoroughly examines the main tasks of management – planning, marketing, budgeting, performance evaluation of the organisation, and human resources. The third part of the article expounds how Fundação de Serralves applies and operates the methods described in the previous chapter. Finally, the article presents in form of conclusion some performance indicators that evaluate the Foundation’s impact. Do the methodologies applied in Fundação de Serralves reach the desired goals?

PALAVRAS-CHAVE: Gestão, Museus, Instituições Culturais, Planeamento, Marketing, Orçamentação, Avaliação do Desempenho Organizacional e Recursos Humanos, Impacto, Missão.

Directora Geral da Fundação de Serralves | dir.geral@serralves.pt

1. O que torna a gestão de museus específica? Será que existe uma gestão dita “cultural”?

H

á uma questão prévia e mais genérica que é interessante abordar: O que é a Gestão? Existem tantas definições como teóricos que se dedicam ao estudo desta disciplina. Uma formulação particularmente feliz que ouvi a um reputado professor de Economia, descreve a Gestão como a afectação de recursos limitados e de uso alternativo a necessidades múltiplas e ilimitadas. Esta definição descreve muito bem qual o âmbito de estudo da Gestão! No entanto, e como não é o objecto deste artigo essa discussão, que seria concerteza muito estimulante, vamos

ater-nos a uma definição que tenho usado na minha actividade profissional e que pode pecar por redutora (como, aliás, são em geral todas as definições) mas que se tem mostrado bastante operativa. A ‘Gestão’ consiste, em termos muito genéricos, no processo de optimização de recursos humanos, materiais e financeiros – sempre escassos – com o objectivo de maximizar o resultado da organização. Outra formulação que se adapta muito bem ao universo das Instituições Culturais é o conceito de maximização do impacto da organização com a utilização de um mínimo de recursos e a criação de condições que garantam o seu equilíbrio financeiro futuro. Esta última definição parece, à partida, mais consentânea com a natureza de uma instituição cultural do que a primeira.

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Para uma análise mais aprofundada do que é a ‘Gestão’, Henri Fayol considera que a gestão compreende cinco funções básicas: • Planear – determina a direcção de uma organização

através do estabelecimento de objectivos, desenvolvendo e implementando as estratégias necessárias para alcançar esses objectivos. • Organizar – determina as actividades e os recursos

específicos que serão necessários para executar o plano assim como a tomada de decisões acerca do modo como a autoridade, competências e tarefas devem ser alocadas e coordenadas. • Dirigir – comunica aos outros quais são as suas

responsabilidades na execução do plano, bem como garante a qualidade do ambiente para que os empregados se sintam motivados para realizar bem. • Controlar – orienta, monitoriza e ajusta as actividades

/acções de forma a conseguir que a performance organizacional corresponda aos objectivos e à missão da organização. • Medir os resultados – define e estabelece um conjunto

de indicadores de performance organizacional que evidenciam a execução do plano e orçamento e o cumprimento dos objectivos. A definição de Gestão, de acordo com estas cinco funções básicas é, inequivocamente, aplicável à gestão dos museus e das instituições culturais, em geral.

Ainda segundo o conceito clássico, desenvolvido por Henri Fayol, o gestor é definido pelas suas funções no interior da organização: é a pessoa a quem compete a interpretação dos objectivos propostos pela organização e actuar, através do planeamento, da organização, da liderança ou direcção e do controlo, a fim de atingir os referidos objectivos. Daqui se conclui que o gestor é alguém que desenvolve os planos estratégicos e operacionais que julga mais eficazes para atingir os objectivos propostos, concebe as estruturas e estabelece as regras, políticas e procedimentos mais adequados aos planos desenvolvidos e, por fim, implementa e coordena a execução dos planos através de um determinado tipo de comando (ou liderança) e de controlo. Assim, se a generalidade teórica do conceito de “Gestão” não se revela específica do mundo empresarial, o que é que verdadeiramente diferencia a Gestão dita Cultural? O Quadro 1 sintetiza os aspectos que, na minha perspectiva, são os elementos diferenciadores na abordagem que a gestão deve ter em consideração, quando aplicada a uma instituição cultural. A primeira grande diferença entre a gestão das empresas e gestão das instituições culturais reside n a sua finalidade: • As empresas têm como objectivo primordial a obtenção

de lucro para a remuneração do capital dos accionistas ou, como se diz actualmente, a criação de valor para os accionistas, sendo a performance da empresa medida por inúmeros indicadores de rendibilidade, que relacionam os resultados com rubricas como o capital investido ou as vendas ou a cotação das acções, quando são cotadas. Em suma, a rendibilidade, medida por que ângulo for, será sempre o indicador de eleição.

Quadro 1

Instituição Cultural

Empresa

Prestar um serviço à comunidade

Finalidade

Obtenção de lucros para os accionistas

Dificuldade de medir de forma clara o benefício

Indicadores de performances

Rendibilidade

Actividade em geral com margem negativa

Margem Financeira

Por definição, a margem é positiva

Receitas próprias. Donativos Privados. Subsídios Públicos

Recursos

Capital accionistas Resultados acumulados

Diversidade de modelos

Órgãos de gestão

Administração eleita /escolha dos accionistas

Utilizadores e Mecenas

Mercado Alvo

Clientes

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• As instituições culturais têm como finalidade a prestação

de um serviço à comunidade, em geral intangível, o que implica, desde logo, dificuldades na medição de forma clara do benefício. Daqui decorre outro pressuposto da gestão das empresas: os resultados de exploração têm de ser, por definição, positivos, pois embora possa haver exercícios com resultados negativos, essa situação será sempre a excepção e não a regra; a não ser assim, a empresa inevitavelmente fechará as portas, pois a sua principal razão de ser extinguir-se-á – criação de valor para os accionistas. E aqui reside outra diferença: as empresas constituem‑se com capital privado, que opta por essa específica aplicação por acreditar que vai ter uma remuneração superior a uma miríade de aplicações alternativas. E esse capital inicial vai sendo reforçado com resultados acumulados que se transformam em reservas. As instituições culturais constituem-se porque os poderes públicos – Governo Central, regiões ou municípios – entendem ser importante a sua criação e daí entrarem com dotações públicas. Ou são entidades privadas, filantrópicas, que assumem essa atitude. Ou soluções mistas, público-privadas. Em qualquer dos casos, o capital não se vê reforçado pela sua remuneração porquanto a Missão das instituições Culturais não é criar valor para os accionistas, mas sim criar valor, fundamentalmente intangível, para a Comunidade. E sendo a origem do capital diferente e a finalidade da aplicação igualmente diferente, quem administra esse capital tem de ser também diferente. O que acontece nas empresas é que os órgãos de gestão são eleitos dentre aqueles que participaram no capital, ou seja, são os accionistas que escolhem quem querem a gerir o seu capital; a maior parte das vezes, os gestores são escolhidos de entre os accionistas. Nas instituições culturais, a forma de selecção dos responsáveis pela administração é muito diversificada, desde logo em função de serem públicos, privados ou parcerias público/privadas. Outra diferença essencial que a gestão “cultural” tem de ter em conta decorre da forma como encara o “mercado”. Para as empresas existem consumidores, devidamente segmentados, que estão dispostos a pagar um determinado preço por um bem ou serviço; esse preço, para além de todos os custos envolvidos na sua concepção, produção e comercialização, incluiu uma margem de lucro. Para as instituições culturais existem também, digamos, consumidores, só que esses consumidores correspondem, desejavelmente, a todo o universo potencial e esses consumidores não estão dispostos a pagar o preço que cubra todos os custos!

Ou, se quisermos analisar por outra óptica mais comum, não é aceitável que os consumidores paguem o custo total porque estão a aceder a um bem que o Estado deveria assegurar, tendencialmente de forma gratuita. Reside aqui, aliás, um dos aspectos da política cultural mais polémicos e que mais diferencia as políticas liberais, de tradição anglo-saxónica das políticas do “wellfare state”, de tradição do Norte e Centro da Europa. Tendo presente estas diferenças, gerir uma instituição cultural é similar a gerir uma empresa.

2. Em que consistem as “tarefas” da Gestão? Um dos desafios mais interessantes que se podem colocar a um gestor que inicia funções numa instituição cultural acabada de ser constituída é iniciar os 12 trabalhos da gestão (não exactamente os 12 trabalhos de Asterix, como no livro de Goscinny e Uderzo!) Os teóricos de gestão gostam de chamar a este conjunto de tarefas “planeamento estratégico”, mas muito antes de o conceito ter sido concebido, todos os gestores levavam a cabo estas doze acções, sequencialmente ou não e com maior ou menor investimento em cada uma das fases. 1. Definir a finalidade da organização e a sua razão de ser – Missão, Visão e Valores; 2. Definir os objectivos estratégicos que consubstanciam a Missão; 3. Fazer

uma avaliação realista das ameaças e oportunidades do meio exterior e dos pontos fortes e fracos da organização;

4. Definir objectivos específicos e mensuráveis (tácticos e instrumentais) nas áreas que contribuem para a concretização dos objectivos estratégicos; 5. Conhecer e monitorizar o “mercado” no qual a organização opera; 6. Definir uma estratégia de comunicação e promoção que permita maximizar o impacto da organização; 7. Definir estratégias sobre alocação de recursos e obtenção de meios (privados e públicos) e enunciar orientações para a elaboração do orçamento anual; 8. Assumir pressupostos sobre imprevistos; 9. Desenvolver planos e orçamentos a curto/longo prazo que permitam atingir os objectivos anuais e plurianuais;

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10. Analisar permanentemente a performance e avaliar os

desvios entre desempenho, objectivos e Missão; 11. Reavaliar objectivos, mercado, pontos fortes e fracos,

antes de (re) definir os objectivos futuros; 12. Definir uma estratégia de gestão dos Recursos Humanos.

2.1. Planeamento Começando pelo princípio, pontos 1-4, a metodologia de planeamento num sistema de gestão integrada está sintetizada no Quadro 2. Os planos de Acção elaborados a partir das definições supra, devem preencher os requisitos do Quadro 3. 2.2. Marketing Os pontos 5 e 6 relacionam-se com o que habitualmente se designa por Marketing. Kotler e Keller definiram marketing como o processo social e de gestão pelo qual os indivíduos e grupos obtêm o que necessitam e o que desejam através da criação, oferta e livre negociação de produtos e serviços de valor com outros. Esta definição, para além de ser demasiado genérica e abrangente, necessita de ajustamentos numa instituição cultural. A área do marketing dito “cultural” é uma área de conhecimento emergente em Portugal, estando a ser dados os primeiros passos. Por isso, é um tema muito desafiante e que coloca interrogações sobre até onde se pode ir. O conceito de marketing cultural é, portanto, diferente do conceito do marketing tradicional. Enquanto no marketing empresarial o produto corresponde - e até antecipa - às expectativas do mercado, no marketing cultural procura‑se o público exacto para a oferta cultural. O Research, em marketing cultural, não se baseia na pesquisa de um produto para um determinado segmento de público, mas sim na procura de segmentos de público para uma oferta cultural que se rege por critérios, outros, que não os de mercado. De acordo com uma especialista norte-americana em marketing de instituições culturais, Charlene Durea, os objectivos do marketing cultural podem sintetizar-se pela procura de criar, maximizar e sustentar a identidade institucional (marca), os públicos e os proveitos. O Plano de Marketing deve elaborar-se tendo em consideração estes quatro aspectos:

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• Extensivo – cobrir um período de 3 anos; • Focado no retorno do seu custo – deve medir-se,

comparar-se, justificar-se a si próprio, para demonstrar a sua eficácia; • Baseado em pesquisas / estudos de mercado de

audiências – pesquisa primária (inquéritos, sondagens, estudos de mercado) e pesquisa secundária (benchmarking e best practice) • Integrado – deve conjugar todas as metodologias e

ferramentas seleccionadas, bem como datas e pessoal afecto. Prossegue ainda afirmando que o planeamento estratégico de marketing cultural deve basear-se nos quatro “C’s”: a Mensagem Certa, a Audiência Certa, o Timing Certo e a Metodologia Certa. A Mensagem Certa resulta da compilação de informação que permita o posicionamento da instituição e as mensagens fundamentais que diferenciem a instituição e que influenciem e motivem os públicos a captar. A Audiência Certa resulta da definição de públicos-alvo, que se detectam através de pesquisas e estudos de público, como sendo aqueles que mais provavelmente influenciam a identidade, as visitas e os proveitos. Os segmentos de público que aqui se incluem são os residentes num raio de 70 a 100 quilómetros, os turistas e os internautas. Nos públicos-alvo deve ainda ser dada prioridade ainda aos chamados PIL – Power, Influence e Leverage, o que numa tradução livre se poderiam chamar de líderes de opinião. O Timing Certo tem em consideração o quando, durante quanto tempo e com que frequência a mensagem chega à audiência certa. A Metodologia Certa define os meios através dos quais a mensagem é comunicada. Inclui fundamentalmente os contactos com os meios de comunicação, a publicidade, a internet, as acções de promoção e os eventos especiais. 2.3. Orçamento As acções 7, 8 e 9 dizem respeito à actividade de orçamentação, quer na vertente de custos, quer de proveitos. E há uma questão prévia interessante: porque é que as instituições culturais precisam de apoios, quer do Estado quer dos privados - Mecenato? Os produtos e serviços culturais não são, na generalidade dos casos, vendidos ao seu preço de custo, por vezes não são mesmo vendidos. Ainda hoje se encontram na Europa instituições culturais que não cobram bilhete de ingresso, por exemplo.


A missão define a razão de ser da organização, quais são os seus propósitos teóricos e o qua a distingue/diferencia doutras organizações. Particularmente importante numa instituição sem fins lucrativos, especificamente, numa instituição cultural. Determina toda a acção e estabelece as linhas de orientação para definição da estratégia.

Missão Objectivos Estratégicos

Objectivos Tácticos Garante que a estratégia é constante e direccionada para atingir a missão. Estes objectivos devem ser específicos, metas de médio - longo parazo que se pretendem atingir, consubstanciam a estratégia.

Actividades e acções que contribuem para ir atingindo / realizando os objectivos estratégicos, logo a Missão. Configuram o plano de actividades / acções de organização. Acções não directamente relacionadas, com a Missão mas que contribuem de forma decisiva a tornar possível / exequível.

Objectivos Instrumentais

Quadro 2

Componentes do Plano de Acção: • Acções específicas quantificáveis e mensuráveis • Objectivos que a acção vai permitir atingir • Quem é responsável • Quais os outros membros que apoiam a acção • Cronograma das acções • Critérios para medir o bom sucesso da acção

Orçamentos de custos, proveitos e tesouraria

Orçamentos de investimento e de capital

Quadro 3

Esta atitude generalizada das instituições culturais tem como resultado uma insuficiência de recursos financeiros que, pode dizer-se, decorre da sua Missão. E porquê? Numa primeira abordagem, ocorre dizer que a cultura é vista tradicionalmente como um “bem” essencial que o Estado deve proporcionar à comunidade e daí essa comunidade não dever pagar para ter acesso à cultura, ou seja, o custo real das iniciativas culturais. No entanto, as políticas públicas têm vindo a alterar-se no sentido de uma maior restrição de fundos para a cultura. Em Portugal, o Orçamento de Estado para a Cultura está longe de atingir a meta de 1%, objectivo traçado para esta legislatura e corresponde no Orçamento Geral do Estado de 2008 a 0,4%.

Contudo, há diferenças significativas nas soluções que os Estados encontraram para obviar a esta insuficiência de meios. Os Estados Providência que surgiram no Norte da Europa, consideram tradicionalmente sua obrigação assumir os custos dos serviços essenciais ao bemestar das populações, como são os serviços de saúde, educação e cultura, entre outros. Esta política seguida pela generalidade dos países da Europa continental levou à atribuição no Orçamento desses Estados, não só a nível nacional mas e principalmente a nível regional, de verbas significativas para a cultura. As instituições desses países têm vivido com relativo desafogo sem precisarem de investir fortemente noutras

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fontes de receitas, nomeadamente no mecenato privado, que até chegam a considerar como desadequado. Os intelectuais e pensadores sociais norte-americanos do século XVIII defenderam o princípio de que os membros de uma sociedade têm a responsabilidade de providenciar o bem comum através do apoio a organizações destinadas ao serviço público. Estas responsabilidades eram vistas como um ‘quid pro quo’ necessário. Daí serem os donativos individuais a mais importante fonte de donativos desde há 50 anos. Nos países de tradição anglo-saxónica e especialmente nos EUA, a contribuição do Governo Federal/Estadual/ Local tem vindo a decrescer e é pouco significativa, se não mesmo residual, obrigando as instituições culturais a encontrarem fontes alternativas de financiamento. Nos EUA, as principais as principais receitas das instituições culturais derivam das próprias actividades culturais que têm um tarifário próprio e de iniciativas “comerciais”, que, em conjunto, proporcionam o chamado “earned income”, traduzido livremente como proveitos próprios. O mecenato e os juros de aplicações financeiras – as instituições culturais são grandes beneficiários de importantes doações - constituem os restantes proveitos. Segundo a American Association of Museums, que disponibiliza interessantes dados sobre a realidade dos Museus nos EUA, os recursos dos Museus americanos repartem-se da seguinte forma, de acordo com a sua origem (2005): Quadro 4

10% 24% 31%

35%

Governo Federal / Estadual / Local Mecenato individual / empresas / fundações “Earned income” Rendimentos de aplicações financeiras

O mecenato constitui a classe que mais crescimento tem registado, o “earned income”, que poderemos assimilar a bilheteiras/Amigos/lojas e restaurantes/eventos especiais/ alugueres, tem mantido o seu peso percentual e os rendimentos de aplicações financeiras flutuam em função da evolução dos mercados. Realidade bem diferente vive a generalidade das instituições culturais portuguesas.

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Retomando a questão das técnicas de orçamentação, a partir de uma avaliação rigorosa e detalhada dos recursos financeiros previsionais, deve ser elaborado o orçamento dos custos, que deve respeitar o montante global previsto para os proveitos. A orçamentação deve ser ainda rigorosa, detalhada e se possível com base no chamado “orçamento base zero”, ou seja, utilizando uma técnica que quantifica individualmente cada consumo, a que aplica o respectivo preço unitário, não se baseando nos valores reais dos anos anteriores. 2.4. Avaliação de Desempenho Organizacional As acções 10 e 11 dizem respeito à avaliação de performance da instituição. A avaliação do desempenho é uma ferramenta de gestão de crucial importância numa organização, que avalia como o trabalho está a ser executado, monitoriza o progresso em relação a objectivos articulados e avalia os resultados das suas actividades e processos. Partindo da Missão e dos objectivos estratégicos, a avaliação de desempenho deve ser concretizada numa perspectiva endógena, analisando os indicadores de desempenho numa vertente qualitativa e quantitativa e comportar uma análise exógena através de acções de benchmarking – metodologia que inclui comparações dos processos e resultados da organização com um grupo especialmente seleccionado de outras organizações, possibilitando assim alcançar os mais elevados níveis de eficiência e eficácia – e de best practice – comparações de processos usados em organizações julgadas exemplares que, embora não possam ser rigidamente importadas e aplicadas, actuem como meios para estimular o diálogo e a reflexão sobre novas aproximações. A análise exógena deve ser complementada ainda com uma avaliação a partir do exterior, ouvindo os públicos – sondagens, estudos de mercado, inquéritos públicos – e a análise endógena com uma perspectiva a partir do interior da organização – evolução dos indicadores financeiros e não financeiros, avaliação pelo board, avaliação pelo staff. O Quadro 5 sintetiza os diferentes passos. Sendo os recursos escassos, é importante saber se esses recursos estão a ser alocados eficientemente, para obter o máximo efeito, em ordem a criar “valor” (value for money) (Quadro 6). A avaliação segundo o “Gestão para Valor” examina o desempenho da organização em termos da relação entre os recursos/meios e a oferta de bens e serviços, procurando estabelecer se esta corresponde ao que os vários grupos de interesse valorizam.


Quadro 5

Missão Objectivos Estratégicos

Objectivos Tácticos e Operacionais Benchmarking

Qualitativa

Avaliação de Desempenho Best Practice

Quantitativa Perspectiva Externa

Perspectiva Interna

• Sondagens • Estudos de mercado • Inquéritos Públicos

• Evolução dos indicadores: - Financeiros - Não Financeiros • Avaliação pelo board • Avaliação pelo staff

Quadro 6

Recursos Meios

• Pessoal • Materiais

A avaliação segundo o “value for money” examina o desempenho da organização em termo da relação entre os recursos / meios e a oferta de bens e serviços, procurando estabelecer se esta corresponde ao que os vários grupos de interesse valorizam.

Oferta de bens e/ou serviços

O valor tem de ser medido, quantificado, sendo essencial para a prestação de contas a todos os grupos de interesse. Através dos indicadores de desempenho é possível fazer uma avaliação passível de ser transmitida aos grupos de interesse, tanto internos – órgãos de gestão, programadores e colaboradores - como externos – financiadores públicos (Governo central, autarquias, fundos comunitários), financiadores privados (mecenas, parceiros), visitantes, auditores e fornecedores. Os indicadores de desempenho constituem medidas concebidas para evidenciar o grau em relação ao qual os processos e actividades-chave progridem tendo presente um nível desejado de desempenho. Permitem a avaliação sobre a adequação do desempenho em relação aos objectivos, à qualidade dos processos e quantificação dos resultados. Permitem ainda a comparação do

desempenho da organização com outra instituição, e a identificação de aspectos de desempenho que carecem de maior atenção e melhoria. Peter M. Jackson, no livro Museum Management, desenvolve a teoria dos 8 “E’s” a partir dos conceitos fundadores da “Gestão para Valor”; sendo uma abordagem exaustiva e algo controversa, transcrevê-la pode suscitar questões muito fecundas: • Economia – diz respeito a minimizar os custos dos

recursos tendo em consideração a qualidade dos inputs – “gastar menos” • Eficiência – diz respeito a obter o máximo output com

um dado input, ou usar o mínimo input para um dado output – “gastar bem”

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• Eficácia – mede o sucesso de como o output alcança

os objectivos tácticos, metas operacionais e outros efeitos – “gastar judiciosamente” • Equidade – avalia se todos os segmentos de

público valorizam o output a si destinado – “Gastar equitativamente” • Excelência – analisa a qualidade dos serviços prestados

– “Procurar excelência” • Empreendedorismo – mudança de paradigma na

gestão cultural; novo “funding mix” público/privado, promoção de acções com fins lucrativos – “Gestão orientada para o cliente e para o resultado” • Expertise – necessidade de conhecimentos de gestão

empresarial numa conjuntura exigente em termos de desempenho – “Visão empresarial” • Electability – analisa o impacto das opções políticas

na gestão da organização – “Enquadramento político – económico – fiscal” Em síntese, a organização deve dispor de um conjunto de Indicadores que permitam medir a sua performance a longo, médio e curto prazo, conforme se indica no Quadro 7. Quadro 7

Medidas de Impacto

Visão

Medem a evolução em relação à Missão e aos objectivos de longo prazo, que consubstanciam a finalidade da organização

Missão Objectivos Estratégias Tácticas Actividades

Medidas de actividade Medem a evolução em relação aos objectivos e programas implementados, que determinam o comportamento da organização

Medidas de capacidade Medem a evolução a todos os níveis da organização, para que seja possível atingir os resultados.

2.5. Recursos Humanos A gestão de Recursos Humanos é hoje um dos principais temas de gestão a ser abordado na literatura da especialidade. Isto porque se reconhece a importância da motivação e empenhamento dos colaboradores como um factor crítico de sucesso.

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Uma gestão de pessoal eficaz passa por uma definição de funções clara e objectiva, pela atribuição de tarefas adequada às competências e conhecimentos de cada elemento, pela definição de objectivos individuais quantificados. Os objectivos organizacionais devem ser declinados para cada área funcional e daí para cada posto de trabalho. O passo seguinte passa por uma avaliação de desempenho individual, que compreende uma avaliação qualitativa e uma avaliação quantitativa. Os resultados da avaliação devem ser analisados com cada colaborador e definido um plano de melhoria, que compreende eventuais ajustamentos na função e um plano de formação. É obrigação de cada responsável saber valorizar os pontos fortes de cada colaborador e encontrar soluções que, a médio/longo prazo, corrijam os seus pontos fracos, nem que isso corresponda a uma mudança de função. A política de remunerações deve basear-se no mérito, em detrimento de critérios como a antiguidade ou os estatutos adquiridos no passado. Por último, a qualificação do pessoal deve ser uma das prioridades de uma política bem sucedida de recursos humanos, pois a gestão cultural é essencialmente, uma gestão de competências.

3. Como resolve a Fundação os doze trabalhos da Gestão? 3.1. O modelo institucional de Serralves A criação da Fundação de Serralves foi inovadora em Portugal ao prever um modelo de gestão numa perspectiva dita “privada”. No preâmbulo do Decreto-lei 240/89 de 27 de Julho que instituiu a Fundação, refere-se que ”…a forma institucional mais adequada à criação desta entidade é a de uma fundação, constituída por uma participação significativa de capital privado, associada à presença do Estado, que assegurará uma parte convencionada dos seus custos fixos de manutenção. … a figura de uma fundação assim participada corporiza o envolvimento da sociedade civil num projecto de dimensão nacional e constitui fórmula inovadora e desejavelmente exemplar desse desenvolvimento, que o Governo tem estimulado como um dos grandes objectivos de política na área cultural. A pertinência da figura institucional pretendida corresponde, por outro lado, à convicção de que um museu com estas características deveria dispor de uma gestão especialmente flexível e com um certo grau de autonomia. Com efeito, o exercício de uma actividade de animação interdisciplinar que enquadre o entendimento


do fenómeno da arte contemporânea por um público cada vez mais alargado, o desenvolvimento nos contactos internacionais que a actualização neste campo exige e o intercâmbio com instituições congéneres nacionais e estrangeiras desaconselham o recurso ao modelo público tradicional. … a experiência consolidada em centros de arte contemporânea europeus, que crescentemente vêm adoptando fórmulas institucionais equivalentes, aconselha a figura de uma fundação como a mais adequada.” Em suma, no documento fundador de Serralves, o próprio Estado entendeu, ao criar uma Fundação de direito privado, envolvendo uma parceria público-privada, que este modelo institucional seria o mais adequado aos seus fins estatutários, por dispor e cito “…de uma gestão especialmente flexível e com um certo grau de autonomia.” A criação da Fundação assinalou o início de uma parceria inovadora entre o Estado e a sociedade civil, representada nessa fase inicial por cerca de 50 entidades, oriundas dos sectores público e privado. Actualmente o número de Fundadores é de cerca de 165, entre empresas e particulares, o que evidencia uma crescente adesão ao projecto de Serralves por parte do sector privado. O modelo institucional de Serralves alia de uma forma bem conseguida uma representação do Estado nos órgãos de gestão, se bem que minoritária, com um modelo de gestão assente numa visão empresarial, mas com um total respeito pela autonomia do projecto cultural, que constitui a razão de ser da Fundação. Para uma mais completa documentação sobre o modelo de gestão da Fundação, por favor consultar o Decreto-Lei n.º 240-A/89, de 27 de Julho. 3.2. A Missão e os Objectivos Estratégicos A Fundação, no âmbito dos fins estatutários definidos no Decreto-Lei que a instituiu, assumiu a seguinte definição de Missão: Instituição cultural de âmbito europeu ao serviço da comunidade nacional, tem como missão sensibilizar e interessar o público para a arte contemporânea e o ambiente, através do Museu de Arte Contemporânea como centro pluridisciplinar, do Parque como património natural vocacionado para a educação e animação ambientais e de um centro de reflexão e debate sobre a sociedade contemporânea. No âmbito da sua Missão, o Conselho de Administração definiu as grandes opções estratégicas da Fundação, e que consistem em: • Constituir uma Colecção de referência no domínio

da Arte Contemporânea, a partir dos anos 60, com uma forte identidade museológica e que se situe entre as mais relevantes da Europa;

• Reforçar a notoriedade, visibilidade e impacto público

da Fundação, do Museu e do Parque, em Portugal e no estrangeiro, colocando-a entre as mais visitadas da Europa; • Promover o Parque como um espaço privilegiado de

sensibilização ambiental, de estudo enquanto jardim histórico, de formação e lazer, contribuindo para a criação de uma consciência ambiental e ecológica. • Desenvolver os Serviços Educativos, em pareceria

com os Ministérios da Cultura e da Educação, como um complemento ao sistema de ensino, directamente ou através de pólos descentralizados. • Criar uma rede de parcerias em todo o País, de modo a

apoiar a revelação de novos talentos, divulgar a Colecção de Serralves e qualificar a programação de equipamentos existentes, ajudando à criação do novos públicos. • Reforçar a inserção da Fundação de Serralves na

Sociedade Portuguesa, como factor dinâmico de inovação, criatividade e inclusão social, através de parcerias com os Fundadores. • Manter um elevado nível de exigência na gestão da

instituição • Criar condições de sustentabilidade económica da

Fundação, reforçando a sua solidez financeira. Uma instituição com as características de Serralves e com o grau de exigência que sempre se impôs tem que ser capaz de se renovar permanentemente, mantendo-se atenta aos novos desafios que em cada momento se colocam na nossa sociedade. Assim, a Fundação de Serralves abrese hoje a novas áreas de actuação, tornando-se um pólo activo e dinamizador de intervenção, promovendo a criatividade e a inovação como factores determinantes de um novo modelo de desenvolvimento económico e social, e contribuindo para a criação de uma nova imagem de Portugal no mundo. Face a este novo desafio, foi recentemente assumido como novo objectivo estratégico, especificamente para a área das Indústrias Criativas: • Desenvolver as relações entre as artes e a economia,

através de acções de divulgação e estimulando o desenvolvimento de iniciativas e projectos criativos e inovadores. 3.3. Análise interna e da envolvente externa Para responder eficazmente aos objectivos estratégicos da Fundação e depois da avaliação dos aspectos internos e da conjuntura externa, a Fundação define os objectivos

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gestão de museus


de curto/médio prazo - tácticos e instrumentais - que vão orientar a sua acção. Por razões metodológicas, as iniciativas anuais que vão concretizar os referidos objectivos de curto prazo são subdivididas em 3 níveis: as que contribuem fortemente para a Missão, as que complementam a Missão e as que viabilizam a Missão. É dentro deste enquadramento metodológico que é elaborado o Plano de Acção anual.

assegurar que as unidades individuais estejam alinhadas com as metas e objectivos partilhados e que as melhores práticas sejam disseminadas pelo resto da Organização (Learning Organization); • Consolidação do sistema de gestão da qualidade através

da avaliação da eficácia dos processos e da dinamização da melhoria contínua (implementar, avaliar, corrigir, melhorar); • Investimento contínuo na melhoria sistemática de

3.4. Modelo organizativo da Fundação de Serralves A Fundação dispõe de um organograma cujo desenho corresponde às principais atribuições institucionais e que agrupa as funções de forma a garantir um bom desempenho organizacional. O modelo organizativo da Fundação passa pela existência de uma equipa profissional, com competências nas várias áreas funcionais estratégicas – museologia, paisagismo, educação, artes performativas e outras – a que acrescem competências nas áreas transversais de apoio a toda a instituição – marketing e desenvolvimento, tecnologias de informação, manutenção, controlo de gestão e administrativo-financeira, só para nomear as mais importantes. Esta equipa responde perante uma Direcção-Geral, com competências executivas e que por sua vez responde perante o Conselho de Administração. O organograma, por sua vez, vai sendo adaptado sempre que a evolução das prioridades da instituição o exijam. A gestão da Fundação pauta-se por uma grande flexibilidade e adaptabilidade das equipas, em função dos projectos concretos que têm que enfrentar. O carácter das iniciativas da Fundação aponta para soluções de gestão por projecto, metodologia que cada vez mais se vem implementando na Fundação. A organização interna da Fundação passa também pela uniformização de procedimentos e disponibilização de informação a todos os colaboradores. A implementação de um Sistema de Gestão Integrado tem-se demonstrado fundamental para melhorar os comportamentos da Organização, com ganhos significativos a nível de: • Redução de custos e criação de novas fontes de valor

que resultam do redesenho da organização e dos seus comportamentos e da busca progressiva da excelência operacional; • Aumento da visibilidade de todos os processos da

organização, melhorando a comunicação e clarificando as responsabilidades dos colaboradores, na certeza de que a chave para criar sinergias organizacionais é

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processos e procedimentos, através da procura permanente da simplicidade e do que é essencial, na convicção de que a simplificação de processos gera compreensão e alinhamento. 3.5. As Actividades e as Acções Multidisciplinar e fiel à sua Missão, a Fundação desenvolve um amplo programa de actividades nos domínios da expressão contemporânea, da temática ambiental e da reflexão sobre os temas da contemporaneidade e promove a inovação e a criatividade, cooperando com outras entidades nacionais e estrangeiras. Ao propor-se desenvolver um projecto inovador, dinamizando todas as potencialidades oferecidas pelos espaços de que dispõe, a Fundação organiza e apresenta anualmente ao público uma programação diversificada de iniciativas: • A programação de exposições temporárias apresenta

ao público português e internacional artistas e correntes fundamentais da arte das últimas décadas. Partindo do contexto português, procura aprofundar o conhecimento da arte contemporânea, oferecendo a artistas nacionais a possibilidade de se integrarem numa programação sem limites geográficos e estabelecendo um diálogo entre os contextos artísticos nacional e internacional. • Os concertos de música experimental, o “Jazz no

Parque”, os ciclos de cinema e vídeo, as mesas redondas sobre temas da actualidade, as conferências e colóquios de alcance internacional, os espectáculos de dança e performance, os cursos de história de arte, os ciclos de estudos contemporâneos, as viagens de turismo cultural constituem um conjunto significativo de actividades que muito valorizam a programação e diversificam os públicos. • Com a realização das Conferências Internacionais

“Crítica do Contemporâneo” a partir de 2007, a Fundação pretende cumprir uma vertente significativa da Missão que lhe está assinalada ao assumir-se como um centro de reflexão e debate sobre a sociedade contemporânea. A participação de pensadores marcantes a nível mundial sobre os temas da Política, do Social, da Educação, da


Biologia, da Ecologia permite aos participantes reflectirem sobre questões essenciais dos nossos dias. • A Fundação tem ainda uma actividade editorial regular,

3.6. Marketing A partir de uma programação cultural ditada por critérios que relevam da Missão e da Identidade institucional, o Plano de Acção de Marketing e Comunicação contempla um conjunto de iniciativas que têm como principais objectivos:

publicando catálogos das exposições que realiza e outras publicações, cuja temática se centra essencialmente sobre a arte moderna e contemporânea e reflexões sobre temas actuais.

• Crescimento e Diversificação dos Públicos

• Entre as múltiplas actividades promovidas pela

• Visibilidade crescente das suas actividades

Fundação encontram-se ainda as do Serviço Educativo; contendo uma forte componente pedagógica os programas educativos implementados procuram proporcionar momentos de lazer, de formação, de reflexão, de partilha de conhecimentos, emoções e valores, revelando-se como laboratório de experiências em que os espaços e as obras são reinventados e reinterpretados. • O lançamento de iniciativas inovadoras, como o festival

de todas as artes conhecido como Serralves em Festa, coloca a Fundação de Serralves num patamar privilegiado de promoção e difusão de cultura. O “Serralves em Festa” é o maior e mais significativo festival das artes em Portugal que a Fundação de Serralves oferece todos os anos em Junho durante 40 horas nonstop e afirma-se como a maior e talvez a única festa cultural organizada por uma instituição cultural em toda a Europa. Pretende-se que a mesma constitua um momento de encontro e celebração entre todos quantos viabilizaram o projecto de Serralves e nele têm participado ao longo dos anos, desde os seus Fundadores, aos seus visitantes e à comunidade em geral. • O lançamento de iniciativas na área da inovação social,

como a criação de uma incubadora de projectos na área da criatividade, a realização de um estudo macroeconómico sobre ao potencial da Região Norte nas Indústrias Criativas, a realização de workshops e seminários de reflexão sobre a gestão autárquica da cultura, a desmultiplicação das suas intervenções em vários locais do país, completam um conjunto de actividades que não tem cessado de crescer. Para além deste vasto conjunto de iniciativas orientadas para o público e destinadas à concretização da Missão, a Fundação planeia ainda uma série de iniciativas e acções destinadas a garantir o impacto da Fundação e das suas actividades e a criar as condições da sua sustentabilidade. No âmbito do Plano de Actividades, que congrega a totalidade das iniciativas a realizar, são estabelecidos os objectivos anuais, quer qualitativos, quer quantitativos. É este documento que é apreciado pelo Conselho de Fundadores na sua reunião anual e aprovado pelo Conselho de Administração.

• Reforço do reconhecimento e notoriedade da Marca

Serralves • Impacto positivo nos proveitos

O primeiro passo para uma estratégia eficaz de crescimento e diversificação dos frequentadores consiste numa adequada segmentação dos públicos-alvo, que permita uma estratégia de marketing devidamente direccionada a cada segmento. A metodologia passa por uma segmentação múltipla que selecciona diversos segmentos da procura e actua sobre eles, ajustando a cada um, um programa de marketing específico. A visibilidade das actividades culturais, dos serviços e produtos disponibilizados pela instituição, passa por uma arquitectura de comunicação que se detalha no Quadro 8. Serralves possui uma identidade forte baseada num projecto cultural diversificado, mas coerente, que se reclama de qualidade e se organiza em torno das suas três dimensões essenciais – Arte Contemporânea, Ambiente, Conhecimento – às quais acrescem a Criatividade e a Inovação e a Integração na Comunidade, como novos vectores de actuação. Um posicionamento que respeite com rigor a sua Identidade Institucional é um factor crítico para que se atinja o terceiro objectivo do plano de marketing, criando uma Marca forte e facilmente reconhecível. O Impacto positivo nos proveitos resulta de uma conjugação de acções dirigidas aos vários públicos e parceiros da Fundação: Participantes nas actividades culturais, Utilizadores dos serviços, Mecenas e outros Doadores, Amigos e Voluntários. A todos estes públicos é essencial salientar que o seu contributo, seja qual for a forma de que se revista, é essencial para a continuidade e desenvolvimento do projecto cultural. 3.7. Orçamento A gestão financeira da Fundação pauta-se por princípios de grande contenção na utilização de recursos humanos, materiais e financeiros – e, simultaneamente, de maximização do resultado organizacional, coadjuvada por uma gestão orçamental rigorosa.

dossiê

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gestão de museus


Identidade Institucional Comunicação Institutional Segmentação público-alvo

Divulgação das Actividades

Publicidade

Selecção de orgãos comunicação social

Materiais de promoção Base de contactos

Locais da Fundação

Divulgação Media

Contactos

Locais Externos Press Release

Site

Quadro 8

Quadro 9

Fundos Próprios + FEDER

=

Investimento em infra-estruturas

Fundo de compras

=

Investimento em Obras de arte

Anualmente, o Conselho de Administração define as linhas orientadoras estratégicas que devem ser tidas em conta na elaboração do Plano, quais os objectivos anuais a atingir e o enquadramento orçamental respectivo. Todas as áreas da Fundação dão o seu contributo, apresentando os respectivos planos de actividades e de acções, detalhando os objectivos anuais sectoriais – qualitativos, quantitativos e financeiros – que vão consubstanciar as estratégias superiormente definidas e calculando custos e proveitos por centros de custo e por actividade. O Orçamento Geral da Fundação é então sistematizado tomando por base a programação, o nível de actividade e

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de funcionamento previstos. Em paralelo, é preparado o plano de investimento e respectiva conta de capital, bem como a Tesouraria Previsional. A Fundação tem como princípio metodológico para o cálculo do orçamento o cálculo dos valores numa base-zero, ou seja, estimando custos e proveitos individualmente, com base nos consumos e respectivos custos unitários, e mutatis mutanti, aplicando o mesmo princípio para os proveitos. É este documento que é apresentado pela Direcção Geral ao Conselho de Administração para aprovação. A Fundação procura respeitar uma estrutura de financiamento equilibrada, com uma adequada afectação de custos e proveitos.


A nível de exploração, os custos com todas as actividades e sua divulgação são suportados por mecenato e proveitos próprios, gerados pelas actividades culturais e iniciativas de marketing. Ao fazer depender o crescimento do nível de actividade da Fundação da sua capacidade de geração de meios, ou dito de outra forma, de geração de Proveitos Privados, o Subsídio atribuído pela Estado tem vindo percentualmente a representar uma parcela cada menor do total dos proveitos. Para este efeito, a Fundação tem apostado numa desmultiplicação de acções de marketing que têm como objectivo último o financiamento das actividades culturais. A nível patrimonial, os investimentos são propostos com uma fundamentação rigorosa da sua necessidade e sujeitos a uma análise económico-financeira que sustente a sua viabilidade; o financiamento é sempre sustentado por fundos próprios e por FEDER, quando o projecto é enquadrável. O investimento em obras de arte é suportado por um Fundo de Compras, em que participam o Estado, a Fundação e a Câmara Municipal do Porto (Quadro 9). 3.8. Avaliação de Desempenho Organizacional A avaliação de desempenho é uma ferramenta de gestão fundamental para monitorizar a execução do Plano e Orçamento. Na Fundação esta monitorização é realizada a dois níveis: a nível quantitativo e a nível financeiro. A nível quantitativo é avaliada a evolução dos principais indicadores de públicos, taxas de ocupação das actividades, número de visitas ao site de Serralves, referências na imprensa e comentários dos visitantes. A execução financeira é monitorizada através de um processo de cabimentação, tendo na base uma quantificação rigorosa de todos os Custos e Proveitos. O controlo orçamental, por centro de custos e por actividade, é complementada com uma comparação da evolução dos últimos 5 anos e um conjunto de indicadores financeiros relevantes. O tableau de bord, onde se apresentam todos as informações referidas, é dado a conhecer mensalmente aos órgãos de gestão internos – Conselho de Administração – e quadros da Fundação e numa base anual, aos Fundadores e ao público interessado, através da publicação do Relatório e Contas em dois jornais de grande circulação, devidamente auditados por uma consultora externa credenciada. 3.9. Recursos Humanos A Fundação atribui a maior importância à gestão dos recursos humanos pois as instituições são, na sua essência, um conjunto organizado de pessoas, pessoas essas que são os motores do sucesso do projecto.

A gestão adequada dos recursos humanos da Fundação Serralves tem sido, desde sempre, uma preocupação dos órgãos de gestão, reconhecendo-se que a existência de ferramentas adequadas que visem facilitar a organização, a avaliação e a progressão desses mesmos recursos tem efeitos muito positivos. Por outro lado, o sucesso das políticas organizacionais está intimamente ligado não só à formulação de estratégias institucionais adequadas, mas também à utilização eficaz dos recursos humanos e ao envolvimento das pessoas na sua prossecução. Assim, os recursos humanos dispõem de um Plano de Carreiras que tem como grande objectivo clarificar, aperfeiçoar e definir as categorias profissionais, definir os critérios de acesso às várias categorias profissionais e estabelecer o modelo de evolução na carreira e na matriz de bandas salariais. Cada Colaborador possui uma ficha individual de funções, onde se descreve exaustivamente as suas funções e tarefas, os objectivos que com elas se pretendem atingir, assim como as metas a alcançar relativamente aos indicadores chave de cumprimento daqueles objectivos. Pretende-se assim fornecer orientações claras relativamente ao que se espera do Colaborador, contribuindo dessa forma para a sua motivação e integração dentro da Fundação e potenciando a sua eficácia colectiva através de um esquema de gestão de desempenho que por um lado o comprometa com um conjunto de objectivos previamente delineados e alinhados com os da Fundação como um todo e que, por outro, avalie no final do ano o grau de cumprimento das metas pré-definidas, através de uma avaliação de desempenho. Definido o papel de cada Colaborador dentro da Organização, revela-se fundamental retratar e avaliar de forma fidedigna, objectiva e equitativa o desempenho passado do Colaborador, assim como fornecer orientações para o futuro, clarificando o que de facto se espera dele, de forma a potenciar melhorias na sua produtividade, motivação e integração dentro da Fundação. Na sequência do processo de avaliação de desempenho levado a cabo todos os anos, cumpre proceder à avaliação da satisfação de todos os Colaboradores da Fundação. Uma vez por ano, é despoletado o processo de avaliação de auto-satisfação laboral, tendo presentes os níveis de exigência de qualidade e profissionalismo subjacentes à actividades da Fundação e a importância das pessoas como recurso central da Instituição). A informação recolhida neste diagnóstico anual é analisada por comparação com os dados obtidos em anos anteriores e estatisticamente tratada; os resultados são transmitidos ao Conselho de Administração, sendo adoptadas as medidas correctivas consideradas necessárias.

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gestão de museus


4. O impacto da Fundação

400.000 350.000

A título de conclusão, será interessante analisar alguns indicadores de desempenho organizacional que permitam uma perspectiva do papel da Fundação na sociedade portuguesa.

300.000 250.000 200.000 150.000 100.000 50.000 0 2003

2004

2005

2006

2007

Quadro 10 Evolução do nº de visitantes 120.000 100.000 80.000 60.000 40.000 20.000 0 2003

2004

2005

2006

2007

Quadro 11 Evolução dos Públicos do Serviço Educativo 40.000.000 35.000.000 30.000.000

A importância da acção que tem vindo a ser desenvolvida pela Fundação pode ser aferida pelo crescente número de pessoas que frequentam as suas actividades. Desde o ano de abertura do Museu de Arte Contemporânea, em 1999, visitaram-nos mais de 2.500.000 pessoas, o que a coloca como a mais visitada ao nível nacional. Deste total, mais de 700.000 foram crianças e jovens que participaram em actividades do Serviço Educativo. A evolução anual do número de visitantes nos últimos 5 anos está resumida no Quadro 10. A Fundação de Serralves, através do seu Serviço Educativo, desenvolve uma vasta acção formativa, dirigida ao público em geral e às crianças, jovens e professores, em particular. No ano lectivo de 2006/07 o SE envolveu cerca de 95.000 alunos e professores no decurso das mais de 5.000 visitas, oficinas e outras actividades desenvolvidas com a comunidade escolar. Este esforço para atrair e formar públicos tem sido recompensado com uma procura sustentado da parte de famílias e de grupos de jovens que passaram a incluir o Museu e o Parque de Serralves nos seus hábitos de ocupação dos tempos livres (Quadro 11).

25.000.000 20.000.000 15.000.000 10.000.000 5.000.000 0 2003

2004

2005

2006

2007

A Fundação de Serralves reforça ainda a competitividade da região Norte e a internacionalização de Portugal, através da articulação que tem vindo a ser estabelecida com outros centros culturais, quer nacionais quer estrangeiros e pelo crescente número de não residentes que visitam a instituição. O Museu tem igualmente contribuído para uma nova imagem de Portugal no mundo, tendo promovido e participado, desde a sua criação, em 94 parcerias internacionais no circuito internacional de arte contemporânea (Quadro 14).

Quadro 12 Evolução do nº de visitas às páginas do site 5.000.000 4.500.000 4.000.000 3.500.000 3.000.000 2.500.000 2.000.000 1.500.000 1.000.000 500.000 0 2003

2004

2005

2006

2007

Quadro 13 Evolução do Valor das Referências nos meios de comunicação

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O número de visitas à página da Fundação na Internet, bem como o volume de referências na imprensa, quer nacional quer estrangeira, são outros indicadores significativos do impacto da Fundação, não só ao nível da Região Norte, mas também a nível nacional e até internacional. (Quadros 12 e 13)

A nível nacional, tem vindo a dar continuidade a uma política de divulgação da arte contemporânea, tendo realizado até Dezembro de 2007, 54 exposições itinerantes da sua Colecção. (Quadro 15)


Quadro 14

Com uma média de 73,6% de entradas gratuitas ao longo dos anos, a Fundação presta um Serviço Público de grande significado, cujo custo equivalente excede largamente a Subsídio do Estado de que é beneficiária. (Quadro 16) Detentora de um valioso património histórico e cultural a Fundação é um local susceptível de potenciar fluxos significativos de público e de contribuir, através do desenvolvimento de actividades de âmbito cultural e lúdico, para o reforço económico do País e para a valorização cultural e social das populações. A arte e a criação artística abrem novas perspectivas de abordagem da realidade, criando um espírito de tolerância, liberdade e de aceitação da diferença. Investir na Cultura é a melhor forma de qualificar os Portugueses.

Quadro 15

Quadro 16

21,9% 4,5% 73,6%

Inteiros Com desconto Gratuitos

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gestão de museus


Fig. 1 Fachada do Museu Museu Arqueol贸gico do Carmo fotografia de J. M. Arnaud, 2005

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José Morais Arnaud O museu Arqueológico do Carmo um exemplo de gestão associativa Depois de um breve historial da génese e desenvolvimento do Museu Arqueológico do Carmo, que faz parte integrante da Associação dos Arqueólogos Portugueses desde a sua fundação em 1864, até aos nossos dias, é analisada a profunda remodelação ocorrida entre 2000 e 2005, após o que se caracterizam de uma forma genérica o acervo, a vocação, os objectivos, as instalações, os equipamentos e os recursos humanos de que este museu dispõe e a forma como tem cumprido as suas funções museológicas. Na parte final faz-se uma avaliação das vantagens e limitações da gestão de um museu por uma associação de carácter profissional, científico e cultural, utilizando a análise SWOT. After a brief review of the origins and developement of the Carmo Archaeological Museum, as part of the Association of Portuguese Archaeologists, since its foundation in 1864 until the present times, the complete refurbishment carried out between 2000 and 2005 is described. The collections, vocation, objectives, instalations, equipment and human resources available, as well as the way it has managed to accomplish the museological functions area also refered to. In the last part a brief analysis is made of the advantages and limitations of the management of a museum that belongs to a professional, scientific and cultural association, using the SWOT method.

PALAVRAS-CHAVE: Associativismo, gestão do património cultural, requalificação de espaços museológicos, funções museológicas, flexibilidade, polivalência, sustentabilidade.

Director do Museu Arqueológico do Carmo | jarnaud@sapo.pt

1. Os primórdios do Museu

O

Museu Arqueológico do Carmo (MAC), fundado em 1864 nas ruínas da antiga Igreja de Nossa Senhora do Vencimento do Monte do Carmo, nesse tempo utilizadas como estrumeira da Guarda Municipal, faz, desde as suas origens, parte integrante da então designada Associação dos Architectos Civis, mais tarde Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portugueses, e actual Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP), a quem aquele espaço foi entregue pelo Governo para aí instalar a sua sede, bem como um “museu arqueológico”. Numa primeira fase o MAC viveu sobretudo das quotas pagas e dos donativos efectuados pelos associados da AAP, sendo a maior parte das obras de adaptação do edifício a museu financiadas ou pelo Ministério das Obras Públicas, em várias ocasiões, ou pela própria Câmara Municipal de Lisboa, que procedeu ao desentulhamento do portal

Oeste, ou por membros da família real, como o rei D. Fernando II, que se assumiu como protector da AAP, o rei D. Luís, ou o então Príncipe Real, e futuro rei D. Carlos I, que custeou a expensas suas a colocação de vitrais nos janelões das antigas capelas absidais (MARTINS 2001). A primeira grande remodelação do MAC foi efectuada em finais do século XIX, graças à intervenção do Conde de S. Januário, que sucedeu a Possidónio da Silva na presidência da AAP após o seu falecimento em 1896. Essa remodelação incluiu a substituição da estrutura de tábuas e chapa ondulada que colmatava os vãos dos arcos em ogiva que ligavam as capelas absidais ao transepto da antiga igreja, por uma estrutura em madeira e vidro, simulando vitrais góticos. Nessa ocasião foram colocados na parte coberta do MAC algumas das mais importantes obras de escultura tumular gótica, como o túmulo de D. Fernando I, e outros túmulos que até então se encontravam expostos na parte descoberta, com graves riscos de deterioração.

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gestão de museus


Também nos anos 40 do século XX se verificou uma intervenção de remodelação bastante profunda, por parte da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), sob a direcção do arquitecto Baltasar de Castro. Essa remodelação consistiu na substituição da estrutura de madeira e vidro que colmatava os arcos em ogiva por uma parede de alvenaria maciça, decerto destinada a conferir maior solidez à parte coberta do edifício, e ainda na integração nas próprias paredes do transepto e da nave de numerosas obras de arte, tais como cerca de uma centena de pedras de armas, 14 painéis de azulejos representando a Paixão de Cristo, provenientes do Convento de Chelas, e muitas outras peças. Nessa ocasião foram ainda entaipadas duas capelas à face existentes junto às “torres” que ladeiam a escadaria da entrada Oeste, as quais foram preenchidas com blocos de alvenaria, dentro da linha estética do “forte e feio” que então caracterizou a acção da extinta DGEMN. Nessas “torres” foram ainda instalados os serviços de apoio ao museu, as casas de banho, e a residência do guarda. Numa época em que o MAC só abria de um modo regular às quintas feiras e aos domingos, e tinha, em anos excepcionais, um máximo de 2000 visitantes, a guardaria era assegurada por um guarda residente, cuja retribuição se limitava à cedência de um local para habitar, e por um outro guarda, que era pago com grandes dificuldades pela AAP, até que, em 1943, o Ministério da Fazenda Pública acedeu a colocar no MAC um seu funcionário, situação que se manteve até ao final dos anos 70 do século XX.

2. Do 25 de Abril de 1974 aos anos 90 A partir de 1974, após uma tentativa frustrada por parte da então Direcção Geral dos Assuntos Culturais, de “nacionalização” deste Museu, que faz parte integrante da AAP, o Estado decidiu pura e simplesmente deixar de o apoiar, retirando-lhe mesmo o funcionário que aí residia. A AAP viu-se, assim, obrigada a tornar-se completamente autosuficiente, passando a encarar o seu museu não apenas como um incomportável encargo, mas sim como uma potencial fonte de rendimento. Esta atitude deve‑se, em grande parte, à acção da direcção presidida pelo Dr. Eduardo da Cunha Serrão que, perante a retirada dos apoios financeiros por parte do Estado e da autarquia, decidiu contratar duas novas funcionárias a tempo inteiro para assegurarem a guardaria, e um funcionário administrativo em tempo parcial para assegurar a contabilidade e o funcionamento regular das várias actividades da AAP, após o período de encerramento ao público do MAC.

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Não sendo o número de visitantes suficiente para assegurar as despesas, ainda que reduzidas ao estritamente essencial, de funcionamento do MAC e da AAP, passou-se a corresponder às solicitações ocasionais de cedência do espaço para a realização de eventos empresariais, sociais e culturais. Como os investimentos feitos na remodelação do MAC foram, durante mais de uma década, praticamente nulos, pois a Direcção, que integrava vários conservadores profissionais de museus, nunca chegara a acordo sobre a forma como essa remodelação devia ser feita, a AAP foi acumulando um pequeno pecúlio, que lhe permitiu mais tarde assegurar a contrapartida portuguesa de um projecto de remodelação integral, levado a cabo pela actual Direcção nos anos 2000 a 2005.

3. A Remodelação de 2000-2005 Esta remodelação foi feita após um período de encerramento forçado e desmontagem integral do MAC, entre Novembro de 1995 e Maio de 2001, devido às obras de preparação do edifício para o impacto da construção no seu subsolo de duas novas linhas de metropolitano. Essas obras, em grande parte financiadas pelo Metropolitano de Lisboa, ao abrigo de um contrato efectuado entre aquela empresa pública e a AAP, decorreram em várias fases, com longos períodos de interrupção, tendo-se prolongado por cerca de seis anos, devido à relutância que aquela empresa mostrou em assumir as suas responsabilidades e em criar condições para a remontagem e reabertura do MAC. Uma primeira fase decorreu entre Fevereiro e Dezembro de 1996, tendo consistido na desmontagem integral do MAC e colocação da maior parte do acervo na antiga sacristia, e na escavação arqueológica das capelas e de parte do transepto e da nave da antiga igreja, a fim de poderem ser colocadas mais de uma centena e meia de microestacas, reforçando os alicerces do edifício. Tendo verificado que o edifício histórico do Carmo havia resistido bem ao impacto da construção das novas linhas de metropolitano, que se cruzam sob o transepto, aquela empresa interrompeu os trabalhos, apesar dos sucessivos apelos feitos pela Direcção junto das entidades competentes no sentido de se criarem as condições de poder reabrir o MAC por ocasião da Expo 98. Uma segunda fase, destinada a reposição de pavimentos e coberturas, decorreria durante o ano 2000, tendo sido lançada pela DGEMN e financiada pelo Metropolitano de Lisboa.


75.000 62.500

c. Retirar da área descoberta as peças de maior interesse patrimonial e mais sensíveis à erosão atmosférica;

50.000

d. Melhorar as acessibilidades e requalificar os serviços

37.500

de apoio ao visitante (área de recepção, instalações sanitárias, livraria/loja);

25.000

g. Substituir vitrinas e expositores;

2007

‘94/95

2007

‘92/93

2006

‘90/91

f. Redefinir os conteúdos da exposição permanente;

2006

0 2005

reservas,

2005

biblioteca,

2004

técnicos, secretaria, arquivo, instalações do pessoal, etc.);

12.500

2004

e. Requalificar os restantes serviços de apoio (gabinetes

2003

incidência para as peças destinadas à exposição permanente;

2003

b. Limpar, conservar e restaurar o acervo, com especial

2002

a. Inventariar, fotografar e informatizar a totalidade do acervo;

2002

O projecto de remodelação e dinamização do MAC propôs-se realizar as seguintes acções:

Dois anos depois de concluído o projecto, a Direcção da AAP orgulha-se de ter conseguido alcançar todos os seus objectivos, transformando o mais antigo e antiquado museu do país, numa atractiva infraestrutura cultural, cujo número de visitantes quase quadriplicou nos últimos anos, atingindo os 70.000 em 2007 (Figs. 2 e 3).

2001*

O objectivo principal dessa remodelação foi assegurar a requalificação deste espaço museológico, procurando tirar o máximo partido das circunstâncias adversas, que puseram em causa a sua própria existência e a conservação do Monumento Nacional em que se insere.

Este projecto culminou em Dezembro de 2005, com a publicação do primeiro estudo sistemático do rico e variado acervo do MAC, que contou com a colaboração de cerca de 40 especialistas nos mais variados domínios da Arqueologia e da História de Arte (ARNAUD e FERNANDES, coord., 2005), em cujos capítulos iniciais e finais se incluiu, também, uma análise circunstanciada do estado em que se encontrava o MAC antes deste projecto, e dos trabalhos realizados no âmbito deste projecto.

2001*

Finalmente, uma terceira fase, que consistiu na conservação e restauro do acervo e na remontagem do MAC, decorreu entre Setembro de 2000 e Maio de 2001, e foi co-financiada por fundos comunitários (68%) e pela própria AAP (38%), no âmbito de um projecto integrado no POC1.

Fig. 2 Número de visitantes

h. Introduzir sinalética, painéis informativos e legendagem

das peças expostas, quer na parte descoberta, quer na parte coberta; i. Instalar um sistema de iluminação que permitisse valorizar e dar maior visibilidade ao acervo e ao próprio monumento, quer na parte coberta quer na parte descoberta, viabilizando a eventual abertura nocturna do MAC e ainda potenciar a utilização da antiga nave para a realização de eventos de carácter cultural, social e empresarial; j. Estudar e publicar o acervo, com especial destaque

para o destinado à exposição permanente k. Alargar e requalificar o quadro de pessoal; l. Criar um serviço educativo, quer para a população

175.000 150.000 125.000 100.000 75.000 50.000 25.000 0 ‘90/91

‘92/93

escolar, quer para os restantes visitantes, portugueses e estrangeiros; m. Criar um espaço de livraria/loja, destinado à venda

das publicações e produtos próprios do MAC.

‘94/95

* Em 2001 o MAC só abriu ao público a partir de 19 de Junho.

Fig. 3 Receitas das visitas

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Fig. 4 Mísulas com Anjos de Giovanni Antonio Bellini Museu Arqueológico do Carmo fotografia de J. M. Arnaud, 2005

4. Acervo, vocação e objectivos O seu núcleo mais antigo é constituído por um conjunto muito variado de elementos arquitectónicos, lápides epigrafadas, esculturas e azulejos provenientes de monumentos destruídos ou afectos a outras finalidades em consequência da extinção das ordens religiosas, em 1834, que foram salvos de destruição. É, assim, como muitos museus oitocentistas, sobretudo um museu de “salvados”, um subproduto da implantação do Liberalismo em Portugal, criado e dirigido por Possidónio da Silva, um homem que, sendo embora apoiante e combatente activo do novo regime, tendo mesmo participado no desembarque do Mindelo e sofrido o cerco do Porto, ao lado de Alexandre Herculano e de Almeida Garrett, tinha também uma forte consciência crítica em relação à destruição sistemática do património das ordens religiosas, então ocorrida. Mais tarde, dariam entrada no MAC inúmeras outras peças dos mais diversos tipos e proveniências, oferecidas ou depositadas por sócios ou entidades oficiais, nacionais e estrangeiras, incluindo muitas fotografias e gravuras de monumentos, colecções de artefactos arqueológicos provenientes de vários continentes, muitos dos quais foram entretanto levantados, já não constando dos inventários mais recentes. Com efeito, uma breve comparação entre os catálogos oitocentistas (Museu 1876 e Catálogo 1891), permite verificar a existência de grandes variações no acervo. Porém, a quase totalidade das peças referidas na descrição do MAC elaborada no

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virar do século por Gabriel Pereira (PEREIRA 1900) ainda hoje aí se encontram. Entre estas destacam-se as provenientes das civilizações pré-colombianas, oferecidas pelo Conde de S. Januário, que incluem duas múmias provenientes do Perú, e um sarcófago com múmia egípcia, que causam grande impacto, sobretudo nos visitantes mais jovens. Já em meados do século XX, deram entrada inúmeras peças provenientes de escavações realizadas na fortificação pré-histórica de Vila Nova de S. Pedro, entre os anos 30 e os anos 60, as quais ocupam um lugar de destaque na sala dedicada à Pré-História. Desde então, o acervo encontra-se completamente estabilizado, apenas tendo dado entrada, já nos anos 90, as peças encontradas nas escavações realizadas dentro do próprio edifício, durante as obras de preparação para o impacto da construção das novas linhas de metropolitano (FERREIRA e NEVES 2005). Tendo em conta a extrema heterogeneidade do acervo, e o facto de muitas peças se encontrarem integradas nas próprias paredes da nave da antiga igreja, cuja reconstrução não chegou a ser concluída, torna-se por vezes difícil distinguir o acervo do próprio edifício, conferindo-lhe uma atmosfera muito particular, de ruína musealizada, ao gosto romântico, que de certo modo desdramatiza a evocação da grande catástrofe que testemunha e simboliza, conferindo-lhe uma aura poética (Figs. 4 e 5).


Fig. 5 Aspecto da parte descoberta do MAC Note-se a janela manuelina que “sobrou” da reconstrução dos Jerónimos, integrada na parede construída em 1946-49 pela DGEMN fotografia de J. M. Arnaud, 2008

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Se em relação à nave a intervenção mais recente se limitou à colocação no interior da colecção de epigrafia romana, e dos 14 painéis de azulejos da Paixão de Cristo que se encontravam integrados no suporte arquitectónico, já nas cinco capelas que da parte coberta se procurou organizar as colecções de acordo com um discurso cronológicotemático, desde a Pré-história à Idade Moderna, dando-se especial relevo, numa das salas, à história da AAP e do seu Museu, e na outra à própria Igreja do Carmo e ao seu fundador, D. Nuno Alvares Pereira, cuja sepultura original, na capela mor, foi posta a descoberto durante as acima referidas escavações de 1996. O MAC integra-se, assim, na categoria genérica dos museus de História, Arte e Arqueologia, sendo o seu acervo, salvo raras excepções, de âmbito nacional. A sua especificidade resulta da própria natureza do edifício em que se insere, evocando importantes episódios da História de Portugal, como a Batalha de Aljubarrota, o Terramoto de 1755, a Revolução Liberal, e o 25 de Abril de 1974. Um dos principais objectivos do MAC é, assim, proporcionar aos visitantes mais jovens, integrados em acções do serviço educativo, um primeiro contacto com obras de arte e arqueologia, e despertar entre os menos jovens um interesse e uma consciência crítica em relação às questões do património cultural, essenciais para a sua formação como cidadãos. Em relação aos visitantes estrangeiros, atraídos pela sua visibilidade e pelo seu carácter de ruína romântica, o principal objectivo é proporcionar um primeiro contacto com a História de Portugal, desde as suas origens até à actualidade, despertando assim o seu interesse por visitar monumentos e museus da cidade de Lisboa e do resto do país.

5. Instalações, equipamentos e recursos humanos Recepção O antigo cubículo com 1 m x 1,5 m que durante décadas serviu de portaria foi substituído por uma ampla estrutura de metal, vidro e madeira sintética, dotada de ar condicionado, que proporciona as melhores condições de conforto possíveis aos funcionários, e dispõe de uma janela a todas a largura, a qual actua como um teaser para os visitantes, sugerindo sem mostrar totalmente o interior. A portaria dispõe de um sistema informatizado de bilheteira, da Compulab, semelhante ao utilizado em outros museus e palácios dependentes do IMC, e de um monitor do sistema de videovigilância, que permite

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ao funcionário de serviço visualizar o que se passa no resto das salas abertas ao público, e comunicar com os restantes funcionários, solicitando, caso seja necessário a sua intervenção. Na portaria, está também disponível o livro oficial de reclamações, felizmente pouco utilizado. Exposição permanente A exposição permanente do MAC está dividida em duas partes: a descoberta, constituída pela antiga nave da igreja, e a coberta, que integra as antigas capelas. Na nave encontram-se expostos sobretudo elementos arquitectónicos, pedras de armas, lápides sepulcrais e outras esculturas, provenientes da própria Igreja e do antigo Convento do Carmo, bem como de muitos outros conventos e mosteiros, destruídos ou afectos a outras funções. Dado que muitas dessas peças foram integradas no próprio suporte arquitectónico, durante a remodelação efectuada pela DGEMN entre 1946 e 1949, não foi possível a sua ordenação de acordo com um critério cronológico ou temático. A sua identificação é feita através de painéis em que as peças são assinaladas pelo seu contorno, e sumariamente descritas em português e inglês, uma vez que a maior parte dos visitantes são estrangeiros. Embora a maior parte dessas peças tenham sido concebidas para serem expostas ao ar livre, e se encontrem em razoável estado de conservação, algumas delas sofrem os efeitos dessa exposição. É o caso do núcleo hebraico, constituído por duas lápides do século VIII, de uma inscrição do século XIV, em granito, do arco manuelino e do jacente de D. Francisco de Faria, que ficariam mais protegidos na parte coberta do MAC, se fosse possível dispor de mais espaço. Em relação à parte coberta, a recente remodelação foi bastante mais profunda, permitindo a ordenação do acervo de acordo com um critério cronológico e temático. Todas as peças foram objecto de acções de conservação e restauro, as antigas vitrinas, inestéticas, sem condições de segurança e sem iluminação, foram substituídas, e as peças de maiores dimensões foram colocadas em suportes metálicos e devidamente iluminadas. Tal como no exterior, as tabelas de identificação são bilingues. Além da informação específica referente a cada peça, foram ainda colocados em cada sala painéis explicativos de carácter mais genérico (Figs. 6 e 7). Livraria/loja Em 2003 foi instalado em parte da antiga sacristia, actualmente usada como sala polivalente, um espaço de livraria/loja (Fig. 8), cuja concepção se deve à amabilidade do Arq.º Alberto Souza Oliveira, destinado à venda das publicações e produtos exclusivos do MAC, dotado de um terminal multibanco, no qual também existe um monitor do sistema de videovigilância.


Fig. 6 Sala da Pré-História Museu Arqueológico do Carmo fotografia de J. M. Arnaud, 2005

Fig. 7 Sala da Escultura Medieval e Moderna Museu Arqueológico do Carmo fotografia de J. M. Arnaud, 2005

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Nesta sala foi também criada uma pequena mas confortável zona de descanso para os visitantes, onde podem também consultar as publicações à venda, e deixar as suas impressões no livro de visitas. Na impossibilidade de efectuar grandes investimentos na criação de novas linhas de produtos, de difícil rendibilidade com um só posto de venda, a estratégia adoptada consistiu no convite a três criadores para desenvolverem linhas de produtos inspirados em peças do MAC, destinados a diferentes grupos etários - a linha “Archeologia”, inspirada nos pesos de tear com gravuras de Vila Nova de S.Pedro, a linha “Musas”, inspirada no sarcófago romano das Musas, e a linha “Monstros do Carmo”, destinada ao público infantil, inspirada nas representações de figuras fantásticas do túmulo de D. Fernando I. A estas linhas de produção própria foram mais tarde acrescentadas três outras linhas de produtos exclusivos, destinados a diversificar a oferta, inspirados em peças do MAC, mas de carácter mais artístico, colocados em regime de consignação, e produzidos à medida das necessidades, reduzindo assim o risco, quer para o MAC, quer para o próprio criador, embora diminuindo também a margem comercial. Num futuro próximo, quando for possível dispor de mais espaço para exposição e armazenamento, poder‑se-á encarar a possibilidade de integrar este espaço de livraria/loja na rede de lojas do IMC, se a Direcção do Instituto assim o entender, diversificando a oferta de produtos. Serviço educativo Na sala polivalente, que serve também de auditório, está instalado o serviço educativo, que dispõe do equipamento indispensável para a realização de ateliers, destinados a diferentes classes etárias, os quais incluem a realização de teatro de fantoches, a modelagem de objectos em barro, o preenchimento de questionários sobre o museu e o desenho de peças, e outras actividades, a encenação de curtas peças de teatro alusivas ao Monumento e ao Museu, etc (Figs. 9 e 10). Biblioteca O MAC dispõe de uma biblioteca especializada em História, Arte e Arqueologia, especialmente rica para o século XIX, cujo acesso, devido a limitações de espaço e de funcionários, está em princípio reservado aos sócios da AAP, salvo casos excepcionais, em que se comprove que a obra pretendida não existe em bibliotecas públicas.

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Arquivo Apesar do muito material que se deteriorou, ao longo de várias décadas, antes da sua recente reinstalação numa sala apropriada, é ainda bastante rico em material referente à História da AAP e do MAC, tendo já sido utilizado para a elaboração de diversas teses de mestrado e de doutoramento (SOARES 2001; MARTINS, 2003 e 2005; RAMOS, 2003; CHAGAS 2004). A AAP possui também uma excelente colecção de fotografias de monumentos, as quais se encontram actualmente depositados na Divisão de Documentação Fotográfica do IMC, para serem limpas e restauradas, ao abrigo de um protocolo assinado em 2004, tendo algum desse material, uma série de albuminas de Emílio Biel, sido já utilizado na exposição Évora Desaparecida Fotografia e Património 1839-1919 (Évora 2007). Reservas As reservas constituem um dos pontos fracos do MAC. Com efeito, por falta absoluta de espaço, ainda não foi possível instalar adequadamente as peças que se encontram em reserva. Estas encontram-se dispersas por vários locais do edifício, em função da sua natureza e dimensão, o que torna por vezes difícil assegurar um controle das condições ambientais e o acesso às mesmas, para efeitos de investigação. Na realidade, aguarda-se há já mais de cinco anos a prometida entrega de uma sala construída pela GNR no subsolo da antiga sacristia, antes da entrega desta à AAP, por volta de 1971, e utilizada como armazém de papel dos Serviços Gráficos. Recursos humanos No que respeita ao pessoal do MAC, que antes do seu encerramento para obras contava apenas com dois guardas a tempo inteiro, além de um funcionário administrativo, um jardineiro e uma empregada de limpeza a tempo parcial, foi necessário proceder a uma remodelação completa do quadro, que integra actualmente quatro vigilantes-recepcionistas, duas técnicas de museografia, e uma secretária administrativa, além de um jardineiro a tempo parcial. Os serviços de limpeza são assegurados em outsourcing por uma empresa, que destaca para o efeito uma funcionária fixa, que procede à limpeza geral das instalações, sob a orientação do pessoal do MAC. O quadro integra ainda um lugar de conservador, que se encontra neste momento por preencher, sendo as suas funções asseguradas pela Direcção da AAP, por razões de contenção orçamental. Apesar de ter triplicado, nos últimos sete anos, o quadro de pessoal do MAC é relativamente reduzido, tendo em conta o período de abertura ao público de


Fig. 8 Livraria/loja do MAC Museu Arqueológico do Carmo fotografia de J. M. Arnaud, 2005 Fig. 9 Atelier de Verão do Serviço Educativo Museu Arqueológico do Carmo fotografia de J. M. Arnaud, 2005

Fig. 10 Actividades do Serviço Educativo Museu Arqueológico do Carmo fotografia de J. M. Arnaud, 2005

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48 horas semanais, só conseguindo assegurar o pleno funcionamento da instituição, graças à disponibilidade, polivalência, e flexibilidade demonstradas por um grupo de funcionários de um modo geral bastante motivados, que, embora pertencendo quase todos ao quadro, têm plena consciência de que a viabilidade do seu posto de trabalho está directamente dependente do zelo, competência e dedicação com que exercerem as suas funções. Assim, apesar de cada um dos funcionários ter responsabilidades específicas, todos se entre ajudam, exercendo, sempre que necessário, as diversas tarefas essenciais ao funcionamento do MAC. A flexibilidade demonstrada por quase todos os funcionários tem ainda permitido alargar pontualmente o horário de funcionamento, a fim de aproveitar os períodos de maior afluxo de visitantes, durante os meses de Verão, ou nas semanas da Páscoa e a seguir ao Natal. Devido ao reduzido número de funcionários de que o MAC dispõe, torna-se difícil proporcionar a participação nas acções de formação organizadas pela RPM, sobretudo quando são realizadas fora de Lisboa, e em horário laboral. Mesmo assim, funcionários do MAC têm participado em algumas dessas acções. A direcção do MAC tem também apoiado a valorização académica dos seus funcionários, facilitando-lhes a frequência de cursos de licenciatura, mestrado e até a preparação de teses de doutoramento, acções que dependem, naturalmente, da iniciativa e das capacidades individuais destes. Recursos financeiros As receitas de bilheteira são naturalmente o principal recurso financeiro do MAC. Estas têm tido um aumento constante, quase quintuplicando em relação ao último ano antes do encerramento (Figs. 2 e 3). Verifica-se, no entanto, que são manifestamente insuficientes para cobrir as despesas, pelo que se tem procurado com algum sucesso, obter financiamento complementar através da cedência do espaço da antiga nave para a realização de eventos culturais, sociais e empresariais. Na verdade, estas receitas equivalem a cerca de 1/3 do total (Fig. 11). Nos últimos anos tem-se verificado uma crescente procura do espaço do MAC para a realização de eventos sociais, de caracter privado, a qual tem compensado a diminuição da procura para eventos empresariais. Verifica-se, no entanto, que os eventos sociais têm um maior impacto sobre o funcionamento normal do museu do que os empresariais, por se realizarem sobretudo nos fins de semana dos meses de Junho e Julho, altura em que há maior procura por parte dos visitantes.

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Passada que está uma conjuntura menos favorável em termos financeiros, resultante dos pesados encargos assumidos pela AAP com a remodelação e a publicação do catálogo, a actual estratégia está mais orientada para a realização de eventos de carácter cultural, retomando assim uma antiga tradição de realização nas Ruínas do Carmo de espectáculos de música, dança e teatro (Fig.12). Nesse sentido, depois de algumas experiências menos bem sucedidas, foram estabelecidos contactos com entidades credíveis, como o Teatro Nacional D. Maria II, para a realização de uma série de espectáculos, especialmente concebidos para este espaço, já durante o ano de 2008.

6. Funções museológicas Como é natural, a preocupação fundamental da Direcção do MAC é assegurar o pleno cumprimento das funções museológicas. No que respeita ao estudo e investigação das colecções, o MAC orgulha-se de ter promovido e publicado recentemente, com o apoio da RPM e da FCG, e a colaboração de cerca de 40 investigadores, o primeiro estudo sistemático de todo o acervo que integra a exposição permanente (ARNAUD e FERNANDES coord, 2005). Além disso, tem também promovido e apoiado a realização de trabalhos de natureza académica, baseados em peças que integram o acervo, ou o próprio edifício histórico do Carmo, desde trabalhos realizados no âmbito de licenciatura, até teses de mestrado e doutoramento, nas Faculdades de Letras, de Ciências Sociais e Humanas e de Belas Artes (SOARES 2001; FERNANDES 2004; CHAGAS 2004; MARTINS 2005). Actualmente, está a decorrer um projecto de investigação sobre as placas com gravuras de Vila Nova de S.Pedro, coordenado pelo signatário.

90.000

67.500

45.000

22.500

0 2001

2002

2003

Fig. 11 Receitas dos eventos

2004

2005

2006

2007


Fig. 12 Espectáculo de música clássica Museu Arqueológico do Carmo fotografia de J. M. Arnaud, 2002

Tendo em conta a abundância e diversidade do acervo incorporado ao longo de mais de um século, e a extrema falta de espaço, quer para exposição, quer para reservas, a política de incorporações do MAC é muito restritiva, apenas se aceitando a entrada de peças provenientes dos trabalhos arqueológicos efectuados no edifício histórico do Carmo e na sua envolvente imediata. Com o apoio da RPM, todos os dados resultantes do estudo sistemático da exposição permanente foram informatizados em 2006 e 2007, com base no programa MATRIZ, encontrando-se em vias de conclusão o inventário e a informatização das peças que integram as reservas do MAC. Deste inventário informatizado existem cópias de segurança, regularmente actualizadas, em equipamento apropriado. Foi também realizado em 2001 um levantamento fotográfico exaustivo do acervo em exposição permanente, só possível graças ao profissionalismo e dedicação da Dr.ª Vitória Mesquita e de José Pessoa e seus colaboradores da Divisão de Documentação Fotográfica do então IPM.

Em relação à conservação, a maior parte das peças que integram o acervo da exposição permanente foram objecto de acções de conservação e restauro, em 20002001, por técnicos e empresas especializadas2, processo que foi acompanhado pelo então Instituto Português de Conservação e Restauro, e que se encontra documentado no catálogo (ARNAUD e FERNANDES coord, 2005: 611-629). Desde então, o estado de conservação das peças intervencionadas tem sido monitorizado, através da observação visual, e da monitorização dos níveis de iluminação, de humidade relativa e de temperatura, com base em equipamento (luxímetro e termohigrógrafos) adquirido com o apoio da RPM. Desde 2007 todas as acções de conservação preventiva são feitas de acordo com o Regulamento de Conservação Preventiva, elaborado de acordo com as normas e procedimentos recomendados pelo IMC. No domínio da segurança, o MAC está equipado com um sistema de detecção e alarme contra incêndio e intrusão, ligado à empresa Securitas Direct, com registo de imagens, que tem funcionado da melhor maneira. Este sistema foi recentemente complementado pelo

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sistema de videovigilância, dotado de câmaras de infravermelhos, com acesso remoto, que funciona em permanência, permitindo, caso o alarme seja accionado, visualizar o que se passa dentro do MAC, para uma melhor avaliação da situação e intervenção adequada. A exposição permanente, executada com base num projecto de museografia da autoria do Arq.º Mário Varela Gomes, foi montada em 2001, tendo posteriormente sofrido apenas alterações de pormenor (GOMES 2005:630-639). Devido a limitações de espaço, só tem sido possível realizar, na nave da antiga igreja, exposições que possam ser colocadas ao ar livre ou em estruturas desmontáveis. Foi o caso da exposição de projectos de arquitectura para a zona envolvente do MAC, da autoria de alunos da Faculdade de Arquitectura da Universidade Lusíada, realizada em 2003, da exposição de fotografias inéditas do 25 de Abril de 1974, da autoria do Arq.º Mário Varela Gomes, realizada em colaboração com a Fundação Mário Soares, por ocasião dos 30 anos daquela efeméride, ou da exposição O Robô IZu pinta a Revolução, de Leonel Moura, em 2007. Um projecto mais ambicioso de exposição evocativa dos 250 anos do Terramoto não chegou a realizar-se, apesar de a RPM ter disponibilizado uma parte da verba necessária, por falta de apoio financeiro da Câmara Municipal de Lisboa, que também acabou por não realizar o seu ambicioso e dispendioso projecto sobre a mesma temática. No que respeita à divulgação, além de um conjunto muito diversificado de publicações, como os pequenos guias, em português inglês, francês e alemão (ARNAUD e FERNANDES: 2002b), dos roteiros, em português e inglês (ARNAUD e FERNANDES: 2002a e 2003), e do volume de estudos e catálogo (ARNAUD e FERNANDES: 2005), que podem ser adquiridas na livraria/loja, são ainda distribuídos à entrada a todos os visitantes folhetos gratuitos em português, inglês, francês e italiano, com uma planta e indicações genéricas sobre a história e o acervo do MAC. Nos períodos de maior afluência, sobretudo durante os meses de verão, são organizadas visitas guiadas, em português, inglês ou italiano, estas últimas por uma funcionária de nacionalidade italiana. Além disso, os funcionários do MAC, que falam quase todos mais do que uma língua, têm no seu cartão de identificação indicação das línguas que estão aptos a falar, estão preparados para a prestar qualquer esclarecimento sobre o museu e o seu acervo, sempre que para tal solicitados.

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A actividade do Serviço Educativo tem vindo a aumentar de um modo muito significativo desde o seu início, no ano lectivo de 2002-2003, tendo sido realizados no ano lectivo de 2006-2007 cerca de 200 ateliers e visitas guiadas, abrangendo cerca de 3000 crianças, jovens e adultos, o que equivale a cerca de 4% do total de visitantes (Fig.13). Note-se que a maior parte destas actividades são pagas e solicitadas por escolas privadas, pois os recentes cortes no orçamento das escolas públicas torna cada vez mais difícil a estas disporem de meios para pagar o transporte dos alunos. As poucas visitas realizadas por escola públicas foram guiadas pelos próprios professores, gozando assim da gratuitidade das entradas de menores de 14 anos. Além das actividades correntes, realizadas durante o período escolar, realizam-se também acções especiais, no Dia Internacional dos Museus, no Dia da Criança, nas semanas de pausas lectivas, ou ainda por ocasião de festas de aniversário de carácter particular.

7. Avaliação do actual modelo de gestão Forças Aplicando a agora tão em voga análise SWOT ao modelo de gestão do MAC, verifica-se que os aspectos mais fortes desde modelo resultam, por um lado, de se tratar de um museu pertencente a uma associação de caracter profissional, científico e cultural, de utilidade pública, sem fins lucrativos, mas de direito privado, o que permite uma muito maior flexibilidade em termos de cobrança de receitas e também de execução de despesas, ao contrário do que acontece na maior parte dos museus, dependentes de organismos da administração central, com autonomia administrativa, mas não financeira, ou de autarquias, sujeitos a uma complexa cadeia hierárquica. 3000

2.250

1.500

750

0 2002/2003

2003/2004

2004/2005

Fig. 13 Número de participantes

2005/2006

2006/2007


Com efeito, no actual modelo, a gestão do MAC é assegurada directamente pela Direcção da AAP, cujo Presidente assume as funções de director técnico do Museu, enquanto o Tesoureiro assegura as funções de gestor financeiro3. Este modelo agiliza muito o processo de tomada de decisões, quer no que respeita à contratação de pessoal, quer em relação à realização de investimentos em equipamento, em novas exposições ou na conservação dos acervos. Tratando-se, por outro lado, a AAP, de uma associação sem fins lucrativos, a quase totalidade das receitas geradas pelo MAC são reinvestidas no melhoramento dos serviços prestados por este. Como o pessoal e as instalações são comuns ao museu e à associação, os custos específicos da actividade desta são perfeitamente diluídos nos custos gerais de funcionamento global da instituição. Sendo as funções de direcção técnica e de gestão financeira inteiramente exercidas em regime de voluntariado pela Direcção da AAP, estas podem, de certo modo, ser consideradas como a contrapartida que a associação presta ao museu pela utilização comum do pessoal, das instalações e das receitas deste, numa perfeita simbiose, que assegura a viabilidade financeira e a autonomia técnica das duas instituições. Por outro lado, a existência de uma “massa crítica” altamente qualificada, constituída pelos cerca de 250 sócios da AAP, constitui também um aspecto muito forte deste modelo, tendo já assegurado a continuidade da instituição, ao longo de 145 anos. Entre os aspectos fortes importa ainda referir a integração do MAC na Rede Portuguesa de Museus (RPM)4, o que, além de ter dado acesso a apoios técnicos e financeiros pontuais, tem constituído um estímulo para a adopção e normalização de um conjunto de instrumentos de gestão preconizados pela Lei-Quadro dos Museus Portugueses (Lei nº47/2004, de 19 de Agosto). Esta integração tem contribuído também para uma melhor inserção do MAC no conjunto dos museus portugueses, mantendo embora a sua autonomia técnica e financeira. Fraquezas Como fraquezas do modelo podemos considerar o facto de a sua sustentabilidade depender de factores que não são inteiramente dependentes da eficácia da gestão dos recursos disponíveis. Com efeito, embora desde a reabertura em 2001 se tenha verificado um crescimento quase constante do número de visitantes, num museu em que 90% dos visitantes são estrangeiros, esta fonte de receita é muito sujeita a flutuações do mercado turístico internacional, nem sempre previsíveis ou facilmente explicáveis, mesmo

a posteriori.., o mesmo acontecendo em relação a outras fontes de receita, como é o caso da realização de eventos, de carácter cultural, social ou empresarial. Torna-se, assim, muito difícil proceder a um planeamento adequado das actividades a desenvolver e dos investimentos a realizar, pois sendo as despesas anuais facilmente previsíveis, o mesmo não acontece com as receitas, sujeitas a grandes flutuações. Outra fraqueza do MAC pode ser considerada a dificuldade de alargamento do espaço disponível, o que limita bastante a realização de actividades susceptíveis de fidelizar e de criar novos públicos, e de gerar receitas. É o caso da falta de uma sala para a realização de exposições temporárias, ou de uma cafetaria, Com efeito, apesar das sucessivas iniciativas feitas nesse sentido pela direcção da AAP, não foi ainda possível conseguir a atribuição de novos espaços do antigo Convento do Carmo, actualmente afectos à GNR, nem sequer para instalação condigna das reservas do acervo, dispersas por vários espaços dentro e mesmo fora das instalações do MAC. Ameaças Em relação às potenciais “ameaças”, importa ter em consideração a possibilidade de ser obrigado a encerrar ao público, para a realização de obras no próprio edifício, se não for possível suster o processo de degradação a que o mesmo tem sido sujeito, nos últimos anos, devido à continuada dificuldade que a DGEMN e os organismos que herdaram as suas atribuições no domínio da manutenção e conservação dos imóveis classificados - o IGESPAR e a Direcção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo, têm demonstrado em resolver este problema, que se arrasta desde a reabertura do MAC em 2001, apesar dos constantes apelos que têm sido feitos nesse sentido. Oportunidades Finalmente, no que respeita às oportunidades, a AAP, julga-se merecedora da atribuição por parte do Estado de novas áreas no contíguo edifício do antigo Convento do Carmo, logo que estas sejam desafectadas do serviço da GNR, a fim de poder instalar condignamente as suas reservas, bem como uma sala de exposições temporárias, e ainda uma cafetaria e uma loja, infraestruturas essenciais ao funcionamento de um museu moderno. Na realidade, esta instituição de utilidade pública, ao longo dos seus 145 anos de existência, deu já provas bem claras de saber gerir o património que lhe foi confiado, transformando uma estrumeira numa das infraestruturas culturais mais visitadas de Lisboa, cujo funcionamento regular não tem quaisquer encargos para o Estado nem para a Autarquia.

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Entendemos assim que seria mais que justo que lhe fosse concedida a possibilidade de melhorar a qualidade do Serviço Público de Cultura que tem vindo a prestar à Cidade e ao País. A fim de atingir esse objectivo têm sido desenvolvidos contactos, ao longo dos últimos anos, quer junto do Comando Geral da GNR, quer junto dos gabinetes dos sucessivos Ministros da Administração Interna. Porém, apesar de recomendações feitas nesse sentido por dois ministros, e da promessa formal de entrega de um espaço para instalação das reservas, subjacente à antiga sacristia, feita pelo Comandante Geral da GNR, entidade com quem foi, aliás, estabelecido, no dia 25 de Abril de 2007, um protocolo de cooperação, ainda não se concretizou a cedência de qualquer novo espaço. Espera-se, ainda, que a ampliação do Museu Arqueológico do Carmo, que constava da versão original do Plano de Revitalização da Baixa-Chiado, não seja inviabilizada, na versão definitiva do mesmo, pela recentemente anunciada criação dos “terraços do Carmo”, uma “zona de lazer” a instalar na área actualmente ocupada por um conjunto de edifícios anexos ao antigo Convento do Carmo, afectos ao Comando Geral da GNR. Para esse efeito, estão a ser feitos contactos com a Câmara Municipal de Lisboa, esperando-se poder contar com o apoio do IMC e da comunidade museológica nacional, nomeadamente através da APOM e da Comissão Nacional do ICOM, no sentido de se viabilizarem as legítimas pretensões da AAP.

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Notas 1

Este projecto só foi possível graças ao apoio do Dr. José Conde Rodrigues, então Coordenador do Plano Operacional da Cultura, da Prof.ª Doutora Raquel Henriques da Silva e do Dr. Manuel Bairrão Oleiro, então Directores do Instituto Português de Museus, e da Dr.ª Clara Camacho, então Coordenadora da Rede Portuguesa de Museus.

2

Estas intervenções foram realizadas por Adélia Cavaco Gomes, da Statua (escultura em pedra), Conceição Ribeiro (escultura em madeira) Rosa e Duarte Morgado, da Cerâmica de Carcavelos (azulejos), e Sónia Pires e José Mendes (pintura).

3

Estas funções têm sido asseguradas com a maior eficiência nos últimos 10 anos pelo arqueólogo e gestor profissional Dr. José Barreto Domingos.

4

A RPM é um excelente exemplo do trabalho notável que uma pequena equipa, devidamente enquadrada e motivada, pode desenvolver, mesmo sem grandes recursos humanos e materiais, e do papel de estímulo, aconselhamento e apoio técnico e financeiro pontual que o Estado deve adoptar em relação aos agentes culturais que não dependem directamente da sua tutela.


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Fig. 1 International Slavery Museum Projecção na parede para a abertura do ISM All rights reserved National Museums Liverpool

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David Fleming Ideia chave: estratégias para conseguir a mudança nos museus* A par do rápido processo de mudança e modernização de que os museus um pouco por todo o mundo têm vindo a ser alvos nos últimos 20 anos, sente-se a necessidade de transformação das instituições museológicas à medida que a sociedade continua a lançar novos desafios e exigências. Este artigo, que analisa casos de estudo do contexto inglês, incide sobre algumas das questões relacionadas com a implementação eficaz de programas de mudança – as pressões, o papel da equipa, missões e pontos de vista, o factor temporal. While museums around the world have been changing and modernizing quite rapidly over the past 20 years or so, there is an ongoing need for museums to change, as society continues to throw up new challenges and demands. This paper looks at some of the issues involved in implementing successful change programmes – the pressures, the role of staff, missions and visions, the time factor. The paper uses case studies from the UK.

PALAVRAS-CHAVE: estratégia.

Mudança, transformação, modernização, equipa, público,

OBE, Director, National Museums Liverpool | f.mcclafferty@liverpoolmuseums.org.uk

* Este texto corresponde à comunicação de abertura da Conferência Museums people – The Human Collection, proferida a 9 de Abril de 2008 em Dunedin, Nova Zelândia, no Museu Aotearoa (NE).

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Introdução

N

este artigo pretendo reflectir sobre as razões que tornam a mudança nos museus um assunto tão polémico – mesmo depois de mais de duas décadas em que os museus no mundo inteiro têm vindo a mudar e a modernizar-se.

Vou debruçar-me sobre a necessidade permanente de mudança, sobre a natureza das transformações de que estamos a falar, sobre algumas das pressões e correntes, sobre modos e meios para conseguir a mudança e sobre o papel desempenhado pelo recurso principal dos museus, as pessoas que neles trabalham. Constituímos um sector em que se trabalha muito, e este é um factor que tem que estar presente em todas as reflexões acerca de mudanças – se as pessoas não estiverem dispostas a mudar, e em primeiro lugar a mudar-se a si próprias, é impossível fazer qualquer progresso que seja. Julgo ter motivos para falar sobre o assunto com conhecimento de causa, uma vez que tive uma experiência de 22 anos de trabalho em três museus britânicos, tentando tornar cada um deles mais eficaz em termos de adesão do público e mais profissional em termos da qualidade do serviço prestado diariamente. Esta experiência vai desde as minhas primeiras tentativas hesitantes para compreender o papel que os museus poderiam desempenhar, na cidade de Kingston upon Hull, nos anos 80, até ao processo que ainda está em curso na cidade de Liverpool.

A necessidade de mudança Antes de tudo, analisemos então as razões pelas quais nos anos de 1980 era necessária uma mudança nos museus. Estes foram os principais problemas que encontrei em Hull nessa época: 1. Um desinteresse geral por parte do público relativamente aos museus e galerias de arte em Hull – o número de visitantes provenientes da classe trabalhadora, predominante na cidade, era baixo, e por outro lado os museus atraíam um grande número de pessoas de um meio social mais próspero, numa grande desproporção. 2. Os padrões de gestão de colecções deixavam muito a desejar, com documentação de má qualidade, reservas pouco satisfatórias e condições de conservação inadequadas. 3. O serviço educativo era rudimentar e pouco usado pelas escolas ou por outras crianças. 4. Não havia marketing digno desse nome, a não ser o que os conservadores, em conjunto com a equipa de design da Câmara Municipal, arranjavam como soluções de recurso. 5. Os recepcionistas estavam mal treinados e com frequência de mau humor; o serviço na cafetaria e na loja era rudimentar ou até inexistente. 6. Os funcionários estavam, de uma maneira geral, desiludidos e sem ambições, trabalhando em isolamento e murmurando permanentemente uns acerca dos outros. 7. O museu estava inteiramente dependente do financiamento da Câmara Municipal de Hull, e raramente tinha capacidade para autonomamente angariar outros fundos. 8. Parecia um tipo de gestão em que o planeamento a longo prazo não era considerado por ninguém.

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Mas havia aspectos positivos nos museus de Hull: no seio da Câmara Municipal havia um certo interesse político pelos museus entre os elementos da maioria de orientação socialista que se apercebiam do potencial educativo dos museus, particularmente por parte do Presidente da Câmara, que era professor de História no ensino secundário. Quando fui para os Tyne & Wear Museums em 1990. encontrei o mesmo tipo de problemas, ainda que sem o benefício dos políticos. Na realidade, a indiferença dos políticos pela prestação dos museus tinha levado a uma série de cortes orçamentais e a um ambiente hostil dentro da Câmara, no seio do qual os museus tinham de trabalhar. Os funcionários – que, segundo um deles me informou, se consideravam a si próprios trabalhadores dos “Whine and Tears Museums” (dos “Museus dos Lamentos e das Lágrimas”) – estavam desmoralizados e desinteressados, e a instituição, uma federação de museus em cinco áreas diferentes do município, estava à beira de ser desmembrada pelos seus mecenas. Quando cheguei a Liverpool em 2001, tinha uma sólida experiência em estratégias para promover a mudança e não tive grandes surpresas, ainda que aqui tivesse de lidar com um elemento novo, um Conselho de Administração nomeado pelo Governo e não com uma Comissão nomeada por um Órgão Municipal eleito. Liverpool parecia-se muito com Tyne & Wear em 1990 e tinha semelhanças com Hull em 1985. Estas três instituições tinham em comum o seguinte: 1. Uma proliferação de departamentos e pouco trabalho de

equipa, a que se juntava uma maneira de pensar hierárquica pouco saudável. 2. Pouco conhecimento do meio em que os serviços

estavam inseridos. 3. Equipas directivas disfuncionais. 4. Uma reverência ilógica pelo trabalho dos conservadores

e uma percepção limitada da necessidade de se trabalhar nos serviços de educação e de marketing. 5. Aversão ao risco. 6. Visão estratégica confusa.

Como consequência, nos três casos havia baixos níveis de interesse por parte do público e um perfil de visitante que não reflectia a população local. Também nestes casos as pessoas que tinham uma consciência mais aguda de que alguma coisa não estava bem – ainda que sentissem não ter poder para mudar as coisas – eram, certamente, os funcionários.

Sempre defendi que os funcionários de um museu são os primeiros a ter consciência dos problemas e a encontrar muitas das soluções para eles. Todavia, precisam da orientação de uma liderança capacitante que os ajude a clarificar o seu papel, a tomar consciência do seu potencial e a estruturar as suas opiniões, encorajando-os a alterar o modo como as coisas são feitas para conseguirem desempenhar esse papel, explorar esse potencial e concretizar essa visão dos assuntos.

Porquê a necessidade de mudança? Então, por que razão em 2001, estava eu a lidar com os mesmos problemas de 1985? Não teria Liverpool aprendido a lição das experiências noutros locais? Com certeza que em 2001 toda a gente nos museus sabia que a proliferação de departamentos é uma maldição, que o isolamento é suicidário, que compreender e interagir com o meio envolvente é fundamental, que a aversão ao risco leva a museus monótonos e estáticos e que uma estratégia para um museu não interessará a ninguém se não for arrojada e clara. Então, por que razão estas mesmas características eram recorrentes nos museus? Penso que a resposta reside na capacidade de concretizar uma mudança sustentável, uma mudança cultural genuína, que envolva uma reavaliação profunda de tudo o que se faz e como se faz, com paciência, tenacidade, determinação, confiança e coragem. Implica então um conjunto de competências e atitudes que nem todos têm. E o processo leva tempo, por isso as pessoas acabam por se cansar e desistir. Por vezes inicia-se um processo de mudança, mas ele é interrompido porque factores pessoais, financeiros ou políticos alteram o cenário. A condição natural dos museus será a complacência, e só esforços continuados assegurarão que a mudança estabilize e se solidifique. Mais ainda, é provável que qualquer tentativa de mudança encontre oposição dentro da organização, e quanto mais radical for a transformação, mais firme será a oposição. O conservadorismo é poderoso dentro dos museus e por vezes não é preciso muito para que o esforço de mudança se esvazie perante a indiferença ou a hostilidade. Acho que na raiz deste facto está o academismo e o modo como este pode ser individualista e elitista, quando deveria ser generoso, acessível e democrático. Os museus, como tantas vezes repetimos, são lugares únicos porque reúnem colecções de uma variedade imensa.

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Formar essas colecções e decidir o que deve ou não ser incorporado, exige conhecimento e especialização. Deste simples pressuposto advém o problema central com que nos deparamos: este conhecimento e especialização podem fechar-se em si próprios e tornar‑se inacessíveis, porque a qualificação académica é um processo intelectual pessoal e, por definição, um caminho frequentemente solitário. Mas os museus são instituições que têm de falar, não só para os outros investigadores, mas para uma grande maioria constituída pelos que não são eruditos. Uma das funções principais dos museus é assumir o papel de intermediário ou de mediador entre os académicos e o público, centrar-se não nos seus pares mas sim na comunidade. E isto é um grande desafio. Há então um conflito mesmo no coração dos museus, o que significa que se não se encontrarem modos de envolver e convencer os académicos, estes nunca se preocuparão com públicos mais alargados, os seus departamentos e hierarquias proliferarão, tornar-se-ão cada vez mais isolados, considerarão o conhecimento um instrumento para seu próprio deleite, em vez de um potencial capaz de mudar o mundo. Ficarão satisfeitos se interessarem só a uma minoria de públicos, geralmente aqueles com mais altos rendimentos e uma escolaridade superior. Estas circunstâncias levam a uma falta de confiança e à incapacidade para levar a cabo as medidas necessárias para conseguir a mudança. Entidades externas – mecenas, políticos, empresas – apercebem-se desta falta de confiança e mantêm-se à margem. E, assim, o museu fica isolado. Deste modo a repetição da ideia de que “nos museus o principal são os objectos” torna-se como uma mó atada aos nossos pescoços, em vez de um padrão pelo qual nos orientamos com orgulho. O que temos de fazer para criar estratégias que levem à mudança nos museus é confrontarmo-nos com este problema central. Não devemos ignorar a hostilidade que pode surgir dentro e fora dos museus relativamente à vontade de mudar, e, ouso dizê-lo, de democratizar os museus. Dentro dos museus há sempre aqueles que desejam a vida solitária de um académico – esta é por vezes a razão pela qual abraçaram uma carreira num museu – e que se sentem ameaçados pela mudança; e há sempre aqueles de fora dos museus (e alguns de dentro) que gostam que os museus tenham um acesso restrito, uma espécie de clubes privados em que a condição de sócio não é permitida a todos, em que fazer parte do clube confere estatuto, que não se sentirão atraídos por uma visão inclusiva dos museus ou um com um programa de mudanças radicais.

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Pressões para mudar Pressões de alcance limitado para mudar o museu tradicional podem vir de vários lados. Podem vir de uma parte dos técnicos com uma mentalidade mais democrática, ainda que, sem uma liderança eficaz, pouco se possa esperar; podem vir de organismos de gestão ou de mecenas, desejosos de ver algum impacto público como resposta ao seu financiamento; pode mesmo vir dos governos, procurando eficácia ou mudanças na sociedade (ou ambas). No entanto, a pressão para mudar vem principalmente da sociedade no seu sentido lato. Pelo menos nas democracias, todos pagam, de uma maneira ou de outra, para manter os museus. E há alturas em que se reclama um retorno visível, particularmente quando o financiamento público é objecto de crítica ou vai ser sujeito a escrutínio. Invariavelmente, esta pressão leva à procura de públicos mais alargados e diversificados – algo que pode influenciar a motivação das pessoas que pagam impostos e que deste modo financiam os museus. Todos nós, e ainda bem, somos pressionados a atrair públicos diversificados e representativos. Este factor não era muito importante há 30 anos, mas é agora, e no Reino Unido, ironicamente, desde que o Governo Conservador dos anos de 1980 acentuou a importância de obter “value for money”, ou seja, resultados visíveis correspondentes aos gastos de dinheiro público. É um factor que com pouca probabilidade irá desaparecer; ainda que a publicação recente do governo britânico Supporting Excellence in the Arts sugira que é tempo de nos afastarmos da “quantificação” das actividades levadas a cabo pelas instituições culturais (isto é, da valorização do número de visitantes e da diversidade de públicos) e avançarmos para a sua “qualificação” (isto é, para a aferição da verdadeira qualidade dos seus programas). Este documento é a reacção a um regime que, e muito bem, a meu ver, estabeleceu objectivos a alcançar por parte das instituições culturais, com o argumento de que o cumprimento dos objectivos pode abafar a criatividade. O meu receio é que o documento incentive os museus a restringir a sua acção de procura de públicos diversificados. Veremos.

Visão estratégica Alguém tem que tomar a decisão de que um certo museu deve mudar. Esse papel é provavelmente o do Director, porque, se o Director não traça rumos e não mostra empenho, nada acontece. O Director tem de ser a prova viva dessa vontade de mudança.


Fig. 2 Fachada exterior da Walker Walker Art Gallery, parte do National Museum Liverpool All rights reserved National Museums Liverpool

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No entanto, um Director sem apoio do corpo técnico também não vai longe. Daí se conclui que uma mudança só será possível com um esforço de uma grande equipa, e essa equipa tem de ser capaz de actuar com rapidez, poder de decisão e um certo instinto, assumindo riscos, reconhecendo e ultrapassando erros, se for caso disso, recompondo-se dos revezes e avançar, em vez de recuar. Isto quer dizer que um Director que seja favorável à mudança, depois de analisar cuidadosamente o seu museu, e tendo sob controlo a situação financeira e as estruturas com poder de decisão, tem que identificar entre os técnicos que partilhem as suas ideias e incutir-lhes uma firme vontade de alcançar novos objectivos com urgência. Estas pessoas existirão sempre, mas nem sempre serão fáceis de identificar. Do mesmo modo, o Director tem que identificar os focos de resistência e neutralizá-los. G. Rollie Adams do Strong Museum em Rochester, Nova Iorque, põe a questão nos seguintes termos: “Não tenha medo de se afastar de pessoas que não estão dispostas a mudar…reconheça quando é necessário incorajá-los a afastarem-se...” Tanto em Tyne & Wear, como em Liverpool, deparei com funcionários de todas as categorias dispostos a entrar no novo jogo, bem como pessoas que se opunham à mudança. Entre estes últimos contavam-se, como sempre, alguns que manifestavam o seu desejo de mudança desde que isso não os afectasse. Em ambos os casos o recrutamento de um pequeno número de pessoas para postos-chave em serviços que não existiam até aí deu força ao processo de mudança, mas tanto num caso como noutro foram os membros da equipa que constituíram os principais agentes da mudança. Em consonância com outros directores de museus que tinham levado a cabo grandes mudanças, constatei que a chave para o sucesso residia em valorizar a atitude antes da especialização, aquando do recrutamento dos novos membros para a equipa. As competências podem ser adquiridas, mas atitudes incompatíveis podem constituir obstáculos muito difíceis de transpor. Nos dois serviços a identificação de uma nova visão estratégica foi de enorme importância: ideias gerais claras acerca do tipo de instituição que o museu quer ser, susceptíveis de inspirar entusiasmo e vigor, e capazes de desencadear o impensável. Em Tyne and Wear, nós criámos – e quando uso “nós” quero dizer que houve um grande envolvimento por parte dos técnicos em escrever e reescrever – um documento de Objectivos e Convicções que impressionou de tal maneira o Governo do Reino Unido ao ponto de o publicar na íntegra num guia de orientações políticas sobre museus e mudanças sociais. Eis um extracto desse documento:

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A nossa missão •  Levar as pessoas a encontrar o seu lugar no mundo, e a compreender a sua identidade, aumentando assim o respeito por si próprias e pelos outros. Acreditamos que •  Desempenhamos um papel positivo nas vidas das

pessoas. •  Inspiramos e desafiamos as pessoas a explorar o seu

mundo e a abrir novos horizontes. •  Constituímos um recurso poderoso para a educação e

aprendizagem. •  Actuamos como agentes de regeneração social e

económica. A nossa visão relativamente ao futuro dos TWM (Tyne & Wear Museums) • Inclusão total. • Qualidade de nível mundial. • Financiamento seguro e adequado. • Sustentabilidade. • Reconhecimento universal do valor. • Liderança qualificada. • Interesse por parte da comunidade internacional. • Renovação constante.

Em Liverpool criámos o documento Opiniões e Convicções. Aqui estão alguns extractos desse documento: Visão estratégica • Fixar metas e estar aberto ao exterior, motivando e

inspirando as pessoas, criando desafios que promovam a inclusão. Acreditamos que •  Os NML (National Museums Liverpool) responsáveis perante a sociedade no seu todo.

são

•  Os NML são uma instituição criativa, enérgica e

dinâmica. •  Os NML devem ser sempre uma instituição moderna,

radical e responsável. •  O trabalho de equipa e a cooperação são valorizados

e inerentes a todo o trabalho a desenvolver pelos NML. •  Os NML serão fortalecidos mediante o estabelecimento

de parcerias. Antes da adopção deste documento, a Missão da nossa instituição era: Usar o corpo técnico, as instalações e os recursos dos NMGM para promover de um modo eficaz a apreciação e compreensão da arte, da história e da ciência por parte do público através de:


• Aumento das colecções, salvaguarda e conservação. • Estudo e investigação das colecções. • Exposições. • Recurso a outros meios apropriados.

Esta definição da missão do museu é constrangedoramente pouco inspiradora e é, basicamente, uma lista de funções, mais um auxiliar da memória para consumo interno do que um testemunho motivador sobre as razões que nos levam a estar aqui e sobre o que pretendemos fazer. É a missão de um museu à procura de uma estratégia.

Impactos da mudança Quero agora falar um pouco sobre o que conseguimos em Tyne & Wear, e em seguida contar algo mais sobre as nossas experiências em Liverpool. 1. Tyne & Wear Museums A primeira coisa que quero de novo sublinhar é o tempo necessário para levar a cabo uma mudança que seja sustentável. Em Tyne & Wear era muito claro para os membros da direcção que tínhamos pela frente um longo caminho a percorrer. Quando iniciámos o processo em 1991, pensávamos mesmo que teríamos um programa a implementar em 21 anos – uma geração inteira. Este era um serviço importante com múltiplas dependências, servindo uma população de mais que 1 milhão de pessoas. Sabíamos que tínhamos que provocar uma transformação radical no comportamento dessas pessoas e na sua atitude relativamente aos museus o que representaria anos de esforço permanente. Para conseguir uma transformação social efectiva – e essa era a nossa ambição – teríamos muito trabalho pela frente. Em 2003, 18 meses depois de eu ter saído de Tyne & Wear, pediram-me uma análise do que tinha sido concretizado nos 10-12 anos anteriores. Pude constatar que tínhamos criado uma espécie de círculo virtuoso, dentro do qual o nosso desempenho tinha melhorado ao ponto de captar a atenção dos meios de comunicação social, das empresas e até o apoio dos políticos, que resultou em mais financiamento e que possibilitou melhorias no serviço. O número anual de visitantes tinha aumentado nos nossos museus em mais do dobro, de 600.000 para 1.200.000 visitantes por ano, sem um aumento significativo de custos; e o perfil desses visitantes tinha mudado – em 1980, 80% dos nossos visitantes eram das categorias A, B e C1, isto é, eram de um extracto social relativamente próspero; só 20% eram das categorias C2, D e E, isto é, de meios mais desfavorecidos. Por outras palavras, como nos museus em todo o mundo, os Tyne & Wear Museums não conseguiam

atrair uma grande parte da população – só interessávamos a uma minoria bem sucedida. Em 2001, a proporção de visitantes A, B e C1 tinha diminuído para 48% e a proporção de C2, D e E tinha aumentado para 52%. Isto representava uma transformação assinalável do nosso público ao longo de um período de 10 anos. Um serviço que até aí só era relevante para uma minoria tinha-se transformado num outro que fazia sentido para uma maioria, e isso foi conseguido com uma visão estratégica em favor de um serviço mais popular, relevante, bem fundamentado e acessível, baseada na convicção de que um museu é uma instituição democrática, valorizada pelo público em geral; e também dando cumprimento ao programa com um empenho inabalável. Esta mudança não foi conseguida sacrificando os padrões de qualidade dos serviços profissionais prestados. Pelo contrário, no ano 2000 tínhamos novas reservas para as colecções, havia melhor documentação sobre as peças, mais investigação e maior número de escavações arqueológicas, mais financiamento para a conservação da colecção e novas aquisições a um bom ritmo. Também tínhamos um horário de funcionamento alargado, muitas exposições novas de grande qualidade e variedade, e um papel importante em toda a região. Conseguimos tudo isto porque tínhamos definido novas prioridades que foram ao encontro da nossa nova visão estratégica. Desafiámos as velhas ortodoxias. Fizemos a nossa gestão com tanto rigor como se se tratasse de uma empresa do sector privado, detectando e eliminando as falhas! Pensámos e agimos de um modo estratégico. Éramos, finalmente, uma instituição virada para o exterior com muitos parceiros, que acreditava no trabalho de grupo, não no culto do indivíduo. Acreditávamos que todas as áreas de trabalho e profissões dentro dos museus eram importantes, e não só a dos conservadores. Fomos pragmáticos e desviámos recursos para áreas de actividade mais dirigidas para o público e que nos ajudariam a justificar e a aumentar o nosso financiamento. Recebi recentemente o último Relatório de Actividades Anual dos Tyne & Wear Museums (uma inovação de meados dos anos 90), em cujo princípio vem expressa a missão do museu. Para além da mudança de uma única palavra (anteriormente “compreender” e agora “definir”), esta missão é exactamente a mesma que definimos nos anos de 1990: superou-se o teste do tempo, as mudanças pessoais e políticas, e o serviço continua mais pujante e com mais visitantes do que nunca. O plano a 21 anos parece estar ainda válido, faltando quatro anos para podermos finalmente quantificar e avaliar o seu impacto a longo prazo!

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É interessante constatar que Alec Coles, o actual Director que me foi substituir em 2001, foi o membro da equipa de gestão que formulou a nossa estratégia no princípio dos anos de 1990, e tenho a certeza de que a continuação desta visão estratégica é o factor mais importante que está subjacente à continuidade do sucesso deste serviço. Espero agora que o passado tenha sido esquecido e que a equipa de Tyne & Wear olhe em frente. 2. National Museums Liverpool

Fig. 3 National Museums Liverpool Venues All rights reserved National Museums Liverpool

Em Liverpool temos um desafio ainda maior – colecções mais extensas, um corpo técnico maior (600 pessoas e não 200, como em Tyne & Wear), maior controle por parte do governo central e uma administração realizada por um conselho de gestão que é inevitavelmente menos previsível que a administração por parte de uma autarquia. Convém sublinhar aqui que é necessário o apoio do conselho de gestão do museu, se quisermos implementar mudanças sustentáveis, e isso implica termos que lidar com pontos de vista menos radicais, concluindo que preferências individuais podem constituir obstáculos ao desenvolvimento de uma estratégia a longo prazo. Lembro-me de uma discussão entre a equipa do museu e o conselho de gestão, em que um membro desse conselho estava convencido que o papel educativo dos museus era meramente acidental, que a educação não era a mais importante razão de ser dos museus. A nossa equipa continuou a argumentar em nosso favor, não valorizando a visão contrária, mas a pessoa em causa acabou por nunca concordar connosco. Contudo, uma boa parte dos seus colegas estavam convencidos, ou pelo menos não se opuseram, a que a equipa pudesse implementar a sua nova visão estratégica, desde que o número de visitantes aumentasse. No mesmo espírito, o Presidente do Grupo dos Amigos dos NML (National Museums Liverpool) disse que: Um museu é em primeira instância um lugar onde se expõem os objectos das suas colecções – peças raras, lindas, particularmente interessantes ou didácticas. Os museus não são em primeiro lugar instrumentos para a educação – esse é o papel das escolas, colégios e universidades.

Os progressos que fizemos e como Estamos há menos de sete anos a implementar um programa de mudanças, por isso ainda há muito que fazer e um longo caminho a percorrer. Estamos menos fragmentados e menos isolados, com competência mais desenvolvidas, mais oportunidades, mais respeito pela função de cada um;

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estamos mais bem treinados, agimos de acordo com um estratégia, a nossa cultura de culpabilização diminuiu. Somos mais radicais, menos antiquados e de algum modo menos burocráticos. Devo salientar, no entanto, que em nenhuma destas áreas progredimos tanto quanto eu tinha desejado. Temos uma liderança mais bem afirmada, com uma equipa executiva forte e corajosa; mudámos a imagem da nossa instituição, a estrutura da nossa equipa está constantemente a ser revista de modo a poder antecipar e dar resposta às mudanças externas – o meio com o qual interagimos está permanentemente em mudança política, social, económica, financeira e tecnológica e o museu tem que estar a par das alterações, sob pena de perder o comboio. Acredito que compreender e lidar com o meio exterior é a função mais importante da equipa que faz a gestão de um museu, um desafio que muitas vezes nem sequer é reconhecido, quanto mais ponderado.

Nem todos são capazes de responder de uma forma positiva a este desafio, mas muitos são, e é com esses que temos de contar para implementar novas políticas, para receber novas ideias e, por último, para transmitir a outros as mudanças, de modo a que nunca haja risco de regressão. Ter as pessoas certas nos lugares certos é a pedra base de qualquer mudança cultural. Em termos de resposta do corpo técnico, tenho a dizer que haverá durante muitos anos descontentamento e pouca motivação. Isso é comum em alturas de mudança, particularmente se o processo não for acompanhado por um aumento no ordenado! Aqui estão algumas respostas retiradas de um inquérito, feito há já alguns anos junto dos funcionários: Acerca da visão estratégica • Esta visão é o habitual disparate sem conteúdo. • Não tenho a certeza que um museu, por definição, possa

ser moderno e radical. Adoptámos uma política firme de inclusão social; temos mais facilidades em estabelecer parcerias, usámos uma série de importantes projectos interdisciplinares para introduzir novas maneiras de trabalhar e de pensar. Reconhecemos que trabalhamos num sector competitivo, o que significa estar muito atento à política e defender incessantemente as nossas causas. Seguimos o princípio de criar pequenos sucessos a curto prazo para obter com rapidez resultados que podem ser muito motivadores. Um exemplo é uma galeria de exposições especiais de baixo custo e sempre em transformação num dos nossos museus principais, que imediatamente atraiu novos públicos e mais jovens a um museu que estava a tentar parar um declínio do número de visitantes que já se vinha a verificar há muito tempo (acentuando-se mesmo depois de abolidas as entradas pagas!). Também noutros aspectos muitas coisas mudaram para melhor. Por exemplo, sabemos fazer melhor a gestão de exposições, de eventos e de espaços, a angariação de financiamento e a programação de actividades educativas. A nossa imagem nos meios de comunicação social melhorou substancialmente. A nossa gestão de colecções está mais bem coordenada e responde melhor às necessidades do público. A gestão dos visitantes e das vendas está em vias de ser melhorada. Gradualmente, temos vindo a exigir mais aos nossos funcionários em cargos de chefia intermédia, e partindo de uma visão ‘de cima para baixo’ sobre a mudança de desenvolvimento e de envolvimento, temos tentado, através de formação, delegar competências, fortalecer as pessoas e fazê-las sair das suas posições instaladas.

Acerca da liderança e gestão • Não os mandaria fazer um recado • Na minha condição de alguém que esteve envolvido em cargos de gestão noutros empregos, posso afirmar que a equipa que gere os NML é péssima.

Acerca do nosso ambiente de trabalho • Alguns têm um cargo superior e sou eu que faço o trabalho deles, enquanto eles andam por aí.

Acerca do trabalho e de como somos vistos • Talvez no nosso esforço precipitado para educar as crianças de doze anos, tenhamos perdido de vista as necessidades do estudo académico adulto.

Grande parte dos comentários negativos das pessoas estavam relacionados com o muito trabalho que tinham entre mãos, e pareciam vir daqueles que rejeitavam a ideia de que os museus têm que trabalhar muito para conseguir levar a cabo alguma coisa. Acho que agora os museus trabalham mais do que nunca em função das exigências e expectativas do público, o que não agrada aos que estão abituados a um ambiente menos exigente. De facto, é impossível agradar a todos. Temos que esperar que com o passar dos anos o descontentamento diminua, até encontrar um ponto de equilíbrio, e, na minha opinião, isso não representa um obstáculo intransponível no processo de mudança. Não deve certamente dissuadir-nos em continuar em frente e introduzir mudanças onde forem necessárias. Nos Tyne & Wear Museums ficámos satisfeitos com um aumento de 100% no número de visitantes, passados cerca de sete anos.

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Em Liverpool assistimos a um acréscimo de 200% em apenas seis anos e ultrapassámos a barreira dos 2 milhões pela primeira vez, três anos antes da meta que nos tínhamos proposto em 2001. O nosso objectivo para 2008, o ano em que Liverpool é a Capital Europeia da Cultura, é um aumento de 300% ao longo de um período de sete anos. Mais ainda, tal como em Tyne & Wear, assistimos a uma significativa alteração do perfil dos nossos visitantes: a proporção de visitantes das categorias C2, D e E aumentou para 36%, depois de se ter mantido por muito tempo nos 25%. Esta alteração foi particularmente visível na Walker Art Gallery, onde foi criada um espaço para crianças chamado Big Art for Little Artists que atraiu uma grande quantidade de crianças das categorias C2, D e E e respectivas famílias a um espaço em que anteriormente não entravam crianças. No espaço de um ano, a percentagem de visitantes das categorias C2, D e E aumentou de 15% para 36%. Vou analisar brevemente um caso importante que exemplifica o processo de mudança dos NML e que demonstra a nossa maneira de pensar. Em Agosto de 2007 abrimos ao público pela primeira vez o International Slavery Museum (ISM). Este museu constitui um desafio, não só às ortodoxias dos NML, mas também, de um modo geral, às do meio museológico. Em Setembro fiz uma apresentação em Londres em que levantava a questão “Serão os museus sobre histórias ou sobre objectos?”. O que afirmei sobre o ISM foi: Este tipo de museu é revelador de uma certa postura. É a ocasião em que o museu toma uma posição ideológica, em que o mito de museu como espaço neutro se desfaz… em que os museus e a política se encontram e se juntam… Este museu pretende transformar os visitantes, sugerindolhes novas maneiras de pensar, revelando frequentemente verdades escondidas, pondo à vista a imoralidade cometida por seres humanos e sugerindo, implícita ou explicitamente, que tem de haver uma alternativa. Este museu permite-nos explorar o racismo e a intolerância, e não é de somenos importância que isso tenha sido feito dando uma outra voz à comunidade negra de Liverpool. Pretendemos que o museu tenha um impacto social significativo, que desafie a ignorância e a incompreensão, o que levará os habitantes de Liverpool a reflectir de novo sobre a sua identidade e a sua história. Contudo, queremos ir para além da história e encarar as muitas heranças modernas do comércio de escravos – diversidade, cooperação, criatividade, vitalidade, tolerância, novas alterações demográficas a nível internacional, e também racismo, hostilidade descriminação e direitos humanos, e a situação económica da África e das Caraíbas… Queremos abordar assuntos como a liberdade – o que é que a liberdade representa para nós? Como podemos defender a liberdade? Não há de certeza questões mais importantes do que estas no mundo de hoje. Mais ainda, não limitaremos o debate aos legados do tráfico transatlântico de escravos, mas abordaremos vários assuntos relacionados com a escravatura num âmbito mais alargado, tal como tráfico sexual e exploração do trabalho infantil. Desafiaremos os nossos visitantes, e ninguém sairá do museu sem uma melhor compreensão e uma sensibilidade mais apurada sobre o funcionamento da sociedade contemporânea e das relações internacionais a uma escala global. A nossa esperança é que o museu ajude a criar novos sentimentos de tolerância, de respeito, e que possa contribuir para sarar feridas e promover a reconciliação.

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Pode-se concluir por estas palavras a razão pela qual a equipa executiva do NML não fica de todo impressionada pela posição do Presidente do nosso Grupo de Amigos (que, não por acaso, recusou qualquer espécie de apoio financeiro ao International Slavery Museum). Se este museu representa um corte drástico com o modelo do museu tradicional, estou em crer que a visão estratégica dos NML assenta porém nos mesmos fundamentos. Concluindo, acho que os museus têm de ser locais de permanente mudança e evolução, o que está subjacente a todas as estratégias de mudança. No dia em que se começar a pensar que tudo está resolvido, temos então motivos de preocupação. Lembro-me que quando frequentei o curso Getty sobre Gestão e Liderança, em Berkeley, na Califórnia, em 1996, pediram a mim e aos outros participantes que colocasse‑mos a um professor daquela universidade um problema relevante para que ele pudesse aconselhar-nos. O problema que coloquei relacionava-se com o facto de sentir que nos Tyne & Wear Museums tínhamos evoluído tanto e em tão pouco tempo, que receava que a satisfação com o trabalho feito levassa à perda de ímpeto. Isto de algum modo confundiu o professor, que acabou por responder “Se é isso que o preocupa, afinal qual é o problema?”. Claro que havia muito mais para fazer em Tyne & Wear, e 12 anos depois o processo ainda está por terminar. Na realidade há sempre mais alguma coisa para mudar, mais alguma coisa para realizar. Reconhecer isto é já dar um grande passo no sentido de levar a cabo uma estratégia de mudança.

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Fig. 1 Porta dos Jerónimos Acesso ao vestíbulo entre o edifício Villanueva e o edifício Jerónimos © Archivo fotográfico. Museo Nacional del Prado, Madrid

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Judith Ara Lázaro Processo de Modernização do Museu Nacional do Prado, 2002-2008

O processo de modernização do Museu Nacional do Prado 2002-2008, pretende dar uma visão geral das mudanças sofridas pelo Museu neste período de um ponto de vista plurifacetado: a ampliação de espaços, a alteração da sua natureza jurídica, a actividade e o serviço. Na esteira dos grandes museus do mundo ocidental, o Museu do Prado adoptou um modelo de gestão inovador no panorama espanhol, mantendo o seu carácter irrenunciavelmente público mas permitindo a abertura à participação da sociedade civil com a finalidade de melhor dar resposta aos desafios da sociedade actual. The process of modernization that the Prado Museum is undergoing during the 2002 2008 period, aims at giving a general vision on the changes that have taken place during this time: the expansion of the spaces, the change in its juridical figure and also in its activities and services. The Prado Museum, following the path taken by the great western museums, has adopted a management model that is new for the Spanish scene, keeping its inalienable public character, but facilitating its opening to the participation of the civil society so that it can take up on all the challenges of our society.

PALAVRAS-CHAVE: Museologia, ampliação, modernização, modelo de gestão.

Coordenadora do Departamento de Conservação, Museu Nacional do Prado judith.ara@museodelprado.es

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A

s mudanças experimentadas pelos museus nas últimas décadas, deixando de ser solitários redutos de memória para se converterem em centros vitais e activos da cultura e da educação, colocaram em evidência a transformação do conceito desta instituição e o novo papel desempenhado na sociedade contemporânea. No auge do crescente interesse pelas manifestações culturais das sociedades democráticas, a grande facilidade de acesso e de comunicação à informação provocada pelo desenvolvimento tecnológico, o bem-estar económico alcançado no mundo ocidental e a disponibilização de mais tempo de ócio por parte dos cidadãos, transformaram os museus em centros de atracção turística de primeira ordem, lugares de encontro de multidões de diferentes origens e culturas, tendo sido obrigados a repensar a sua posição perante os novos desafios e exigências da sociedade. Estas instituições multiplicaram-se nas nossas cidades e territórios, actuando como renovadoras da arquitectura, da paisagem, do tecido urbano, tendo contribuído em numerosas ocasiões para impulsionar o crescimento económico e social das zonas deprimidas, impondo‑se como símbolos do novo desenvolvimento cultural e económico de um bairro, comunidade, região ou país. É surpreendente que com tantas mudanças as funções do museu continuem a ser quase as mesmas, ainda que o difícil equilíbrio de forças que mantêm as colecções, o espaço e o público tenha conferido desde as últimas décadas do século XX o protagonismo ao visitante, aumentando o seu raio de acção para conceitos globais como património e comunicação. Deste modo, os museus tentam definir a sua missão e reforçar a identidade num espectro alargado de centros similares, mas não museais; preocupam-se em impulsionar políticas de comunicação e de marca que os diferenciem; assim tratam de encontrar modelos procedentes do mundo empresarial que os tornem mais eficazes na sua gestão. Fruto do compromisso que estas instituições adquiriram com os cidadãos, as suas necessidades são cada vez maiores, ao passo que os recursos públicos necessários para as atender se tornam mais escassos. Por este motivo, foi necessário redireccionar a abertura da sua tradicionalmente escassa margem de manobra em direcção a outros aliados da sociedade civil, capazes de trazer fundos que permitam concretizar os seus ambiciosos programas de actividades. O Museu Nacional do Prado, à semelhança de outros grandes museus do mundo ocidental, teve responder a estes desafios. Desde a década de 70 do século passado que se têm vindo a atender de forma parcial as necessidades do Museu relativas à conservação, espaços, estrutura e serviços, mas não tinha sido possível planear globalmente a instituição, a sua identidade, objectivos e fins, nem se havia conseguido implementar um modelo de gestão capaz de responder aos novos tempos. Há ainda que sublinhar que o Museu do Prado devia tomar em linha de conta uma série de condicionantes para a mudança, decorrentes da extraordinária qualidade das suas colecções e da origem destas; da consciencialização do que representa o Museu para a história e a sociedade espanholas; do carácter necessariamente internacional das suas relações, sem esquecer a sua inevitável dimensão nacional; e de um estatuto jurídico‑administrativo específico, alterado em diferentes ocasiões no decorrer da sua história, e que marcou os limites da sua capacidade de actuação económico-administrativa. O novo Prado surgiu da reflexão em torno de três pilares básicos: a ampliação, a modernização, e ainda a programação e o serviço. Vejamos agora em que consistiu cada uma delas.

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Fig. 2 Campus Prado Edifícios circundantes do Museu do Prado, que se incluem no denominado Campus Prado © Archivo fotográfico. Museo Nacional del Prado, Madrid

A ampliação de Rafael Moneo e o “Campus Prado” Como chamou a atenção Deyan Sudjic no seu ensaio “Construindo sobre a história” (SUDJIC 2007), são poucos os edifícios históricos em que podemos encontrar a identificação que existe no Museu do Prado entre a construção criada por Juan de Villanueva e as colecções que alberga. Talvez por ter sido uma encomenda régia, erigido para ser Museu, não de arte, mas sim de ciências naturais, pela extraordinária envolvente em que se localiza, junto ao Jardim Botânico e próximo de outras instituições ilustres como a Real Academia de Língua e os antigos edifícios do Palácio del Buen Retiro, ou por ser a obra mais importante da arquitectura neoclássica espanhola. A verdade é que o edifício de Villanueva foi o digníssimo depositário dos tesouros do Prado, tendo marcado em larga medida a sua evolução.

As conquistas e ampliações ao longo da sua quase bicentenária história, respeitaram sempre o projecto original, mimetizando o edifício principal de Villanueva. Porém, e apesar do crescimento espacial do Prado em cada uma das sucessivas extensões, o Museu continuava a ocupar espaços públicos apesar do contínuo enriquecimento das colecções, dos novos critérios de distribuição e exigência museográficas, crescimento e desenvolvimento dos serviços, tanto internos como externos, especialmente as incipientes prestações ao público e, sobretudo, as necessidades de espaço requeridas pela sua nova função educativa. A ampliação devia responder a estas necessidades da instituição e também solucionar as novas exigências suscitadas pelo fenómeno das exposições temporárias e o turismo de massas, reclamando espaços alternativos para o seu próprio crescimento sem interferir na via diária da instituição. Rafael Moneo executou a melhor ampliação possível, assumindo o desafio de confrontar a sua obra com a de Villanueva.

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Fig. 3 Vestíbulo de comunicação entre o edifício Villanueva e o edifício Jerónimos. Loja e café Prado ao fundo. © Archivo fotográfico. Museo Nacional del Prado, Madrid

Com o seu edifício realiza um extraordinário exercício de recuperação da obra do grande arquitecto espanhol do século XVIII, ao mesmo tempo que concebe a sua própria obra sobre a base histórica do Palácio do Bom Retiro e o claustro dos Jerónimos, realçando uma vez mais a unidade entre as origens do Museu e as colecções, e a história de Espanha. Em números gerais, a ampliação representou a incorporação de mais 50% de espaço (22.040 m² de construção, dos quais 15.715 m² são área útil e mais de 13.363 m² de urbanização) dos 28.600 m² de área útil do edifício existente, distribuídos entre o edifício que se situa em torno ao claustro da igreja dos Jerónimos e a construção semi-exenta que liga o novo edifício ao de Villanueva através do eixo transversal que se inicia na Porta de Velázquez. Com a passagem de serviços deste último às novas dependências da igreja dos Jerónimos, recuperaram-se outros 3.000 m² de espaço público no edifício principal, entre salas de exposição e espaços de descanso, alguns dos quais estão já abertos, como é o caso das galerias baixas de grande beleza e que formam a fachada poente ao Paseo del Prado. Simultaneamente, o conceito de ampliação transcende a sua dimensão meramente espacial ao ser denominado

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“Campus Prado”, incorporando entre zonas ajardinadas os edifícios que confinam com o Museu à semelhança de um campus universitário. Trata-se de um complexo de edifícios históricos que faziam parte do antigo Palácio del Buen Retiro: o Salão de Baile, que inclui o edifício do Casón e o antigo Salão de Reinos, assim como o actual edifício de oficinas na Rua Ruiz de Alarcón, nas traseiras do edifício de Villanueva. Importa ressaltar como parte da ampliação, embora não faça fisicamente parte do “Campus Prado”, a Casa dos Águila, anexo do Museu situado a 110 km de Madrid, em Ávila. O “Campus Prado” estabelece ainda uma relação entre o edifício e a função, pretendendo transmitir claridade e racionalização à própria organização. Assim, o edifício Villanueva fica fundamentalmente reservado à função que o caracterizou primordialmente ao longo da sua história: a exposição permanente. O edifício dos Jerónimos dedica cinco dos seus sete andares a serviços internos. Entre estes, encontram-se tanto espaços dedicados à conservação, seja para o armazenamento das obras de arte (Depósitos para as obras de arte, salas de embalagem, equipamento de carga e descarga coberto), estudo das colecções de obras sobre


papel (Gabinete de Desenho e Gravuras), espaço para o seu tratamento físico, Departamentos de Restauro (pintura, escultura e papel), Gabinete Técnico e Laboratório de Química e Biologia. Dos andares de acesso público, dois encerram as novas salas de exposições temporárias, e o terceiro inclui um espaço altamente representativo por constituir o coração da ampliação: o Claustro da Igreja dos Jerónimos, que data do século XVII, e que após a sua desmontagem, restauro e reinstalação no edifício construído por Moneo, foi recuperado para ser contemplado. O edifício que liga o antigo e novo Museu, alberga os espaços públicos que o Museu tanto precisava para acolhimento, atendimento e circulação dos visitantes e usuários, auditório, livraria, loja e cafetaria. Concebido como uma grande praça pública, este espaço recebe luz natural e organiza-se em torno da abside e do espaço basilical de Villanueva, por baixo de um pátio ajardinado que se prolonga no Jardim Botânico numa linha de fuga realçada no projecto de Moneo. Para completar o seu trabalho, Moneo solicitou a colaboração da escultora Cristina Iglesias, autora da porta do edifício dos Jerónimos, contraponto paisagístico e passagem de entrada que relaciona o parterre desenhado pelo arquitecto navarro no exterior e interior do edifício. Dos restantes edifícios que integram o “Campus Prado”, o Casón del Buen Retiro, inaugurado no mês de Fevereiro, após o restauro da abóbada de Luca Giordano e reabilitação do mesmo, será o centro científico e académico do Museu a partir de finais de 2008, momento em que terá lugar a mudança dos conservadores das colecções, da Biblioteca, e do serviço de Documentação e Arquivo para o Centro de Estudos do Casón, reunindo num mesmo espaço o trabalho de investigação e a formação de novos investigadores e profissionais da história da arte e dos museus, através da criação da Escola do Prado. O projecto para a reabilitação do Salón de Reinos, actual Museu do Exército, em processo de transição para a sua nova sede no Alcázar de Toledo, encontra-se em fase de reflexão e será inserido na planificação correspondente ao próximo Plano Plurianual 2009-2012. Por último, a Casa dos Águila estará pronta uma vez que esteja finalizado o restauro do edifício e jardim, assim como a conclusão das obras do novo edifício anexo para acolher o Centro de Gestão de Depósitos, destinado à conservação, estudo e restauro das mais de 3.300 obras que o Museu do Prado tem depositadas em instituições espalhadas por todo o território nacional e nas representações diplomáticas no estrangeiro. Será também a primeira sede do Programa de exposições com fundos do próprio Museu em itinerância pelo território espanhol, conhecido como “Prado Itinerante”.

Natureza jurídica do Prado e modernização da sua estrutura O processo de modernização do Prado não teria sido possível sem um novo modelo de gestão e uma actualização da estrutura organizativa. Inspirando-se no êxito obtido por alguns museus do mundo ocidental que nos precederam nesta transformação, a nova estrutura jurídico-organizativa procurou dotar o Museu de uma maior autonomia e independência administrativas, e flexibilidade para utilizar os recursos que gera em benefício próprio, assim como facilitar a aproximação ao financiamento procedente do sector privado. O novo regulamento da natureza jurídica do Museu é fruto do consenso alargado, acordado em 1995 entre os grandes partidos do Estado, para apoiar a transformação do primeiro Museu nacional num museu do século XXI. Esta deliberação adquiriu força de lei com a promulgação da Lei 46/2003 de 25 de Novembro, reguladora do Museu Nacional do Prado. Na Exposição de razões referem-se alguns dos motivos que a inspiram: o cumprimento das suas funções e da sua alta missão de Estado, assim como a melhoria do serviço público e da investigação, traduzida na qualidade e número das suas actividades. De entre os primeiros encontram-se: a protecção, conservação e enriquecimento dos bens do Património histórico espanhol adstritos ao Museu; uma exposição organizada das colecções para usufruto e estudo; o acesso ao seu conhecimento tanto pelo investigador como pelo público em geral, e o incentivo aos programas de educação, investigação e divulgação cultural; o desenvolvimento de relações de colaboração e intercâmbio com outras instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais, para o melhor cumprimento dos seus fins; trabalhos de assessoria ou de carácter científico e técnico quando assim seja requerido por órgãos competentes do Estado, ou quando se estabeleça um convénio ou contrato com outras entidades públicas e privadas. Na citada lei, o museu é definido como um organismo público de carácter especial, com um regime jurídico de direito público, mas com possibilidade de actuação no quadro do direito privado; um regime de pessoal baseado no direito laboral; um regime orçamental específico, determinado pelo Ministério das Finanças e submetido ao controle permanente da Administração Geral do Estado, e um regime de contratação submetido à legislação geral com algumas especificidades próprias para as actividades comerciais, entre as quais se encontram as exposições temporárias e a exploração de serviços comerciais e de direitos de propriedade intelectual e industrial.

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Fig. 4 Claustro Edifício Jerónimos © Archivo fotográfico. Museo Nacional del Prado, Madrid

Em simultâneo, a Lei estabelece a sua direcção, com três órgãos dirigentes: o Presidente, o Patronato e o Director, colocados sob a protecção do alto patronato de Suas Majestades os Reis de Espanha. O Presidente do Organismo é o Ministro da Cultura, mantendo-se assim a tutela do Museu no Ministério de origem. O Patronato, órgão colegial, reconhece a importância de uma instituição assente no museu desde 1912, formado por representantes de várias administrações públicas, assim como por pessoas de reconhecido prestígio procedentes das áreas mais diversas, mas unidas pelo seu saber e apoio à cultura, e em particular ao Museu. Finalmente, a figura do Director, que recupera uma maior protagonismo na organização como o gestor e coordenador geral, reconhecendo-se pela primeira vez a sua forma de nomeação e separação do cargo, que assim ganha maior segurança jurídica.

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Sob a tutela da Direcção criou-se uma estrutura paralela formada por duas Direcções Conjuntas, uma de Conservação e Investigação, e outra de Administração, assim como um Gabinete de Comunicação, em que se hierarquizam e estruturam as diferentes áreas e serviços do Museu. Mais concretamente, a Direcção Adjunta de Conservação e Investigação controla e coordena as Áreas de Conservação das colecções, o Departamento de Restauro e as Áreas de gestão dependentes da Coordenação geral de Conservação. Pela sua parte, a Direcção Adjunta de Administração ocupa-se das Áreas de gestão económico-financeira, Recursos Humanos, e Segurança, contando ainda com uma Coordenação geral de Obras e Manutenção, Informática e Atenção ao público. Por último, o Gabinete de Comunicação assiste o Director nas suas relações nacionais e internacionais na procura de patrocínios e na política de comunicação.


Fig. 5 Sala das musas Edifício Villanueva © Archivo fotográfico. Museo Nacional del Prado, Madrid

Perante os limites de recursos do Estado para gerir os vários organismos públicos, o Museu optou para a sua gestão por uma via intermédia entre o mundo privado e o público, destacando-se o primeiro, mas preservando acima de tudo a sua identidade institucional e a natureza pública. Este carácter misto aplicado a uma instituição pública no campo da cultura, resulta como algo de estranho no panorama espanhol e exige um exercício de maturidade por parte da Instituição, consciente de que uma maior autonomia deve ser acompanhada por uma maior responsabilidade da respectiva gestão orçamental. Para preservar este equilíbrio é feita uma distinção entre recursos públicos, que custeiam as despesas estruturais do organismo, e os recursos da sociedade civil, que se destinam a satisfazer os denominados gastos conjunturais.

Desta forma, o Estado continua a assegurar as funções de carácter público (conservação dos bens culturais, exposição, aquisição de novas obras, pessoal e manutenção dos espaços), ao passo que a sociedade civil se associa às actividades que reforçam a presença do Museu na sociedade (exposições temporárias, actividades de divulgação, etc.). As linhas directivas, a planificação dos objectivos e a coordenação das actividades das Áreas do Museu para este período foram enunciadas numa série de documentos: “Rumo a um novo Prado, 2002-2004” e “Plano de Actividades 2005-2008”, que expressam a responsabilidade e transparência que o Museu procurou assumir nesta etapa de modernização. Profundamente ligados às Áreas estruturais do Museu, são um exemplo de planificação plurianual e guia de trabalho.

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O Plano financeiro, que acompanha o “Plano de Actuação”, demonstra, por sua vez, a viabilidade do projecto e a aposta do museu num modelo de gestão sustentável a curto, médio e longo prazo.

A actividade e o serviço público como princípios orientadores do Plano de Actividades 2005-2008 A actividade e o serviço público encontram-se entre os principais objectivos do Museu do Prado, estando presentes tanto na Lei, como no seu Plano de Actividades. Se na Lei esses objectivos são enunciados sob a forma de uma declaração de princípios, no Plano materializam‑se nos compromissos que definem as diversas áreas de trabalho e serviços do Museu. Para os anos 2005-2008, a actividade e o serviço centraram-se fundamentalmente em dez programas prioritários que marcam a vocação cultural, científica e educativa do Museu. Em simultâneo, estabelece-se o modelo de cooperação e colaboração com as restantes Administrações públicas, assim como com outras instituições nacionais e internacionais para alcançar esses objectivos, criando-se diferentes fórmulas para favorecer a abertura do Museu à participação activa da sociedade civil. Entre os programas dedicados à vocação cultural, científica e educativa do Museu, encontram-se os programas de Conservação e Restauro das colecções, reordenação destas nos novos espaços como consequência da ampliação, e o aumento da visibilidade das mesmas; o estudo, documentação e catalogação dos bens adstritos ao seu património, assim como o acesso em rede a esta informação. Do mesmo modo, tem um grande incremento o programa de exposições temporárias, que profundamente enraizado nas colecções do Museu, aborda os mais diversos aspectos destas (antologias de artistas, contextualizações, temas específicos, descobertas recentes, revisão de géneros, teses, etc.). Mais concretamente, os programas de Educação e a Escola do Prado fazem referência ao Museu enquanto centro de investigação e formação de futuros profissionais, e ao seu trabalho de difusão e divulgação cultural do património que reúne. Para acentuar a dimensão nacional do museu e a colaboração com outras Administrações públicas, criou-se o programa Prado Itinerante para exposições temporárias nas várias Comunidades Autónomas do Estado espanhol, e impulsionam-se os contactos com organismos de investigação e museus nacionais e estrangeiros através de Convénios e Acordos de Colaboração e intercâmbio. Por fim, o Programa de Patrocínio e Doações abre o museu à participação da sociedade civil, enquanto a atenção aos

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usuários e visitantes é garantida pela nova página Web do museu “Prado.es” e pelo programa “Prado Aberto”, pensados para melhorar o serviço ao público e para o desenvolvimento de estratégias de captação e fidelização. Ao nível interno, o novo modelo de gestão adoptado confere maior autonomia. As diferentes áreas do Museu têm trabalhado sobretudo no desenvolvimento da estrutura funcional, programação de actividades e controlo do orçamento, assumindo assim certa capacidade de decisão na hora de definir os diferentes objectivos e projectos. As áreas dependentes da Coordenação geral de Conservação – Registo e Documentação, Exposições, Educação e Biblioteca –, fixaram entre os seus objectivos comuns, alcançar uma maior qualidade do serviço e aumentar o rigor profissional, revendo e ajustando os diferentes procedimentos e normas de actuação, e delimitando as funções do pessoal a seu cargo. Por outro lado, todas as áreas estão empenhadas no incremento de aplicação de ferramentas informáticas de gestão que contribuam para uma maior eficácia do trabalho e que favoreçam a acessibilidade pública. Se de entre as primeiras transformações que sofreu o Museu na Coordenação geral de Conservação se destacou a criação da Divisão de Exposições temporárias. Chegou agora a vez das Divisões de Registo, Documentação e Biblioteca, após a revolução que decorreu da adaptação à sociedade da informação à sociedade do conhecimento. Ao estarem associadas à gestão da informação sobre o Museu e às colecções, assim como ao auxílio nos recursos e instrumentos para a investigação, estas divisões terão um papel determinante no futuro Centro de Estudos e Escola do Prado do Cason del Buen Retiro. A Divisão de Educação, a meio caminho entre a divulgação cultural e a especialização científica, terá também um papel mais decisivo a curto prazo. A Divisão de Registo e Documentação tem respondido a importantes desafios, continuando a prosseguir nesse caminho, como sejam o equipamento e organização dos novos depósitos do edifício dos Jerónimos. São depósitos ordenados por colecções (pintura, escultura, têxteis, artes decorativas, obras com suporte em papel, fotografia), equipados com mobiliário e sistemas de controlo da última geração, com vista à adequada conservação das obras (6.785,24 m²); espaços de circulação devidamente identificados, cais de carga cobertos ou sala de embalagem, montacargas de grande capacidade e peso, e facilidade de acesso e comunicação vertical entre serviços internos de conservação, assim como entre os edifícios Villanueva e Jerónimos, através de galerias subterrâneas que permitem a comunicação interna sem interferir com os horários da abertura ao público do Museu. Paralelamente, ocupou-se também da revisão dos procedimentos dos serviços de


Fig. 6 Sala de exposições C Edifício Jerónimos © Archivo fotográfico. Museo Nacional del Prado, Madrid

Registo de obras de arte, Depósito e Arquivo, assim como da sua informatização, obtendo uma maior racionalização e eficácia no trabalho dos técnicos. A Divisão tem sempre procurado encontrar critérios de qualidade e a melhoria de serviço na coordenação com as deslocações das obras que implicam outras Divisões do Museu, como tem também exercido um controlo mais apertado das contratações externas. O serviço de Depósitos encerrou esta primeira fase de revisão das obras que o Museu tem depositadas em várias instituições das Comunidades Autónomas do Estado, procedendo a campanhas de restauro, à fotografia e à reordenação dos fundos depositados por vezes com critérios muito diferentes dos que actualmente se utilizam. Por seu lado, o Serviço de Documentação e Arquivo é uma área nova que se quer apresentar como Centro de conhecimento do Museu. Para tal, está a trabalhar na

revisão da documentação existente sobre as colecções nas bases de dados já operativas da instituição, assim como nos inventário, catálogos e documentos de arquivo, sobretudo das obras disponíveis para consulta através da Web, facilitando-se a consulta on-line de imagens, dados e documentos, de forma contextualizada e dinâmica. Graças a este trabalho, o Museu adquire segurança jurídica sobre os seus fundos e encontraram-se obras cujo paradeiro era desconhecido. A Divisão de Exposições tem uma actividade intensa, estando encarregada de gerir a exposição permanente, a exposição temporária, as exposições do Museu no exterior e o Programa “Prado Itinerante”. Estreitamente vinculadas à exposição permanente e temporária, as exposições temporárias dispõem agora de quatro salas, três de 400m²

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Fig. 7 Parterre sobre o vestíbulo de comunicação entre os edifícios de Villanueva e Jerónimos. © Archivo fotográfico. Museo Nacional del Prado, Madrid

e uma de 90m², não contando com as novas salas para a exposição permanente, de uso ambivalente, como são a Sala das Musas, o vestíbulo de Velázquez, o Claustro e as Galerias recuperadas com as obras do edifício Villanueva. Tal como a Divisão de Registo e Documentação, a Divisão de Exposições ocupou-se em melhorar os aspectos relacionados com a conservação das obras e respectiva exposição, assim como a comunicação e coordenação de actividades com os Departamento de Restauro e com as Divisões de Colecções, Obras e Conservação, Segurança e com o Gabinete de Relações Externas. Um outro esforço realizado foi o do controle da qualidade dos serviços prestados por empresas externas, assim como a elaboração de protocolos escritos para a contratação pública destes serviços. A sua esfera de actuação foi alargada através da participação de artistas contemporâneos que reflectiram sobre o Museu do Prado,

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ou que o tomam como objecto da sua criação artística, incorporando tecnologias e novas formas de aprendizagem visual como complemento indispensável à exposição. A variedade e êxito do programa de exposições contribuiu para a criação de uma imagem corporativa do museu. A Divisão de Biblioteca responde às necessidades da comunidade científica do Prado e de investigadores externos. O seu acervo cresceu nos últimos anos com a aquisição de bibliotecas particulares especializadas, contando já com mais de 55.000 exemplares, com um núcleo importante de fundo antigo de obras sobre a tratadística de arquitectura e arte. A sua actualização informatizada, a consulta dos seus fundos na Web, assim como os novos serviços de subscrições electrónicas e intercâmbio reservam-lhe um papel fundamental no Centro de Estudos e Escola do Prado.


Fig. 8 Fachada ocidental do Casón del Buen Retiro © Archivo fotográfico. Museo Nacional del Prado, Madrid

O Serviço de Educação do Prado dedica-se à assistência a todo o tipo de públicos (infantil, escolar, universitários, adultos, idosos, com necessidades especiais, professores, grupos, desfavorecidos...), concebendo mais de 30 actividades diferentes adaptadas às necessidades de cada tipo de visitantes, tanto no museu como fora dele. Para a Área da Educação foi de extrema importância a recuperação do espaço do Auditório, em que se retomaram os habituais ciclos de conferências, cursos, apresentações, etc., para além de se ter iniciado a programação de música, cinema e teatro. Também a Área da Educação leva os seus programas às Comunidades Autónomas através da realização de visitas e conferências para a difusão das colecções no âmbito das exposições temporárias e do programa “Prado Itinerante”. A elaboração de material educativo para professores e alunos,

disponíveis no Canal de Educação da página Web do museu, constitui igualmente uma frente de trabalho assinalável. O Museu do Prado recebeu em 2007 o maior número de visitantes alguma vez registado na sua história: 2.652.924, mais 23% do que em 2006. São muitas as melhorias que se efectuaram nos últimos anos em atenção ao público visitante. Em primeiro lugar, prolongou-se o horário de abertura do museu entre as 9.00 e as 20.00, sendo o museu europeu aberto ao público durante mais horas. Instituiu‑se um novo regime de gratuitidade nas duas últimas horas de Terça-feira a Sábado, e nas últimas três horas dos Domingos, o que facilita a distribuição equilibrada do público ao longo da semana e, desta forma, uma visita com maior qualidade. Criaram-se serviços de utilidade e conforto para o visitante (bengaleiro, informação, idiomas, audioguias,

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folhetos informativos, sinaléticas, etc.), assim como zonas de descanso, livraria-loja e cafetaria. Especializaram-se as bilheteiras e as várias portas de acesso ao museu, tendo-se recuperando a Porta Velázquez para uso público, e criouse ainda um call-centre para atendimento ao público, possibilitar a compra antecipada de bilhetes e dar a conhecer os serviços complementares e actividades do Museu. Todo este processo foi reforçado com a criação de uma Divisão específica vocacionada para melhorar a visita e facilitar a comunicação com o visitante, desenvolvendo anualmente estudos de público para conhecer o seu perfil e interesses, assim como o grau de satisfação da visita. Antes de terminar, importa destacar a criação da nova página Web do museu, oficialmente apresentada em Outubro de 2007, e a criação de um Boletim electrónico ou Newsletter gratuita, disponível em espanhol e em inglês. Um exemplo mais da consciência do serviço público do Museu foram as jornadas de portas abertas organizadas para dar a conhecer a ampliação de Rafael Moneo antes da inauguração oficial, entre os dias 28 de Abril e 1 de Julho de 2007, e a chamada de atenção para o Cason del Buen Retiro e o restauro da sua abóbada central. O sucesso das Jornadas ficou patente no número de visitantes, que chegou aos 98.400. O Casón del Buen Retiro esteve aberto ao público até ao dia 4 de Maio, encerrando nesta data, para voltar a abrir ao público, posteriormente e com um novo horário de visitas. Por fim, gostaríamos de referir o trabalho de duas instituições estreitamente ligadas ao museu: a Sociedade Museu do Prado Divulgação e a Fundação dos Amigos do Museu do Prado.

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A Sociedade Museu do Prado Divulgação, criada a 22 de Dezembro de 2006 e tendo iniciado a sua actividade em 2007, tem como funções contribuir para o conhecimento do Museu e das suas colecções, assim como gerar uma maior fonte de financiamentos próprios para o Museu. Entre as suas funções há que destacar a criação da imagem corporativa da Instituição e a gestão dos serviços de loja e cafetaria, assim como outras tarefas que o museu considere oportuno incumbir-lhe. Por seu turno, a Fundação dos Amigos do Museu do Prado tem um passado assinalável no trabalho e apoio ao Museu. Criada em 1980, dedica o seu esforço e recursos à promoção e estímulo das acções culturais que tenham relação com a missão e actividade do Museu. Assim, a sua última tarefa foi a coordenação e edição da Enciclopédia do Museu do Prado, única nas suas características, disponível para consulta na página Web do museu. O caminho percorrido pelo Prado nestes últimos anos parece ter ultrapassado com êxito as primeiras fases da sua ampliação e modernização. Cabe agora redigir e aprovar o segundo Plano de Actividades Plurianual para 2009-2012, que fixará as linhas directrizes da política museológica do Prado nos próximos anos. Avançar com a ampliação, abrir ao público o Casón del Buen Retiro e a Escola do Prado, terminar a Casa de los Águila, definir o projecto de reabilitação do antigo Salón de Reinos do Palácio do Bom Retiro, consolidar o modelo de gestão e estabelecer novas relações com os Museus do eixo Prado-Recoletos, são alguns dos desafios que se colocam no seu futuro mais imediato.


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Fig. 1 Reales Atarazanas de Barcelona Fachada principal

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Roger Marcet i Barbé Práticas de gestão do Museu Marítimo de Barcelona O Museu Marítimo de Barcelona, tal como o conhecemos hoje, é o resultado de mais de 75 anos plenos de ideias, projectos, sonhos, indivíduos empreendedores e, sobretudo, história. O grande projecto de futuro é o restauro definitivo do conjunto arquitectónico e a consolidação do Museu Marítimo como um grande centro de referência da cultura marítima do Mediterrâneo. Para tal, foi criado um Consórcio, através do qual se assegura o compromisso das administrações públicas no futuro do museu. Do mesmo modo, foi criada a Associação de Amigos do Museu de forma a garantir a participação da sociedade civil no projecto do museu e a criação de uma Fundação Privada aberta ao sector privado (basicamente, empresas portuárias). The Museu Marítim de Barcelona, as it is currently known, is the result of more than 75 years of great ideas, projects, skilled staff and, especially, history. The main project for the future is the complete restoration of the architectural complex and the consolidation of the Museu Marítim de Barcelona as one of the most important reference centres in the maritime culture of the Mediterranean. On these grounds, and in order to improve the institution’s management, a Consortium was created. Thus the engagement of public administrations is assured, as well as the museum’s budget. The Association of Friends of the Museum was created to guarantee the participation of civil society in the Museum project. In addition the constitution of a Private Foundation favoured the involvement of the private sector, specifically companies related to the port.

PALAVRAS-CHAVE: Gestão, projectos, renovação, administração pública, sector privado, sociedade civil.

Director geral Consorci de les Drassanes Reials i Museu Marítim de Barcelona | marcetbr@diba.cat

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odemos definir o conceito de gestão como “um conjunto de processos levados a cabo para alcançar um determinado fim”, ou como o de “dar os passos necessários para resolver um assunto” ou “dirigir ou administrar uma empresa ou negócio”.

Apesar das tentativas para distinguir os conceitos de administração, direcção e gestão, constatamos que os três conceitos são similares, embora nalguns países o conceito de administração esteja mais relacionado com a gestão de organismos públicos e o de gestão com empresas. O importante é, como referiu o professor Koontz, que os três conceitos estejam relacionados com a “programação, organização, direcção, avaliação e controlo”. Daremos especial atenção ao conceito de gestão, que inclui as noções de administração e direcção e que, a nosso ver, está mais próximo do universo museológico. De acordo com a definição da professora Júlia Mora, podemos falar em dois tipos de gestão: a gestão linear ou tradicional, segundo a qual gestão é sinónimo de administração. Entende-se, neste caso, a gestão como o “conjunto de diligências para desenvolver um processo ou para chegar a um determinado fim”, e direcção ou governo por tudo o que é realizado para colocar as varias áreas em funcionamento, com capacidade para gerar processos de transformação da realidade. Em outro plano, com uma conotação mais actualizada ou de direcção, entendese gestão como a “função institucional global e integradora de todas as forças que configuram uma organização”. Segundo esta consideração, o conceito de gestão centra-se na direcção e liderança. O objectivo da gestão é, em última análise, a capacidade de organizar uma empresa ou actividade em todos os seus aspectos – meios técnicos, recursos humanos, económicos, actividades, comunicação, etc., de forma a alcançar os objectivos traçados para a organização. Estes objectivos não se alcançam a qualquer preço e estão directamente ligados aos meios seguidos para os alcançar. Assim, gerir não é só alcançar objectivos, mas alcançá-los utilizando os melhores meios que estão ao nosso alcance, garantindo o maior rendimento possível. Não cabe agora desenvolver a discussão em torno ao conceito geral de gestão, já que o nosso propósito é centrarmo-nos na aplicação do conceito de gestão nos museus, analisando o caso particular dos museus marítimos.

1. A gestão nos museus A gestão de museus é um tema recorrente, bastante debatido, e que tem levado à discussão sobre quais os modelos de gestão mais adequados. Até há relativamente pouco tempo, quinze, vinte anos, a maioria dos museus era gerida de forma directa por parte da administração, maneira tradicional de gerir os museus e também os serviços públicos, em geral. Este sistema comportava um modelo de gestão afastado da realidade, unificador ou centralista e, sobretudo, distante, por não ter em conta um dos factores mais importantes da gestão de museus: o público. O público e a nova realidade social levaram a que os museus aplicassem reformas de fundo na sua forma de gestão. Paralelamente, as administrações, certamente pressionadas pela sociedade em geral, actuaram no sentido de pôr em prática os mecanismos necessários para a reforma da concepção, dos fins e das práticas de gestão dos museus e, tendo em conta a lógica das administrações, definiu-se e aplicou-se uma nova legislação. A verdade é que a concepção de museu e o papel que deve cumprir na sociedade têm‑se alterado bastante. Os museus era vistos como centros fechados sobre si mesmos, cuja máxima preocupação eram as colecções, sem mais nenhum objectivo do que

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conservá-las e estudá-las, pensados exclusivamente para uma pequena elite da sociedade, sem vontade de os abrir ao público em geral. Esta ideia foi progressivamente posta de parte, tendo evoluído para uma concepção de museu em que a conservação e o estudo das colecções, – uma parte importante do património cultural da sociedade –, se destinam ao usufruto, conhecimento e educação do público. Penso que agora vivemos um momento em que a sociedade exige que os museus sejam centros dinâmicos, que irradiem conhecimento, e que sejam espaços lúdicos, indispensáveis para o conhecimento e para a educação da sociedade, espaços em que o público interage com os objectos expostos e participa na exposição, não sendo meros espectadores, que interpretem e aprendam com o que se exibe. O visitante deve sair do museu com mais perguntas do que respostas e, ao mesmo tempo, criar uma relação com uma ou várias das peças expostas. Esta mudança na concepção dos museus impôs mais exigências por parte do poder público, visto como equipamento cultural. Suscitou questões tão polémicas como: os museus devem ou não ser o mais rentáveis possível, e o número de visitantes deve ser o único factor a ter em conta na avaliação do funcionamento de um museu? Não é este o momento de responder a estas perguntas, mas de facto é que é necessário encontrar uma forma de gestão que responda às necessidades de cada museu. Relação, o que é determinante para melhorar esta relação museusociedade. Um dos esforços a que os museus se dedicam cada vez mais é o de conquistar públicos, competindo com outros equipamentos culturais, o que faz com as práticas de gestão tenham um papel determinante, já que é muito importante que esta gestão nos permita tomar decisões adequadas, rápidas e coerentes com a missão e os objectivos do museu.

Fig. 2 Reales Atarazanas de Barcelona

Fig. 3 O Museo del Mare (MUMA) Génova

2. O Museu Marítimo de Barcelona Antes de entrar nas práticas de gestão propriamente ditas, gostava de fazer uma breve introdução para apresentar o mais significativo do Museu Marítimo de Barcelona e do seu conteúdo – o Arsenal Real, para melhor compreendermos a evolução do museu teve e o papel que tem no tema desta comunicação. O Arsenal Real de Barcelona O Museu situa-se no edifício do Arsenal Real de Barcelona, um dos mais notáveis monumentos arquitectónicos do gótico civil catalão e um dos maiores e mais bem conservados conjuntos de arquitectura gótica civil de uso industrial do mundo.

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Fig. 4 Entrada do Museu Marítimo de Barcelona

Situado na zona portuária de Barcelona, no final das Ramblas, o Arsenal Real foi concebido como arsenal de galeras, espaço de construção naval, de reparação e manutenção de embarcações, e também de serviço à frota de guerra da Coroa de Aragão. Neste lugar construíam-se galeras, depositavam-se e armazenavam‑se os preparativos, armas, víveres, etc. Foi utilizado como arsenal da marinha até à primeira metade do século XVIII. Em 1745 deixou, oficialmente, de ter funções relacionadas com a marinha, passando a ser utilizado como quartel militar. O conjunto tem mais de 700 anos de história. As origens do edifício são imprecisas. A primeira menção documental existente remonta a 1243, mas a sua construção desenvolveu-se entre 1283 e 1390. Posteriormente, o edifício sofreu diversas ampliações até meados do século XVIII. As diferentes ocupações mantiveram a estrutura básica do edifício, preservando-se praticamente o seu aspecto original. O conjunto arquitectónico tem 18.000 m2 de planta, dos quais 13.000 estão reservados a espaços expositivos do Museu e a serviços, correspondendo o restante às muralhas e jardins exteriores.

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O Museu O museu Marítimo de Barcelona, tal como hoje o conhecemos, é o resultado de mais de 75 anos cheios de ideias, projectos, sonhos, gente empreendedora e, sobretudo, história. A história que forma este património marítimo, forjado durante séculos na navegação catalã, teve um papel muito importante na expansão territorial e no comércio. Hoje, a cidade de Barcelona em particular, e a Catalunha em geral, dispõem de um museu com uma base sólida, centrada na preservação, difusão e investigação de todo o legado cultural. É, pois, um equipamento que conta com uma excelente projecção internacional, sobretudo no âmbito do Mediterrâneo. Um museu que iniciou a sua aventura durante o primeiro terço do século XX, no qual assentam as primeiras propostas de concepção de um espaço para ilustrar a marinha catalã por meio de objectos, documentos e modelos de embarcações. Pessoas e instituições tiveram um papel determinante no lançamento destes primeiros pilares, num período difícil, com ideais que a Guerra Civil espanhola rompeu, mas com sonhos e propostas que chegaram aos nossos dias.


Fig. 5 Fachada principal do museu com a lanterna do farol de Sant Sebastià de Calella de Palafrugell (Girona)

O principal antecedente do Museu Marítimo de Barcelona assenta na criação, em 1929, da Junta do Patronato do Instituto Náutico do Mediterrâneo que, a partir de 1931, impulsionou a criação de um museu naval e de uma biblioteca especializada. Em 1936 criou-se o Museu Marítimo da Catalunha, dirigido pela Generalitat da Catalunha, que passou a ocupar uma parte do edifício medieval. Entre 1936 e 1939, o museu desempenhou uma valiosa e arriscada acção de salvamento do património marítimo catalão, só podendo abrir as suas portas a 18 de Janeiro de 1941 como Museu Marítimo de Barcelona, gerido pela Diputación Provincial de Barcelona. As colecções Dentro deste magnífico edifício encontram-se as colecções formadas por um conjunto de objectos e documentos que reflectem a diversidade das actividades marítimas, a saber: a navegação comercial, a pesca, a construção naval, as ciências náuticas, a história marítima ou as técnicas de construção de navios. O museu alberga cartas náuticas, instrumentos de navegação, pintura, modelos de embarcações, ex-votos, réplicas de embarcações à escala real, documentos fotográficos, entre outros.

Deste espólio, destaca-se a reprodução, à escala real, da galera real ou capitânia da Guerra de Lepanto construída, tal como a sua réplica, nas naves do Arsenal Real. O museu conta ainda com um conjunto de diversas embarcações tradicionais e históricas, destacando-se o pailebote Santa Eulália, ancorado no porto de Barcelona. Esta embarcação, construída em 1918 e recuperada pelo museu, representa a ligação do museu à água e, com as suas navegações, a todo o Mediterrâneo. A conservação e o desenvolvimento do museu ficaram garantidos a 1 de Fevereiro de 1993 com a constituição do Consórcio do Arsenal de Barcelona, fruto do acordo entre a Câmara Municipal (proprietária do edifício desde 1935), a Diputación (proprietária das colecções do Museu Marítimo desde 1939) e a Autoridade Portuária de Barcelona. O grande projecto de futuro do museu é o restauro completo do conjunto arquitectónico e a consolidação do Museu Marítimo como um grande centro de referência da cultura marítima do Mediterrâneo.

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Fig. 6 Modelo de instrução da Escuela Náutica de Barcelona

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Fig. 7 Série de ex-votos pertencentes às colecções do Museu Marítimo de Barcelona

Os serviços Conscientes de que estamos num mundo em rápida transformação, o conceito de museu também se alterará. Deste modo o conceito de identidade e os materiais ou elementos do passado que se conservam não são capazes, por si só, de transmitir emoções e reacções ao público actual. Esta alteração deve-se não só a uma clivagem de gerações, mas também ao fenómeno da migração mundial e da globalização. Todas estas questões obrigam a repensar a forma de divulgar e ensinar, de uma maneira atractiva e cativante a identidade própria de uma sociedade, de um território ou unicamente do conteúdo temático do museu, de forma a criar mecanismos que captem o interesse do visitante. Como chegar aos diversos públicos de tão diversas culturas diferentes? A que mecanismos recorrer para que o público se sinta atraído pelas colecções e o espólio do museu? O museu deve, para além de enriquecer o seu espólio, alargar os serviços que presta aos visitantes e ao público em geral. É nesta linha que o Museu Marítimo de Barcelona tem trabalhado, melhorando a qualidade dos seus serviços. Para tal, o museu tem procurado apoio junto de outras instituições ou empresas, capazes de

prestar estes serviços de uma forma mais completa e que congregue um maior número de pessoas. Afastando-nos das questões teóricas da prestação de serviços, gostaria de apresentar uma série de exemplos que o Museu Marítimo de Barcelona tem desenvolvido. Antes de mais, importa distinguir os serviços atribuídos ao pessoal do museu que, por diversas razões, nomeadamente a eficácia e a eficiência, se exteriorizaram, e não privatizaram. É importante salientar esta diferença. Entendemos por “privatizar” quando deixa de existir qualquer tipo de responsabilidade directa para com o serviço ou actuação que até ao momento era da responsabilidade do museu. “Exteriorizar” quando um serviço continua a ser do museu e a estar sob a sua responsabilidade (planificação, controle e avaliação). No caso dos serviços exteriorizados, encontram-se o restaurante, a cafetaria, segurança, serviços de limpeza, a monitorização das actividades, edição de publicações, entre outros. Dos serviços não exteriorizados fazem parte o restauro e a conservação preventiva, o restauro das embarcações, o centro de recursos educativos do mar, o centro de documentação marítima, as exposições temporárias e itinerantes, os serviços de atendimento ao público, o aluguer do espaço para eventos, etc.

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Nestes casos, o Museu Marítimo de Barcelona procura a colaboração de outras instituições, por forma a garantir uma maior eficácia nos serviços prestados. Vejamos alguns exemplos mais significativos. • Biblioteca:

assinatura de um acordo com as universidades espanholas para integrar a biblioteca do museu no Consórcio de Bibliotecas Universitárias da Catalunha

• Centro de Documentação: integração e, nalguns casos,

fusão com os fundos de outras instituições, como é o caso de todo o arquivo histórico, documental e fotográfico do Porto de Barcelona • Serviço Educativo: oferta conjunta do programa

educativo de todos os museus e centros marítimos da Catalunha De todos os serviços oferecidos pelo Museu Marítimo de Barcelona, importa destacar o caso dos guias multimédia, objecto de um grande esforço de actualização nestes últimos 12 anos. Em 1995, criou-se o primeiro sistema de audioguias do Museu, por infravermelhos. Este sistema funcionava dentro de um circuito de visita preestabelecido pelo museu. Estes equipamentos ofereciam mais informação sobre as colecções, em cinco línguas diferentes. Em 2000 este sistema foi substituído por um sistema de MP3, o que permitiu ao visitante ter mais informação sobre as colecções e a opção de seleccionar o percurso de visita a partir dos seus pontos de interesse. Ao mesmo tempo, utilizou-se este sistema para visitas de grupo. Aumentou-se para sete o número de idiomas disponíveis. Em 2007 alterou-se totalmente a filosofia dos audioguias, passando-se a utilizar um sistema de PDA, que permite oferecer, para além do áudio, imagens e vídeos das obras seleccionadas e informação completa sobre um objecto. Permite ainda que o visitante se registe como usuário do museu, dando o seu endereço de e-mail e telemóvel, permitindo assim que a informação previamente guardada seja transmitida para o computador pessoal do visitante. Ao mesmo tempo, o museu envia um SMS de agradecimento para o telemóvel do visitante, que fica registado na base de dados do museu, passando a receber, a partir desse momento, informação sobre as actividades e novidades do museu. Este sistema permitiu estabelecer um percurso que inclui 60 pontos de informação, em nove línguas diferentes, agrupados em nove temas distintos. Cada ponto de informação contém informação, imagens, textos e conteúdos extra, isto é, conteúdos multimédia. Este sistema está perfeitamente adaptado a visitantes com deficiência auditiva, contendo vídeos explicativos em linguagem gestual. Para terminar, estes equipamentos aumentam as estatísticas de visitantes.

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Dados significativos do Museu Marítimo de Barcelona: Distribuição de áreas: Área total do Museu (a.b.t.): 18.000 m2 Área destinada à exposição permanente: 10.000 m2 Área dos três espaços destinados às exposições temporárias: 1.800 m2 Área dos serviços para visitantes: 2.500 m2 Área dos serviços administrativos do museu: 1.000 m2 Área dos espaços de circulação do púbico: 2.700 m2 Recursos humanos do museu (2008): Total: 139 pessoas 89 Funcionários do museu 35 Pessoas de serviços externos ao museu 15 Bolseiros e/ou estagiários Orçamento (2008): Total: 9.883.856 Euros 7.933.856 Euros para funcionamento corrente 1.900.000 Euros para a realização de obras de recuperação no edifício 31% das receitas são geradas pelo próprio museu Visitantes (2007): Total: 1.099.494 Público 332.404 Visitantes (exposições permanente e temporária) 406.203 Visitantes virtuais 360.887 Usuários dos serviços do museu Horário: 361 dias por ano, das 10 às 20 horas Dados mais significativos Como dados mais significativos dos últimos anos, do ponto de vista de gestão, importa destacar: • A Criação do Consórcio (1993): assegura o compromisso

das administrações públicas com o museu, assegurando a disponibilização de 70% das receitas do orçamento anual e das receitas extraordinárias para o restauro do Arsenal. • Associação dos Amigos do Museu: conta com cerca

de 400 sócios e garante a participação da sociedade civil no projecto do museu, incluindo voluntários para o desenvolvimento das actividades internas. • Criação da Fundação Privada (2006): criada pelo próprio

Consórcio e a funcionar paralelamente a este, a Fundação garante a participação do sector privado (basicamente empresas portuárias) no projecto de futuro do museu, com uma contribuição económica destinada aos projectos singulares do museu.


• O controlo e a política de recursos humanos estavam totalmente centralizados num serviço da Diputación • A única gestão era a técnica • Incapacidade total para gerar receitas, tanto por impedimentos administrativos como pela falta total de incentivos • Ausência de autonomia

A partir de 1985, houve uma vontade clara de alterar esta situação, incentivando a profissionalização do pessoal, maior abertura face ao exterior, com as responsabilidades mais compartimentadas, deixando-se para trás a gestão unipessoal, lançaram-se novos projectos e programas de actuação. Fig. 8 Réplica a tamanho natural da galera real que participou na Batalha de Lepanto e que tal como a original foi construída nas Reales Atarazanas de Barcelona

3. Práticas de gestão do Museu Marítimo de Barcelona Para compreender o museu actual, temos que fazer um retrocesso, de cerca de oitenta anos, partindo do ponto de vista da gestão. Para entendermos melhor esta evolução, dividimos a história do museu em três partes: 1929-1941 Nascimento e criação De 1929 (ano em que o museu foi criado e que tinha pouco mais do que algumas vitrinas com colecções da Escola Náutica de Barcelona) a 1936, o museu foi gerido pela junta do Patronato do Instituto Náutico do Mediterrâneo. Em 1936, com a passagem das colecções para o edifício do Arsenal Real, a Generalitat da Catalunha cria o Museu Marítimo da Catalunha. Ao longo deste período o museu desempenha um papel muito importante na recuperação e protecção do património marítimo, fundamentalmente o da marinha mercante e os trabalhos no mar, como é o caso da pesca. Processo interrompido durante a Guerra Civil de Espanha. 1941-1993 Formação e consolidação Em Janeiro de 1941, o museu reabre ao público como Museu Marítimo de Barcelona, sob a gestão directa da Diputación de Barcelona. Esta gestão directa implicou: • Dependência total de uma administração para a gestão e

obtenção de recursos • Tomada de decisões muito lenta e totalmente externa ao

museu. Era uma dependência, de uma secção, de um serviço e de uma área que funcionava noutro edifício da cidade

1993-2008 Alterações e ruptura Em Fevereiro de 1993 o Museu Marítimo de Barcelona é incorporado numa entidade pública de carácter associativo e dotada de personalidade jurídica própria, denominada Consórcio do Arsenal de Barcelona, cujo objectivo era gerir a totalidade do Arsenal Real e o Museu Marítimo. Este Consórcio foi estabelecido pela Diputación de Barcelona, proprietária das colecções, a Câmara de Barcelona, proprietária do edifício, e a Autoridade Portuária de Barcelona. O novo modelo de gestão permitiu: • Autonomia para a gestão e obtenção de recursos • Rápida tomada de decisões • Política e controlo dos recursos humanos • Gestão global • Capacidade para gerar recursos • Autonomia total

Neste período há duas etapas distintas: A primeira etapa, de 1993 a 1999, pode ser definida como a que o objectivo foi reafirmar a existência do Consórcio e de duas realidades distintas entre o Consórcio e o Museu, que levou, inclusive, a que o museu adoptasse imagens diferentes (logótipos), mas seguindo a linha iniciada, em 1985, de maior especialização, profissionalização das suas actividades e início de programas de comunicação, divulgação, etc. Nesta fase, cabe assinalar a concessão de uma parte da exposição permanente do museu (cerca de metade) para exploração a uma empresa, como de um serviço, passando a exercer-se uma Gestão partilhada, que se materializou numa exposição denominada “A Grande Aventura do Mar” que foi uma das primeiras a introduzir sistemas interactivos, audioguias, efeitos especiais e teatralização na visita.

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Ao mesmo tempo, o museu pôde abrir novos espaços expositivos, graças à unificação da gestão do Arsenal Real. Na etapa actual, de 1999 a 2008, o objectivo fundamental tem sido qualificar o Museu e considerar o Consórcio como um mero instrumento de gestão, uniformizando-se numa só imagem. Graças ao estímulo dado na anterior etapa foi possível consolidar e iniciar novos processos. Importa destacar a criação de redes de cooperação, tanto na Catalunha como no Mediterrâneo, uma nova política de pessoal, que levou a um aumento considerável, de 35, em 1999, para 89, em 2008; uma maior profissionalização, repartindo-se as responsabilidades, destacando-se ainda o aumento considerável do orçamento e a criação de um complexo de extensão do museu à água; a criação de uma fundação privada e de um observatório de investigação com a Universidade de Barcelona.

4. Desafio / Missão O desafio que se assumiu é o de converter o Museu Marítimo e as Drassanes Reials de Barcelona num centro cultural de referência na conservação, divulgação e recuperação do património e da cultura marítima do Mediterrâneo. Objectivos Para tal, traçaram-se quatro objectivos, ainda vigentes: 1. Adaptar o MMB às necessidades da sociedade actual, o que implicou:

Fig. 9 Pailebot “Santa Eulália” construido en 1919 e propriedade do Museu Marítimo de Barcelona

• Converter um museu fechado num museu mais

aberto • Passar de serviço interno, a responer às exigências

externas • Alteração na estrutura organizativa: Direcção geral,

direcção técnica, direcção administrativa e direcção de desenvolvimento e marketing. • Criação

de novos centros e departamentos, nomeadamente: centro de documentação marítima, centro de recursos educativos do mar, centro de conservação preventiva e restauro, departamento de investigação, departamento de comunicação e departamento de desenvolvimento e promoção económica.

• Alteração de cultura: introdução do conceito de

rentabilidade nas actividades, tomando em linha de conta os custos e os ingressos de visitantes; introdução do conceito de comercialização; introdução do conceito de “dar contas por ser público”, de trabalho transversal, de gestão do orçamento, em função do plano de actividades,

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de promoção económica e introdução da noção de Responsabilidade Social Corporativa nas actividades desenvolvidas.

5. Consórcio entre o Arsenal Real e o Museu Marítimo de Barcelona

2. Fazer do Museu Marítimo um museu mais interactivo

No âmbito desta política de unificação, em 2004 alterou‑se o nome do consórcio, completando-o com a designação de Museu Marítimo, assim como os seus estatutos, para melhor reflectir essa vontade. O Consórcio do Arsenal Real e do Museu Marítimo de Barcelona é uma entidade pública de carácter associativo, dotada de personalidade jurídica própria e constituída por diversas administrações públicas para finalidades de interesse comum, ou com entidades privadas sem fins lucrativos, que têm finalidades de interesse público concorrentes com as das entidades locais. O consórcio foi estabelecido pela Diputación de Barcelona, proprietária das colecções e a Câmara Municipal de Barcelona, proprietária do edifício e do Porto de Barcelona. O consórcio é dirigido por dois tipos diferentes de órgãos do governo e de gestão – os colegiais, formado pelo Conselho Geral – órgão superior do governo, formado por doze vogais (6 da Diputación, três da Câmara, dois do Porto e pelo Director Geral) e uma Comissão Executiva e os unipessoais formados pelo Presidente e pelo Director Geral. Ao nível da gestão, a Direcção Geral conta com três Direcções, que se dividem em Departamentos e Unidades.

• Redacção de um projecto de ideias (1.999) • Realização de estudos de públicos (1.999-2.001) • Criação de um projecto museológico e museográfico

(2.001-2.002) • Início de uma política de exposições temporárias (2003-...) • Promoção da reflexão e debate em torno de temas

relacionados com o património (2004-...) • Incentivo à investigação (2004-...) • Introdução de novas tecnologias (2007-...)

3. Sair do continente • Criação de uma ligação do museu ao mar com embarcações para navegação • Criação de redes de cooperação estáveis, a nível local e internacional • Participação em projectos europeus • Captação do interesse do sector privado mediante a criação de uma fundação privada • Integração da a sociedade civil no projecto do museu, através do Grupo de Amigos

4. Adequação do continente, o Arsenal Real • Redacção de um plano director (1999) • Redacção do projecto executivo (2001) • Execução da primeira e segunda fases (2002-2003) • Execução da terceira fase (2008-2009)

A concretização destes objectivos levou a: uma maior participação dos vários departamentos do museu na tomada de decisões; à tomada de consciência de que em qualquer actividade do museu a sua imagem está em jogo; a procurar a rentabilidade económica, social e cultural em todos os projectos (educativos, de formação, de investigação, etc.), à comercialização dos serviços do museu (aluguer dos espaços - cafetaria, loja, exposições itinerantes, centro de documentação, centro de actividades educativas, extensão à água, etc.). A concretização destes objectivos foi possível graças à uniformização da imagem do museu, à unidade de critérios da equipa da direcção e à integração de todo o pessoal no projecto de futuro.

Financiamento A maioria das receitas provém, fundamentalmente, das instituições associadas (69%), da Diputación Provincial de Barcelona, cerca de 61%, da Câmara, 3% e do Porto de Barcelona, 7%. Os restantes 31% provêm do rendimento dos serviços do museu, das taxas e ingressos de bilheteira, de subvenções, patrocínios, entre outros. Outros instrumentos de gestão do Consórcio Desde que foi constituído, o Consórcio criou instrumentos para conseguir alcançar objectivos específicos, dos quais importa destacar: A criação de uma fundação privada, em Fevereiro de 2006, “Fundació Museu Marítim y Drassanes Reales de Barcelona”. Esta Fundação tem por missão: • Ser o instrumento de abertura do museu à participação e

à colaboração do mundo empresarial, muito especialmente com os agentes dinamizadores do Porto de Barcelona. • Fomentar e divulgar o museu.

Actualmente o seu orçamento destina-se a financiar unicamente projectos singulares do museu tentando estabelecer parcerias para outros programas. A fundação é constituída por 8 instituições públicas e 17 privadas.

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Fig. 10 Dependências doCentro de Documentação do Museu Marítimo de Barcelona

Fig. 11 Guia Multimédia do Museu Marítimo de Barcelona

Ao longo de 2007 criou-se, em conjunto com a Universidade de Barcelona, o “Observatório Permanente de História e Cultura Marítima do Mediterrâneo”, cuja função é fomentar estudos e trabalhos relacionados com temas marítimos, náuticos e com as ciências sociais. O objectivo do Consórcio com o Observatório é estar perto de uma instituição de investigação, que fomente os estudos neste campo, para acompanhar e validar os trabalhos que o museu realiza e conseguir apoios no campo da investigação.

desenvolvimento global sustentável, expressando, em última análise, o seu compromisso com a sociedade. Como vimos anteriormente, a missão dos museus não variou ao longo dos tempos, mas sim a forma de concretização dessa missão, que tem de responder aos novos desafios e às novas necessidades. O museu ideal do futuro, e para o qual o Museu Marítimo de Barcelona está a trabalhar, é o museu sustentável, não só do ponto de vista económico, mas também como elemento necessário face à procura social.

Em 2007 o Museu Marítimo criou a “Rede de Museus Marítimos da costa catalã”, herdeira da comissão denominada “O mar dos Museus”, formada por 15 museus e centros que trabalham temas marítimos da costa catalã. O objectivo desta Rede é potenciar a cultura marítima e optimizar os seus recursos. Em 1998, por incentivo do Museu Marítimo de Barcelona, criou-se a Associação de Museus Marítimos do Mediterrâneo (AMMM). Esta associação tem personalidade jurídica própria e reúne os museus marítimos e todas as instituições gestoras de património e entidades culturais que desenvolvam a sua actividade no âmbito do património marítimo da bacia do Mediterrâneo. Actualmente, esta associação conta com cerca de 50 membros.

6. Responsabilidade Social Esta alteração nas práticas de gestão e na relação com a sociedade comportou também uma maior interacção com esta, introduzindo a noção de Responsabilidade Social em muitas actividades desenvolvidas pelo museu. Este conceito, embora não seja novo, vai de encontro à possibilidade do museu interagir com a sociedade e contribuir para o

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O museu sustentável caracteriza-se pela criação de valor a três níveis: Económico – desenvolvimento local, social – educação, dinamização, intercâmbio e meio ambiente – favorecendo políticas de preservação do meio ambiente, como os eco museus. Neste sentido, o Museu tem trabalhado nas seguintes linhas: • Museu acessível e sustentável • Museu que tem uma relação com a comunidade envolvente • Museu vinculado à cidade • Museu solidário

7. Conclusão Com esta forma de gestão o museu conseguiu: Estabilizar o número de visitantes, consolidar o orçamento, restaurar, em diversas fases, o Arsenal Real de Barcelona, desenvolver uma política de investigação e uma política de aquisições, que permitiram aumentar os fundos do museu, sobretudo documentais, procedentes de empresas ligadas à indústria marítima e ao Porto de Barcelona.


Conselho Geral Comissão Executiva Presidência Vice-Presidências Direcção Geral Fundação Museu Marítimo

Direcção Administrativa

Unidades de gestão e manutenção

Direcção Marketing e desenvolvimento

Direcção Técnica

Centro de recursos Educativos

Centro de documentação

Comunicação

Fig. 13 Organigrama

Uma política de actividades que assegurou uma programação anual estável, que permitiu ainda que, ao longo destes anos, se desenvolvesse um programa anual de actividades estável, que levou ao reconhecimento do museu como Museu de Interesse Nacional, pela Generalitat da Catalunha, e ao seu papel de Órgão consultor da Generalitat nas declarações de Bens de Interesse Cultural, sendo distinguido com a nomeação de Museu do Ano.

Marítimo de Barcelona trabalha para ir mais além da sua actividade museológica. O seu compromisso básico é o de assumir uma atitude crítica face a si próprio e analisar formas que lhe permitam devolver à sociedade o conhecimento e privilégios de que dispõe. De futuro, o seu projecto baseia-se em três grandes linhas de actuação, directamente associadas a elementos da sua personalidade: • Inovação na procura constante de novos sistemas que

Para terminar, diríamos que a gestão é um tema muito importante no futuro de qualquer instituição e, no caso de um museu, condiciona totalmente o seu crescimento e posicionamento na sociedade. As práticas de gestão, a direcção e a equipa de pessoal são essenciais para que o futuro de um museu chegue a bom porto, não ficando à deriva ou amarrado a um pontão sem destino. De entre os seus objectivos incontornáveis (a conservação, protecção e difusão do património cultural), o Museu

melhorem a relação do museu com o público • Compromisso com a sociedade que o rodeia • Cooperação e trabalho em rede, em colaboração com

outras instituições e entidades Como objectivos mais concretos e alcançáveis, a curto e médio prazo, o museu pretende: Remodelar o Arsenal Real, desenhar uma nova museografia e consolidar os programas iniciados.

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recens천es


O Conselho de Cultura da Junta de Andaluzía e o Getty Conservation Institute apresentam publicações sobre o restauro de retábulos em madeira policromada

Antonio Martín Pradas Historiador de Arte Documental, Área de Investigação e Normalização Documental, Centro de Documentação do IAPH, Sevilha

No passado dia 28 de Junho de 2007, teve lugar na sede do Instituto Andaluz do Património Histórico (IAPH) a apresentação dos materiais de divulgação elaborados a partir do Seminário “Metodologias para a conservação de retábulos em madeira policromada”, resultado da estreita colaboração institucional entre o Getty Conservation Institute (GCI) e o IAPH, e graças ao convénio de colaboração estabelecido entre o GCI e o Conselho de Cultura da Junta de Andaluzia.

Património Histórico (IAPH) e Françoise Descamps, representante do Director do Getty Conservation Institute (GCI).

A apresentação foi estruturada em duas partes distintas, tendo-se iniciado a sessão com a apresentação institucional, a que se seguiram umas jornadas técnicas. Para assistir a este evento, foram convidados um número elevado de profissionais do ramo, dependentes tanto da administração pública, como também do sector privado.

Nas jornadas técnicas foram apresentados cada um dos materiais de divulgação por parte dos membros da equipa de trabalho: Lorenzo Pérez del Campo, Chefe do Centro de Intervenção do IAPH, apresentou o Seminário e as conclusões a que se chegou, definindo os referidos materiais. Françoise Descamps ficou encarregada de expor o Documento do Retábulo, a Monografia com os casos e o corpus bibliográfico”. María José González López (Universidade de Sevilha) apresentou a concepção, estrutura e desenvolvimento do equipamento multimédia e Antonio Martín Pradas (do Centro de Documentação do IAPH) centrou‑se sobre os conteúdos, aplicações e processo de navegação em CD-Rom e Web.

À primeira parte assistiram, e tomaram a palavra, Jesús Romero Benífez, Director Geral dos Bens Culturais; Román Fernández-Baca Casares, Director do Instituto Andaluz do

Estes materiais são o resultado de um conhecimento mais aprofundado e da partilha e apreensão de experiências afins no âmbito da comunidade científica internacional.

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Por este motivo, em Maio de 2002, o IAPH e o GCI organizaram também, em Sevilha, um Seminário sobre “Metodologia para a conservação de retábulos de madeira policromada”. O objectivo foi debater e propor uma metodologia comum para a preservação dos retábulos numa abordagem que contemplasse todos os seus aspectos técnicos e conceptuais. Dada a importância que tem o retábulo como tipologia representativa e muito desenvolvida no contexto cultural latino, seleccionaram-se 15 casos de estudo entre vários países europeus e sul-americanos, mais concretamente: Bélgica, Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Espanha, Estados Unidos, Itália, México, Peru e Portugal. Com vista a poder-se reflectir sobre e promover a diversidade das disciplinas relacionadas com a conservação de retábulos, e dada a importância da interacção entre os diferentes agentes que intervêm na tomada de decisão, foi dada especial atenção à reunião de um grupo de pessoas em que estivessem representados profissionais de organismos públicos e privados, para além das disciplinas directamente


e indirectamente relacionadas com o mundo dos retábulos, destacando‑se os arquitectos, conservadoresrestauradores, historiadores de arte, entre outros. A intenção foi a de que cada um deles, pelo seu envolvimento a diferentes níveis, trouxesse exemplos significativos aplicados aos modelos de gestão e processos de participação. Como consequência da linha de colaboração estabelecida entre estes dois institutos em torno do Retábulo, e com o objectivo de divulgar as conclusões destas Jornadas, produziram-se determinados instrumentos ou produtos de divulgação considerados necessários para normalizar, difundir e facilitar o conhecimento e a intervenção nestes bens culturais ao técnico encarregue do seu estudo, intervenção, gestão, protecção ou manutenção, sem esquecer o pessoal em formação e os que se relacionam tangencialmente com estes bens. Definiram-se três ferramentas diferentes que, quando articuladas, se tornam essenciais: a publicação das conclusões do Semnário “Documento de Retábulos, 2002”, publicado em espanhol, inglês e francês; a publicação da monografia “Metodologia para a conservação de retábulos em madeira policromada” com o “Corpus bibliográfico de retábulos” e, por último, o CD-Rom e a versão On‑line “Retábulo. Terminologia básica ilustrada”, publicadas em espanhol e inglês e disponíveis nas páginas Web do IAPH e do GCI. O “Documento de Retábulos, 2002”, redigido em forma de carta, é uma importante contribuição em matéria de intervenção de retábulos, já que inclui tanto os princípios como as recomendações para o seu estudo e actuação. Este documento foi apresentado a nível internacional à comunidade científica nas 11ª Jornadas de estudo da SFIIC – “Retables in situ”

– celebradas em Lille (França), em Junho de 2004. A Monografia agrupa os casos seleccionados dos diferentes países para a respectiva apresentação no Seminário sob a forma de artigos; esta publicação inclui ainda um Corpus Bibliográfico em formato multimédia que reúne uma série de títulos bibliográficos úteis para o estudo dos retábulos de diferentes pontos de vista, histórico e construtivo, instrumentos de investigação, agentes de deterioração ou técnicas de intervenção. Por fim, o CD-Rom em PC, MAC e Web “Retábulo. Terminologia básica ilustrada”, é o produto que reúne o material necessário para descrever um retábulo segundo a sua morfologia, sistema construtivo, materiais e técnicas, permitindo efectuar pesquisas por ordem alfabética ou hierárquica em inglês-espanhol, com tradução para italiano, francês e português.

Esta divisão ajuda a completar os aspectos que para nós são prioritários, sem impedir, contudo, que no futuro possa ser implementado com a introdução de novos termos e outros aspectos não incluídos nesta compilação. Na sua concepção e realização privilegiou-se um carácter marcadamente pedagógico e didáctico, pelo que acreditamos que os materiais apresentados em breve se tornarão ferramentas essenciais no desenvolvimento de qualquer tipo de trabalho relacionado com os retábulos, assim como no desenrolar da actividade profissional dos especialistas da matéria e dos novos profissionais que no futuro iniciem e executem projectos ou actuações nestes bens tão complexos como excepcionais.

Esta compilação terminológica ilustrada pretende colmatar, em parte, a lacuna detectada pelos especialistas dedicados ao estudo e à intervenção dos retábulos, e propor através de uma representação hierárquica e alfabética o vocabulário-base para definir morfológica, material e tecnicamente um retábulo, pretendendo-se estabelecer uma linguagem básica, normalizada e comum a partir da visualização de imagens, gráficos ou desenhos dos termos seleccionados. Sem ser um produto fechado, este glossário, sem definições, transforma‑se numa ferramenta epecífica que permite descrever formal, material e tecnicamente o aspecto decorativo dos retábulos. A estrutura apresenta áreas temáticas organizadas em torno de três secções: 1ª Secção: Descrição morfológica 2ª Secção: Materiais 3ª Secção: Técnicas e sistemas construtivos

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recensões


Pollock, Griselda, Zemans, Joyce (ed.) Museums after modernism: strategies of engagement

Oxford: Blackwell Publishers, 2007

Leonor de Oliveira Mestre em Museologia e Património pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL)

O título desta compilação de vários artigos indica-nos que se trata de mais um contributo para a reflexão sobre a actividade museológica na segunda metade do século XX1. Centrado na actualidade, Museums after modernism (expressão originalmente utilizada por Eileen Hooper-Greenhill sob a forma de pergunta) assume criticamente uma conjuntura que tem condicionado a definição do museu como “espaço público”2, mas sem renunciar ao antecedente histórico que determinou uma discussão global sobre o papel que o museu deve desempenhar na sociedade - a II Guerra Mundial: “After modernism – which implies both after and toward its destructive apogee at Auschwitz (…) – does not imply, therefore, supersession or emancipation from either modernity’s aspirations for enlightenment, rationality, and democracy, or from its inevitable contradictions created by structural inequity and perversion of instrumental reason. Nor are we released from the burden of constant confrontation with

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capitalist modernity in its colonial, neo-colonial, fascist, and now global phases. Coming after implies that we are chained to a critical reflexivity of modernity’s defining problematics and of its ideals”3. O peso da História, os seus traumas e o falhanço dos seus idealismos, que abalaram uma visão positiva do Mundo e do Homem, devem ser “matéria” dos museus, que sentiram também essas transformações na teoria e prática museológicas. Os museus incorporaram as rupturas (políticas, sociais, económicas, filosóficas) originadas pela II Guerra Mundial, passando de “templo” a “forum”. Tal como Javier Gómez Martínez sintetiza, “el viaje fue el que se produjo desde una museología centrada en los objectos hasta otra centrada en el público”4. À semelhança de monografias e de manuais entretanto publicados, Museums after modernism centra-se na relação museu/ público ou na sua

interacção através de “strategies of engagement”, que podemos traduzir por estratégias de compromisso. Sendo, portanto, tema recorrente em várias publicações, a monografia que tratamos não deixa, no entanto, de acrescentar um outro dado a essa relação, que pode ser discutível – “real moral responsibilities”: “If, in its bourgeois incarnation, the museum is a creator of the image of history, and if, in its potentially critical form, the museum can be the perpetually changing creator of the necessary space of reflection in which to know our histories in the thinking, political, and ethical mind, what immorality is it to deny history in its living contradictions?”5. Elaborado a partir de uma colaboração entre a York University de Toronto, a Ontario Association of Art Galleries e o AHRC Center for Cultural Analysis, Theory and History da Universidade de Leeds, que foi precedida por um simpósio internacional em Toronto em 2002, Museums after modernism


presta homenagem e alarga, através dos seus vários artigos, a abordagem às questões levantadas por Judith Mastai, falecida em 2001. Especializada na área da educação, Mastai foi responsável pela programação e pelos serviços educativos da Vancouver Gallery (1987-1994) e da Art Gallery of Ontario (1997-2000). Nesta publicação apresenta-se e defende-se um museu que promova a reflexão (polémica), o questionamento e também a autocrítica, que procure atrair/ chegar a públicos anteriormente marginalizados, apontando-se a multidisciplinaridade como método para abrir o museu a uma discussão mais alargada sobre a realidade humana. Deste modo, os vários capítulos de Museums after modernism reflectem sobre temas como a problematização dos axiomas da História de Arte na análise de determinado corpus, que deve ter também em conta “the meaning of the artist as a cultural figure today” (Mieke Bal – Women’s Rembrandt); a representação das populações nativas nos museus nacionais e a apresentação da arte produzida por artistas contemporâneos de ascendência indígena (Gerald McMaster – Museums and the Native Voice); a renovação do sector de arte africana nas exposições permanentes de grandes museus (Ruth B. Phillips – Exhibiting Africa after Modernism: Globalization, Pluralism, and the Persistent Paradigms of Art and Artifact); exposições sobre acontecimentos “traumáticos” como o Holocausto, o desenraizamento e a guerra (Reesa Greenberg – Mirroring Evil, Evil Mirrored: Timing, Trauma, and Temporary Exhibitions; Vera Frenkel - A Place for Uncertainty: Towards a New Kind of Museum e Mary Kelly The Ballad of Kastriot Rexhepi: Notes on Gesture, Medium and Mediation)6; a promoção por parte do Estado de exposições itinerantes, a diversificação de modelos expositivos e o contacto directo com as populações (Ulla

Arnell – Riksutställningar: Swedish Traveling Exhibitions); a intervenção de jovens da comunidade local na programação do museu (Reframing participation in the Museum: A Syncopated Discussion); o movimento feminista e os museus e a criação de espaços alternativos aos locais expositivos de dominância masculina e ocidental (Juli Carson - On discourse as Monument: Institutional Spaces and Feminist Problematics). Podemos dizer que o que está em causa é a efectiva democratização dos museus, proclamada após a Revolução Francesa mas sempre protelada pelo poder estabelecido. O primeiro artigo de Museums after modernism, Un-Framing the Modern: Critical Space/ Public Possibility, de Griselda Pollock, uma das editoras desta publicação, define e complexifica a noção de “depois do modernismo”, integrando a actividade museológica nesse contexto cultural, estabelecendo assim uma síntese do conjunto de textos que constituem esta publicação. Pollock pretende “denunciar” o carácter institucional do museu e, por conseguinte, o modo como determina, activamente e em correspondência com as várias etapas da civilização humana e as novas exigências culturais e sociais, a relação público/ arte.

O exemplo americano serve a argumentação de Pollock que confronta em determinada passagem o impulso inovador de Barr e o convencionalismo dos trustees do MoMA. Neste caso é o interesse privado/ capitalista que se sobrepõe, introduzindo uma primeira dicotomia no seio da modernidade e que se prende com uma dupla “percepção” dos objectos dos museus, que integram um valor inteligível (valor cultural) e um valor material (valor económico) (p. 11). Pollock confronta ainda filósofos/ pensadores que reflectiram sobre os museus no contexto modernista (Malraux vs Quatremère de Quincy, Quincy vs Hegel) configurando discursos divergentes.

A influência exercida pelos museus de arte serviu, regra geral, uma ideologia dominante, produzindo uma leitura “conveniente” da produção artística passada ou recente. Os museus actualizam uma certa ritualização e monumentalização ligada ao templo, que são dirigidas agora para consagrar uma determinada ideologia, que hoje em dia se identifica com o capitalismo e o individualismo7.

Estas dicotomias da modernidade e dos museus na modernidade8 introduzem o pensamento e a actividade de Judith Mastai. Situando‑se fora de qualquer paradigma da História da Arte ou da nova museologia, Mastai, segundo Griselda Pollock, mais do que camuflar as dicotomias/ contradições existentes na abordagem da produção artística da modernidade, procurou reflectir sobre a complexidade não só do acervo que a galeria tinha que gerir, como também do próprio trabalho no museu. A desestabilização de conceitos e a problematização de discursos constituem uma das funções do “educador” nos museus9, que “reproduz” assim o papel desempenhado por alguns artistas que promoveram a crítica aos museus ou à institucionalização da produção artística (e à sua submissão a teorias de arte e ao mercado) – “practice as critique” (p. 26).

Há, portanto, uma “constante” (domínio do discurso do museu pelas classes dominantes) cujo conteúdo varia conforme as elites no “poder”.

Não podemos deixar de pensar que Mastai reduz a produção artística à sua função social e crítica e a actividade expositiva e educativa dos museus

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à contiguidade entre a arte e factos históricos e sociais, saltando por cima do carácter estético ou “artístico” (independente) das obras. Trata-se, de facto, de uma linha de trabalho limitativa, mas que, em termos de reflexão museológica, lança argumentos interessantes para debate. Por exemplo, o facto do museu contemplar apenas uma versão da História em detrimento de histórias marginais que o peso institucional, consagrador e unificador do museu sempre desprezou. A crítica implícita é de que os museus não cumprem o seu papel de fonte de conhecimento histórico e artístico, mantendo um modelo linear e celebrativo da História ou, e aqui reside o verdadeiro papel do museu para Mastai, de promotores de discussão e reflexão sobre as diferentes “ramificações” da História e de inclusão da comunidade no “intellectual debate and the creation of a critical mirror in which to read contemporary cultural arguments provoked by the making of art” (p. 29). A lógica (do marketing), a que são submetidos os museus à medida que os apoios públicos lhes são retirados, é contrariada por Mastai através da defesa do museu como uma instituição educativa, com responsabilidades morais, que impõe aos seus profissionais uma concepção particular da sua actuação: performance num laboratório. A esta concepção associa-se outra, a de que o público é heterogéneo, sobretudo numa sociedade multicultual como a norte-americana, associando-se ou não ao museu através de vários “pontos de entrada” (“points of entry”) (Judith Mastai – “There Is No Such Thing as a Visitor”, p. 175). Isto faz com que “museum work becomes both performativity and performance art”. Os seus “performers” (trabalhadores

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do museu) ensaiam programas que apelam a um público específico, que sente então empatia com o projecto que a instituição pretende realizar. Uma mutação generalizada do museu é então levada a cabo para acolher as várias comunidades do local onde está implantado: “it changes the concept of the public so they become participants in a cultural activity” (p. 30). Esta concepção de público como participante leva Mastai a negar a figura do “visitante” no museu. Para Mastai os chamados “visitantes” podem também trazer para o espaço público um debate mais amplo sobre a sociedade actual, bem como a confrontação com um passado que mais do que debater, procurou-se sempre “apaziguar”. O museu é, sob este ponto de vista, humanístico, o seu objecto é o Homem. Produzido maioritariamente por especialistas do universo museológico anglosaxónico e norte-americano, esta publicação reflecte claramente um contexto particular e, consequentemente, as questões que este suscita ao nível dos museus: privatização, integração do multiculturalismo, abordagem de determinados traumas que marcam alguns grupos da sociedade. Não podemos, contudo, limitar o campo de aplicação das teses apresentadas nesta publicação, uma vez que as principais questões apontadas (se os museus estão de facto a proporcionar um conhecimento abrangente sobre os vários períodos e tendências artísticas que apresentam, se se procede à integração da sociedade na programação e no debate/ reflexão que promovem, ou deveriam promover) podem ser também colocadas no nosso próprio contexto museológico.

Por outro lado, tendo em conta que a nossa sociedade tem vindo, pela via da imigração, a fragmentar-se em grupos de proveniências culturais diversas, a estratégia aqui apresentada, de compromisso mútuo entre o museu e as diferentes comunidades, assume grande pertinência. Não podemos também desprezar a operacionalidade da noção de museu enquanto lugar de experimentação e de performatividade e a dinâmica em termos de actividade e de público a ela associada. Não se trata, porém, de copiar estas ideias e implementá-las nos nossos museus. Qualquer renovação na programação museológica tem que ser precedida, como Museums after modernism exemplifica, por um esforço de questionamento, problematização e autocrítica.


Notas 1 Vários autores já se debruçaram sobre este

tema, i. e., sobre as alterações ocorridas nos museus no período após a II Guerra Mundial, abordando-as ao nível arquitectónico, das práticas museológicas/ gestão e apresentação das colecções ou, numa perspectiva mais crítica, dos mecanismos de institucionalização do objecto artístico que o museu põe em prática: LEVIN, Michael D. - The modern museum, temple or showroom. Tel Aviv: Dvir Publishing House, 1983; DAVIS, Douglas - The museum transformed: design and culture in the post-Pompidou age. New York: Abbeville, 1990; CRIMP, Douglas – On the Museum’s Ruins. Cambridge [Massachusetts]: The MIT Press, 1993; SEROTA, Nicholas - Experience or interpretation: the dilemma of museums of modern art. London: Thames and Hudson, 1996; ZERNER, Henri – The Idea of a Modern Museum. Imagining the Future of The Museum of Modern Art. New York: The Museum of Modern Arte, 2002.

gender, and sexuality, i. e., what was placed categorically outside what the museum defines alone as art worthy of being part of the canon” (p. 11). 8

“On the one hand, modernity is subject to nostalgia for what it feels it has lost: tradition, connectivity, and self-identity. This nostalgia becomes dangerous if it falls into fascism. On the other hand, modernity is prey to its own inaugurating rootlessness in intellectual self-consciousness. Thus it oscillates, suspended between regressive conservatism and edgy estrangement as the drive of critical creativity itself” (p. 18).

9

“Thinking in the changing world of ideas so as to deconstruct and reinvent what is conserved and exhibited in the museum as dynamic elements of living cultures” (p. 25).

2 “In an era when museums and galleries are

increasingly being subsumed into national heritage and civic tourist industries through blockbusters and managed education programs”; “in what sense can the museum be(come) a public place, publicly responsible for stimulating and housing critical thinking in and through art” (p. XX) 3

POLLOCK, Griselda - Un-Framing the Modern: Critical Space/ Public Possibility, p. 31.

4 Gómez Martínez, Javier - Dos museologias

: las tradiciones anglosajona y mediterranea: diferencias y contactos. Gijón: Ediciones Trea, 2006. 5

POLLOCK, Griselda - Un-Framing the Modern: Critical Space/ Public Possibility, p.33.

6 Vera Frenkel e Mary Kelly são duas artistas plásticas que mantiveram uma relação pessoal e profissional com Judith Mastai. Ambas trabalham temas que enformam os traumas do presente reflectindo sobre a sua presença nos museus. 7

O exemplo do MoMA, programado por Alfred H. Barr, remete para as novidades no funcionamento dos museus sem, no entanto, atacar o seu carácter institucional: “MoMA created the terms of intelligibility and dissemination of the new, while having to consolidate art as always already known within its fixing definitions, preferred narratives and ultimately selective canon. The museum installed a racist, sexist and Eurocentric conception of the modern against which we are not obliged to agitate from the disqualified margins of race, class,

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Na capa: Mesa II Exposição “Alvaro Siza - Expor” Museu de Serralves, 2005 © Moritz Elbert

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Coordenação editorial Alexandra Curvelo Textos Alexandre Pais Alexandrina Barreiro António Martín Pradas António Ponte Catarina Alves Costa Catarina Mourão Clara Camacho David Fleming Dóris Santos Filipe Serra Graça Filipe Helena Santos João Brigola João Pedro Fróis José Arnaud Judith Ara Lázaro Leonor de Oliveira Luís Raposo Manuel Bairrão Oleiro Mercês Lorena Odete Patrício Paulo Ferreira da Costa Pedro Lapa Raquel Henriques da Silva Roger Marcet i Barbé Susana Bessone

Traduções Alexandra Curvelo Ana Madureira Clara Mineiro Felisa Perez Apoio Ana Madureira Carla Rodrigues Nuno Fradique Edição e propriedade Instituto dos Museus e da Conservação Palácio Nacional da Ajuda Ala Sul, 4.º andar 1349-021 Lisboa Telefone: +351 21 365 08 00 Fax: +351 21 364 78 21

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Periodicidade anual Preço por número 20 € Tiragem 1000 Exemplares ISSN 1646-6705 Inscrição na ERC nº 125160 Depósito Legal nº 258753/07 Agradecimentos Centro de Arte Manuel de Brito Francoise MacClafferty – National Museums Liverpool Fundação António Prates Fundação Ellipse João Herdade Museu de Arte Contemporânea de Elvas Museu do Chiado / Museu Nacional de Arte Contemporânea Museu Colecção Berardo Museu Municipal de Tomar – Núcleo de Arte Contemporânea Museu do Neorealismo Professor Bragança Gil Sonja Ameglio – Atelier Thomas Struth Os artigos são da inteira responsabilidade dos respectivos autores. Os textos e as imagens não podem ser reproduzidos sem autorização prévia do Instituto dos Museus e da Conservação ou de outros eventuais proprietários.


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