Catálogo Alfred Hitchcock

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disfarçadamente, apontar essa prova irrefutável para todos nós, do lado de cá, inscrevendo a plateia dentro daquele jogo como uma verdadeira testemunha ocular. Acontece que o criminoso acaba percebendo o gesto dela e procura seguir, com seu olhar, a direção em que a moça sinalizava a descoberta do tal anel comprometedor. Fui testar o efeito diabólico do bruxo Hitchcock sobre a impotente plateia imediatamente na sessão seguinte – uma época não tão distante assim, quando o espectador, com o ingresso comprado apenas para uma sessão, poderia ficar na sala e assistir a quantas sessões quisesse, em cinemas onde cabiam sempre bem mais de seis, sete centenas de espectadores. Só que, naquela segunda vez, fui para a frente do auditório e escolhi uma poltrona vazia no meio da primeira fila. E no momento aguardado, em vez de olhar para a tela, virei-me na direção dos espectadores. Foi quando me dei conta do espanto e do quase pânico que tomava conta de todos, igualmente descobertos ali pelo olhar do criminoso, tal qual Stewart, que rapidamente move-se um pouco para trás, tentando se proteger do olhar investigativo do criminoso, refugiando-se numa área de sombra do apartamento. No escuro do cine Veneza, talvez sem se dar conta, a maioria dos espectadores também recuava o corpo contra a poltrona. Lembro-me de ter visto, bem mais para o fundo da sala, dois espectadores que chegaram a se levantar momentaneamente. Naquele instante, ao olhar diretamente para a câmera, o criminoso não só descobria Stewart atrás de uma teleobjetiva, como, principalmente, descobria também os espectadores confortavelmente sentados na penumbra do cinema, até então testemunhas razoavelmente distanciadas da trama. Segundo a realizadora e teórica Laura Mulvey, sempre que acontece tal efeito, a narrativa cinematográfica aciona um perfeito curto-circuito entre as três séries de olhares que compõem a estrutura do plano-ponto-devista no cinema clássico: o olhar das personagens na ficção, o olhar da câmera e o olhar dos espectadores na plateia. Os três olhares atravessados por uma simetria perfeita1. Com tal domínio da linguagem cinematográfica — especialmente no controle da direção desses planos-ponto-de-vista, Hitchcock subvertia, por razões narrativas, uma das regras básicas do cinema clássico, ou seja, a da interdição de olhares entre personagens na tela e os espectadores na plateia. Isso porque toda a vez que um personagem olha para a câmera, ele acaba também olhando para o espectador, encarando-o de frente e interpelando o olhar espectatorial. Trata-se da violação de um contrato que denuncia a presença do espectador e provoca um certo desconforto, chamando atenção para o voyeurismo próprio da situação cinematográfica. Rompe-se um contrato firmado no momento da compra do ingresso na bilheteria e que nos garante sempre o direito e a onipotência de olhar e não de ser olhado. Esse exemplo paradigmático das relações entre cinema e voyeurismo muito bem entendidas e exploradas por Hitchcock ganha peso narrativo nesse filme exatamente pelo fato de que, desde o início do filme, o mestre estabelece uma outra simetria que posiciona a personagem ....................................................................................... MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, em Ismail Xavier (org) A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal/ Embrafilme, 1983, pp. 437-453. (Tradução de João Luiz Vieira.) Para um detalhamento do funcionamento do plano-ponto-de-vista no cinema clássico, ver BRANIGAN, Edward. “O plano-ponto-de -vista”, em Fernão Ramos (org), Teoria contemporânea do cinema, vol. I. São Paulo: SENAC, 2005, pp. 251-275. 1


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