Catálogo Alfred Hitchcock

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mento da reputação de Hitchcock como grande gênio do cinema começa nas páginas da Cahiers du Cinéma, com críticas de filmes, dossiês e entrevistas, mas rapidamente tomará as feições ambiciosas do livro. O primeiro é Alfred Hitchcock, publicado em 1957 pelas Éditions Universitaires, e escrito por Eric Rohmer e Claude Chabrol. Trata-se de uma obra potente, que funde muito bem todas as implicações formais e morais da obra num rigoroso estudo filme a filme, e que se conclui pela afirmação de que Alfred Hitchcock é “um dos maiores inventores de formas de toda a história do cinema”, e que só talvez Murnau e Eisenstein podem ser comparados a ele nesse quesito. O livro é arrematado por outra frase retumbante mas perfeita: “A forma, aqui, não enfeita o conteúdo: ela o cria. Todo Hitchcock repousa nessa fórmula”. Mas será só com outro livro, esse sim mundialmente difundido, que o outrora “mestre do suspense” será definitivamente reconhecido como um genuíno artista e pensador de cinema: Le Cinéma selon Alfred Hitchcock, uma extensiva e detalhada série de entrevistas feitas com Hitchcock por François Truffaut, lançada em 1966. Nos dez anos que separam a publicação desses dois livros, no entanto, a ambição dos próprios filmes ajuda a consolidar o nome de Hitchcock entre os grandes do cinema: nesse período foram realizados Um corpo que cai (Vertigo, 1958), Intriga internacional (North by Northwest, 1959), Os pássaros (The Birds, 1963) e Psicose (Psycho, 1960), filmes que atingem um ápice de perturbação moral, refinamento estilístico e ousadia formal, e que, mais do que qualquer livro, advogam brilhantemente a defesa de Hitchcock como um grande criador de formas, mais comparável ao cinema experimental do que às convenções narrativas hollywoodianas. A partir dos anos 1970, o reconhecimento é absoluto. Hitchcock passa a ser tema de inúmeros ensaios críticos, biografias, reavaliações, livros de mesa etc. Passa inclusive a surgir uma literatura voltada para a avaliação de temas específicos em seus filmes, em especial o voyeurismo e a objetificação feminina. Ironia das ironias, Alfred Hitchcock vira tema acadêmico – infelizmente, pelo viés mais filisteu possível, o dos estudos culturais. Seja como for, Hitchcock passa a ser onipresente no panorama do cinema, das listas de melhores filmes de todos os tempos (nas quais Um corpo que cai entra quase sempre) aos bonequinhos e demais itens de decoração cinéfila. Mas essa superexposição não seria um dado tão preocupante quanto o inicial esnobismo a que ele era renegado antes dos anos 1950? Não seria o passarinho de estimação, domesticado e colocado nas prateleiras do fã, uma fetichização que arrisca comprometer uma compreensão mais viva de sua obra? Porque sim, sua obra é composta de suspenses, conspirações, sustos, beijos filmados como assassinatos, assassinatos filmados como cenas de amor, loiras hitchcockianas, clímaxes em locações monumentais, voyeurismo, mas reduzir Hitchcock a uma coleção de clichês do que é “hitchcockiano” é uma forma de vender a obra barato demais. Há, de fato, uma ironia em tudo isso: Hitchcock adorava o barato, e de sua superfície sabia extrair as consequências mais inesperadas. Esse estatuto ambíguo de ser gênio e bonequinho ao mesmo tempo certamente renderia a ele umas boas risadas. Mas pode-se ver os filmes de qualquer cineasta pedindo pouco e se fartando com o pouco efetivamente oferecido. Outra coisa é estar diante da obra de um grande cineasta e pedir os clichês com que se foi educado. Aí entra o estilo Hitchcock.


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