Hoje Macau 6 DEZ 2017 #3950

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6.12.2017 quarta-feira

os “oito nobres monges” correspondem na imaginacão ´ oculta às oito perfeicões da via octúpla ´ Tiago Saldanha Quadros

Do charme discreto do habitar A Vila Primavera, locus amoenus de Manuel da Silva Mendes

Só as casas explicam que exista uma palavra como intimidade1 Ruy Belo

N

ESTE poema, Ruy Belo pensa ou percepciona a ”casa” como visão de uma consciência que é a sua e que é incondicional, subjectivamente virada para o seu objecto de pensamento (a realidade e o mundo). De acordo com Manaíra Aires Athayde: ”Ruy Belo era um tanto obsessivo por anotar datas, lugares, sugestões de títulos e princípios de ideias para contextualizar o surgimento de cada poema. É comum encontrarmos esses apontamentos em autógrafos e sobretudo nas marginálias de alguns de seus livros depois de publicados, uma vez que essas informações nem sempre eram divulgadas.”2 Nesse sentido, toda

DESENHO CEDIDO POR O•BS, ARQUITECTOS, LDA.

Projecto de ampliação da Casa Silva Mendes: alçado principal, em cima e alçado lateral esquerdo, em baixo

a nova construção deve ser entendida, também como oportunidade de revelação de um lugar. As características essenciais que separam a arquitectura da literatura, fundam--se nos critérios espaciais e tipológicos, e na gravidade que assegura a natureza essencialmente estrutural e construtiva do projecto arquitectónico. O espaço é determinado pelas propriedades concretas da terra e do céu. A fenomenologia do ”espaço natural” ocupa-se, de forma sistemática, de toda esta totalidade feita de planícies, vales, colinas e montanhas. A este propósito, Norberg-Schulz3 defende que a terra, quando controlada, é ”o palco cénico da vida quotidiana”, e que quando entre os homens se estabelecem relações, carregadas de significado, a paisagem natural origina a paisagem cultural. Vem isto a propósito da Vila Primavera, morada de Manuel da Silva Mendes

em Macau. Lugar onde o português, a residir desde 1901, foi professor, advogado, membro do Leal Senado, bem como reputado sinólogo e um coleccionador notável de arte chinesa. O registo do terreno data de 7 de Julho de 1904 mas o da casa é apenas averbado em 14 de Junho de 19174. Pressupõe-se que a proximidade da encosta da Guia, bem como a própria forma do terreno revelassem um contexto natural abundante, adequado a alguém interessado no estudo da arte e cultura Chinesa. É nesse charme discreto do habitar, confinado ao espaço isolado confabulado por Manuel da Silva Mendes, que reside a dimensão essencial da sua permanência em Macau. Longe dos demais compatriotas, mais perto da sua família, dos seus livros e da arte que virá a coleccionar. A amenidade e serenidade da natureza, composta por uma ou mais árvores, por um prado verde ou florido,

por uma fonte ou um riacho, aos quais se podem juntar o canto das aves e o sopro da brisa, caracterizam inequivocamente o locus amoenus, segundo a definição que dele elaborou a crítica literária. É neste contexto de paraíso e abrigo transcendental que identifico a Vila Primavera como o lugar ameno de Manuel da Silva Mendes. Por tudo aquilo que significou e originou, parece-me evidente que, desde o início, Manuel da Silva Mendes não imaginaria um lugar eutópico5, sem a presença da ”civilização” (paraíso artificial). Nesse sentido, interessa-me a ideia de que a Vila Primavera se possa ter configurado para Manuel da Silva Mendes como imagem arquetípica do seu locus amoenus. Por isso, uma paisagem não real, mas ideal e utópica, prefigurando deste modo uma ideia de paraíso para o próprio. Entre os espaços naturais podemos referir a paisagem romântica, com expressão máxima na Escandinávia; a paisagem cósmica, revelada com o seu máximo vigor no deserto; e a paisagem clássica, que pode ser definida em termos de lugares individuais distintos. Contudo, os três tipos de paisagem apresentados são arquétipos que raramente se equacionam de forma ”pura”. Assim, poderíamos antes falar de ”paisagens compósitas”. Ainda a propósito do espaço natural, Norberg-Schulz considera que o homem, para poder habitar a terra, deverá compreender a interacção céu/terra enquanto conceito existencial, considerando que ”o céu é a parábola da terra”. A Vila Primavera, classificada como Edifício de Interesse Arquitectónico, data do início do século XX e mantém, na essência, a sua identidade face ao crescimento e proliferação de edificado em seu redor. Trata-se de um exemplar do ecletismo arquitectónico português, cuja expressão neo-romântica, apesar de ténue, faz referência aos ”vários revivalismos” que pontuaram o panorama arquitectónico do século XIX. Manuel da Silva Mendes recusava de forma muito crítica o modo como elementos e caraterísticas próprias da ”arquitectura romana” eram profusamente replicados em construções novas. Para Manuel da Silva Mendes estava em causa a defesa e preservação de tradições construtivas locais. Esse seu interesse, conhecimento e sensibilidade relativamente às questões da arquitectura e da cidade são evidentes em textos da sua autoria como Arquitectura Sacra em Macau6, O templo de T’in Hau na Barra7 ou a Cidade de Macau8, entre outros. De certo modo, o ecletismo arquitectónico da Vila Primavera reflecte uma tendência preconizada por grande


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