ARTES, LETRAS E IDEIAS 15
terça-feira 15.5.2018
máquina lírica Paulo José Miranda
factura? sejam dos seus pensamentos acerca do que vê, quer sejam acerca do que lê – “A boa companhia que esta gente morta me faz só eu sei.” (fr. 172); “Eu retornava ao livro que estava a ler e era sempre como se voltasse a casa. Enfim, stat pristina rosa nomine, nomina nuda tenemus.” (fr. 186). As várias vezes que ao longo do livro surgem citações latinas, e são algumas, elas nunca surgem em itálico ou entre parêntesis, assumindo plenamente que o latim faz parte da nossa língua, ainda que seja como aqueles parentes que só vimos no Natal. Há, assim, também uma ars poetica que se desenvolve ao longo do livro, embora se desenvolva muito discretamente, como que nas catacumbas do livro. E as reflexões acerca da escrita são cerzidas lenta e pacientemente em ponto cruz, ligando o geral ao particular, sendo o desenho que sobressai o particular, aquilo que são as particularidades da autora. No fragmento 86, escreve: “Comecei uma frase e logo vi que tenho as minhas obsessões narrativas. Sempre as tive. (...) Hoje penso que tenho de começar a interromper as minhas obsessões narrativas. Mas toda a obsessão sabe quanto pode e por isso persiste.” Obsessões narrativas, escrever sobre o quotidiano, aparecem como deuses que impõem sobre o humano as suas vontades, algo que não pode ser mudado, faça-se aquilo que se fizer. E aqui não podemos deixar de ver como horizonte a tragédia grega, que também calcorreia o convés deste livro. Repare-se no fragmento 236 e de como se vê claramente que mesmo forçando aquilo que mais gostamos, aquilo que mais nos obceca, o que tem de ser é o que tem de ser: “Também fui ao supermercado e parei no corredor dos detergentes a pensar que faz algum tempo que não escrevo nada do supermercado. Quem tem a obsessão do quotidiano percorre os seus pontos de referencia na esperança de que eles se dêem para serem ditos, não foi o caso hoje. Mas o detergente que eu procurava estava com 50% de desconto.” Estamos então também diante de um livro com atenção e veneração pelo mistério. E não será toda a atenção uma veneração? O mistério está em tudo. Não somente no que nos escapa, como as obsessões ditatoriais ou esta vida particular ao invés de uma outra também particular embora completamente diferente, mas principalmente o tempo que se agarra às saias de uma chávena ou ao pires dessa mesma chávena, como no maravilhoso fragmento 100, que é extenso de mais para o reproduzir aqui – peço a si, leitor, que o encontre e o leia –, mas mostra como as coisas não são coisas por elas mesmas, mas coisas com as nossas vidas lá coladas.
Danos e virtude, de Ivone Mendes da Silva
Ou talvez seja precisamente o contrário, Felizmente, aqui não é o caso. Dano e uma coisa só é coisa se não tiver a nossa Virtude, faz-me regressar a mim e trazer vida lá colada, se não nos surgir com o junto nessa viagem de regresso o início tempo agarrado às suas saias. daquele soneto de Camões, Aquela trisPoderia este livro ser lido como um te e leda madrugada... Ivone Mendes da diário, uma espécie de diário de bordo, Silva escreve, ao fragmento 140: “Moro não de uma viagem a algum pais distannuma cidade de província e tenho a mais te e desconhecido, mas de uma viagem desengraçada das vidas. Escrevo a manhã à existência mais próxima? Podia, se e a esplanada. Escrevo-as para as vencer.” quiséssemos minimizar a nossa leitura Vence claramente a esplanada e reinventa – embora a autora nos queira levar a ver a manhã, um modo de ser manhã. Reino livro assim, no final do fragmento 281: venta o modo de nos vermos e de vermos “Tudo o que conto parecerá sem história o nosso tempo, com os sacos de compras mas a diarística é isso mesmo: supor à e os corredores de supermercado e as estrivialidade uma morfologia épica.” Mas planadas com mesas cheias de cafés e de não saímos da leitura desta passagem imperiais (não neste livro) e com os sásem nos salpicarmos de ironia, o que nos bados e os domingos tão diferentes para legitima a trocar de indumentária heras mães e para os pais, tão diferentes para menêutica rapidamente. Poderia ser lido os homens e para as mulheres (como como um romance? também as férias): “God sake”, não! Até “Ela tem o ar canporque, como a prósado de quem saiu Estamos então pria autora escreve, de casa apenas para no fragmento 170, ir cozinhar noutro também diante de “Nunca se deve quelado.” (fr. 74); “ah, rer saber o final de ainda não jantou... um livro com atenção uma história.” Nada olhe, uma das coisas contra o romance, que mais invejo nas e veneração pelo mas o fragmento – senhoras sozinhas é tal como nos aparece poderem jantar tarde. mistério. E não será aqui nestas páginas Olhe, jantarem quan– é a mais nobre arte do lhes apetecer.” (fr. toda a atenção uma da prosa e, uma vez 217) E a escritora salveneração? O mistério mais, não há necesva as árvores! Salva-as sidade em minimizar mais do que aqueestá em tudo a nossa leitura. Até les que se indignam porque a autora em sazonalmente nas dois momentos disredes sociais. A estintos, nos diz isso mesmo: 1) se fosse ela critora salva-as nomeando-as, atentando outra, romancista, por exemplo, “Podenelas, mostrando a nós, leitores, que há ria ter ido ao mercado quando estavam árvores nas cidades e que elas têm nomes a chegar os primeiros caixotes de peixe e e cores e cheiros e mudam com o tempo. de legumes e vaguear por entre as bancas “Fui caminhar no tempo que me sobrou de sapatos na mão e a segurar um vestido da tarde e de tudo dei conta.” (fr. 191) preto e absurdo. Estaria agora no texto de Fui caminhar no tempo que me sobrou alguém que me inventava vidas.” (fr. 26); da tarde e de tudo dei conta, escrevo eu e termina o fragmento 264 de modo a agora, como quem copia num caderno o não deixar quaisquer dúvidas nos detecque mais gosta, para não esquecer. Portives literários, “Sou uma fragmentária e que é muito triste não saber o nome das nada a fazer.” coisas e ninguém repara nisso. E é preciUm autor não precisa erigir uma gransamente no nome das coisas, mas mais de obra para ser um grande autor. Num só ainda no nome da natureza, dos seres da livro, ou em dois ou três, como os queinatureza, plantas, árvores, animais, que ram contar, Raduan Nassar erigiu uma o quotidiano se cruza com a metafísica. obra tremenda, pois num só livro, ou em A necessidade de nomear o que há, de dois ou três, pode estar grande parte do não lhe encontrar apenas galhos e folhas humano, com a beleza que ele inventa e e cores e cheiros, mas também um lugar o sofrimento que carrega. E o livro Dano no dicionário, um modo de essas coisas e Virtudes, faz de Ivone Mendes da Silva nos saírem das mãos e da boca, de pouma autora esplendorosa da nossa língua derem aparecer quando não estão. Esta é – para adjectivar o seu livro com o mesuma das qualidades maiores da escrita de mo que ela usa quando se refere à lua a Ivone Mendes da Silva, a de nos mostrar subir no céu, no fragmento 116. Mas há a falta que as palavras nos fazem. A falta obras esplendorosas que podem não ser que somos, sem elas. Por todo o convés muito chegadas à nossa sensibilidade. deste livro se avista este abraço nupcial
entre as palavras e as coisas, entre a vida humana e as palavras, entre o silêncio e a palavra. É como se sem palavras não se conseguisse ver a beleza. O fragmento 241 é provavelmente o que levanta mais a saia da filosofia e deixa mostrar as pernas de Wittgenstein – fragmento todo ele belo do princípio ao fim –, terminando com esta frase: “Do que não se sabe falar não se pode ter.” A autora refere-se, aqui, à felicidade, mas pode muito bem ser extensivo a tudo. Sem palavra somos a menos do que poderíamos ser, e isso avista-se com uma clareza enorme, do convés deste livro. “Não saber o nome das coisas deixa-me sempre perdida como se chegasse de noite a uma terra estranha cuja língua eu não falasse. Lembro-me de ter visto uma vez um arbusto tombado sobre o muro de uma quinta com umas grandes bagas vermelhas. Parecia lacre derretido sobre as folhas e parei um pouco a olhá-lo triste de saber dizê-lo. E tantos são os nomes que me faltam. Árvores e trepadeiras. Pequenos insectos de asas translúcidas que saltam e logo desaparecem nas primeiras sombras do lusco-fusco. Não saber o nome das coisas deixa-me sempre o dia pela metade.” (fr. 220) E no fragmento 292, a autora deixa tudo isto muito mais claro: “O cheiro das pêras maduras sobre a bancada da cozinha creio que não existe se o não escrever. Talvez isto seja uma doença e não das mais fáceis de curar e talvez eu não saiba relacionar-me com o mundo de outro modo que não seja com uma frase de permeio.” Mas não é só a existência que vibra nestas páginas, esplendorosamente, ou o tempo agarrado às saias das coisas, separando a matéria do espírito – mostrando claramente a diferença entre uma coisa que se parte e pode ser substituível de uma coisa que se parte e não só não tem substituição como também nos faz entrar um pouco mais na morte que nos espera – também a língua portuguesa vibra como raramente a vemos ou escutamos vibrar. Mais do que um livro para agradecer, um livro para venerar. Ou, como diria um antigo amigo meu, quando encontrava pela primeira vez palavras boas acerca do mundo ou das pessoas (boas no sentido gramatical e existencial, bem entendido): “isto bem aproveitadinho [a afectação que nos abalroa] dá para duas semanas de vida.” E com a dificuldade que hoje temos de arranjar palavras para um dia de vida, este livro bem bem aproveitadinho dá-me seguramente até ao final do ano, quando ainda nem chegamos a meio. E há quanto tempo não me acontecia nada disto! Evidentemente vou comprar mais dois Danos e Virtudes para oferecer. Pois não devo ser egoísta.